MEGAESÔFAGO E HÉRNIA DE HIATO ESOFÁGICO ASSOCIADOS AO TÉTANO EM UM CÃO: RELATO DE CASO MEGAESOPHAGUS AND ESOPHAGEAL HIATAL HERNIA COMPLICATING IN DOG: CASE REPORT Leandro Haczkiewicz Gaiga1,João AntonioTadeu Pigatto2,Mauricio Veloso Brun3 RESUMO Este trabalho relata o caso de um cão que, além dos sinais clínicos comumente encontrados no tétano, apresentava regurgitação. O paciente foi encaminhado para realização de exames radiográfico e endoscópico que revelaram esôfago dilatado e hérnia de hiato esofágico. Foi instituída terapia conforme a indicação da literatura. Após 45 dias do início do tratamento realizou-se novamente exames radiográfico e endoscópico que evidenciaram completa resolução do megaesôfago e da hérnia de hiato. Conforme se observou no presente relato, cães com tétano podem desenvolver megaesôfago e hérnia de hiato esofágico transitórios. Palavras-Chave: tétano, regurgitação, megaesôfago, cão. ABSTRACT This article describes a case of dog that developed the classic signs of tetanus and regurgitation. The radiologic and endoscopic studies indicate dilated esophagus and esophageal hiatal hernia. The patient was treated according to literature. The dog was reavaluated 45 days later and plain radiography and endoscopic revealed complete resolution of megaesophagus and esophageal hiatal hernia. This report demonstred that transient megaesophagus and esophageal hiatal hernia can be evidenciaded in dogs with tetanus Key words: tetanus, regurgitation, megaesophagus, dog. causada pelo Clostridium tetani e sua INTRODUÇÃO toxina (GREEN, 1984). Essa consideração, O tétano é uma doença que ocorre porém, tem certa limitação em regiões com pouca freqüência em cães, devido à tropicais e subtropicais, que devido as suas resistência natural desse animal à infecção características de temperatura, umidade e 1 Méd. Vet. Prof. Substituto da disciplina de Técnica Cirúrgica da UFRGS, E-mail: [email protected] Méd. Vet. Dr. Prof. Adj. Dpto de Medicina Animal, UFGRS 3 Méd. Vet. Dr. Prof. Adj. Universidade de Passo Fundo (UPF) Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 2 Gaiga, L.H. et al. 146 condições do solo, permitem maior difusão um grau moderado de rigidez nos membros do agente causador da doença (CORRÊA & e CORRÊA, 1992). Nessas regiões a doença freqüência pode músculos adotar um caráter epidêmico musculatura dorsal, aumento na respiratória, tensão nos abdominais, trismus da musculatura facial e contrações tônicas (KOHLER & BEER, 1988). A síndrome clínica associada com o generalizadas. Essa última condição não tétano está atribuída a ação de uma permitia ao animal se manter em estação. exotoxina, a tetanoespasmina, gerada pela Com base no histórico e nos sinais clínicos forma vegetativa do Clostridium tetani. da doença, foi feito diagnóstico presuntivo Essa toxina atua no sistema nervoso e de tétano. muscular Inicialmente realizou-se acesso à generalizada, contratura da musculatura veia cefálica e administração de solução de facial e protusão da membrana nictitante ringer lactato na dose de 10 ml/kg por hora. (GREEN, 1984). Foi administrado 0,1 ml de antitoxina comumente provoca rigidez Disfagia e regurgitação são sinais tetânica por via subcutânea, observando-se clínicos raros no tétano (DHIMAN et al., a possibilidade de sinais de anafilaxia. 1992) e podem desfavorecer o prognóstico Trinta minutos após a dose teste, foi do o administrada 500 U.I./kg de antitoxina diagnóstico precoce e tratamento adequado tetânica1 por via intravenosa (IV). Utilizou- (DIERINGER & WOLF, 1991). Objetivou- se se com o presente trabalho relatar um caso intramuscular (IM), na dose de 20.000 de megaesôfago e hérnia de hiato esofágico U.I./kg, a cada 12 horas, durante sete dias. transitório em um cão com tétano. Aplicou-se, também, diazepan3 por via IV paciente, caso não seja feito penicilina procaína2 por via na dose de 0,5 mg/kg quando era necessário RELATO DE CASO Foi atendido no Hospital de Clínicas o relaxamento muscular. O paciente foi colocado em ambiente silencioso e Veterinárias da Universidade Federal do escurecido, onde se alterou a posição a cada Rio Grande do Sul, um canino, Pastor quatro horas a fim de prevenirem-se a Alemão, macho, quatro meses de idade, formação pesando 15 Kg, com histórico de andar congestão hipostática pulmonar. de escaras de decúbito e enrijecido progressivo há cerca de uma semana e dificuldade na ingestão de alimento. Ao exame físico, foi observado Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 147 Megaesôfago e Hérnia... a RESULTADOS E DISCUSSÃO Decorridos três dias de tratamento observou-se diminuição na rigidez muscular, e a ingestão de pequenas quantidades de alimento (ração industrial4) e água. Após sete dias de tratamento, o cão conseguia caminhar por curtas distâncias e Dez dias após a admissão, o iniciou regurgitação com após episódios alimentação. de Foi realizado esofagograma contrastado que revelou megaesôfago (figura 1). 8 horas; cimetidina6, via intramuscular, na dose de 10 mg/Kg, a cada 12 horas; e alimentação pastosa4, colocada em um plano elevado em relação ao animal, forçando-o a se alimentar em posição bipedal pélvica, cessando os episódios de regurgitação. Após três dias de tratamento o paciente recebeu alta, sendo o proprietário ingerir água e alimento sem assistência. paciente cada Na endoscopia, pode-se observar a presença de instruído a oferecer pequenas porções de alimento pastoso várias vezes ao dia, em plano elevado e manter o animal nesse plano por 30 minutos. Trinta dias após a alta, o canino foi reavaliado, não sendo mais notada a presença de alterações esofagite de refluxo, além da dilatação do musculares e regurgitação ao ser ingerido o esfíncter esofágico inferior, com presença alimento em posição normal. O proprietário de líquido gástrico no lúmen esofágico e relatou ausência de regurgitação do animal projeção do estômago através do cárdia, nas caracterizando a presença de hérnia de hiato esofagograma contrastado revelou lúmen esofágico deslizante (ELLISON et al., esofágico em padrão normal (figura 2) e o 1987). Com base nessas alterações, foram administradas metoclopramida5, via duas semanas precedentes. O exame endoscópico demonstrou ausência de megaesôfago e hérnia de hiato . subcutânea, na dose de 0,2 mg/Kg, aplicada FIGURA 1 - Exame radiográfico contrastado do esôfago, incidência latero-lateral. Pode-se observar a presença de megaesôfago caudal. Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 Gaiga, L.H. et al. 148 FIGURA 2 - Exame radiográfico contrastado do esôfago após 33 dias, incidência latero-lateral. Pode-se observar a ausência de megaesôfago e linha normal de contraste. A DISCUSSÃO E CONCLUSÃO rigidez muscular extrema generalizada, que caracteriza a doença, se De acordo com GREEN (1984), o deve a ação da tetanoespasmina. O acúmulo diagnóstico de tétano pode ser feito baseado da toxina no neurônio motor inferior do no histórico de injúria ou cirurgia e/ou na cordão espinhal interfere com a liberação de presença dos sinais clínicos característicos neurotransmissores da doença. KOHLER & BEER (1988), (GREEN, 1984). De acordo com KOHLER observaram que em quase um terço de & BEER (1988), o quadro clínico típico de todos os casos de tétano não podem ser tétano consiste de rigidez da musculatura determinadas as lesões que originam a corporal, que se estende a partir dos doença, pois com certa freqüência são músculos da cabeça, em particular dos ferimentos que passaram desapercebidos e mastigadores a totalidade da musculatura que, ao apresentarem-se os primeiros esquelética. sintomas clínicos de tétano, já cicatrizaram. mastigação CORRÊA & CORRÊA (1992) relataram alteradas, as orelhas elevadas e rígidas, a maior freqüência de tétano em cães de 2 a 6 marcha tornara-se cambaleante, ocorriam meses de vida, devido a maior exposição a opistótomos e separam-se e estendem-se as diversos extremidades. GREEN (1984) descreve que tipos de lesões ou feridas, No e inibitórios animal a (glicina) doente, deglutição a estavam ocasionadas por brincadeiras, troca de o dentes e imunidade natural insuficiente. espasmos dos músculos faciais e temporais. Sob esses aspectos, justifica-se a ausência Esses resultam em trismus, elevação dorsal de ferimentos ao exame clínico do animal das pálpebras e protrusão da membrana do presente estudo. nictante. O pregueamento da pele da cabeça tétano normalmente começa com e a retração dorsal das orelhas são Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 149 Megaesôfago e Hérnia... comumente observado, produzindo uma ação da toxina tetânica. DHIMAN et al. expressão facial característica chamada (1992) descreveu o caso de um cão com “riso sardônico”. A rigidez progride com tétano que apresentava disfagia progressiva espasmos no pescoço, tórax, abdômen e e dilatação do esôfago distal. DIERING & dorso, produzindo opistótono e dificuldade WOLF (1991) relataram dois casos de cães respiratória. Conforme a observação desses que apresentavam hérnia de hiato esofágico autores é possível diagnosticar tétano no e megaesôfago associados ao tétano. Em animal do presente estudo, uma vez que todos os casos as alterações esofágicas este apresentava a maioria dos sinais tiveram caráter transitório, assim como o clínicos descritos. animal do presente relato. Conforme CORRÊA & CORRÊA Hérnia de hiato esofágico é definida (1992), o tratamento do tétano tem os como a protusão de víscera abdominal seguintes objetivos: neutralização da toxina através do hiato diafragmático, resultando livre, antes que essa alcance o sistema em refluxo e regurgitação com subseqüente nervoso central, através da administração de esofagite e megaesôfago (MILES et al., quantidades 1988). O tipo mais comum de hérnia hiatal detecção adequadas da lesão de antitoxina; contaminada com no cão é por deslizamento, que consiste no clostridium tetani e desinfecção da mesma deslocamento do esôfago abdominal, com água oxigenada ou debridamento e junção gastroesofágica e parte do estômago remoção cirúrgica do tecido alterado; através do hiato esofágico (ELLISON et al., administração de antibióticos para eliminar 1987). Hérnias hiatais podem ser do tipo a forma vegetativa do clostridium tetani e intermitentes ou persistentes (JOHNSON & controlar a infecção secundária; controle do SHERDING, 1998). espasmo muscular e manutenção nutricional Existem duas possibilidades para e do balanço de fluídos e eletrólitos. O explicar o desenvolvimento de hérnia de tratamento utilizado no paciente do presente hiato esofágico e megaesôfago durante o caso esses tétano. A toxina tetânica pode inibir a ação objetivos, com exceção da desinfecção da da acetilcolina nas junções neuromusculares lesão contaminada com o agente, já que (PANCIERA, 1988). Essa inibição no essa não foi localizada. nervo frênico causa relaxamento do hiato foi eficiente Embora e sinais alcançou de disfunção diafragmático, permitindo herniação esofágica, como disfagia e regurgitação, gastroesofágica. Simultaneamente, o sejam raros no tétano, estão associados a decréscimo da ação da acetilcolina no plexo Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 Gaiga, L.H. et al. 150 vagal ocasiona diminuição na função natureza intermitente, elas podem não ser motora, com subseqüente megaesôfago identificadas com radiografias simples ou (STROMBECK, 1978). Outra possibilidade mesmo contrastadas. No presente caso, é que não a flacidez, mas o espasmo do através do exame endoscópico pode-se músculo diafragmático seja o responsável observar pela distensão do tendão central do abaulando-se dentro do lúmen esofágico, diafragma. Esse espasmo coincide com o com encurtamento caracterizando uma hérnia hiatal deslizante esofágico induzindo herniação hiatal, que leva a um mau funcionamento do inferior. refluxo O esfíncter posterior de rugas redução gástricas espontânea, intermitente. O diagnóstico de esofagite pode ser esofágico gastroesofágico pregas feito através de exame radiográfico acompanha esse distúrbio, que ocasiona contrastado, onde, na presença de esofagite esofagite conseqüente moderada a grave, pode-se observar a megaesôfago (BURNIE et al., 1989). No mucosa irregular ou ulcerada no esôfago presente caso não foi possível estabelecer o distal, após a administração do bário mecanismo exato que gerou a herniação (STROMBECK, 1978). Pode-se utilizar o hiatal e o megaesôfago, mas provavelmente exame endoscópico do esôfago inferior que seja uma combinação dos dois mecanismos revela hiperemia, aumento da friabilidade, citados acima, como já havia observado erosão ou ulceração secundariamente ao DIERING & WOLF (1991) em outros dois refluxo. A biópsia da mucosa esofagiana casos semelhantes. está indicada para a confirmação do de refluxo e de diagnóstico de esofagite (GAYNOR et al., megaesôfago e hérnia hiatal é feito através 1997). No presente estudo, a utilização do de exame O diagnóstico exames radiografia, definitivo complementares, endoscopia e como a fluoroscopia (ALEXANDER et al., 1975). No presente de endoscopia demonstrou claramente a presença de esofagite, não sendo realizada biópsia do esôfago. caso, o exame radiográfico contrastado O tratamento da hérnia hiatal pode demonstrou claramente a presença de ser cirúrgico ou médico, sendo que hérnias megaesôfago, mas não de hérnia hiatal. hiatais Segundo geralmente JOHNSON & SHERDING intermitentes não e/ou pequenas exigem cirurgia (1998), as hérnias hiatais que são pequenas (JOHNSON & SHERDING, 1998). O e se reduzem espontaneamente constituem tratamento médico da esofagite de refluxo um desafio diagnóstico. Devido a sua geralmente controla os sinais clínicos e Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 151 Megaesôfago e Hérnia... envolve a administração de antiácidos para REFERÊNCIAS alcalinizar o conteúdo gástrico e estimular a ALEXANDER, ação da gastrina, aumentando assim o tônus MAcDONALD, J.M., et al. Esophageal do inferior hiatal hernia in the dog: a case report and 1975). review of the literature. Journal American STROMBECK (1979) utilizou com sucesso Animal Hospital Association. v. 11, cimetidina e metoclopramida p.793-797, 1975. minimizar os efeitos esfíncter esofágico (ALEXANDER et al., do para J.W.; HOFFER, R.D.; refluxo gastroesofágico. O mesmo autor cita que a BURNIE, alimentação CORCORAN, B. M. Gastroesophageal elevada do paciente contribui megaesôfago. no Tanto em posição tratamento no A.G.; SIMPSON, J.W.; de reflux and hiatus hernia associated with megaesôfago laryngeal paralysis in a dog. Journal Small quanto na hernia de hiato esofágico, a Animal Practice. v. 30, p. 414-416, 1989. complicação mais comum é a pneumonia por aspiração devido à regurgitação crônica CORRÊA, (ELLISON et al., 1987). No presente caso, Clostridioses o tratamento instituído para o megaesôfago Infecciosas dos Mamíferos Domésticos. 2. e regurgitação foi apropriado, visto que o ed. Rio de Janeiro: Medsi, 1992. cap. 27, p. cão 291-315. não desenvolveu pneumonia por W.M., CORRÊA, In: C.N.M. Enfermidades aspiração de conteúdo gástrico e apresentou regressão dos sinais clínicos. DHIMAN, R.K.; CHOUDHURI, G.; Esse caso e outros citados na BARONIA, A.K., et al. Transient achalasia literatura indicam que tétano pode causar of esophagus in tetanus. Indian Journal megaesôfago e hérnia de hiato esofágico Gastroenterology. v. 11, n. 3, p. 139-140, transitório, portanto, devido as potenciais 1992. complicações que podem ocorrer na presença dessas doenças e, sendo de vital DIERINGER, T.M. & WOLF, A.M., importância o diagnóstico precoce para Esophageal evitar de megaesophagus complicanting tetanus in essas complicações através hiatal hernia and tratamento adequado, recomenda-se a two dogs. Journal American Veterinary avaliação radiográfica contrastada do Medical Association. v. 199, n. 1, p. 87-89, esôfago em cães com tétano que apresentem 1991. episódios de regurgitação. Revista da FZVA. Uruguaiana, v.13, n.2, p. 145-152. 2006 Gaiga, L.H. et al. 152 ELLISON, G.W.; LEWIS, D.D.; PHILIPS, MILES, K.G.; POPE, E.R.; JERGENS, L., et al. Esophageal hiatal hernia in small A.E. Paraesophageal hiatal hernia and animals: literature review and modified pyloric obstruction in a dog. Journal surgical technique. Journal American American Animal Hospital Association. v. 23, p. Association. v. 193, n. 11, p.1437-1439, 391-399, 1987. 1988. GAYNOR, A.R.; SHOFER, Veterinary Medical F.S.; WASHABU, R.J. Risk factors for acquired PANCIERA, megaesophagus Journal KEENE, Medical abnormalities associated with tetanus in two American in dogs. Veterinary L.D.; W.B. J.C.; Electrocardiographic Association. v. 11, p. 1406-1412, 1997. dogs. GREEN, C.E. Tetanus. In: GREEN C.E. Medical Association. v.192, n. 2, p. 225- Clinical 227, 1988. microbiology and infectious Journal BALDWIN, American Veterinary diseases of the dog and cat Philadelphia: STROMBECK, D. R. 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