Corpo e pintura

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Corpo e pintura
viviane matesco
Cromomicose e Leishmaniose, trabalhos de 1977 que apresentam defor­
mações do corpo humano, atraem nossa atenção porque nos falam a
algo que temos em comum – a imagem de nós mesmos – e, simulta­
neamente, diferem como excentricidades. Realistas, as imagens
evidenciam uma espécie de distanciamento, fruto de olhar curioso e
estrangeiro. A fragmentação de partes do corpo, o foco e a frieza na
descrição dos detalhes das deformações revelam a origem da série.
Gianguido conta que, em visita a um sítio de um amigo, encontrou
na biblioteca um livro de medicina sobre doenças tropicais e decidiu
desenvolver um projeto em torno dessas imagens. Começou então a
frequentar o Instituto de Doenças Tropicais do Rio de Janeiro e trans­
feriu manualmente as imagens de slides médicos para as chapas de
cobre. Nesse mesmo período, desenvolveu outra série de gravuras a
partir de fotografias de cadáveres feitas no Setor de Anatomia do Ins­
tituto Hahnemanniano. Ao longo desse percurso, entretanto, o artis­
ta enfrentou uma crise, e essa produção permanece inacabada.
É desse estado inconcluso que partiremos aqui. A inquie­
tude, distanciada e cristalizada nas imagens das aberrações provo­
cadas pelas doenças, se torna matéria constantemente revolvida e
processo interiorizado de trabalho. Nos seus trabalhos posteriores
o corpo continua presente, mas os braços e pernas retorcidos, as si­
lhuetas e mesmo as deformações já não são o que a anatomia neles
vê. O corpo é crucial na obra de Gianguido Bonfanti não porque o
fixa em uma imagem precisa, mas pela potência e pela energia que
desencadeia.
A inquietude está presente no traço carregado de sentimento
nos desenhos, obras que nos lembram a série de Flávio de Carvalho
realizada por ocasião da morte de sua mãe. Mas como o artista
domina a arte do desenho, graças ao talento e ao longo tempo de
produção gráfica, é no embate com a pintura que essa inquietude se
descobre e quer se conhecer. Na década de 1990, nos trabalhos da fase
Vermelha, a violência do gesto é potencializada pela dramaticidade
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Essa relação se torna ainda mais complexa nos autorretra­
tos. Gianguido faz desenhos preliminares a nanquim utilizando o
espelho; posiciona-se a partir de vários ângulos e depois experimen­
ta alguns estudos na pintura. O planejamento, a ideia de um proces­
so de trabalho como projeto, indica que a gestualidade em suas telas
não é mera projeção psicológica. Se efetivamente há um envolvimen­
to de conflitos internos, eles não se resolvem por intermédio de uma
descarga momentânea pessoal. Ao contrário, é a identificação com
os conflitos inerentes à pintura que gera sua força convulsiva; a vio­
lência está aí imersa em fluxo mais perene.
carnal da cor. As pinceladas deixam entrever corpos decompostos,
muitas vezes libidinosamente retorcidos; são silhuetas que parecem
estar invadidas e desintegradas pela intensidade avassaladora da
cor. Depois, na série Purgatório, encontramos cenas mais nítidas se
comparadas à fase anterior. Essa nitidez, no entanto, não significa
definição dos elementos, uma vez que a estruturação do espaço da
tela impõe uma irrealidade a esses espectros corpóreos. As pinceladas
não se submetem a um contorno; densas, elas ganham corpo e
manifestam uma tensão latente. O enfrentamento da tradição e da
história da pintura confere outro sentido a esses corpos fantasmados,
uma vez que a gestualidade e a matéria pictórica revelam uma energia
que se sobrepõe à figuração. Nosso olhar é atraído por essa relação;
a figura tem que ser extraída da camada pictórica, impõe um tempo
para se entregar, como um travo ao reconhecimento.
Tal como a Medusa, ficamos siderados, capturados pela
ambivalência da aparição. Esse é o sentido do jogo entre pintura
e figura, entre matéria e esboços do que chamaríamos corpo: revelar
o drama do aparecimento, momento indefinidamente inconcluso
entre visível e invisível. O inacabado, agora positivo, é consciência
de processo que não almeja solução definitiva. As pinturas de
Gianguido pulsam a latência desse drama, pois é por intermédio da
superfície que a pintura pode se sonhar como corpo e como sujeito:
do despertar para o prazer e para a dor.
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19. v1. 2008
óleo sobre tela
(oil on canvas)
140 x 150 cm
col. do artista
p. 120 detalhe (detail)
Leishmaniose, 1977
lápis de cor sobre papel
(pencil on paper)
45 x 60 cm
col. do artista
Cromomicose, 1977
água-tinta sobre papel
(aquatint on paper)
59,8 x 45 cm,chapa (plate)
edição de 40 (edition of 40)
5. x1. 2004
óleo sobre tela
(oil on canvas)
140 x 160 cm
col. Galerie Le Troisième Œil,
França
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Também nos autorretratos observamos que a tela trans­figura
o modelo, uma vez que o jogo pictórico se sobrepõe à identificação.
Há um acúmulo de tensão na área em torno dos olhos, pois este é o
cerne do problema. O autorretrato não é somente um reflexo do Eu
no espelho, nem apenas um ato de personalização, mas o Eu dian­
te do outro, um duplo de si. Inquietude, sofrimento de ser. Dessa
maneira, a tela evoca tensão, ferida do momento fugidio do apare­
cimento; o de colocar-se nu diante do espelho e de se ver pelo olhar
do outro. Fazer autorretrato para se conhecer pela pintura, esse ou­
tro com quem o embate dá o próprio sentido de vida, se conhecer tra­
vando o embate com esse outro. Pintar para se ver melhor significa
procurar nessa dialética de aparição e desaparição, a exploração de si
no limite da pintura: limite que jamais se realiza, pois não chega a um
repouso, é movimento que se renova constantemente. Incorporar o
corpo ao campo da arte, figurando o infigurável. É essa relação entre a
pintura e a pele, portanto, o corpo, que nutre a poética de Gianguido
Bonfanti: seria a atualização desse outro, fantasma que atua em pas­
sagem, essa imagem inconclusa que nos constitui.
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24. v11. 2007
óleo sobre tela
(oil on canvas)
80 x 80 cm
col. do artista
8. v111. 2007
autorretrato (self-portrait)
nanquim sobre papel
(Indian ink on paper)
57 x 38 cm
col. particular
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