VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 TALIDOMIDA NO BRASIL: “À DISTINTA CLASSE MÉDICA” FrancieliLunelli Santos1 José Augusto Leandro2 RESUMO A mídia impressa no Brasil da década de 1950 desempenhou um papel preponderante na divulgação de medicamentos industrializados. A partir dos êxitos da quimiossíntese no período imediatamente pós Segunda Guerra, inúmeros novos produtos farmacêuticos foram apresentados ao público consumidor no país. Este texto pretende demonstrar como foram divulgadas as primeiras propagandas, em jornais brasileiros,de medicamentos com base na talidomida. Palavras-chave: talidomida; mídia impressa; indústria farmacêutica. INTRODUÇÃO A década de 1950 expressou uma ‘utopia incerta’. Uma das principais características do período residiu na valorização dos aspectos positivos da ciência e da indústria que, aliadas, foram capazes de espalhar novos produtos tecnológicos por várias partes do mundo, com destaque para os Estados Unidos da América como o país maior produtor e consumidor dessa nova tecnologia. No final daquele decênio o baby boom verificado a partir do pós Segunda Guerra atingia seu ápice e, segundo Brynner e Stephens (2001, p.1), no ano em que a talidomida foi lançada no mercado, 1957, uma atmosfera de “otimismo e energia contagiava todos os lugares”. Com efeito, de acordo com Hobsbawm (1995, p.15), após uma “era de catástrofe”, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, os 25 a 30 anos que se seguiram foram “de extraordinário crescimento econômico e transformação social”. Entre as características notáveis daquele momento, a expansão industrial destacou-se sobremaneira. Para o historiador (p.265), “as principais inovações que começaram a transformar o mundo assim que a guerra acabou talvez tenham sido as do setor químico e farmacêutico”. Estas áreas específicas, vale destacar,ao longo das décadas de 1940 e de 1950 fizeram a farmacoterapia 1 Historiadora, Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa. 2 Historiador, Pós-doutor Universidade do Texas-Austin, coordenador do Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 evoluir extraordinariamente pelo desenvolvimento da penicilina, dos antibióticos e dos quimioterápicos. Foi nesse mesmo ambiente que a talidomida foi lançada na Alemanha e rapidamente comercializada em diversas partes do mundo com alto potencial sedativo e antiemético. Os novos produtos passaram a atuar no controle e cura de algumas doenças há muito presentes em diversas sociedades tais como o tétano, a sífilis, a chamada ‘lepra’ e a tuberculose, por exemplo. A aplicação da penicilina, o grande destaque farmacêutico daquele momento, fez com que pela primeira vez a pneumonia tivesse um tratamento eficaz. O historiador Roy Porter (2004, p. 133), ao olhar para o período, destaca:“Sonhada e adiada por tanto tempo, a revolução terapêutica tornou-se uma realidade. Seguiram-se novas drogas de muitos tipos, na década de 1950, em especial a cortisona, de valor inestimável [...] e os primeiros agentes psicofarmacológicos eficazes...”. No entanto, os anos 50 e 60 apresentaram outras facetas não tão otimistas quanto ao futuro da humanidade. Dois exemplos são ilustrativos do quanto a atmosfera de confiança sobre os destinos dos indivíduos e das coletividades eram frágeis: a possibilidade de aniquilação da espécie humana via guerra nuclear seguia como um dos resultados concretos da divisão do mundo pós 1945; da mesma feita, porém voltada para uma espécie de ‘aniquilação individual’, a doença câncer era constantemente noticiada na imprensa como o grande ‘inimigo’ que rondava a vida moderna dos homens e das mulheres. Brynner e Stephens (2001, p.4) destacam que entre os elementos que reforçam a ideia de uma ‘utopia incerta’ nos anos 50 estavam, inclusive, alguns produtos da nova revolução farmacêutica do período: os calmantes e as pílulas para dormir. Para a Grã-Bretanha, por exemplo, citam (sem mencionar o ano) que eram estimados em pelo menos um milhão as pessoas que utilizavam algum tipo de sedativo diariamente e que cerca de uma a cada oito prescrições do Serviço Nacional de Saúde consistia em receita de pílula para dormir. “Em 1955, os Estados Unidos produziram cerca de 4 bilhões de barbitúricos, o que representava 26 pílulas para cada homem, mulher e criança no país” (IBIDEM). O evento da talidomida, isto é, a confirmação da relação do uso da droga por gestantes aos efeitos teratogênicos nos corpos dos bebês,é considerado uma das grandes tragédias da indústria (farmacêutica) no século XX. Lançado no mercado alemão em outubro de 1957, o medicamento logo foi comercializado em dezenas de países que o venderam para as mais diversas finalidades. Primeiramente, “a empresa alemã ChemieGrunenthal sintetizou a Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 substância tendo como objetivo inicial a sua utilização como anti-histamínico. Estudos realizados em animais falharam em confirmar esse efeito, mas demonstraram as propriedades sedativas e hipnóticas da substância” (OLIVEIRA et al., 1999, pp.100-101). De fato, segundo Brynner e Stephens (2001, p. 13) a talidomida foi de início testada como anti-convulsivo para epiléticos. “Não prevenia as convulsões [...] mas levava os pacientes ao sono ‘natural’ durante toda a noite. Esses testes clínicos iniciais demonstraram que a talidomida não era apenas um sedativo que provocava relaxamento; era, na realidade, um hipnótico que induzia ao sono”. Fato é que os medicamentos com base na talidomida produziram diversas consequências danosas àqueles que os ingeriram. A iatrogenia medicamentosa gerou efeitos colaterais que incluíam desde simples tonteiras a casos graves de neuropatias como a polineurite, por exemplo; e, uma vez que a droga foi apresentada como um sedativo atóxico inclusive com propriedades antieméticas, as repercussões mais terríveis da talidomida – seus efeitos teratogênicos – começaram a ser observados sobretudo a partir do ano de 1960, quando milhares de bebês nascidos de mães que tomaram o medicamento durante os primeiros meses da gravidez, apresentaram sinais teratogênicos variados. Entre eles, a focomelia, palavra que designa as “crianças com um tipo peculiar de malformação congênita, caracterizada pelo desenvolvimento defeituoso dos ossos longos dos braços e pernas e cujas mãos e pés variavam entre o normal e o rudimentar” (OLIVEIRA et al., p.102). REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Inicialmente pesquisamos artigos e livros que trazem informações sobre a história da farmácia no Brasil, com objetivo de melhor situar o tema no contexto das décadas de 1940, 1950 e 1960, momento em que há uma revolução medicamentosa pautada na emergência dos produtos industriais quimiossintéticos; e, também, com o objetivo de encontrar referências quanto aos fatos relacionados especificamente à talidomida no país. Vale destacar a quase inexistência de estudos que trazem aspectos históricos sobre a presença da talidomida no Brasil. Somente um artigo, presente na base Scielo, discute a droga, historicizandoo medicamento e apontando para certo entendimento acerca das dimensões da circulação da droga no território nacional, porém a ênfase do texto volta-se para a questão da vigilância sanitária. Trata-se do artigo Talidomida no Brasil: vigilância com responsabilidade compartilhada?de autoria de Maria Auxiliadora Oliveira, Jorge Bermudez e Arthur Custódio de Souza (1999). Nele, os autores fazem um amplo painel da trajetória histórica da droga, Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 enfatizando a experiência brasileira no uso do medicamento; indicam eles pelo menos duas gerações de portadores da síndrome da talidomida no país. A segunda geração teria sido iniciada a partir de 1965 quando o medicamento foi liberado, sob controle específico, para o tratamento da hanseníase. Ainda, uma monografia de especialização em Vigilância Sanitária de Medicamentos defendida em 2004 na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz traz dados históricos interessantes sobre a talidomida em diversos países e discute a atualização da bula no Brasil (MEIRA et al., 2004). Para os propósitos da pesquisa, dois livros e um texto foram fundamentais para o nosso entendimento acerca do funcionamento das estratégias de propaganda utilizadas pela indústria farmacêutica a partir no período após a Segunda Guerra Mundial. Flávio Edler, em sua obra Boticas e Pharmacias (2006); e Eduardo Bueno,no livro Vendendo saúde (2008),são dois autores que produziram obras relevantes para se pensar aspectos da trajetória histórica de medicamentos diversos no país, desde a prática da utilização de sangrias do período colonial até a história da indústria farmacêutica após a revolução operada pela quimiossíntese no pós Segunda Guerra. Muito embora a literatura sobre a história da farmácia considere o evento da talidomida uma das grandes tragédias já enfrentadas pela indústria farmacêutica, tal evento e seus desdobramentos no território brasileiro não são estudados por pesquisadores das universidades no país. As duas obras acima mencionadas, que se dedicam a discutir a história da farmácia no Brasil, e cujos recortes cronológicos perpassam pelas décadas de 1950 e 1960, não mencionam os fatos ligados à talidomida no país.Entretanto,foram de ampla relevância para compreensão do contexto sócio-histórico relacionado à produção e divulgação publicitária de fármacos no Brasil. Na revisão bibliográfica, foi fundamental a leitura do artigo Estratégias mercadológicas da indústria farmacêutica e o consumo de medicamentos (1983), escrito por José Augusto C. Barros. Em texto inspirado, o autor associa o advento da medicalização à expansão da publicidade no Brasil. Processo esse que, ao mesmo tempo em que dá visibilidade para as novas conquistas científicas à população, acaba por incentivar a automedicação e o desconhecimento sobre os efeitos nocivos – ou ainda desconhecidos – dos químicos sobre o corpo humano. O autor ressalta a importância da publicidade para a indústria farmacêutica através da figura do médico, figura essa que outros pesquisadores (EDLER, 2006; BUENO, 2008), também consideram como um personagem fundamental na Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 intermediação entre laboratórios e consumidores. Para ter acesso aos médicos, a maioria dos laboratórios cria em seus quadros de recursos humanos a figura do propagandista de medicamentos, um divulgador especializado das novas criações e descobertas científicas, e que fornecia aos médicos amostras grátis de medicamentos recém lançados ou em testes. Assim, a partir de meados da década de 1940 e sobretudo ao longo da década de 1950 a própria compreensão da função do medicamento no processo terapêutico sofre uma profunda modificação; ele deixa de ser apenas um elemento auxiliar no processo de cura (juntamente com outras medidas como, por exemplo, hábitos alimentares) para assumir o papel de solução de muitos problemas de saúde. Como bem observou Barros (1983, p. 378): No momento em que se instaura a quimiossíntese em um contexto capitalista de produção, os medicamentos assumem a conotação de uma mercadoria com a necessidade implícita de ser consumida em quantidade e qualidade crescentes. Nesse sentido, o medicamento assume um importante e duplo papel ao satisfazer, a um só tempo interesses do capital e do médico. A difusão generalizada da ideia do medicamento como solução permite que o médico ao prescrevê-lo satisfaça as expectativas do paciente e as suas próprias. Para um e outro, na verdade, o momento mais importante da consulta passou a ser o da prescrição, por um lado em detrimento ou às vezes ocupando o lugar da anamnese e/ou do diagnóstico, por outro lado substituindo crescentemente outras alternativas terapêuticas que, pelo menos, para quadros clínicos específicos, eram dominantes no passado (grifos do autor). METODOLOGIA Esta pesquisa pautou-se pela investigação em periódicos publicados no Brasil, nos últimos anos da década de 1950 e início da década de 1960,especialmente jornais editados na cidade do Rio de Janeiro, a fim de encontrar publicações relativas à divulgação e uso da droga talidomida. Os periódicos foram pesquisados através da Hemeroteca online da Biblioteca Nacional. Para compreensão do fenômeno relativo à ligação entre farmácia e imprensa escrita no Brasil, foi importante pensar, em termos metodológicos, as possibilidades da mídia impressa enquanto fonte de pesquisa; e, mais do que isso, foi importante refletir sobre o uso de propagandas/publicidade3na pesquisa histórica. 3 Neste texto tomamos os termos propaganda/publicidade como sinônimos. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 Uma vez tomada como elemento do conjunto da sociedade capitalista em que vivemos, a propaganda pode ser compreendida também como expressão da época em que ocorre e, portanto, como uma fonte histórica de primeira ordem, principalmente se o que temos em mente é pesquisar o recorte da realidade para o qual ela se dirige, isto é, os sonhos, desejos, as expectativas das pessoas, isoladas ou em grupos, às quais os anúncios se dirigem para satisfazer e criar necessidades. É por vender mais do que produtos ou serviços que a propaganda acaba por tornar-se uma referência fundamental para o estudo do imaginário (CERRI, 2005, p. 321). Desse modo, entendemos que o estudo da publicidade de uma determinada época permite identificar não apenas aspectos da economia de uma dada sociedade - e, obviamente,a dinâmica mercadológica embutida em diversos produtos -,como também auxilia na percepção de valores intangíveis dessa mesma sociedade que se expressam através dos produtos anunciados pelas propagandas. Pensadas assim, as propagadas da talidomida demonstraram, como veremos mais adiante,que o mercado consumidor podia contar com um medicamento novo que induzia ao sono – ‘destituído de barbitúricos’, um dos grandes causadores de suicídios no período –, e, portanto, os anúncios agregaram à talidomida valores de modernidade e segurança. Inicialmente buscamos na mídia impressa notícias publicitárias com o termo ‘talidomida’ e ‘thalidomide’. Entretanto, para a década de 1950,nenhum resultado foi encontrado nos periódicos pesquisados. Passamos, então, a investigar a base da Hemeroteca da Biblioteca Nacional com os termos dos nomes-fantasia utilizados pela droga no Brasil:Sedalis,Sedalis 100,Sedin,Slip,Ectiluran,OndasileVerdil. O termo ‘Sedalis’ possibilitou captaro que cremos ser o primeiro anúncio do medicamento no país a partir de propaganda/publicidade na imprensa escrita, em março de 1959. RESULTADOS Na onda de euforia do aumento no consumo de medicamentos a partir de meados da década de 1940, os laboratórios farmacêuticos ampliavam seus negócios lançando periodicamente produtos que prometiam o bem-estar, o corpo belo, a resistência física, a vitalidade, o fim das dores indesejáveis e os desconfortos típicos da agitada vida moderna. Vale destacar que na época em foco um mercado global de remédios também já existia e companhias europeias e norte-americanas distribuíam, para diversas partes do mundo, milhares de substâncias medicamentosas, bem como licenciavam suas descobertas para serem Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 produzidas por laboratórios nacionais. De acordo com Brynner e Stephens (2001, p. 15) “mesmo antes do sedativo ser introduzido na Alemanha, a Grunenthal já mirava o mercado internacional em expansão; contratos foram assinados com a Astra Company, na Suécia, em março de 1957, para distribuição no mercado escandinavo; e, em julho com a Distillers para que ela detivesse os direitos para distribuição na British Commonwealth”. Muitos laboratórios e indústrias farmacêuticas criados no Brasil, a partir da década de 1940, eram de origem estrangeira ou financiados com apoio de capital externo. Dessa feita, os mais recentes lançamentos de medicamentos desenvolvidos na Europa e Estados Unidos não tardavam a aportar no país. Ainda, a indústria farmacêutica brasileira também estava em expansão no período. Duas empresas nacionais, o Instituto Pinheiros Produtos Farmacêuticos e o Lafi - Laboratório Farmacêutico Internacional S.A., ambas situadas no estado de São Paulo,obtiveram licença para produção no país de medicamentos com base na talidomida. O outro laboratório também envolvido com a droga no país era de capital estrangeiro, o Laboratório Americano de Farmacotherapia. A primeira propaganda comercial da talidomida no Brasil, identificada pela nossa pesquisa, foi publicada em três diferentes jornais de grande circulação no país, dois editados na cidade do Rio de Janeiro, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias, e outro editado na cidade de São Paulo, O Estado de São Paulo. Em data de 22 de março de 1959, os veículos mencionados, todos com destaque nas suas primeiras páginas, estamparam anúncio dirigido “à distinta classe médica”. Tal anúncio afirmava que o Instituto Pinheiros, Produtos Terapêuticos S/A havia acabado “de lançar, mediante acordo com a Chemie Grunenthal, da Alemanha, o produto Sedalis”. Segundo a propaganda, tratava-se de um “sedativo-hipnótico não barbitúrico” destituído de “efeitos secundários”. Ainda, o Sedalis podia ser tolerado “mesmo por crianças e portadores de lesões hepáticas”. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 FONTE: CORREIO DA MANHÃ, 22 DE MARÇO DE 1959, P. 1 Através da análise dos periódicos e das propagandas sobre o medicamento Sedalis entendemos que seus fabricantes e distribuidores no Brasil preferiram, inicialmente, dirigir seus anúncios diretamente aos médicos. Isso se estendia a outros medicamentos no mesmo período. Segundo Eduardo Bueno (2008, p. 99): Quando se iniciou a década de 50, um grande número de novos medicamentos chegou ao mercado. No entanto, não eram mais elixires, xaropes e depurativos que enchiam as prateleiras das farmácias e sim antibióticos, antidepressivos e ansiolíticos. E esses novos produtos não podiam ser anunciados para o público. Não só não podiam como ao que tudo indica, os proprietários das patentes sequer queriam fazê-lo: a indústria farmacêutica parece ter chegado a conclusão que era mais barato, eficiente e rentável centrar seus esforços mercadológicos nos próprios médicos. Os anúncios do Sedalis – endereçados especificamente para a ‘distinta classe médica’ – são ilustrativos e representativos de um determinado momento da indústria e do comércio farmacêutico no Brasil no qual emergiram técnicas de marketing que passaram a enfatizar e a valorizar sobremaneira o papel do médico como fundamental “na cadeia de eventos: consumo de medicamentos – medicalização – lucros” (Barros, 1983, p. 379). Temporão (apud Bueno, 2008, p. 100) vai ao encontro de Barros ao destacar que o propósito “dos laboratórios da época era colocar no centro das preocupações mercadológicas o intermediador técnico das Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 possibilidades de consumo: o médico”. A citação a seguir, de Barros (1983, p. 378), é elucidativa: No momento em que se instaura a quimiossíntese em um contexto capitalista de produção, os medicamentos assumem a conotação de uma mercadoria com a necessidade implícita de ser consumida em quantidade e qualidade crescentes. Nesse sentido, o medicamento assume um importante e duplo papel ao satisfazer, a um só tempo interesses do capital e do médico. A difusão generalizada da ideia do medicamento como solução permite que o médico ao prescrevê-lo satisfaça as expectativas do paciente e as suas próprias. Para um e outro, na verdade, o momento mais importante da consulta passou a ser o da prescrição, por um lado em detrimento ou às vezes ocupando o lugar da anamnese e/ou do diagnóstico, por outro lado substituindo crescentemente outras alternativas terapêuticas que, pelo menos, para quadros clínicos específicos, eram dominantes no passado (grifos do autor). Além da propaganda/publicidade do Sedalis anteriormente mencionada, também identificamos um outro anúncio do medicamento,a partir de matéria jornalística publicada em 1976, quando o Jornal do Brasil, em data de 27 de outubro, noticiou o início de ação indenizatória impetrada contra a União e contra os laboratórios que produziram e comercializaram a droga no país: Laboratório Sintex do Brasil (sucessor do Instituto Pinheiros Produtos Farmacêuticos), Ceil Comercial Exportadora e Indústria Ltda (sucessor do Lafi) e Laboratório Americano de Farmacotherapia. Esta propaganda do medicamento, ao que tudo indica, foi endereçada diretamente ao grande público, uma vez que a talidomida foi um produto comercializado livremente no balcão da farmácia, sem necessidade de receita médica. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 Fonte: Jornal do Brasil, 27/10/1976, p. 7. CONCLUSÃO A mídia impressa, na década de 1950,foi utilizada constantemente como um dos principais meios para divulgação de novos produtos industrializados para o consumo. Nesse caso, enquadra-se o espaço concedido pela jornais às publicidades de medicamentos. Concordamos com Jurema Barros Dantas (2010, p. 133), quando afirma: …a publicidade de fármacos é a principal via pela qual as indústrias farmacêuticas tornam seus produtos atraentes, em um primeiro momento, e, logo depois, indispensáveis à vida do homem contemporâneo. Desta forma, a propaganda - direcionada tanto aos médicos quanto ao público em geral pode ser vista como uma das principais responsáveis pela disseminação de uma cultura que exalta os efeitos dos fármacos, promovendo a crença de que para quase tudo na vida há um remédio e que estas fórmulas foram desenvolvidas unicamente “para facilitar” a vida dos indivíduos, não envolvendo, portanto, quase nenhum risco. Vale destacar que os dois documentos históricos encontrados - as duas propagandas do medicamento talidomida –ambos explicitaram claramente ao público leitor que o Instituto Pinheiros Produtos Terapêuticos vendia, naquele momento, mais do que um produto com poderes sedativos e hipnóticos; os anúncios vendiam, agregado ao produto,segurança: “isento” ou “destituído” “de efeitos secundários” afirmavam os textos da publicidade do Sedalis e do Sedalis 100. Curitiba –08 de novembro de 2013 VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 A propaganda do Sedalis, datada do dia 22 março de 1959,dirigida à distinta classe médica, é indicativa de um momento em que os doutores da medicina passaram a desempenhar um papel proeminente na trama entrelaçada entre laboratórios, propagandas de medicamentos e consumidores. Quando possível, os esculápios dirigiam-se às salas comerciais que representavam os laboratórios para apanhar suas amostras grátis; mais comum, no entanto, e tornado praxe até os dias de hoje, os próprios consultórios médicos passaram a reservar parcelas do seu tempo para o recebimento dos propagandistas dos laboratórios que para lá iam (e vão) divulgar os novos fármacos para serem experimentados em pacientes. Inicialmente dirigidas aos esculápios, as propagandas da droga seriam, posteriormente,direcionadas para o grande público consumidor. O produto foi disponibilizado no balcão da rede comercial das farmácias do país, e também podia ser adquirido sem o aval da ‘distinta classe médica’. REFERÊNCIAS BARROS, José Augusto C. Estratégias mercadológicas da indústria farmacêutica e o consumo de medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 17, n. 5, Out. 1983, pp. 377-386. 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