Silvano Ghisi

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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DE PRIVACIDADE
NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
SILVANO GHISI
CHAPECÓ - SC
2014
SILVANO GHISI
LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DE PRIVACIDADE
NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Direitos Fundamentais da Universidade do
Oeste de Santa Catarina, com área de concentração
em Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos
Fundamentais, e vinculado à linha de pesquisa
“Direitos Fundamentais Civis: a ampliação dos
direitos subjetivos”, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre.
Orientador(a): Profa. Dra. Maria Cristina Cereser
Pezzella
CHAPECÓ – SC
2014
TERMO DE APROVAÇÃO
SILVANO GHISI
LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DE PRIVACIDADE
NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Dissertação aprovada em 05 de dezembro de 2014 como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa
Catarina, com área de concentração em Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos
Fundamentais, e vinculado à linha de pesquisa “Direitos Fundamentais Civis: a ampliação dos
direitos subjetivos”, pela seguinte banca examinadora:
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella
Professora-Orientadora
______________________________________________________
Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro
Professor-Convidado
______________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Antonio Lucas Camargo
Professor-Convidado
Aos meus pais, Nilton e Noely.
Aos meus irmãos, Simonei e Cristiane.
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos especiais à orientadora, Profa. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella,
pelo acompanhamento, pela orientação e pelo apoio de sempre.
Aos colegas de viagem, Arno, Sadi e Ilse, pelo companheirismo, pela paciência, pela
persistência e pelo compartilhamento de todos os momentos.
Aos amigos conhecidos e assim tornados no Curso de Mestrado, Arno, Izabel,
Mixilini, Rafaella, Daniela, Roni e Jorge, por tornar os dias mais agradáveis.
Aos docentes do Mestrado da Universidade do Oeste de Santa Catarina, pelos
ensinamentos.
O homem está aqui para o bem dos homens –
acima de tudo por aqueles que cujo sorriso
depende a nossa própria felicidade. E também
pelas intocáveis almas desconhecidas com quem
nosso destino está ligado pelo laço da simpatia.
Várias vezes ao dia percebo como minha vida
interior e exterior se baseia nos esforços de meus
companheiros vivos e mortos e quão
fervorosamente devo esforçar-me por retribuir o
tanto que recebi.
Albert Einstein
RESUMO
As possibilidades das descobertas científicas e dos inventos tecnológicos, com destaque para
tecnologias de informática e comunicação, têm imprimido novos modos de ser e agir aos
indivíduos, resultando em uma diferenciada conformação social que vem sendo denominada
de “Sociedade da Informação”, onde a informação passa a ser o fator motriz. A partir daí
novos surgem novos parâmetros às tensões entre indivíduos e Estado, e sobre quem passa a
ter o poder, a habilidade e a capacidade de imiscuir-se no campo de vivência e ação
individual. Não mais somente os poderes públicos podem operar como intrusos na vida
pessoal, também os próprios particulares surgem como potenciais ameaças a esse espectro
quase sagrado de um matiz de liberdade que opõe aos demais um dever de afastamento. Nesse
panorama, a privacidade se consubstancia em um dos direitos amiúde evocados para refrear a
atuação estatal na vida pessoal, no agir e nas relações dos indivíduos. Edificada a partir da
clássica fórmula norte-americana do “direito de ficar só”, a privacidade evoluiu à concepção
ativa de conferir ao indivíduo o direito de controlar os usos e aplicações de suas informações,
em razão dos riscos e potencialidades das tecnologias da Sociedade da Informação. Nas mais
variadas ações e relações entre pessoas e instituições na Sociedade da Informação, o direito à
privacidade é posto em teste, dada a capacidade das tecnologias de informática e comunicação
torná-lo inoperante ou esvaziado. A invasão dos aspectos privados do cotidiano das vidas
humanas pela aplicação destas tecnologias provoca o fenômeno da ampla visibilidade, e
conduz a uma arriscada noção de que a publicidade seja a regra e a privacidade a exceção. O
fluxo de dados pessoais, a vigilância eletrônica e a visibilidade resultantes de variados
mecanismos tecnológicos, estes não mais apoderados só pelos poderes estatais, mas também
nas mãos de qualquer indivíduo, conferem uma nova dimensão a preocupações em torno do
direito à privacidade. Uma busca por efetiva proteção dos dados pessoais, reconhecendo a
necessidade de cessão de determinadas informações para algumas ações, ao lado da percepção
de um interesse individual na autoexposição, e ainda as facilidades com que a vigilância
eletrônica pode conferir visibilidade à vida humana, são os fatores que permitem discutir a
defesa de uma legítima expectativa de privacidade na Sociedade da Informação como
mecanismo eficaz de proteção.
Palavras-chave: Sociedade da Informação. Visibilidade. Dados Pessoais. Privacidade.
Legítimas Expectativas.
ABSTRACT
The possibilities created by scientific discoveries and technological invents, especially those
related to communication and computer technologies, have made possible new ways for
individuals to be and act, which results in a differentiated social conformation that has been
named “Information Society”, where information is the main driving factor. From this point
on, new parameters are created to the tensions between individuals and the State, and about
who has the power, the ability and the capacity to interfere in the field of individual
experience and action. Now not only the government can operate as an intruder to personal
life, but also the individuals themselves come through as potential threats to this nearly sacred
spectrum of an understanding of liberty that opposes to others a duty of staying away. In this
aspect, privacy is consubstantiated as one of the rights summoned to stop the state
interference in private life and in individuals’ actions and relations. Built from the classic
American formula “right to be alone”, privacy has evolved to the active conception of giving
the individual ways to control the uses and applications of one’s information, due to the risks
and potentialities of Information Society’s technologies. Among the most variable actions and
relations between people and institutions in the Information Society, the right to privacy is put
at test, given the capacity of computer and communications technologies to turn it empty or
inoperable. The invasion of private aspects of people’s daily lives causes the widespread
visibility phenomenon, and induces the risky notion that publicity is the rule and privacy, the
exception. The personal data outflow, the electronic surveillance and the visibility originated
from different technological mechanisms, not only operated by the government, but also by
any individual, give a new dimension to worries concerning the right to privacy. The search
for an effective protection of personal data, acknowledging the need to set free certain
information for some actions, sided by the perception of an individual interest in selfexposition, and the facilities with which the electronic vigilance can provide visibility to
human life: these are the factors that allow to discuss the defense of a legitimate expectation
of privacy in Information Society as an effective mechanism of protection.
Key words: Information Society; Visibility; Personal Data; Privacy; Legitimate Expectations.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................
09
1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO .............................................................................
1.1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E TECNOLOGIAS ............................................
1.1.1 Técnicas e tecnologias .....................................................................................
1.1.2 Eclosão e consolidação da Sociedade da Informação ...............................................
1.2 O SER INFORMACIONAL ........................................................................................
1.2.1 Identidade informacional ...........................................................................................
1.2.2 Implicações da identidade informacional no plano natural .............................
1.3 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DA VIGILÂNCIA ..........................................
1.3.1 Avultamento da eficácia de vigilância ......................................................................
1.3.2 Controle e poder pela vigilância ................................................................................
14
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2 CONFORMAÇÃO DO DIREITO À PRIVACIDADE ..............................................
2.1 SOBRE DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS ..........................
2.1.1 Fundamentação para os direitos humanos .................................................................
2.1.2 Fundamentação para os direitos fundamentais ..........................................................
2.2 PRIVACIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL ..............................................
2.2.1 Dicotomia entre espaços públicos e espaços privados ..............................................
2.2.2 Normatização objetiva da privacidade ......................................................................
2.3 PRIVACIDADE COMO DIREITO DE PERSONALIDADE .....................................
2.3.1 Privacidade na passagem da propriedade à pessoa humana ......................................
2.3.2 Autonomia decisional em privacidade ......................................................................
46
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3 PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO ......................................... 78
3.1 TUTELA DOS DADOS PESSOAIS............................................................................
78
3.1.1 Privacidade a partir dos dados pessoais ..................................................................... 79
3.1.2 Normatizações internacionais e internas acerca dos dados pessoais ........................ 82
3.2 VISIBILIDADE E VIGILÂNCIA ELETRÔNICA .....................................................
88
3.2.1 Provocação de visibilidade ........................................................................................
91
3.2.2 Autoexposição e busca por visibilidade ....................................................................
96
3.3 LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DE PRIVACIDADE ...............................................
98
3.3.1 Categoria das legítimas expectativas e aplicação à privacidade ...............................
99
3.3.2 Legítimas expectativas de privacidade na Sociedade da Informação ....................... 103
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 111
REFERÊNCIAS ...............................................................................................................
119
9
INTRODUÇÃO
A denominada Sociedade da Informação tem conduzido as relações humanas a
patamares totalmente novos e diferenciados, estribados na circulação da informação como
meio e objeto das relações sociais em todos os níveis, sejam elas pessoais, afetivas,
comerciais, políticas e até mesmo na inter-relação entre o Estado e os indivíduos.
Uma miríade de técnicas e tecnologias passa a fazer parte indissociável do cotidiano e
das projeções de futuro, e com isto ganham aderência à vida humana. A redefinição das vidas
e também das relações estabelecidas pelos indivíduos, a partir das tecnologias e do domínico
da informação, desperta a preocupação com o direito à privacidade e como encontrar uma
tutela efetiva diante da velocidade com que ocorrem os fenômenos na Sociedade da
Informação, especialmente aqueles envolvendo a coleta e o manuseio de dados e a captação
de vivências pessoais em espaços públicos e privados.
Nesse plano situa-se o problema norteador da pesquisa aqui desenvolvida, ou seja,
encontrar um mecanismo jurídico capaz de fornecer subsídios para a resolução de problemas
concretos surgidos na tensão entre o direito à privacidade e as potencialidades de captação de
informações da Sociedade da Informação.
Como o recorte da problematização aqui definida atine à Sociedade da Informação,
urge que primeiramente se compreenda esta conformação social, como técnicas e tecnologias
operam vetores de transformação social, política, econômica e também na vida pessoal dos
indivíduos. É importante perquirir, assim, qual o grau de implicação ou determinação
provocado pelas tecnologias inseridas nos modos de ser e agir das sociedades
contemporâneas, e se podem ser reputados fatores diretamente causadores das mudanças
sociais.
Daí porque se examinará a essencialidade das técnicas e tecnologias que manipulam
informações, e como a informação pode funcionar ao mesmo tempo como base formativa e
sustentadora desta nova conformação social, sendo ainda uma mercadoria de relevância
ímpar.
Neste estudo se pretende demonstrar como a onipresença da informação provoca um
efeito novo sobre os indivíduos, uma decomposição das pessoas em informações, resultando
no que se chamará de “ser informacional”, pois nas vivências e relacionamentos mais
variados a pessoa é conhecida e reconhecida primeiramente pelas informações a seu respeito,
10
sobrepujando a própria essência da pessoa natural por um conjunto de dados, um alter ego
informacional.
A percepção do desenvolvimento de um conceito de “ser informacional”, embutido
nas variadas ações e condutas da Sociedade da Informação, induz a uma preocupação com os
dados pessoais e como têm substituído outras formas de expressão humanas ao longo do
tempo. Na Sociedade da Informação, as pessoas, amiúde e de modo crescente, estão sujeitas a
bancos de dados e rotinas matemáticas exponencializadas pelas tecnologias de informática e
comunicação.
A sujeição da vida humana à manipulação de informações, fazendo prevalecer o “ser
informacional” ao ser natural, finda por ser fator imprescindível para a definição e restrição de
direitos, o que se verá ao longo desta pesquisa com os empecilhos e prejuízos enfrentados
pelos indivíduos diante da manipulação inadequada de dados pessoais, sua coleta indevida, ou
mesmo a tomada por verdadeiros de dados errôneos ou incorretos.
A manipulação da informação revela, ainda, um lado nefasto em torno dos preceitos
de igualdade e respeito a direitos, pois técnicas e tecnologias permitem trabalhar com
identidades, proceder à catalogação dos indivíduos, de tal maneira que a ordenação de
informações é capaz de provocar fenômenos homogeinizantes e discriminatórios, aspectos
que também serão abordados no estudo aqui proposto.
A Sociedade da Informação tem um efeito cambiante, seja porque as pessoas passam a
substituir relações presenciais por contatos a distância, estabelecendo vida em rede, seja
porque se possibilita a virtualização do corpo, com a integração com tecnologias e técnicas, a
exemplo de próteses, medicamentos, avaliações médicas, aplicações de hormônios, etc. Nesse
plano, o estudo investigará se funções genuinamente biológicas ou naturais podem ser pouco
a pouco substituídas por técnicas e tecnologias baseadas em informações.
A partir daí exsurge a aplicação da informação na vigilância, aspecto fortemente
presente na Sociedade da Informação, conferindo novas nuanças e dimensões aos
instrumentos de controle e fiscalização sempre existentes nas sociedades humanas. Com o
domínio da informação, porém, estes processos se tornaram mais eficientes. Estados aderem a
técnicas de coleta de informações para fiscalizar a distância os indivíduos, no mais das vezes
justificando tais procedimentos em questões de segurança, interesse público e tributação.
Com a correta aplicação de tecnologias, o indivíduo pode ser incessantemente vigiado,
não somente por poderes ou autoridades estatais, mas também por particulares, tendo em vista
11
a popularização e fácil acesso a sistemas e mecanismos tecnológicos que permitem
observação das vidas alheias a partir das informações pessoais, sobressaindo-se controles
visuais e auditivos pela captação de imagens, movimentos e sons. Não é exagero cogitar,
portanto, que na Sociedade da Informação os indivíduos possam se tornam fáceis objetos de
observação, o que pode pôr em risco direitos humanos de extrema importância, com destaque
para o direito à privacidade.
Esta percepção direciona o presente estudo para a investigação das categorias dos
direitos humanos e direitos fundamentais, relevantes para se cogitar da defesa do direito à
privacidade na Sociedade da Informação, pois ante sua operação globalizante, a inserção no
conjunto dos direitos humanos, por seu caráter universal, surge como base de sustentação.
A pesquisa perpassa, assim, pela formação dos direitos humanos e o despertar dos
indivíduos para o reconhecimento desta categoria como algo que lhes seja próprio, mas
também do outro. Delimitados o que sejam direitos humanos, o estudo dedica-se aos direitos
fundamentais, apropriados para os ordenamentos jurídicos internos, com força vinculativa
decorrente das normas fundamentais de cada país, fazendo um esforço, porém, em conciliálos com o fenômeno multiculturalista eclodido pela Sociedade da Informação.
Da gênese dos direitos fundamentais como limitações ao agir estatal, estudar-se-á suas
inovadoras prospecções, incluindo a proposta de funcionarem também como limites aos atos
particulares entre si. Nesse plano, faz parte da pesquisa a investigação dos direitos
fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, essencialmente à luz das disposições da
Constituição Federal de 1988, e com vagar enfoca-se a privacidade como direito fundamental
e os desdobramentos jurídicos que recebe.
Em continuidade, na busca por elevar a carga protetiva do direito à privacidade,
submete-se à averiguação de sua alocação no conjunto de direito de personalidade e como
isso pode afetar seus contornos e as novas características que lhe devam ser reconhecidas ante
o fluxo de informações pessoais característico da Sociedade da Informação e necessário às
operações e relações nela travadas.
Ante o intenso fluxo de dados pessoais, investigando os modos pelos quais podem se
tornar visíveis a outras pessoas, sejam estes legítimos, consentidos, tolerados ou clandestinos,
a pesquisa ora proposta visa entender os parâmetros jurídicos tendentes à proteção dos dados
pessoais, buscando fontes normativas no direito estrangeiro e também na produção legislativa
específica do direito brasileiro.
12
Adotada a premissa de que qualquer aspecto da vida humana possa ser traduzido em
um dado ou informação pessoal, no que se incluem os momentos ocorridos em espaços
públicos e privados, este estudo se arvora em investigar as causas e justificativas de uma
perceptível profusão de visibilidade na Sociedade da Informação e como isso conduz a um
estado de ampla vigilância ou observação de todos por todos. Almeja a pesquisa, assim,
identificar quais são as razões que justificam a provocação ou indução da visibilidade humana
à míngua da concordância do indivíduo exposto, sem se olvidar, ainda, de examinar se
também contribuem para a amplidão da visibilidade os desejos particulares, em muitos casos,
por autoexposição.
Uma vez identificadas as causas e razões para o avultamento da visibilidade da vida
humana na Sociedade da Informação, a pesquisa ocupa-se da detecção de mecanismos
jurídicos capazes de assegurar a privacidade diante dos riscos da visibilidade e das
potencialidades das tecnologias da informação.
Para os propósitos então esboçados, o estudo emprega o método dedutivo, discorrendo
e contextualizando planos gerais sobre a Sociedade da Informação e suas tecnologias,
perpassando à privacidade no plano jurídico como direito fundamental e direito de
personalidade, desaguando no ponto específico da privacidade na Sociedade da Informação. A
presente pesquisa é será bibliográfica, com exame de doutrina nacional e estrangeira, além de
recurso à jurisprudência, também nacional e estrangeira, que toque os temas discutidos. Nesse
plano, os marcos teóricos essenciais do estudo são as obras de Pierre Lèvy, Stéfano Rodotà,
Manuel Castells e Danilo Cesar Maganhoto Doneda.
A partir do percurso acima delimitado, para atender aos objetivos gerais e específicos
traçados, divide-se este estudo em três capítulos.
O primeiro capítulo dedica-se ao esmiuçamento da Sociedade da Informação, visando
à compreensão de como se deu esta conformação social, quais suas características e
elementos, e qual a relação das técnicas e tecnologias na redefinição de formações sociais e
das relações humanas. Das tecnologias, passa-se ao exame das transformações que o fluxo de
informações opera na vida dos indivíduos dando vazão ao surgimento de um chamado “ser
informacional”, um espectro dos dados pessoais da pessoa que produz sua identidade na
Sociedade da Informação. Em seguida, a partir dos efeitos do fluxo de informações e da
intrusão de técnicas e tecnologias, principalmente de informática e comunicações no
13
cotidiano, discorre-se sobre os mecanismos de controle e vigilância atualmente produzidos e
aplicados nos mais variados âmbitos das vidas e relações humanas.
O segundo capítulo, ao enfocar o direito à privacidade, principia por buscar encontrála entre os direitos humanos, em razão de seu caráter universalista que se afina com o caráter
globalizante da Sociedade da Informação. Assim, pesquisa o surgimento, o reconhecimento e
a proteção destes direitos, inclusive com base em instrumentos jurídicos internacionais como
as várias Declarações de Direitos Humanos produzidas por organismos internacionais ou
grupos de Estados. Por conseguinte, analisa a categoria dos direito fundamentais, assim
direitos humanos internalizados nos sistemas jurídicos de cada estado e, em especial, no caso
brasileiro, como a privacidade ostenta o caráter de direito fundamental. Por outro lado, indaga
a pertença da privacidade ao plexo dos direitos de personalidade e como sua inserção nesta
categoria afeta seus contornos e permite novas medidas de eficácia e proteção.
Por fim, no terceiro capítulo enfoca-se a privacidade na Sociedade da Informação,
iniciando pela discussão da proteção dos dados pessoais, envolvendo a investigação do direito
estrangeiro que é vanguarda na espécie, especialmente pelas normatizações advindas da
União Europeia, examinando também legislações esparsas brasileiras que, mesmo de maneira
tímida, dedicam algumas regulamentações acerca do manuseio e proteção às informações
pessoais. Ato contínuo, partindo dos postulados fixados em torno da proteção aos dados
pessoais, confronta-a com a produção ou indução de visibilidade e exposição pessoal
permitida pelas tecnologias na Sociedade da Informação, perquirindo as causas, razões e
necessidades desta publicidade e exposição.
Em remate, o estudo concentra-se na busca por um mecanismo jurídico que possa
resolver tensões da privacidade na Sociedade da Informação, adotando as linhas da tutela da
confiança, traduzidas em legítimas expectativas de privacidade, para defender quando e
porque uma expectativa é imperativa e permite assegurar a privacidade pelo controle integral
dos usos e destinos dos dados pessoais e das vivências e estadas humanas nos ambientes
públicos e privados mediados por tecnologias na Sociedade da Informação.
14
1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
O intelecto humano, o espírito inventivo, e o trabalho, têm, cada qual, a seu modo, no
decorrer de eras de transformação da humanidade, agido na conformação social pela produção
de inovações, técnicas, ciências, teorias, tecnologias. Aliado ao desejo de pô-las sob domínio
incontestável do homem, adquirem roupagem, na maioria das vezes, de adoração. Heiddeger
(2003, p. 12) ensaia que “pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar torna-se tanto
mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem”.
As sociedades têm sido surpreendidas com as possibilidades e descobertas científicas,
com os inventos tecnológicos e aplicação de técnicas, com destaque para as áreas de
comunicação, pesquisas médicas, inventos eletrônicos e informáticos, mecanismos de
comunicação, e outros.
Com efeito, a cada nova descoberta científica, a cada revolucionário invento
tecnológico, os valores e as possibilidades das sociedades são testados. O meio social suporta
o impulso que novas tecnologias possam gerar e acerca destas manifesta-se. É nesse esteio, da
absorção das novas tecnologias, e uma inevitável síntese emergida de um processo dialético
que as tenha em conta, que há de se investigar a influência dos meios telemáticos e
informáticos como elementos essenciais de um novo tipo de sociedade, e, enfim, mais
particularizadamente, a informação como fenômeno e fator de ligação, todos engastados no
que se propõe denominar de “Sociedade da Informação”.
1.1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E TECNOLOGIAS
Da invenção da roda às tecnologias de informática e telemática, manipulação
genética, pesquisas astronáuticas, e outras tantas façanhas do gênio humano, as sociedades
humanas têm sido exposta a constantes fenômenos que a deixam perplexa. Nesse passo,
delineia-se a relevância da construção do conhecimento humano, tomado como o exercício do
descobrimento.
A propósito do conhecimento, Hessen (1999, p. 17) pondera que encabeça uma
relação necessária entre sujeito e objeto. Nessa linha relacional, existem objetos reais e ideais,
estando no conjunto dos primeiros aqueles dados pela experiência (externa ou interna) ou que
são concluídos a partir dela, ao passo que os objeto ideais são aqueles meramente pensados, a
exemplo das figuras geométricas.
Nesse panorama, na relação entre sujeito e objeto há uma correlação recíproca entre
15
ambos, e que apenas são o que são em virtude desta correlação, na medida em que em si o
objeto é o desconhecido, e somente ao interagir com o sujeito que busca conhecê-lo é que se
revela pela apreensão que o sujeito dele faz, justamente porque a função do objeto é ser
apreensível. Logo, segundo continha Hessen (1999, p. 18-19), o sujeito determina o objeto.
1.1.1 Técnicas e tecnologias
O conhecimento é, portanto, o pressuposto da informação, e a cada nova descoberta
científica, a cada revolucionário invento tecnológico, os valores e as possibilidades das
sociedades são estremecidos. A informação, que finda por ser o invólucro de um dado
conhecimento humano acumulado, permite sua transmissão de um indivíduo a outro e, por
isto, sua aplicação social. Acúmulo e aplicação de informação resultam em técnicas e
tecnologias.
Há, contudo, uma distinção a ser feita entre técnica e tecnologia, expondo Lemos
(2010, p. 31-37) que a técnica representa um descobrimento e um modo de fazer, ao passo
que a tecnologia moderna é resultado da junção da técnica com o conhecimento científico,
sobremaneira envolta nos postulados das ciências naturais.
Remontando à técnica, no panorama da civilização grega sofria sensível influência
mítica, até porque os mitos que pretendiam explicar a origem do homem se confundiam com
mitos de origem da técnica, porquanto imitação e reconstrução da natureza. De acordo com
Lemos (2010, p. 28), a técnica passa a exprimir “um instrumento de transgressão do espaço
sagrado imposto pelos deuses”.
Os inventos e descobertas são frutos do exercício do conhecimento humano, e
exsurgem moldados pelo assombro, pelas esperanças, mesmo pela excitação da sociedade
deles espectadora. Muito mais que a essência da técnica que os perfaz, o arcabouço de
significados impingidos pela sociedade é que primeiro fixa o potencial de uma tecnologia. Por
esta razão, as novas tecnologias afloram endeusadas, fulgurando como ocorrências míticas.
De acordo com Mosco apud Decol (2005, p. 19), “a impregnação da ciência e da
tecnologia pelo fenômeno do mito é algo típico de uma época em que o mítico se deslocou da
esfera religiosa para a esfera tecno-científica”. As tecnologias passam a ser refúgios e abrigos
de expectativas para as paixões, os anseios e as frustrações humanas. São aportes
esperançosos da Sociedade da Informação, das quais viria a imediata e triunfante solução para
as mais variadas mazelas. Continua Mosco apud Decol (2005, pp. 21-22) que “(...) é comum
que as revoluções tecnológicas sejam acompanhadas de mitos. (...) Nestes momentos em que
16
as tecnologias revolucionárias são introduzidas, o mito então aparece como redenção pela
tecnologia”.
Com efeito, a inserção ou surgimento de qualquer tecnologia em uma sociedade
provoca o imaginário, conduzindo à produção de imagens de sonhos relacionados aos objetos
técnicos. Surgida como algo que não se consegue compreender, a cultura sonha com a
tecnologia e a explica no plano da imaginação em referência a um passado já conhecido.
Inovações tecnológicas, portanto, são aceitas e explicadas a partir de reconstituições históricas
de um passado já experimentado. Nesse plano, Felinto (2003, p. 176) discorre que as técnicas
retomam a natureza a partir de uma nova perspectiva, e nisso, reaproxima o homem de
imagens, temores e mitos.
Para entender o papel da tecnologia no tecido social é importante desvelá-la do mito
incrustado, assim delimitando, tão-somente de forma conceitual, tecnologia e técnica. Logo,
torna-se importante ter em mira a ponderação de Heiddeger (2003, p. 11):
A técnica não é a essência da técnica. (...) Assim também, a essência da técnica não
é, de forma alguma, nada de técnico. Por isso nunca faremos a experiência de nosso
relacionamento com a técnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que é
técnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos.
Desta maneira, inescusável ter-se que tecnologia e técnica são contextos diferenciados.
Aquela mais ampla que esta. Assinala Decol (2005, p. 3) que “tecnologia envolve sociedade e
cultura em maior medida do que a ciência”.
As tecnologias, em especial neste estudo, as informáticas e telemáticas, são o ponto de
partida. Da união entre informática, telemática e telecomunicações, surgiu a Internet,
responsável, notadamente, pela rápida proeminência da denominada Sociedade da
Informação.
Importante fixar que são tecnologias de informática, para Ferreira (2004, p. 478),
aquelas que congregam o “tratamento da informação, através do uso de equipamentos e
procedimentos da área de processamentos de dados”. Por certo que deva ser entendido em
sentido extensivo o vocábulo “procedimentos”, para ter-se aí inserta a ideias de softwares que
promovem a interface entre o usuário e a máquina.
As tecnologias de telemática, por sua vez, são as que resultam da combinação entre os
equipamentos de informática, os softwares e os meios de telecomunicação, união esta que
permite a manipulação e utilização da informação através de fluxos de compartilhamento via
redes, em tempo real.
17
Paira, grosso modo, uma percepção de que o acontecimento das tecnologias nas
sociedades as determina, como se fossem o fator de condução e conformação. Todavia,
equivocado é crer-se em uma relação direta e preponderante de causa e efeito entre tecnologia
e sociedade, tanto que para Castells (2003, p. 43),
É claro que a tecnologia não determina a sociedade. Nem a sociedade descreve o
curso da transformação tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive
criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta
científica, inovação tecnológica e aplicações sociais de forma que o resultado final
depende de um complexo padrão interativo. Na verdade, o dilema do determinismo
tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a
sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas
ferramentas tecnológicas.
Tecnologias, pessoas e sociedades, partilham de um processo dialético, na medida em
que a tecnologia incorpora a sociedade, e esta, por sua vez, faz uso da tecnologia. De certa
maneira, não há que se falar em “impacto” das novas tecnologias da informação sobre a
sociedade, porque se assim ocorresse, imperioso seria considerar o ambiente social como um
recipiente vazio, não reativo, despido de qualquer dinamicidade, mas que apenas suportasse
as punções projetadas pelas tecnologias. Segundo Lèvy (2003, p. 21),
Não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reintegradas durante seu uso
pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui
a humanidade como tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas).
No traçado dessa inescusável interdependência, continua Lèvy (2003, p. 22) que “é
impossível separar o humano de seu ambiente material, assim como dos signos e das imagens
por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo”.
Nesse plano, uma pretensa separação entre sociedade e tecnologia somente admite
sentido em termos conceituais e didáticos, pois nas sociedades complexas contemporâneas
nenhum fenômeno tem o condão de ocorrer de forma isolada. E Lèvy (2003, p. 23)
complementa:
As verdadeiras relações, portanto, não são criadas entre ‘a’ tecnologia (que seria da
ordem da causa) e ‘a’ cultura (que sofreria os efeitos), mas sim entre um grande
número de atores humanos que inventam, produzem, utilizam e interpretam de
diferentes formas as técnicas.
É de se reconhecer, ademais, que não existe um simples impacto das tecnologias na
sociedade, tampouco esta o devolve como simples resposta, como reação direcional, na
18
medida em que o surgimento de tecnologias e sua infiltração no meio social é um processo
dialógico intermitente, dependente de fatores diversos, inidentificáveis. Não há se falar, então,
em uma simples resposta social à provocação da tecnologia, mas em uma maneira
autoconstrutiva do sistema social. Assim ocorre, conforme pondera Luhmann apud Neves e
Samios (1997, p. 25), porque
Um sistema é constituído por elementos autoproduzidos e por nada mais. Tudo o que
opera no sistema como unidade – mesmo que seja um último elemento não mais
passível de ser decomposto – é produzido no próprio sistema através da rede de tais
elementos. O ambiente não pode contribuir para nenhuma operação de reprodução do
sistema. O sistema, obviamente, também não pode operar no seu ambiente.
Ou seja, o comportamento apresentado pela sociedade ao evidenciamento de novas
tecnologias não é operado como um revide, mas refulge como um reflexo que já conta com,
senão alterações, ao menos irritações provocadas pela integração daquelas tecnologias. Por
isso que o reflexo social às novas tecnologias é um fenômeno autroproduzido, uma
autopoiésis, de acordo com a concepção de Luhmann apud Neves e Samios (1997, p. 25-26),
já que não é um reflexo aportado em estribos pretéritos à consideração das tecnologias, mas já
carrega, a favor ou contra, a perturbação daquelas.
Significa, também, que, a partir da admoestação das novas tecnologias, e o reflexo da
sociedade, elas são incorporadas, integradas, revolvidas e ascendem como elemento do
próprio sistema social. No dizer de Marata apud Decol (2005, p. 5), “(...) uma vez
estabelecida, uma tecnologia ganha vida própria”. Assim, a sociedade já é diferente do que
antes da tecnologia a ela integrada, e em razão desta integração galgou outro patamar (não
melhor, nem pior; diferencial), o que torna impossível, diante das ramificações e
interdependências que estendeu com a nova tecnologia integrada, regredir ao estágio anterior.
Pelo mesmo fundamento, tudo que daí passar a autoproduzir levará, evidentemente,
características da integração tecnológica ocorrida, em razão do efeito ressonante a todo o
sistema social. Em contrapartida, toda nova aderência de tecnologia dar-se-á matizada pela
também perturbação do sistema social ao fenômeno tecnológico, numa vertente cíclica que é a
alimentação, o revigoramento, a evolução e o fechamento do sistema social.
Assim operam as tecnologias de informática e telemática, que em certo grau
condicionam a Sociedade da Informação. Foram integradas, agrediram a sociedade e por ela
foram irritadas. Desse processo cada qual absorveu em certa medida ao outro, de forma que se
fechou novamente o sistema social. Destarte, novas relações, novos conceitos, diferentes
associações foram modeladas para o sistema social e as tecnologias, tornando a sociedade
19
dependente destas formações, de tal sorte que o retorno ao estágio anterior às tecnologias de
informática e telemática já não é mais praticável sem a desestruturação do sistema social
corrente. É esta concepção que leva Decol (2005, p. 5) a afirmar que as tecnologias possuem,
também, um papel de co-autores sociais.
Em que pese a maleabilidade das sociedades em lidar com as irritações das
tecnologias e a isso exararem reflexos, a presença estatal ganha considerável relevo. Castells
(2003, p. 44) acentua que “embora não determine a tecnologia, a sociedade pode sufocar o seu
desenvolvimento principalmente por intermédio do Estado”. O que ocorre é que se o mercado
vê nas tecnologias fatores importantes para o incremento econômico, a aceleração da
produtividade e a agregação de valores nas mercadorias, o Estado a vê como mecanismo
facilitador do controle. Vieira (2007, p. 183) ressalta que o Estado adota tecnologias na
modernização da administração pública, na racionalização da prestação de serviços, redução
de custos, e para aproximar-se dos cidadãos.
Todavia, para além da faceta acima discorrida, as tecnologias também podem
funcionar como eficientes elementos no exercício do controle estatal sobre os indivíduos,
notadamente pela formação de arquivos de dados pessoais e a vigilância de pessoas. Rodotà
(2008, p. 113), ao versar sobre uma sociedade da vigilância, propiciada pela implantação de
técnicas e tecnologias, discorre que seus riscos “ligam-se tradicionalmente ao uso político de
informações para controlar os cidadãos, o que qualifica tais sociedades como autoritárias ou
ditatoriais”. A produção de tecnologias, e sua utilização no controle do ser humano,
transmudada em sistemas e aparatos de fiscalização propiciou uma nova forma de sujeição do
homem, segundo visão apresentada por Foucault (1987, p. 144).
Estes sãos os feitos aflorados mais pressentidos na relação entre tecnologia e
sociedade, e revelam, em virtude de anteriores fenômenos internalizados e refletidos, uma
capacidade de o sistema social lidar com as provocações das tecnologias inovadoras.
Retomando o pensamento de Castells (2003, p. 44-45),
Sem dúvida, a habilidade ou inabilidade de as sociedades dominarem a tecnologia
e, em especial aquelas tecnologias que são estrategicamente decisivas em cada
período histórico, traça seu destino a ponto de podermos dizer que, embora não
determine a evolução histórica e a transformação social, a tecnologia (ou sua falta)
incorpora a capacidade de transformação das sociedades, bem como os usos que as
sociedades, sempre em um processo conflituoso, decidirem dar ao seu potencial
tecnológico.
Eis, na Sociedade da Informação, o sentido autopoiético alhures ventilado, isto é,
consubstanciado na incorporação, internalização e revelação das tecnologias e o uso (ou não
20
uso) destas pelas sociedades, operando como um sistema fechado, onde, segundo Luhmann
apud Neves e Samios (1997, p. 25), “informações são sempre constructos internos”.
Em esteira análoga, Lèvy (2003, p. 25-26) afirma que a tecnologia tem papel, quando
muito, condicionante, mas nunca determinante da sociedade e da cultura. Fenômenos sociais
jamais são operados unidirecionalmente por relações de causa e efeito, pois a pluralidade de
atores, fatores e circunstâncias impede cálculos e projeções precisas de determinantes.
Apoiado em interessante metáfora, o Lèvy (2003, p. 25) explica a inexistência de um
pretenso determinismo entre tecnologias e sistemas sociais:
A invenção do estribo permitiu o desenvolvimento de uma nova forma de cavalaria
pesada, a partir da qual foram construídos o imaginário da cavalaria e as estruturas
políticas e sociais do feudalismo. No entanto, o estribo, enquanto dispositivo
material, não é a ‘causa’ do feudalismo europeu.
Entretanto, existem pontos de irreversibilidade das sociedades diante da incorporação
das tecnologias. Trata-se da matriz de Heráclito1 revigorada, onde considerados o contato da
sociedade com a tecnologia, e também ao revés, no instante seguinte nem a tecnologia é a
mesma, tampouco a sociedade.
A propósito, Lèvy (2003, p. 26) leva a reconhecer que por inúmeras vezes, enquanto
se discutem possíveis utilidades e aplicações para certas tecnologias, alguns modos de usá-las
já se impuseram, e antes de ter-se definido e adotado entre esta ou aquela possibilidade, o
movimento dinâmico social já engastou-lhes seus ligamentos.
1.1.2 Eclosão e consolidação da Sociedade da Informação
Este cenário de contornos irreversíveis, alheio ao controle da informação e das
aplicações que se quer e se pode conferir às tecnologias, resultou no que se convencionou
chamar de Sociedade da Informação, descrita por Vieira (2007, p. 176) como “uma nova
forma de organização social, política e econômica que recorre ao intensivo uso da tecnologia
da informação para coleta, produção, processamento, transmissão e armazenamento de
informações”.
A informação, portanto, é o substrato vital do novo tipo de sociedade apontado, e as
tecnologias são os mecanismos de manipulação, transformação e aplicação dos mais diversos
1
De acordo com Heráclito “o ser não é mais que o não-ser”. Impinge, o filósofo, que a essência é a mudança,
asseverando que “tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo”. Vê-se a metáfora da correnteza
de um rio, que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois nem a água é a mesma, nem o mesmo homem.
Heráclito afirma que tudo é devir; este devir é o princípio, a essência, o imo do mundo.
21
aspectos e existência desta conformação social multifacetada. De acordo com Laborit apud
Lojkine (2002, p. 113), a informação “não é nem massa nem energia (...) em si, ela é
imaterial, posto que representa ‘este algo que faz com que o todo não seja apenas a soma das
partes’”. Segundo Vieira (2007, p. 177), “a informação contém em si o principal ativo da
sociedade da informação, ou seja, sua principal riqueza, sendo indispensável ao desempenho
de qualquer atividade”.
Assim, fala-se em Sociedade Informacional, segundo termo cunhado por Castells
(2003, p. 57-59) ou Sociedade da Informação, como prefere Lèvy (2003, p. 22-25), e termo
que se adota neste estudo. Mas desde logo é essencial fixar que a Sociedade da Informação
não se reduz às tecnologias de informática e comunicação. Estas são elementos de grande
relevância e responsáveis por significativas transformações, porém na definem nem
determinam per si a sociedade contemporânea. O que dá a tônica da Sociedade da Informação
é que qualquer conhecimento, qualquer técnica, qualquer modus, transmuda-se em informação
captável e da qual se pode apoderar, conservar, reproduzir e disseminar.
Nesse contexto, métodos e rotinas matemáticas, fórmulas químicas, estatísticas, dados
genéticos, exploração de espécies, pesquisas espaciais, técnicas administrativas, sistemas
jurídicos, etc., tudo se reduz a informação predestinada a uma aplicação posterior, por vezes
com intuito altruísta (cura de doenças, formas de aumento da produção de alimentos,
facilitação de trabalhos), outras por interesses estatais (segurança, proteção de recursos
nacionais, estratégias de guerra, definição de políticas públicas), e ainda, hodiernamente com
mais vigor, fins econômicos (atuação de mercados financeiros, circulação de mercadorias,
identificação e captação de consumidores).
Por esta razão, a Sociedade da Informação não tem seu nascedouro no
desenvolvimento de tecnologias de informática e comunicações. Entretanto, o diferencial
nessa conformação social, é que ocorre o que Takahashi (2000, p. 3) chama de convergência
de base tecnológica, uma vez que se pode “representar e processar qualquer tipo de
informação de uma única forma, a digital” [grifo no original].
Contudo o fenômeno da Sociedade da Informação é anterior a isso. Tecnologias
informáticas e comunicacionais apenas lhe imprimiram velocidade e poder de penetração e
condicionamento social. Esta marcha é explicada por Doneda (2006, p. 34-35) que adota a
Revolução Industrial como marco que razoavelmente se pode admitir para esta ocorrência,
quando a tecnologia passou desempenhar papel de maior relevância na dinâmica social,
recebendo impulso com a lógica do mercado. Ato seguinte, continua o referido autor, a
22
tecnologia – característica da Sociedade da Informação – ganhou vigor com incremento de
velocidade advinda das descobertas das áreas de eletrônica e telecomunicações, conferindo
nova dimensão ao fenômeno tecnológico. Sua influência no modo de produção foi o reflexo
mais evidente da penetração tecnológica no comportamento social, porquanto passou a
determinar instrumentos de trabalho, técnicas de organização na distribuição de tempo e
espaço.
Acrescenta Takahashi (2002, p. 5) que a Sociedade da Informação consiste em severa
mudança na organização social e econômica, tratando-se de fenômeno global, com grande
potencial transformador, já que a estrutura e a dinâmica dos fatores e relações sociais e
econômicas são afetadas, ora mais ora menos, pela infraestrutura de informações disponíveis.
E, para além disso, há também repercussões de ordem político-econômica no sentido de que
pelo domínio de informações e produção de tecnologias, regiões tornar-se-ão mais ou menos
atraentes a empreendimentos. Completa-se, enfim, por afetação na dimensão social, em razão
do potencial para promover integrações ao encurtar distâncias espaciais e aumentar a
disseminação e apoderamento de informações.
Na Sociedade da Informação, como o próprio nome lhe define, a informação é o
pressuposto de existência e sustentação. O universo natural transmuda-se na informação sobre
ele, na conservação do dado ou conceito resultante da inflexão do sujeito sobre o objeto
cognoscível. As tecnologias, por sua vez, permitem conservar este conhecimento e empregálo na transformação do mundo e na geração e outros conhecimentos.
Contudo, a informação desregrada não tem nenhuma, ou tem pouca relevância,
mostrando-se imprescindível a informação lapidada pela própria irritabilidade do meio social
a ela impingida, tornando-a informação selecionada, com utilidade e finalidade. Logo,
seguindo a linha de Lojkine (2002, p. 109),
Ela envolve sobretudo a criação, o acesso, e a intervenção de informações
estratégicas, de síntese, sejam elas de natureza econômica, política, científica ou
ética; de qualquer forma, informações sobre informação, que regulam o sentido
das informações operatórias, particulares que cobrem a (...) vida cotidiana [grifouse].
O caráter utilitarista da informação se sobreleva, uma vez que a Sociedade da
Informação não deixa de ser uma redefinição do modo de produção capitalista, já que
inescondível o emprego das tecnologias de domínio da informação convergente a interesses
econômicos e políticos, operando, também, em uma redefinição da distribuição do poder.
23
Nesse ponto, Rodotà (1997, p. 7) inculca que a disponibilidade de informações também
contém um valor democrático, pois permite transparência e difusão de poder, e pode permitir
um controle das decisões das autoridades, de maneira crítica e fundamentada, graças a
crescente capacidade de se alternar do modelo hierárquico de tomada de decisões para um
modelo em rede.
A propósito dessa percepção, analisando o funcionamento dos mercados financeiros
globais a partir do fenômeno da internacionalização das decisões econômicas e políticas, Faria
(2011, p. 34) destaca a importância crucial da expansão das tecnologias de comunicação e
informação para a reconfiguração do sistema financeiro mundial, pois somente a junção
destas tecnologias permitiu imprimir ao sistema velocidade e instantaneidade das operações, e
notadamente de suas consequências (boas e ruins) que ali atualmente são pressentidas.
Por sua vez, Lèvy (1998, p. 110) discorre que o relógio era o paradigma da máquina,
no século XVII, passando à máquina a vapor no século XIX, e chegando ao computador no
século XX, onde o mecanismo preponderante, ao qual todos os outros estão subordinados e
são dependentes, é o processamento da informação, porque há uma necessidade de eliminar
incertezas, indeterminações e erros, de modo a obter informação lapidada e útil, tornada,
enfim, mercadoria.
A Sociedade da Informação pode ser encarada como uma reconfiguração da própria
sociedade capitalista, ou ao menos do modo de produção capitalista construído e sustentado a
partir do paradigma do conhecimento em torno das ciências naturais e do raciocínio evolutivo
da espécie humana, pois a aplicação da lógica é elemento essencial para o domínio da
natureza e das informações, com também para sua aplicação e a geração de técnicas e
tecnologias.
A esse respeito Lèvy (1998, p. 108), quando discute a formalização do raciocínio,
expõe que pesquisadores das áreas de arqueologia, história e economia concordam sobre o
ideal do logicismo, pois é o caminho necessário para que o conhecimento científico se
construa a partir de um conjunto inicial de dados até as proposições finais, e o raciocínio é o
apanhado das técnicas de processamento da informação ali utilizadas.
À Sociedade da Informação, portanto, importa o domínio da informação, algo só
obtido pela evolução das capacidades cognitivas e intelectuais do ser humano, numa visível
relação com o amadurecimento intelectual da espécie, com a respectiva indução a novos
modos de produção e sociedades. Bem a esse modo, Vieira (2007, p. 181) argumenta:
A informação, atualmente assume, diante do capitalismo, a posição que o petróleo
24
exercia no início do século passado. Todavia, a informação não se apresenta como
pretensão de substituir velhos recursos, mas apenas alterar o antigo modo de
produção de riquezas. (...). E se a informação anuncia-se o novo ‘petróleo’, as bases
de dados públicas denunciam-se como seu principal ‘jazigo’.
Daí porque a Sociedade da Informação é um nível diferenciado da sociedade
capitalista, não se podendo, entretanto, defender que seja um nível mais elevado ou
regressivo. Conhecimento e informação assumem um viés significativamente econômico,
defendendo Drucker (1976, p. 298) que o importante é que o conhecimento tornou-se o
principal fato de produção de uma sociedade avançada. Em complemento, Pinheiro (2007, p.
28) aduz que nessa realidade, “o instrumento de poder é a informação, não só recebida mas
refletida. A liberdade individual e soberania do Estado são hoje medidas pela capacidade de
acesso à informação”.
A Sociedade da Informação pode ser compreendida como o resultado da
decomposição da vida natural e sua reestruturação em representação por meio de dados,
funcionando a informação como força motriz desse processo de espetaculização. Nessa raia
mostra-se oportuna a visão de Debord (2003, p. 10-11):
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o
projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real,
um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as
suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo
direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida
socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na
produção, e no seu corolário — o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são
a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é
também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do
tempo vivido fora da produção moderna.
De todo, vislumbra-se que a informação, em sentido bastante geral e amplo, é a que dá
suporte às relações humanas. E a informação lapidada é a que confere sólidos sustentáculos à
nova e complexa Sociedade da Informação, e que tem na infra-estrutura de tecnologias de
informática a propulsão de sua veloz dinamicidade.
Uma formação social que tem na informação o fator de sua fundação e sustentação
precisa adornar-lhe com proteção, motivo pelo qual à informação foi reconhecido e atribuído
valor jurídico, passando a se defender a existência de um direito à informação.
Até mesmo pela escala global ostentada pela Sociedade da Informação, o direito de
acesso à informações aproveita de reconhecimento jurídico com intuito universalizante, tanto
que consta explicitamente da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948,
especialmente em seu art. XIX que reconhece como direito humano a prerrogativa de “receber
25
e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Para a Declaração em comento o direito à informação assume intrínseca ligação com o direito
de liberdade de expressão, condição sine qua non para se atribuir valor jurídico e econômico,
pois só tem interesse a informação que possa ser transmitida de uma pessoa para outra, ou
para várias, o que se obtém no exercício de uma liberdade de expressão.
Para Mendel (2009, p. 1), portanto, a livre movimentação da informação é essencial
para a construção e afirmação da democracia, e imprescindível para o respeito aos direitos
humanos, pois sem a liberdade de expressão, que é envolta por informação e desta faz sua
razão, não é possível exercer direito legítimo a voto, assim como violação de direitos
ocorreriam em segredo, e se tornaria dificultoso revelar corrupção e ineficiências
governamentais.
Com efeito, o direito à informação compreende as prerrogativas de buscar, receber e
transmitir informações. De acordo com Meyer-Pflug (2009, p. 42), o direito à informação
“consiste no direito de se obter informações bem como o direito de informar”, cogitando,
assim, de um direito de se informar e um direito de informar. Indo além, Farias (2004, p. 162163) visualiza um desdobramento a mais, consistente no direito de ser informado. Para este
autor, o direito à informação reproduz-se nos direitos de informar, informar-se e ser
informado, de tal forma que o primeiro consiste no direito de produzir e levar informações às
pessoas, o segundo no direito de buscar informações (acesso à informação), e o terceiro no
direito de receber informações.
A atribuição da conotação jurídica à informação, com clara feição de direito subjetivo,
portanto exigível, consubstanciou-se no pressuposto para que o indivíduo pudesse ser incluído
na Sociedade da Informação, e dela participar, dando azo, assim, ao uma nova categoria
existencial, apropriada a este modalidade social, a do ser informacional.
1.2 O SER INFORMACIONAL
A Sociedade da Informação, lastreada no primado do conhecimento, na criação,
circulação e oneração da informação, redefine as inter-relações pessoais e sociais, assim como
repercute sensivelmente no direcionamento dos aspectos econômicos, políticos, jurídicos e
sociais, provocando alterações significativas no cotidiano.
Nesse processo não fica infensa a pessoa humana. Todo seu conjunto físico, moral e
espiritual, também se transmuda em ser dependente de informações, onde dados e signos são
sua vivificação em um novo plano de existência. Na Sociedade da Informação o indivíduo é
26
tomado e conhecido não pelo ser natural, mas pelas informações que lhe são inerentes ou lhe
dizem respeito.
E nesse contexto, um dos fenômenos mais perturbadores gerado na Sociedade da
Informação, notadamente pela união das tecnologias de informática e comunicações, a par da
expansão e popularização da comunicação em redes via Internet, consiste no surgimento dos
espaços ou ambientes virtuais.
A propósito, adota-se aqui a nomenclatura de espaços ou ambientes virtuais para todo
e qualquer conjunto de informações fornecidas, cedidas ou captadas de indivíduos, estejam ou
não organizadas em bancos de dados ou mecanismos análogos e que possam ser consultadas e
recuperadas a qualquer tempo, bem como combinadas com outras informações resultando na
revelação de traços da identidade e vivência de indivíduos ou grupos. Logo, não se pode
reduzir o conceito de espaços ou ambientes virtuais a websites e serviços de comunicação e
interação existentes na Internet. O campo é maior, mais abrangente, e engloba outras
tecnologias de manipulação de informações, como registros de serviços públicos, de entidades
públicas e privadas, de empresas, e outros.
Os ambientes virtuais – construídos a partir e sobre informações, e destas dependentes
- provocam deslocamento das ações e mesmo da vivência humanas para um universo virtual,
transpondo relações sociais, afetivas, comerciais, laborais e políticas para um novo plano de
existência humana, possibilitando novas experiências sensoriais que levam ares de
desprendimento do mundo natural. Entretanto, este plano não suprime e não encerra com a
existência e a relevância do mundo natural. Estabelece, em verdade, uma coexistência, como
explica Lévy (2003, p. 211):
(...) é um erro pensar que o virtual substitui o real, ou que as telecomunicações e a
telepresença vão pura e simplesmente substituir os deslocamentos físicos e os
contato diretos. A perspectiva da substituição negligencia a análise das práticas
sociais efetivas e parece cega à abertura de novos planos de existência, que são
acrescentados aos dispositivos anteriores ou os complexificam em vez de substituílos.
Esta nova percepção eleva o indivíduo à condição de um Ser Informacional, ou seja,
na Sociedade da Informação a representação da pessoa em informações é a própria pessoa que
se conhece a priori, eis que é primeiramente representada por informações, conhecida por
dados sobre si, números, rotinas de compras e gastos, serviços utilizados, etc., em forma de
textos, imagens, sons e dados registrados. O Ser Informacional é o alter ego do ser natural na
Sociedade da Informação. Rodotà (2008, p. 125) assim descreve o fenômeno:
27
A unidade da pessoa partiu-se. Em seu lugar encontramos tantas ‘pessoas
eletrônicas’, tantas pessoas criadas pelo mercado quanto são os interesses que
estimulam a coleta de informações. Estamos nos tornando ‘abstrações no
cyberespace’, e de novo estamos diante de um indivíduo ‘multiplicado.
A consideração do indivíduo a partir das informações que dele se conhece, ou que
são passíveis de conhecer, provoca, igualmente, uma reificação da própria identidade pessoal,
passando a ter somenos importância a vida concreta, posto que superada pela existência e
vivência representada pelos dados pessoais. Na ponderação de Castells (2003, p. 41), “cada
vez mais, as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no
que elas são ou acreditam que são”. Para o indivíduo operar na Sociedade da Informação,
portando, é essencial sua representação, mais que o próprio ser, gerando um ser distinto,
apropriado à gravitação de dados, um evidente ser informacional.
O fenômeno não é recente, e já foi outrora identificado por Debord (2003, p. 8-9):
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se
anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente
vivido se esvai na fumaça da representação.
As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso
comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. A
realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um pseudo
mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das imagens do
mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O
espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do
não-vivo.
O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu
instrumento de unificação.
A transcendência do ser natural para o ser informacional tem como consequência a
redução do controle sobre as próprias informações, porque permite o fluxo contínuo de dados
é inerente à própria sustentação da Sociedade da Informação e das pessoas nela atuantes.
Indivíduos só são reconhecidos por suas informações pessoais, tornando irrelevante que neste
universo por vezes não exista perfeita sintonia entre o ser natural e a sua representação em ser
informacional.
Nessa raia, surgem os perfis pessoais, a construção por excelência do ser
informacional. O trânsito, diálogo e cruzamento de informações mais variadas abre espaço
para a técnica do profiling, descrita por Doneda (2008, p. 173), como aquela em que “os
dados pessoais são tratados, com auxílio de métodos estatísticos, técnicas de inteligência
artificial e outras mais, com o fim de obter uma ‘metainformação’, que consistiria na síntese
dos hábitos, preferências pessoais e outros registros da vida da pessoa”.
28
Além disso, o surgimento da biometria2 reafirma a percepção de um ser
informacional, na medida em que provoca combinações de corpo físico e corpo eletrônico.
Segundo Rodotà (2008, p. 240), a partir disso o corpo físico está se tornando uma via de
acesso, porque o corpo eletrônico, aquele formado pelo conjunto de dados pessoais e que
assim resulta numa metainformação do indivíduo, é o que mais interessa para questões de
segurança ou ações de mercado. O corpo humano natural, assim, é equiparado a um objeto
qualquer, passível de observação, acompanhamento e controle à distância, por meio de
sofisticado sistemas informáticos integrados a tecnologias de satélite e radiofrequência.
1.2.1 Identidade informacional
A toda evidência, a metainformação supramencionada consubstancia-se na
identidade do Ser Informacional, no conjunto de dados que regerá sua vivência na Sociedade
da Informação, entre possibilidades de participação e restrições de atuação. Como continua
Doneda (2008, p. 174),
Um perfil obtido pode se transformar numa verdadeira representação virtual da
pessoa, pois pode ser o seu único aspecto visível a uma série de outros sujeitos. Este
perfil estaria diversas vezes, fadado a confundir-se com a própria pessoa. (...).
O fato deste ‘perfil’ se contrapor à própria realidade da pessoa foi notado por vários
autores, que verificaram o surgimento de um nosso correlato digital, um corpo
eletrônico, formando pelos nossos dados.
A propósito, como lembra Vieira (2007, p. 253) “na sociedade da informação, as
pessoas cada vez mais se encontram sujeitas a bancos de dados controlados por potentes
softwares de cruzamento e busca de informações. Desde o nascimento, o indivíduo já tem
inseridos os respectivos dados pessoais em arquivos informatizados da Secretaria de Registro
Civil”.
Diante do conjunto de informações relacionadas aos indivíduos na Sociedade da
Informação é possível apresentar ao menos duas categorias com reflexos relevantes nas
relações variadas estabelecidas entre pessoas, instituições e Estado. Existem as informações
originárias que são apenas desveladas pelas técnicas e tecnologias, e então afixadas como
2
Adota-se biometria como o estudo das medidas, estruturas e traços biológicos dos seres vivos e órgãos de seres
vivos, direcionada especialmente à coleta de informações que permitam a identificação precisa de um ser –
especialmente o ser humano – extremando-o de qualquer outro, com destaque para dados da íris, retina, traços
faciais, digitais, etc., transformando em estruturas matemáticas e armazenados em bancos de dados.
29
representativas de características pessoais, sendo exemplos a tipagem sanguínea, o código de
DNA, enfim, dados biológicos. Por outro lado, existem informações atribuídas, que são
artificialmente criadas e vinculadas aos indivíduos, mas que passam igualmente a fazer parte
de sua identidade, podendo ser exemplificadas pelo nome, números de documentos pessoais
(CNPJ, seguro social), endereço de correspondência eletrônica (e-mail).
A diferença entre as informações originárias e as atribuídas está em que as primeiras
nascem com a pessoa, e as segundas lhe são imputadas ao longo da vida. Contudo, é
importante notar que mesmo aquelas aqui reputadas originárias, a rigor dizentes com aspectos
biológicos, são ao menos desveladas e aplicadas a cada indivíduo. É o exemplo da tipagem
sanguíneas, pois há um combinado de elementos que formam o líquido que flui pelo corpo
humano, mas o fato de ser reconhecido como sangue tipo A ou B decorre da identificação
deste fator e reconhecimento desta pertença ao indivíduo, baseado em conhecimentos
científicos anteriormente construídos.
Outrossim, uma das informações atribuídas mais relevantes da condição humana,
essencial para a existência de uma identidade que extreme de outros, é o nome pessoal, que
não nasce com a pessoa, mas lhe é dado e passa a defini-la por toda a existência e mesmo
após a morte. Assim, aliás, esclarece Vieira (2008, p. 27):
o ser humano sem nome é apenas uma realidade fática; com o nome penetra no
mundo jurídico, a expressão mais característica da personalidade. Assim, nome é o
chamamento pelo qual se designa uma pessoa, individualizando-a não só durante a
vida, como também persiste após a morte.
De todo modo, os dois conjuntos de dados definem a identidade do ser
informacional, pressuposto para a vivência, atuação e desenvolvimento individual na
Sociedade da Informação, tendo como aparato necessário a possibilidade transmissão de
informações pessoais.
Para ilustrar consequências desta cisão em um ser informacional, serve o caso da
duplicação de números de PIS dos trabalhadores brasileiros e os transtornos a estes
ocasionados. O PIS consiste em um número de identificação social do cidadão utilizado pelo
governo brasileiro nas mais diversas áreas de direito sociais (relações de trabalho,
previdência, assistência social, saúde, etc.), ou seja, é a representação informacional do
trabalhador para o gerenciamento e concessão de benefícios trabalhistas e previdenciários. Em
outras palavras, o número de PIS é a própria pessoa; sem este número a pessoa não existe para
30
o órgão público gestor dos benefícios.
Uma inconsistência da conservação dos números de PIS de inúmeras pessoas, no ano
de 2011 provocou vários transtornos e impediu que trabalhadores tivessem acesso a direitos
assistenciais prestados pelo governo, em especial o seguro-desemprego3. Esta intercorrência
foi resultado da operação compartilhada do cadastro de números de PIS entre vários órgãos da
administração pública federal acabou gerando mais de um número para um mesmo
trabalhador. A constatação de números de PIS em duplicidade para uma mesma pessoa
provocou o bloqueio do pagamento e concessão de benefícios aos trabalhadores incluídos
nessa situação.
Imprescindível ter em foco que a ‘existência’, transitação e atuação dos indivíduos nos
espectros informacionais consubstancia-se em verdadeira forma de inclusão na Sociedade da
Informação, participação esta essencial ao atendimento da dignidade da pessoa humana em
sua completitude, uma vez que o indivíduo é, inexoravelmente, um ser social, cujas interrelações não se perfazem completamente sem a participação nos planos de existência
virtualizada, isto é, a partir do alter ego informacional.
Negar, dificultar ou refrear tal faceta participativa deságua em uma nova e perversa
circunstância excludente e violadora de direitos. A situação ganha relevo quando notado que
inúmeros serviços públicos prestados pelo Estado vêm, paulatinamente, sendo transportados
para os meios virtuais, a exemplo do ocorrido com a concessão ou não de benefícios
previdenciários e trabalhistas antes relatados a partir da identificação individual por um
número (PIS).
O evento acima relatado exprime o fenômeno provocado pela classificação pessoal
decorrente da manipulação de informações a seu respeito, fazendo com que o ser humano seja
decomposto, passando a existir um ser material (biológico) e um ser imaterial
(informacional). A classificação humana, a partir das informações coletadas, leva à eleição de
categorias de inserção dos indivíduos, do que defluem naturalmente direitos igualmente
decompostos. Assim, tem-se o ser humano como ser biológico detentor do direito à vida; o ser
humano como componente de uma coletividade, detentor do direito à liberdade, à igualdade;
o ser humano como trabalhador, detentor do direito ao trabalho digno, e outros.
O indivíduo decomposto, a partir de informações que fornecem várias acepções a
respeito do seu Ser, igualmente desperta o intento de assegurar prerrogativas e direitos que
3
Gazeta do Povo, Economia, 27 maio 2011. ‘Pis Mutante” dá semanas de aflição aos trabalhadores. Disponível
em: <http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?id=1130356>. Acesso em: 17 abr. 2014.
31
contemplem cada uma destas realidades humanas, e, se as informações permitem categorias
de pessoas, haverá, também, direitos atinentes a pessoas específicas, fazendo surgir
microssistemas protetivos.
A esse modo, tem-se direitos especialíssimos e próprios das mulheres4, das crianças5,
dos idosos6. A distribuição dos direitos conforme a classificação humana atrai o problema da
igualdade e das minorias, em razão da justificativa e legitimidade para, na diferença, conceber
direitos a uns e não a outros.
A Sociedade da Informação, em efeito, é o campo propício para a escolha de direitos
humanos a ser assegurar aos indivíduos, atitude fundamentada em critérios culturais, segundo
a linha proposta por Baez (2010, p. 25-26), pois só se faz escolhas a partir de critérios
predefinidos, e estes critérios surgem da classificação e decomposição do ser humano em
informações sobre ele próprio e nas categorias em que alocado. Por exemplo, para que se
pronuncie a igualdade entre homens e mulheres, como faz a Constituição Federal brasileira de
1988 (art. 5º, I) é preciso que se classifiquem seres humanos nas categorias “homem” e
“mulher”, feito que só é alcançável por informações científicas e relacionais que permitam,
distinguir um do outro, a partir da criação de gêneros aos indivíduos, ou seja, informação
atribuída.
As diferenças e igualdades decorrentes da classificação dos indivíduos, que os reúnem
e afastam em grupos, como a família, a escola, o trabalho, a cidade, o país, se reproduzem em
nível macro, entre países, blocos e culturas, o que explica, por exemplo, a cultura ocidental e
o contraponto da cultura oriental. A toda evidência, são informações ordenadas que despertam
esta tensão.
1.2.2 Implicações da identidade informacional no plano natural
O enfrentamento do ser humano a partir de critérios informacionais resulta nas
identidades, unindo e separando indivíduos em razão de raça, religião, família, nacionalidade,
e outros. De fato, é preciso um critério para dizer que determinado indivíduo é de uma raça ou
de uma nacionalidade, e esta característica só é desvelada a partir de informações sobre este
indivíduo submetido ao processo de classificação, identificando um perfil, segundo Rodotà
4
Cf., Declaração Sobre a Eliminação da Violência contra As Mulheres, da ONU, de 1993.
Cf., Declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU, de 1959.
6
Cf., Princípios das Nações Unidas para Pessoas Idosas, de 1991.
5
32
(2008, p. 114-115), que o alcandora a uma entre várias categorias admitidas na Sociedade da
Informação.
Castells (2003, p. 57-58) acentua que identidade é “o processo pelo qual um ator social
se reconhece e constrói significado com base em determinado atributo cultural ou conjunto de
atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais”. Lucas
(2010, p. 173-174) reforça que as modalidades identitárias passam a ser fundamentadas em
projetos específicos e necessidades particulares, provocando colisão de interesses e de valores
num mesmo ambiente social.
No cenário econômico, pode-se destacar as identidades dos consumidores e dos nãoconsumidores. No universo comunicacional e informático, as identidades dos conectados e
dos não conectados. E a cada uma dessas categorias o esforço por reconhecer e estender
prerrogativas e direitos. Para os consumidores, a proteção contra a publicidade enganosa, a
garantia da liberdade de escolha. Para os não-consumidores, o livre acesso. Para os
conectados a segurança da privacidade e intimidade, para os não-conectados (excluídos)
mecanismos e políticas de inclusão. Para cada uma destas nuanças sociais é importante um ser
informacional que nelas transite e delas possa participar.
Na Sociedade da Informação, ademais, são importantes as apreensões sobre o domínio
da genética humana e suas aplicações, os procedimentos médico-científicos para
prolongamento da vida, a proteção da privacidade, o direito de informação, etc., motivo pelo
qual ganham destaques a tecnologias biológicas, informáticas e computacionais, a partir das
quais as relações humanas, e o próprio ser humano, são redefinidos.
Nesse plano, transcende-se da Sociedade da Informação à Sociedade da Classificação,
desaguando na Sociedade do Controle, ou seja, o controle das informações e o consequente
controle sobre a vivência humana, o que é propiciado por tecnologias e técnicas. Com efeito,
a posse de informações sobre os indivíduos, sobre o gênero humano, dá novas conotações a
direitos naturais como a vida, a integridade, a liberdade.
Basta tencionar, nessa raia, que o direito à vida deixa de se restringir à proteção contra
seu término. Estudos médicos e científicos permitiram perquirir sobre um critério técnico
preciso acerca do início da vida7, e daí as infindáveis discussões sobre a proteção do
nascituro, ou mesmo do projeto de nascituro quando em tela a proteção de embriões humanos
7
É possível aferir ao menos cinco teorias científicas sobre o início da vida humana (MUTO, Eliza; NARLOCH,
Leandro. Vida: o primeiro instante. Revista Superinteressante. São Paulo: Editora Abril, nov. de 2005).
33
produzidos em laboratório. Noutro extremo estão as técnicas médicas de prolongamento da
vida e que deflagram acirradas contendas sobre a dignidade na morte. É preciso reconhecer,
portanto, que é o domínio da informação que propicia estas possibilidades.
De acordo com Lèvy (1999, p. 19), a “virtualização” do corpo hodiernamente
experimentada é uma nova etapa em uma jornada pela autocriação que perpetua espécie
humana, só possibilitada por iniciativas, técnicas e descobertas decorrentes de técnicas e da
tecnologia moderna. Essa transcendência de um estado de corpo em vivência natural para uma
estada informacional pode ser bem apreendida pelas tecnologias de comunicações que
permitem estar aqui e acolá simultaneamente; os mais variados equipamentos de captação de
imagens podem conservar sensações que determinada pessoa experimentou em um momento
e lugar, e a elas retornar virtualmente.
Noutro passo, em tela o direito de liberdade e suas restrições, o domínio do
armazenamento e recuperação de dados sobre as pessoas permite vazão a normas jurídicas
que modulam a aplicação de penas restritivas de liberdade, servindo de exemplo o instituto
penal da reincidência8. Não fossem sistemas de registros de informações interligados, capazes
de conservar informações pessoais9 e, portanto dominar o Ser Informacional, se tornaria
inviável a verificação da vida pregressa com efeitos importante à restrição da liberdade
imposta pelo cometimento de um delito.
Note-se que a norma jurídica que dimensiona o instituto da reincidência está
construída sobre uma premissa, a base informacional sobre o passado pessoal daqueles que ao
menos uma vez foram captados pelo sistema prisional estatal. A questão permite inferir que a
pessoa tem maior ou menor restrição de sua liberdade em razão da classificação que dela é
feita, ação possível unicamente por que se pode dominar informações a seu respeito,
8
De acordo com Nucci (2008, p. 422), reincidência é “o cometimento de uma infração penal após já ter sido o
agente condenado definitivamente, no Brasil ou no exterior, por crime anterior”.
9
Como exemplo da importância da recuperação de informação pessoa para fins de reincidência, colhe-se o
seguinte julgado: “ACÓRDAO APELAÇAO CRIMINAL P TRÁFICO E ASSOCIAÇAO - PRELIMINAR DE
NULIDADE DA SENTENÇA ANTE A NEGATIVA DE INSTAURAÇAO DO INCIDENTE DE
INSANIDADL - REJEITADA - MÉRITO - TRÁFICO E ASSOCIAÇAO PARA O TRÁFICO ABSOLVIÇAO - IMPOSSIBILIDADE - DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS CONDUTORES DO
FLAGRANTE - VALOR PROBANTE - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - APREENSAO
DE MAIS DE TRÊS QUILOS DE COCAÍNA - ÂNIMO ASSOCIATIVO - PEDIDO DE AFASTAMENTO DA
AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇAO MATERIAL - POSSIBILIDADE NECESSIDADE DE CERTIDAO CARTORÁRIA OU DOCUMENTO COM FÉ PÚBLICA - RECURSO
CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA ANTE A
NEGATIVA DE INSTAURAÇAO DO INCIDENTE DE INSANIDADE: (...). 4. Não havendo nos autos
certidão cartorária, ou qualquer documento com fé pública que demonstre possuírem os acusados
condenação criminal pretérita ao crime perpetrado, deve ser desconsiderada a circunstância agravante da
reincidência. 5. Recurso conhecido e improvido” (TJES – 2ª Câmara Criminal – ACR 24070048830 – Rel. José
Luiz Barreto Vivas – j. 06.08.2008 –DJ 12.09.2008) [grifou-se].
34
capacidade significativamente acentuada pela aplicação das tecnologias computacionais e
comunicacionais, e o tratamento de dados que possibilitam.
Outro efeito importante da consideração do ser informacional está no universo do
estabelecimento de relações, consigo mesmo, com o mundo exterior e com outros indivíduos.
A imbricação da informação da vida humana, e a dependência desta, altera o modo como o
indivíduo relaciona-se nos mais variados âmbitos. O ser informacional é, em um certo
sentido, o ser natural complexificado, pois as técnicas e tecnologias envoltas na informação
tornam vivência humana mais complexa Lèvy (1999, p. 217) expõe esta percepção:
Assim como a aparição de novos órgãos, as grandes invenções técnicas não
permitem apenas fazer a ‘mesma coisa’, mais rápido, com mais força, ou em escala
maior. Permitem, sobretudo, que se faça, sinta ou organize de outra forma. Levam
ao desenvolvimento de novas funções, ao mesmo tempo que nos obrigam a
reorganizar o sistema das funções anteriores.
O impacto dessa outra forma de ser, de estar e de viver, nas relações sociais e
interpessoais é significativo. Bauman (2004, p. 8-9) discorre que as pessoas têm,
gradativamente preferido referir-se a seus mais variados tipos de relacionamentos (familiares,
amorosos, sociais) como momentos de conexão e desconexão, fazendo aflorar a
essencialidade dos relacionamentos em rede. Pontualmente, o citado sociólogo faz ver:
O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais
freqüentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser
demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços. Centradas no
negócio à mão, estão protegidas da possibilidade de extrapolar e engajar os parceiros
além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida — ao contrário daquilo que
os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por
perpetrar.
Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e também para
serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato — mas entrar
em contato não é obstáculo para se permanecer à parte. Os espasmos da proximidade
virtual terminam, idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela pode ser
encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de um botão.
Com efeito, estar em rede é uma necessidade relacional específica da Sociedade da
Informação, e na rede atuam os seres informacionais, separados momentaneamente do ser
natural. São novos planos de existência efêmera, enquanto perdurar a conexão de
comunicação.
Não se há de ignorar, por outro lado, que também o surgimento e adoção de técnicas e
tecnologias levem a algum perdimento. Lèvy (1999, p. 218) mostra que “os hábitos, as
habilidades, os modos de subjetivação dos grupos e das pessoas adaptadas ao mundo antigo
35
não são mais adequadas. A mudança técnica gera, portanto, quase um sofrimento”.
Mas a transformação que tecnologias imprimem ao ser natural, nessa passagem para
um ser informacional, podem ser ainda mais drásticas. Lèvy (1999, p. 217) discorre que a
evolução biológica fez novos órgãos se encarregarem de funções que antes eram exercidas por
outros. Em direção conexa, Darwin (2002, p. 374) supõe que órgãos que tiveram as funções
assumidas por outros e que passaram a desenvolvê-las com maior precisão e resultado, foram
gradativamente diminuindo de tamanho e importância, e com o passar de gerações podem ter
sido completamente excluídos.
O incremento de tecnologias nas habilidades e competências naturais do ser humano
pode provocar fenômeno análogo ao acima descrito. Lèvy (1999, p. 19) demonstra a
interligação entre corpo, mente e tecnologias. Sugere que os aparelhos de aplicação médica
tornaram transparente a interioridade orgânica do corpo humano. Os enxertos e próteses
fazem simbiose entre homem e máquina. O natural metabolismo é modificado com drogas,
medicamentos, hormônios. Até mesmo a reprodução passa a ser regulada tecnicamente,
abandonando o acontecer natural. O espectro psíquico passa a ser dominado e regido por
medicações e terapias. A “virtualização do corpo” é um passo na intento da auto-criação e da
perpetuação da espécie.
Uma noção de substituição de funções ou habilidades por um modo virtualizado mais
rápido e eficiente pode ser encontrado nos mecanismos de posicionamento global por satélite
(GPS) que se prestam a indicar a localização de qualquer ponto com elevado grau de precisão,
tecnologia que pode tornar obsoleta, ou ao menos não tão eficiente, a habilidade humana de
localização e senso de dimensão espacial, além de interferir nos processos comunicativos, e
então na criação de relações interpessoais, que amiúde eram necessários para se chegar de um
ponto a outro, por se recorrer ao conhecimento detido por outros indivíduos no percurso.
Este exemplo ilustra as potencialidades das implicações do ser informacional no
mundo natural e na vida humana na Sociedade da Informação, porque se verificam
importantes influências de um plano de atuação no outro, reforçando a noção de que são
inseparáveis entre si o ser natural e o ser informacional.
1.3 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DA VIGILÂNCIA
A convivência em sociedade com a fixação de comportamentos permitidos, ou ao
menos não vedados, e os comportamentos proibidos, sempre exigiu que os indivíduos
estivessem sob vigilância uns dos outros. A simples eleição de comportamentos morais já
36
impôs a necessidade de fiscalização e controle, sem o que seria impossível repreender
comportamentos dissidentes do padrão social estabelecido e desejável. A vigilância, portanto,
consubstancia-se como uma característica natural das sociedades organizadas em que há um
mínimo de poder e controle.
O advento da sociedade da Informação não solapou a vigilância e o controle. Do
contrário, intensificou e refinou, conferindo novos ares, dimensões e eficiências. De acordo
com Ball, Lyon et all. (2006, p. 5), vive-se na sociedade da vigilância, onde a vida cotidiana
perpassa por encontros vigiados, ininterruptamente, atuando como um fato natural e
necessário, do qual amiúde os indivíduos nem se apercebem, ou se notam não dão o devido
valor e, tampouco, esboçam preocupação.
A vigilância, nesse panorama, é sobremaneira propiciada por mecanismos
tecnológicos. Não se reduz, contudo, à dispositivos que captam imagens várias vezes ao dia,
ou dos dados financeiros fornecidos em compras e outras contratações, ou no uso de serviços
públicos. A junção entre tecnologias, informação e vigilância reproduz uma infraestrutura
complexa apta a coletar, catalogar, manipular e gerar dados pessoais, retroalimentando a vida
em sociedade contemporânea. É o aprisionamento à distância do ser informacional.
As nuanças antes demonstradas sobre as técnicas e tecnologias na Sociedade da
Informação, e a emersão de um ser informacional, conduziram à percepção de que poderiam
ser adotadas pelos poderes públicos para aumentar o nível de sofisticação da fiscalização e de
controle exercido sobre os indivíduos. O apoderamento destas benesses pelos poderes
instituídos, no mais das vezes justificadas por ideais utilitaristas como interesse público,
segurança, bem estar coletivo, fizeram eclodir um panorama de intensa e contínua vigilância
fomentada pela coleta e captura de dados da mais variadas matizes, englobando informações
pessoais, estadas dos indivíduos em espaços públicos e privados, e enfim, a onipresente
auscultação da vivência humana.
1.3.1 Avultamento da eficácia de vigilância
A possibilidade de intensa vigilância dos indivíduos, a partir da circulação de
informações que lhe dizem respeito, consiste mesmo em uma característica natural da
Sociedade da Informação, tanto que, segundo expõe Rodotà (2008, p. 122-114), pela
vigilância a força estruturante que é inerente à tecnologias reafirma-se. O funcionamento dos
sistemas tecnológicos e a vigilância que dali deflui é um aspecto unitário, essencial à própria
existência e operação das tecnologias, ou seja, a vigilância é parte indissociável do sistema.
37
O curioso é que na aplicação e utilização de tecnologias na Sociedade da Informação,
o aparato da vigilância é, a princípio, um aspecto secundário. Os mecanismos de controle não
surgem com este intuito, mas são resultado da forma como organizadas as tecnologias para
que possam ser utilizadas e postas em operação. É dizer que a operabilidade de determinada
tecnologia não pressupõe a vigilância dos dados e informações, porém a fiscalização das
informações envolvidas neste processo é fortemente possível, vindo a tornar-se desejável e
encampada pelos interesses políticos e econômicos.
A esse modo, Rodotà (2008, p. 113) alerta que “os riscos da sociedade da vigilância
ligam-se tradicionalmente ao uso político de informações para controlar os cidadãos, o que
qualifica tais sociedades como autoritárias ou ditatoriais”. Com efeito, a captação e
manipulação de informações individuais, e de grupos, torna os mecanismos estatais de
fiscalização e controle muito mais eficazes, rápidos e refinados, o que leva os governos a
elevados investimentos em equipamentos e tecnologias e à oferta e realização de serviços nas
redes informacionais.
Outro interesse na aplicação destas tecnologias de tratamento de informações pelos
poderes públicos está na tributação, porquanto permitem mecanismos rápidos e eficientes de
controle e detecção de tentativas de sonegação tributária. A Receita Federal do Brasil, por
exemplo, utiliza o cruzamento de dados pessoais como técnica para reduzir ou evitar fraudes
no recolhimento de impostos de renda10. A mesma forma de manipulação de informações
pessoais armazenadas em órgãos públicos é utilizada pelo Governo de Portugal para
identificar irregularidades na declaração de renda de seus contribuintes, tendo reconhecido
expressamente que
Esta informação tem sido decisiva no cruzamento com os dados que constam das
declarações de IVA e de impostos sobre o rendimento, tendo como objectivo
confrontar os rendimentos declarados pelos contribuintes com os pagamentos
recebidos através de cartões de crédito e de débito e, assim, identificar pagamentos
não declarados e situações de subfacturação11.
Nessa mesma raia estão as câmeras e mecanismos análogos destinados à captação da
presença em espaços públicos e privados, amiúde associadas à prevenção criminal e à
identificação de suspeitos de cometimento de delitos. Ball, Lyon et all (2006, p. 15-19)
10
UOL, Notícias, Economia, 2012. Receita Federal usa cruzamento de dados para tentar evitar fraudes no IR.
Disponível
em:
<http://economia.uol.com.br/impostoderenda/duvidas-frequentes/receita-federal-usacruzamento-de-dados-para-tentar-evitar-fraudes-no-ir.jhtm>. Acesso em: 27 abr. 2014
11
PÚBLICO, Economia, 04 dez. 2013. Governo detecta fuga de 400 milhões com cruzamento dos dados fiscais
e bancários. Disponível em: < http://www.publico.pt/economia/noticia/governo-detecta-fuga-de-400-milhoescom-cruzamento-dos-dados-fiscais-e-bancarios-1615050 >. Acesso em: 15 jan. 2014.
38
relatam que praticamente logo após invenção da tecnologia de gravação de imagens e
televisão, já ocorreu sua aplicação na captação de imagens faciais para fins criminais. E após
os atentados em Londres, em 200512, televisão, empresas e polícias incentivaram as pessoas a
usar seus telefones celulares para tirar fotos de pessoas que julgassem suspeitas. Com efeito, a
instalação de câmeras para vigilância em locais públicos tornou-se uma prática comum dos
poderes estatais como ação para precaver e reprimir a criminalidade.
Dos espaços públicos, a vigilância por captação de imagens e movimentos passou aos
contornos dos espaços privados, e no Brasil a Lei 7.102/1983 tem o primeiro registro da
adoção destes mecanismos ao tornar obrigatória a implantação de sistemas de segurança, e
entre as opções ali previstas está a de sistemas formados por “equipamentos elétricos,
eletrônicos e de filmagens que possibilitem a identificação dos assaltantes” (art. 2º, I, Lei
7.102/1983).
É perceptível que o surgimento de novas tecnologias de informática e comunicação
permitiu aos indivíduos experimentar uma liberdade e uma fuga da observação e influência
estatal poucas vezes antes vista. Em reação, os poderes públicos rapidamente ingressaram nos
vários níveis informacionais, numa astuta estratégia de recuperar o controle que pouco a
pouco se esvaía. De acordo com Vieira (2007, p. 202), sob justificativas de prestação de
serviços personalizados aos cidadãos e proteção à propriedade intelectual, a adoção de
tecnologias de informática e comunicações pelos governos serviram à recuperação de poder.
Nota-se como o funcionamento de técnicas e tecnologias na Sociedade da Informação
permitiram atingir em nível otimizado o Panóptico idealizado por Bentham (2008, p. 20):
É óbvio que, em todos esses casos, quanto mais constantemente as pessoas a serem
inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais
perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal,
se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa
condição, durante cada momento do tempo. Sendo isso impossível, a próxima coisa
a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso e ao
não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição
[grifou-se].
Bentham cogitava um sistema ideal de fiscalização ou controle, mas reconhecia que
poderia se impossível, dada necessidade de um contingente de pessoas eleitas para fiscalizar e
12
Notadamente os autores se referem aos atentados ocorridos no metrô de Londres em 07 de julho de 2005,
consistente numa série de explosões que provocou a morte de 37 pessoas, especulando-se que foram provocados
pelo grupo terrorista Al Qaeda, que não assumiu a autoria (Folha de São Paulo, Mundo, 08 jul. 2005. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0807200501.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014).
39
controlar outro contingente, evidentemente muito maior. Diante dessa impossibilidade
concreta, notadamente decorrente das próprias limitações das habilidades e capacidades
humanas, além de dificuldades espaciais e temporais, sugeria, então, que os fiscalizados ou
controlados fossem induzidos a pensar que estavam sob intensa e ininterrupta observação.
Infere-se que as tecnologias da Sociedade da Informação permitem atingir o primeiro
nível da proposta da Bentham, sendo despiciendo criar mecanismos para enganar os
indivíduos fazendo-os pensar que estão sob fiscalização e controle, pois efetivamente estão. A
propósito, Bruno (2004, p. 116) discorre:
Câmeras de circuito interno, chips informáticos e bancos de dados eletrônicos vêm
sendo descritos por diversos autores, como peças de um aparato global de vigilância,
uma espécie de superpanóptico, que não mais se restringe aos espaços fechados das
instituições, mas se estende tanto sobre dimensões alargadas do espaço físico quanto
do ciberespaço, ampliando enormemente o número de indivíduos sujeitos à
vigilância e à capacidade de coleta, processamento e uso de informações a seu
respeito.
A possibilidade de vigilância eficaz se amplia diante do instrumental tecnológico da
Sociedade da Informação que, em virtude destas inúmeras inovações tecnológicas, permite
que qualquer indivíduo possa ser vigilante dos que o cercam, quando munido de dispositivo e
equipamentos cada vez mais potentes e invasivos, a exemplo dos celulares, dos tablets, das
câmeras e de gravadores de sons. Com efeito, as tecnologias de informática e comunicação,
cada vez mais rápidas e vorazes, mais acessíveis, mais baratas e integralizadas aos afazeres
cotidianos da vida comum, conduziram a um estado das coisas em que cada indivíduo é ao
mesmo tempo vigilante de todos e vigiado por todos. Martins (2005, p. 158) expõe esta
evidência:
Esta questão da fronteira entre espaço público e espaço privado abre caminho à
reflexão sobre a mediação técnica, sobre o modo como as novas tecnologias da
informação, que incluem os media, participam da redefinição da fronteira entre
público e privado, ao misturarem em permanência lugares e actividades públicas e
privadas. O exemplo-tipo desta realidade é a publicitação da intimidade nos media
audiovisuais e na Internet, assim como, de um modo geral, a comunicação
electrónica.
Especialmente nos espaços públicos, cada sujeito que esteja dotado de um dispositivo
tecnológico capaz de captar a presença de outros, pode registrar e reproduzi-la de forma
instantânea, e para um contingente indeterminado de outras pessoas, sem qualquer autorização
prévia de tal divulgação. Em outras palavras, em poucos comandos intuitivos de um
dispositivo tecnológico (celular, smartphone, tablets) registra-se uma pessoa lendo jornal em
40
uma praça, e no instante seguinte este registro está disponível em algum espaço em rede para
livre consulta de uma infinidade indeterminável de pessoas. Ampliam-se, portanto, as
possibilidades de qualquer indivíduo estar intermitentemente infenso aos olhares alheios,
representados por tecnologias e dispositivos tecnológicos dotados de mecanismos de captação
da presença e vivência pessoal. O modelo conforma-se à visão da vigilância hierárquica
proposto por Foucault (1987, p. 143-144):
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigo pelo jogo do olhar; um
aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam aos efeitos do poder, e onde,
em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se
aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses
‘observatórios’ da multiplicidade humana para as quais a história das ciências
guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes,
dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as
pequenas técnicas de vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem
ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do invisível preparou em surdina um
saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeita-lo e procedimentos para
usá-lo.
Os modelos de observação, fiscalização, vigilância e controle apresentados por
Foucault e Bentham tinham um aspecto em comum, qual seja o fato de se tratarem de
tecnologias edificadas por um poder centralizador, mormente estatal. O pensamento destes
autores aproximava-se da figura do “Grande Irmão” apresentada no romance de Orwell (2009,
passim). Nisso, dentre as várias modificações que as tecnologias infligem aos hábitos e
costumes sociais, Limberger (2007, p. 169) destaca o controle visual e auditivo das pessoas
por meios de dispositivos de captação de sons e imagens, justificado por ideais de segurança e
bem comum.
Entretanto, a captação e armazenamento destes momentos das vidas dos indivíduos
não mais consistem em atuação exclusiva de um poder estatal no exercício de uma função
adrede à segurança coletiva ou ao bem comum. Na Sociedade da Informação o exercício da
vigilância e do controle não precisa ocorrer de maneira concentrada, exercido apenas pelos
poderes públicos. A disseminação das tecnologias para os espaços particulares fomenta o
compartilhamento dessas habilidades para os indivíduos, tornando a vigilância difusa,
horizontal e informal, porém não menos eficaz.
Nesse sentido, Sandel (2012, p. 283) relata a possibilidade, nos Estados Unidos, de
qualquer pessoa auxiliar, de sua casa, a vigilância das fronteiras para detectar tentativas de
imigração desautorizada. Para aumentar a fiscalização da fronteira entre Estados Unidos e
México, a polícia do Texas criou um sistema de patrulhamento via internet, com a instalação
de câmeras de vídeo em vários pontos da fronteira e sua transmissão em um website. Como
41
relata Sandel (2012, p. 283),
Os cidadãos que quiserem colaborar com a vigilância on-line da fronteira podem
transformar-se em ‘xerifes virtuais do Texas’. Se virem alguém tentando cruzar a
fronteira, basta enviar um aviso ao gabinete do xerife, que tomará as providências,
às vezes com o auxílio da Patrulha da Fronteira dos Estados Unidos.
Viável inferir, portanto, que os indivíduos são abruptamente convertidos em objeto de
observação, alvos incessantes dos mais variados dispositivos tecnológicos, muitas vezes sem
a percepção de que sua presença é captada, e outras sem a certeza de estar ocorrendo esta
captação, porém cientes da franca possibilidade de acontecer a qualquer instante. Nessa linha,
serve de exemplo a declaração feita pelo Vice-Presidente da montadora de veículos Ford, de
que “se há um GPS no seu carro, sabemos o que você faz”13. Esta é uma demonstração típica
de que tecnologias desenvolvidas para um determinado fim podem assumir rapidamente
funções fomentadoras de sistemas de fiscalização, controle e vigilância.
1.3.2 Controle e poder pela vigilância
O interesse na eficácia de sistemas de vigilância justifica-se na medida em que
resultam em mecanismos eficientes de exercício de poder. Nesse sentido Vieira (2007, p. 194)
pontua que o poder disciplinar experimentou refinamento a partir do século XIX, provocado
por uma vigilância contínua e detalhada, exercitada por poderes estatais e instituições
privadas, consubstanciando-se em uma rede de controle pairando sobre todas as vivências
humanas. Os interesses estatais amiúde estão atrelados a estratégias de defesa territorial,
segurança, políticas públicas, investimentos e arrecadação tributária. Os objetivos das
entidades privadas estão, de algum modo, vinculados aos interesses de mercado.
Por evidente, o traçado da vigilância permitida pelas facilidades da Sociedade da
Informação não se reduz à incessante observação e auscultação da presença humana. Para
além de imagens e vídeos, é na coleta de informações individuais e coletivas que mecanismos
de vigilância e controle podem se revelar ainda mais imbricados no cotidiano das pessoas.
De acordo com Rodotà (2008, p. 113), nessa perspectiva “a idéia de vigilância invade
cada momento da vida e se apresenta como um traço próprio das relações de mercado, cuja
fluidez diz respeito à possibilidade de dispor livremente de um conjunto crescente de
13
TERRA. Notícias. Tecnologia. Se seu carro tem um GPS, sabemos o que você faz, diz vice da Ford. 09 jan.
2014. Disponível em: <http://tecnologia.terra.com.br/se-seu-carro-tem-um-gps-sabemos-o-que-voce-faz-dizvice-da-ford,06b2bb1c55a73410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html>. Acesso em 15.01.2014.
42
informações”. O ser informacional é, portanto, o pressuposto para a instalação das formas de
vigilância da Sociedade da Informação, e é também o fomento à eficácia destes mecanismos,
já que a estada e vivência pressupõe uma incessante circulação de informações a seu respeito
e a respeito das variadas relações que rotineiramente estabelece.
Se outrora a vigilância era o passo precedente ao controle, no modelo panóptico de
Bentham, porque os indivíduos ficavam sob incessante observação e quem destoasse do
padrão de comportamento almejado seria submetido a medidas de coerção, na Sociedade da
Informação a vigilância também é pressuposto para a determinação de comportamentos,
tornando desnecessária a coerção, porquanto a manipulação do ser informacional permite
induzir condutas e vivências. Com efeito, o exercício de poder, seja estatal ou privado, é tanto
melhor e mais eficaz se, ao invés de atuar corretivamente na ânsia de penalizar um
comportamento desviante, embute nos indivíduos o comportamento que já se elegeu.
É nessa raia que atuam as tecnologias e técnicas de manipulação de informações,
explicando Vieira (2007, p. 196) que “no final do século XX, o avanço da tecnologia da
informação intensificou o exercício do poder disciplinar, ao permitir a coleta, o cruzamento e
o armazenamento de dados pessoais a baixos custos e de forma facilitada, além de ter
incrementado a vigilância eletrônica”.
A vigilância, refinada pela manipulação de informações, permite identificar
comportamentos e tendências, eleger aqueles desejáveis, e devolver impulsos na Sociedade da
Informação para que se tornem repetitivos, que sejam adotados pelos indivíduos e sejam
replicados infinitamente. Consequentemente, comportamentos indesejáveis ou desimportantes
aos objetivos prefixados por quem coleta e manipula tais informações são deixados à margem,
desencorajados, gerando um contingente de exclusão. Surgem, nesse plano, operações e
estratégias transparentes de coleta de informações, assim como instalam-se formas subreptícias e sorrateiras com o mesmo desiderato.
Os censos demográficos são uma faceta aparentemente sincera da coleta de
informações, destinados a obter dados pessoais e familiares e gerar estatísticas populacionais
das mais variadas condições para orientar programas governamentais. Nesse contexto, o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE autoproclama a missão de “retratar o
Brasil com informações necessárias ao conhecimento da sua realidade e ao exercício da
cidadania”14. Os mais variados perfis populacionais são gerados a partir dos dados coletados
por este instituto, indo de números da população, crianças, jovens, orçamentos familiares,
14
Cf., disponível no website da entidade na Internet (www.ibge.gov.br).
43
projeções de expectativas de vida, e outros.
No âmbito privado, por outro lado, especialmente na coleta de informações de
consumidores, a manipulação de informações pode, nem sempre, ser transparente. O real
interesse nas informações pode estar ocultado, e seus titulares nem sequer imaginarem que
estão cedendo seus dados para qualquer fim. Duhigg (2012, p. 196) exemplifica ao relatar o
caso de uma empresa de departamentos norte-americana:
A cada ano, milhões de consumidores entravam nas 1.147 lojas da Target e
forneciam terabytes de informações sobre si mesmos. A maioria deles não fazia
ideia de que estava fazendo isso. Usavam seus cartões de fidelidade, trocavam
cupons que tinham recebido pelo correio, ou usavam um cartão de crédito, sem
saber que a Target podia então relacionar suas compras a um perfil demográfico
individual.
A descrição acima é uma demonstração clara de como a classificação de pessoas e
grupos a partir da vigilância, propiciada por aparatos tecnológicos e manipulação de
informações, é eficaz e torna-se gradativamente uma característica da Sociedade da
Informação. Há seleção de interesses comercialmente relevantes em detrimento da
preocupação com outros aspectos sociais, com correlata exclusão dos interesses que não
formam um contingente expressivo, descambando para a exclusão de minorias.
A homogeneização de comportamentos, seja por desencorajamento e exclusão dos
indesejados, ou por repetição dos selecionados, é uma consequência dessa incessante
vigilância informacional. Nessa linha, Rodotà (2008, p. 114) pontua que a diversidade, para
ser reconhecida e protegida, precisa encontrar espaço nas compatibilidades de mercado,
alinhando-se com aqueles critérios classificados como normais numa ótica de conveniência
econômica.
Notadamente que as decisões políticas também perpassam por este mesmo canal da
seleção informacional, na medida em que políticas públicas e acesso do cidadão são pensados
a partir da coleta e manipulação de informações sobre os indivíduos e grupos de que
participam. Decisões sobre o direcionamento de investimentos em áreas com saúde e
habitação partem das estatísticas da deficiência destes serviços geradas a partir de
informações obtidas em censos demográficos. A própria edição de leis para atender minorias
pode tomar como indicativo o resultado da coleta de informações que demonstre um
contingente de pessoas digno de atenção.
É interessante notar que numa sociedade de vigilância a ameaça à segurança e aos
interesses estatais é o próprio público, porque este é o potencial capaz de resistir ao controle e
44
ao poder instalado. Não por outra razão que a vigilância e a coleta de informações recai sobre
os cidadãos, principiando por formas de coleta de dados e monitoramento simplificado,
fluindo para refinados mecanismos de manipulação e cruzamento de informações, num
esforço quase que de predição do futuro pela identificação de riscos a partir da análise de
dados pessoais e de grupos e a projeção de probabilidades daí decorrentes.
Com efeito, segurança, bem comum e interesse público, são as justificativas
recorrentes do Estado para implantar técnicas de vigilância contínua e coletar informações
pessoais, porque seriam o pressuposto para prevenir a ocorrência de atos atentatórios àqueles
valores. Nesse exato sentido insere-se, no caso pátrio, a Lei 12.654/2012, ao prever que a
identificação criminal poderá incluir a coleta de amostras biológicas para a formação de um
banco de dados genéticos, e a extração do material genético será obrigatória.
Na linha da norma acima analisada, a sociedade da vigilância experimenta uma
importante mudança. Passa da coleta clandestina de informações para a sujeição de indivíduos
a procedimentos forçados de fornecimento de informações a seu respeito, intensificando
sobremaneira os mecanismos invasivos de vigilância e controle.
Outra circunstância propiciada pelos aparatos de vigilância da Sociedade da
Informação e ó extrapolamento das fronteiras territoriais nacionais, evoluindo para a
vigilância de um país sobre outro, a exemplo das ações praticas pela Agência Nacional de
Segurança (NSA) dos Estados Unidos, tendo por alvo vários países dos quais se coletaram
inúmeros dados de operações telefônicas e mensagens eletrônicas (e-mails) sob a justificativa
de prevenir a ocorrência de atos terroristas15.
De acordo com Bigo, Carrera, et all (2013, p. 5), a vigilância de certos grupos não é
uma fenômeno novo em regimes liberais, na medida em que grupos específicos de indivíduos
têm sido amiúde observados por serviços de inteligência, ante a suspeita
de conduzir
atividades criminosas, incluindo violência política (terrorismo). A vigilância de um país sobre
outro é, porém, uma novidade, pois a rigor estas práticas eram corriqueiras em regimes
autoritários em que seus serviços de inteligência espionavam a própria população para
detectar dissidências de opinião política.
Com efeito, são os propósitos e a escala de vigilância que distinguem regimes
democráticos de estados policiais. Contudo, o domínio de tecnologias sofisticadas que
permitem acesso desautorizado e clandestino a informações pessoais rompeu esta barreira e
forneceu novos mecanismos de dominação e abalo às soberanias, o que levou a ONU, diante
15
The Guardian, World News, 06 jun. 2013. Disponível em: <http://www.theguardian.com/world/nsa>. Acesso
em: 18 abr. 2014.
45
das atitudes de espionagem eletrônica utilizadas pelos Estados Unidos e Inglaterra, e
provocada por proposta conjunta de Brasil e Alemanha, a aprovar Resolução repudiando a
vigilância de dados de um país por outro e orientando que os estados revejam suas práticas e
legislações sobre vigilância das comunicações16.
De toda forma, seja em âmbito doméstico ou extraterritorial, a vigilância da presença e
movimentação de indivíduos compromete significativamente a segurança de direitos de
grandeza, como a liberdade e privacidade, merecendo atenção, cautela e contenção.
16
Reuters Brasil, Mundo, 18 dez. 2013. Assembleia da ONU pede fim da espionagem eletrônica excessiva.
Disponível em: <http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRSPE9BI00020131219>. Acesso em: 18 abr. 2014.
46
2 CONFORMAÇÃO DO DIREITO À PRIVACIDADE
O antagonismo entre Estado e indivíduo é recorrente a partir da modernidade e da
construção dos sistemas jurídicos democráticos. A tensão estabelece-se sob o pálio de ideais
de liberdade, autonomia e autodeterminação, pelo lado do indivíduo, e por preceitos de
segurança, ordem pública, bem estar e bem comum, pelo viés dos poderes públicos. Nesse
panorama, a privacidade se consubstancia em um dos direitos amiúde evocados para refrear a
atuação estatal na vida pessoal, no agir e nas relações dos indivíduos, tendo sido edificada a
partir da clássica fórmula norte-americana do “direito de ficar só”.
A evolução das sociedades, apurada pelas técnicas e tecnologias, enfeixa novos ares às
tensões entre indivíduos e Estado, e sobre quem passa a ter o poder, a habilidade e a
capacidade de imiscuir-se no campo de vivência e ação individual. Não mais somente os
poderes públicos operam como intrusos na vida pessoal, mas também os próprios particulares
surgem como potenciais ameaças a esse espectro quase sagrado de um matiz de liberdade que
opõe aos demais um dever de afastamento.
Nesse cenário, em que oscilam e se hostilizam posições individualistas e
comunitaristas17, o estudo da privacidade inserida no arcabouço dos direitos fundamentais, e
rejuvenescida pelo caractere dos direitos de personalidade, constitui passo fundamental para
sua compreensão e busca da ideal tutela ante os novos riscos surgidos na Sociedade da
Informação.
2.1 SOBRE DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1.1 Fundamentação para os direitos humanos
A compreensão do que sejam direitos humanos é cercada de apreensões, dúvidas e
controvérsias, dada a fluidez e extensão que a categoria desafia. Além disso, a pretensão de
que sejam reconhecidos válidos e assegurados universalmente, em qualquer coletividade e
ordenamento jurídico, atrai maiores dificuldades ao tema. A esse modo Hunt (2009, p. 18-19)
17
De acordo com Vieira (2007, p. 48), “aqueles que defendem o caráter individualista dos direito de
personalidade apregoam que o foco da proteção centra-se na pessoa em si mesma, ou seja, em seu patrimônio
individual (intimidade, vida privada, honra e imagem). Aqueles que ressaltam o caráter comunitarista enfartizam
que os direitos de personalidade devem eleger como foco de proteção não apenas o indivíduo em si, mas toda a
coletividade, não se admitindo proteção a interesses egoístas de uma única pessoa em detrimento de todo um
grupo social. Com o avanço do terrorismo, a corrente comunitarista conquista cada vez mais adeptos. Analisa-se
a proteção da intimidade e da vida privada das pessoas não mais sob o aspecto do interesse individual de
invocar-se o direito subjetivo de estar só e não ser importunado por intervenções de terceiro, mas em razão dos
interesses de todo um grupo social”.
47
questiona como poderiam os direitos humanos ser considerados universais se não são
universalmente reconhecidos, e porque a necessidade de Declarações que os exponham se são
direitos tão evidentes pertencentes a cada pessoa em todos os povos. Aquilo que é evidente
não precisaria ser assim declarado. Verdadeiros direitos humanos, nessa linha de pensamento,
congraçariam três premissas essenciais, quais sejam, ser naturais, iguais e universais.
Bobbio (2004, p. 18) cogita que a edição da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948 pela ONU pôs fim às dificuldades sobre a conceituação e categorização dos
direitos humanos, pois uma vez ali reconhecidos pela maioria dos países, significa que
existem boas razões para escolhê-los, e então a problemática se deslocaria para o plano da
proteção dos direitos reconhecidos. Haveria, portanto, um consenso em torno de determinados
direitos como pertencentes ao gênero humano, desvinculados de qualquer fronteira espacial,
alheios às ideias de território e nacionalidade.
O consenso descrito por Bobbio pode ser compreendido como uma versão
pragmática e objetiva a empatia referida com Hunt (2009, p. 24-25), na medida em que
autoevidência dos direitos humanos pressupõe uma carga racional a par de uma carga
emocional, pois só são reconhecidos quando exsurgem evidentes no âmago de cada indivíduo,
e diante de sua violação sente-se horror. Trata-se de sentir-se no outro. O despertar individual,
e consequentemente coletivo, para um ou outro direito humano, e para os direitos humanos
como categoria sobranceira, pressupõe autonomia e empatia.
Autonomia deflui do individualismo marcante da modernidade, e sua vinculação com
os direitos humanos reside, de acordo com Lafer (1988, p. 120), na percepção de que os
intentos e as tendências vêem na subjetividade inerente ao indivíduo o dado fundante da
realidade. O individualismo é essencial à lógica da modernidade porque sustenta a
autodeterminação de toda pessoa, um pressuposto da liberdade. A autonomia provocou secção
entre homens, dotando cada um da capacidade de ser dono do seu próprio eu e do seu próprio
corpo.
A empatia, por sua vez, resulta da constatação de que, mesmo ante a separação dos
corpos fomentada pela autonomia, permanece uma ligação etérea entre os indivíduos, num
certo sentido de que todos pensam e sentem mais ou menos da mesma forma. De acordo com
Hunt (2009, p. 27), necessita-se atilar que “nossos sentimentos interiores são semelhantes de
um modo essencial”.
A semelhança na diferença oriunda da autonomia apresenta-se como cerne da
48
identificação dos direitos humanos, dependentes, portanto, da igualdade. Não um direito à
igualdade como essência homogeneizadora, mas um sentimento de que todos os homens são
iguais, e essa igualdade é o resultado do reconhecimento individual como ser humano e a
visualização como mesmo Ser no outro. Daí porque, como resultando do individualismo
autodeterminante, e do apontado sentimento de igualdade, na modernidade nenhum indivíduo
aceita passivamente ser classificado em definitivo com inferioridade em relação a outros.
Esta proposição encontra aconchego na via do reconhecimento pontuada por
Honneth (2003, p. 223), conquanto a base intersubjetiva das relações jurídicas impõe que cada
indivíduo trate o outro com igualdade, porque nele deve se ver e reconhecer, levando a um
estado de reconhecimento recíproco.
Consenso, empatia e reconhecimento, expressam cada qual a seu modo, e sob as
bases teóricas que os justificam, a premissa da igualdade encampada pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem da ONU, de 1948, quando preconiza, em seu primeiro
artigo, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Tem-se
que mais relevante que a menção a seres livres e com dignidade, está a identificação da
igualdade como traço definidor de direitos, ao espraiar que os homens nascem iguais, e como
tal devem ser reconhecidos reciprocamente, por empatia que leva ao consenso em torno
daquilo que é assegurado a todos pela igualdade no gênero humano que lhes é a essência.
Com efeito, a citada Declaração de 1948, ao intitular-se universal, tem a pretensão de
reconhecer e assegurar direitos humanos a todos os homens habitantes do planeta,
independentemente de barreiras culturais e geográficas. Do preâmbulo se extrai que uma das
razões para sua feitura é o compromisso dos Estados-Membros em desenvolver o respeito
universal aos direitos humanos, ao passo que os proclama como “o ideal comum a ser
atingido por todos e todas as nações”.
Todavia, em que pese seu intuito universal, constata-se que a Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948 não é o único instrumento explícito tendente a regular
direitos humanos. Com o mesmo desiderato tem-se a Declaração Islâmica Universal dos
Direitos Humanos de 1981, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1986, a
Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia de 2000, e a Carta Árabe de Direitos
Humanos de 2004.
Estes instrumentos também buscam dar conta dos direitos humanos e se propõem
universalizantes, e se levados a cotejo com a Declaração de 1948, encontrar-se-á inúmeras
49
equivalências e mesmos interesses comuns enquadrados naquela categoria de direitos. Ilustrase, por exemplo, que o direito à vida é acolhido em todas as declarações acima citadas. Na
Declaração dos Direitos do Homem de 1948 está no artigo III; na Declaração Islâmica
Universal dos Direitos Humanos está no artigo I; na Carta Africana dos Direitos do Homem e
dos Povos está no art. 4º; na Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia está no art.
2º; e na Carta Árabe de Direitos Humanos encontra-se no art. 5º.
Entretanto, a presença de todos os direitos exemplificados na Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948 não é uma constante nas outras declarações. Por exemplo, o
direito à privacidade não consta da Carta Árabe de Direitos Humanos, enquanto nas demais
tem presença expressa. Daí que a busca por encontrar os mesmos direitos, ou direitos
equivalentes, em todas as declarações analisadas, desserve como instrumento para atestar o
que lhes é comum de modo a torná-los direitos humanos.
Necessário, portanto, identificar se existe um elemento comum nas citadas
declarações que justifique os direitos humanos. Imprescindível detectar em torno de que valor
foi erigido um consenso. Essencial encontrar em que existiu empatia para reconhecer que
todos os homens são iguais em algo insuprimível, que se reconhece em si e no outro.
A toda evidência, a dignidade da pessoa humana fulgura como este elemento de
justificação uníssona. Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948
tem como premissa fundante o reconhecimento da “dignidade inerente a todos os membros
da família humana”18 [grifou-se], reafirmando em seu artigo I que todas as pessoas nascem
iguais em dignidade e direitos.
A Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos define o papel dos direitos
humanos no sentido de que “esses direitos têm por objetivo conferir honra e dignidade à
humanidade, eliminando a exploração, a opressão e a injustiça”19 [grifou-se].
Na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos encontra-se que “a liberdade,
a igualdade, a justiça e a dignidade são objetivos essenciais para a realização das legítimas
aspirações dos povos africanos”20 [grifou-se].
Já a Carta Árabe dos Direitos Humanos exprime a “fé da Nação Árabe na dignidade
da pessoa humana, (...)”21 [grifou-se]. Por fim, a Carta dos Direitos Fundamentais da União
18
Disponível em: <http://www.onu.org.br>. Acesso em: 19 jul. 2013.
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 19 jul. 2013.
20
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm>. Acesso em: 19 jul. 2013.
21
Disponível em: <http://www1.umn.edu/humanrts/instree/loas2005.html>. Acesso em: 19 jul. 2013.
19
50
Européia reverbera que “a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade
do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade”22 [grifou-se], consolidando em
seu art. 1º que a dignidade do ser humano é inviolável e deve ser protegida e respeitada.
Inescondível, enfim, que a dignidade da pessoa humana é o fundamento basilar dos
direitos humanos. Todavia, discernir dignidade da pessoa humana é tarefa árdua, como mostra
Baez (2010, p. 23), porque se trata de uma expressão preenchida de sentimentos. Ou seja, a
dignidade da pessoa humana está presente na carga emocional constituidora dos direitos
humanos defendida por Hunt (2009, p. 24-25).
Dignidade humana é algo fluído, difícil de conceituar, porém é certo que existe, e
segundo Maurer (2008, p. 121-122) é carregada de diversos significados, fator que não lhe
retira a força, mas ao revés revela a riqueza com que é construída e fundamentada. E ainda
que sempre seja dotada de certo grau de indeterminação, o que inclusive possa ser uma de
suas características mais marcantes, tanto não impede a utilização e aplicação de seu
conteúdo.
Sarlet (2008, p. 18-19) defende que a dignidade representa qualidade inerente à
pessoa humana, com os atributos de inalienabilidade e irrenunciabilidade, fazendo parte inata
do ser humano, dela não podendo ser separado. Nessa via, a dignidade surge com o próprio
ser humano, não podendo ser criada artificialmente, nem concedida ou retirada.
Com Kant (2003, p. 66) apreende-se que a dignidade está em atribuir ao homem uma
condição tal que impeça de ser igualado a uma coisa, de sorte que uma pessoa não está sujeita
a outras leis que não àquelas que atribui a si mesma, fundadas num princípio de autonomia e
virtude, ao passo que a coisa é carente desta liberdade. As coisas, portanto, têm um valor
traduzido em preço e podem ser substituídas por outras, ao passo que a pessoa tem um valor
inato, inerente à sua humanidade, que é a dignidade, não passível de substituição.
A dignidade humana, assim, pode ser representada pela autodeterminação e
consciência para agir em sintonia com algumas leis que o próprio ser humano faz, traduzindo
a acepção de que o homem não é um meio, mas sim o fim em si mesmo. E vista dessa forma,
é extensível e comum a todo ser humano. Contudo, no plano concreto por vezes se torna
difícil divisar condutas ofensivas ou não a ela, em razão dos fatores culturais em que
imergidos os indivíduos em vivência nas suas comunidades.
Nesse passo é que Baez (2010, p. 26) apresenta intrigante compreensão da dignidade
22
Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso em: 19 jul. 2014.
51
da pessoa humana, conformada por uma dimensão básica e uma dimensão cultural. Na
primeira estaria o direito de autodeterminação do ser humano segundo sua razão quanto a
questões essenciais da própria existência. Na segunda estariam presentes valores de uma
determinada moral cultural histórica e geográfica, representativa daquilo que se elege como
caracteres informadores de uma vida digna autoproduzida dentro de determinada cultura.
Esta visão bidimensional da dignidade da pessoa humana tem importante relevo diante
das comunidades multiculturais com as quais se depara hodiernamente, e pode funcionar
como catalizador do reconhecimento e efetivação de direitos humanos em meio às diferenças
e igualdades entre os povos.
Curioso é que apesar da defesa de direitos humanos autoevidentes, fruto da autonomia
e empatia, do consenso e do reconhecimento na igualdade dos homens, que tornariam
redundantes e dispensáveis instrumentos que os declarassem, as violações a eles se mostram
tão corriqueiras e disseminadas pelos mais diversos povos e territórios23, que aquelas
declarações assumem um papel essencial como protetoras dos direitos que pronunciam,
atuando como importantes mecanismos para evitar o retrocesso no perecimento de um direito
humano, impedido que perca a conotação como tal.
As declarações sobre direitos humanos carregam o anseio de serem universais, de
que os postulados que emanam sejam válidos, aplicáveis e exigíveis por qualquer ser humano,
independentemente de limites geográficos, sistemas jurídicos, e culturas. A presença dos
23
Alguns exemplos das frequentes violações de direitos humanos, de acordo com relatórios da Human Rights
(2014): i) estima–se que 6500 pessoas foram mortas em combate armado no Afeganistão em 2007, quase a
metade delas foram mortes de civis não combatentes nas mãos de insurgentes. Centenas de civis também foram
mortos em ataques suicidas por grupos armados; ii) no Brasil em 2007, conforme os números oficiais a polícia
matou pelo menos 1260 pessoas, o total mais elevado até à data. Todos os incidentes foram qualificados
oficialmente como “atos de resistência” e receberam pouca ou nenhuma investigação; iii) na Uganda, 1500
pessoas morrem a cada semana nos acampamentos de pessoas internamente refugiadas. De acordo com a
Organização Mundial da Saúde, 500.000 morreram nestes acampamentos; iv) as autoridades vietnamitas levaram
à força pelo menos 75.000 dependentes de drogas e prostitutas para 71 acampamentos de “reabilitação”
superlotados, qualificando os detidos como “de alto risco” de contrair HIV/SIDA, mas sem prover nenhum
tratamento; v) em 2008, as autoridades dos EUA continuaram a manter 270 prisioneiros na Baía de Guantánamo,
Cuba, sem acusação ou julgamento, sujeitos a "water–boarding," uma tortura que simula o afogamento. O antigo
Presidente, George W. Bush, autorizou a CIA a continuar com a detenção e interrogação secretas, apesar das
mesmas violarem a le internacional; vi) em Darfur a violência, as atrocidades e o sequestro são predominantes, e
a ajuda externa está praticamente cortada. Em especial as mulheres são vítimas de ataques incessantes, com mais
de 200 violações na vizinhança de um acampamento de pessoas refugiadas num período de 5 semanas sem
nenhum esforço por parte das autoridades para castigar os autores; vii) na Argélia, refugiados e pessoas em
procura de asilo foram vítimas frequentes de detenção, expulsão ou maus tratos; vii) na China os praticantes de
Falun Gong foram escolhidos para tortura e outros maus tratos enquanto estavam em detenção. Os cristãos foram
perseguidos por praticarem a sua religião fora dos canais aprovados pelo Estado; viii) a Rússia reprimiu a
dissidência política, exerceu pressão sobre meios de comunicação independentes ou fechou e perseguiu
organizações não governamentais. Manifestações públicas pacíficas foram dispersadas à força e advogados,
defensores dos direitos humanos e jornalistas foram ameaçados e atacados.
52
mesmos direitos em todas as declarações de direitos humanos de variados povos reforça o
ideal universalista de que possa existir um núcleo de direitos que seja atribuído a qualquer
pessoa no mundo, em razão da qualidade que é comum a qualquer outra, isto é, de pertencer
ao gênero humano, ou como prefere Bobbio (2004, p. 17), pelo simples fato de ser homem.
Esta proposição, própria dos universalistas, encontra embate com os defensores
relativistas dos direitos humanos, ao entoarem que cada sociedade, em razão de suas crenças e
princípios particulares, valorizará de forma distinta os direitos humanos. Nesse panorama,
Lucas (2010, p. 28) identifica a inquietude de que a positivação dos direitos humanos deixa
oculta a razão entre a escolha de determinados direitos em detrimento de outros; mas,
também, não explica porque sociedades diversas, até mesmo não ocidentais, em algum
momento concordam na adoção de valores similares em seus instrumentos de direitos
humanos.
2.1.2 Fundamentação para os direitos fundamentais
De toda forma, a influência cultural alhures suscitada é pressentida no momento da
positivação dos direitos humanos com sua adoção pelos ordenamentos jurídicos internos de
cada Estado-Nação, com o que passam à condição de direitos fundamentais, representando
um núcleo firme de direitos eleitos pelos ordenamentos jurídicos de cada nação e amiúde
dispostos em suas normas fundamentais. Trata-se, portanto, da constitucionalização dos
direitos humanos, o que torna estes dependentes das constituições no âmbito interno de cada
país.
De acordo com Sarlet (2008, p. 35-36), os direitos fundamentais são os direitos
humanos reconhecidos e positivados na esfera constitucional de determinado Estado,
enquanto que os direitos humanos consistem naqueles reconhecidos por instrumentos de
direito internacional que congregam àquelas premissas jurídicas que se reconhecem ao ser
humano por esta única condição, ser uma pessoa humana, sem vinculação a qualquer ordem
jurídica, reclamando validade universal transcendente a qualquer barreira territorial ou
regulação jurídica.
As escolhas feitas por cada ordenamento jurídico no instante de internalizar direitos
humanos, perpassam por um filtro dependente da dimensão cultural da dignidade, conferindolhes adornos especiais nestes sistemas, na medida em que o processo de escolha entre uns e
outros é uma consequência da cultura de cada comunidade.
53
Evoluindo no tempo, novos direitos com mesma carga de relevância e necessidade
passaram a ser reconhecidos, exigindo postura ativa do Estado para sua realização, como
ocorreu com os direitos sociais, de acordo com Lucas (2010, p. 37-38),
No caso específico dos direitos humanos, é evidente que a definição jurídica e a
institucionalização de seus postulados constituem o quadro das importantes
conquistas históricas proporcionadas pelas revoluções liberais do século 18. Sob
esse ângulo, é possível afirmar que os direitos humanos tiveram um momento
especial de reconhecimento institucional que se confunde com o próprio advento do
Estado Moderno e se configura como elemento material de sua formação, como
última instância de legitimação do Estado de Direito.
Há de se considerar, entretanto, que a transformação de direitos humanos em direitos
fundamentais implica em uma perda para aqueles, pois não há obrigatoriedade de que todos
os direitos reconhecidos nos mais variados diplomas internacionais de direitos humanos sejam
automaticamente incorporados pelas normas fundamentais (constituições) de cada país. O
processo de positivação, portanto, por mais paradoxal que seja, conquanto dê força aos
direitos humanos no âmbito interno dos países, os enfraquece no cenário internacional quando
não elege um ou outro pra torná-lo um direito fundamental naquele sistema jurídico interno.
Por outro lado, ao se admitir que para a validade dos direitos humanos nas fronteiras
internas dos países é necessário que sejam positivados, e que esta positivação consiste em um
processo de escolha, infere-se que a eleição entre um e outro direito é consequência direta dos
valores e princípios de uma comunidade, de sua moral, e logo de sua cultura, o que dá vazão à
atuação da vertente relativista dos direitos humanos, porque dependentes de fatores culturais.
Esta problemática decorre do multiculturalismo, explicado por Lucas (2010, p. 186187) quando se refere ao relativismo cultural como a necessidade de reconhecimento e
proteção de diferentes culturas, admitindo identidades culturais portadoras de seus próprios
direitos, em virtude de somente assim se permitir a identidades de seus integrantes. Com
efeito, nasce, nesta medida, a ideia de proteção dos seus pares pelos indivíduos, ligados por
vínculos culturais insertos em uma determinada comunidade, o que faz florescer as
identidades, a exemplo do espírito de nacionalidade.
A preocupação com os membros de um determinado grupo, que só podem ser assim
reconhecidos diante da percepção de uma identidade que lhes é comum, logo a igualdade do
sentir-se no outro, como esboçada por Hunt, revela laços de solidariedade e responsabilidade.
Nessa raia, Sandel (2012, p. 188) suscita que “o fato de pertencer a determinado grupo nos
torna, de certa forma, responsáveis”. Isto é o que pode fornecer uma razão para a escolha que
54
se faz entre os vários direitos humanos no processo de positivação para direitos fundamentais:
a responsabilidade com aqueles do grupo a que se pertence justifica a positivação de direitos
em detrimento de outros.
Daí porque Lucas (2010, p. 254) defende que o fundamento universalista dos direitos
humanos está em reconhecer que universalmente todos os homens são seres humanos, e que
também universalmente estão situados em determinada cultura; o que os difere é a cultura em
que inseridos. Esta inferência é universal e essencial, e denuncia no que os homens são iguais,
e para o que se deve ter empatia pra vê-los autoevidentes. Mas a partir da igualdade universal
pela pertença ao gênero humano, vislumbra-se também a diferença pela imersão em uma
cultura quando é exercida a vivência, pois o homem só se reconhece imbuído de uma cultura
se também reconhece que existe o outro culturalmente diferente, ainda que pertencente ao
gênero humano.
O fundamento universalista dos direitos humanos, portanto, não consiste em pretender
que todos os direitos sejam estendidos a todos os seres humanos em qualquer tempo e lugar,
mas sim reconhecimento de interesses comuns da humanidade, mostrando-se necessária uma
busca pela igualdade naqueles pontos de contato que garantam o exercício de humanidade
pelos indivíduos singularmente considerados, independentemente de tempo e espaço. Por
outro lado, na ensinança de Lucas (2010, p. 261-262), a diferença deve ser prevalente quando
a universalidade homogeneizadora trouxer impactos mais negativos que a diferença, ao passo
que os direitos humanos são recursos eficazes contra diferenças excludentes.
A relevância da transformação de direitos humanos em direitos fundamentais é a
vinculação que estes impõem, na medida em que os instrumentos internacionais em regra não
são dotados, na atual conjuntura jurídica global e internacional, do poder de inflexão sobre
autoridades nacionais e pessoas ou grupos inseridos nos âmbitos nacionais, sujeitos
sobremaneira pelas normas do direito produzido internamente.
Nesse passo, direitos fundamentais incrustados nas normas fundamentais estruturantes
dos estados nacionais a partir de seus ordenamentos jurídicos impõem que sejam
obrigatoriamente observados. Na modernidade, portanto, as Constituições passaram a definir
a organização dos Estados e a assegurar direitos fundamentais. Logo, as normas definidoras
de direitos fundamentais serão inexoravelmente encontradas nos textos constitucionais, porém
é certo que é preciso discernir que norma constitucional pode ser considerada norma de
direito fundamental daquelas que não o são.
55
Para que uma norma constitucional possa ser caracterizada como norma de direito
fundamental, segundo proposição de Alexy (2012, p. 67-68), pode-se utilizar de um critério
extremamente formal atinente à sua positivação explícita na redação topológica do texto
constitucional, ou seja, serão disposições de direitos fundamentais aquelas incluídas em
capítulo ou tópico intitulado como sendo sobre direitos fundamentais. Nessa linha enquadrase o art. 5º da Constituição Federal de 1988, porquanto alocado dentro do intitulado “Capítulo
II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, o que corrobora a assertiva de Alexy (2012, p.
68) de que “normas de direitos fundamentais são as normas diretamente expressas por essas
disposições” [destaque no original], sendo que neste conjunto chamam-se disposições de
direitos fundamentais as normas contidas em um capítulo formalmente preparado para
englobar direito fundamentais.
O critério formal da positivação, ainda que válido, não é suficiente, pois não é raro que
uma verdadeira norma de direito fundamental possa estar espraiada ao longo do texto
constitucional, acidental ou propositalmente fora do conjunto de disposições explicitamente
denominadas como regentes de direitos fundamentais. Sarlet (2008, p. 87) pontua que a
conceituação meramente formal de direitos fundamentais também é insuficiente para a análise
de Constituição Federal brasileira de 1998, a Carta Magna “admite expressamente a existência
de outros direitos fundamentais que não aqueles integrantes do catálogo (Título II da CF), seja
com assento na Constituição, seja fora desta”.
Notadamente que no último caso, sobre a admissão de direitos fundamentais fora do
texto constitucional, está o citado constitucionalista fazendo menção ao disposto no art. 5º, §
2º, ao estabelecer que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Exemplo disso pode ser visto no art. 228 da Constituição Federal brasileira de 1988
que estabelece a inimputabilidade dos menores de 18 (dezoito) anos. Essa norma, fora do
conjunto formal tópico dos direitos fundamentais, é daquelas chamadas por Alexy (2012, p.
68), baseado em Frierich Klein, de “disposições periféricas associadas”, incluídas no conjunto
das normas de direitos fundamentais.
Em remate, normas de direito constitucional podem ser categorizadas de duas
maneiras: ou assim são classificadas diretamente pelo próprio texto constitucional, ou são
normas de direito fundamental atribuídas, dependentes de uma hermenêutica jusfundamental.
56
A importância em distinguir normas de direitos fundamentais de outras não dotadas
dessa tônica está em que direitos fundamentais serviram e servem primeiramente como
limites à atuação estatal, sendo escudos de proteção aos indivíduos. Farias (1996, p. 84)
alterca que os direitos fundamentais emergiram como forma de limitar os poderes do
soberano, compondo uma esfera de liberdade individual inviolável e intocável pelo Estado,
reclamando um dever de abstenção pelos poderes públicos. Na mesma linha, Steinmetz (2004,
p. 65-66) defende que o surgimento dos direitos fundamentais emoldura-se com o programa
liberal clássico sobre os limites de ordem política e jurídica ao poder estatal, numa franca
oposição à concepção até então vigorante do estado absolutista, sem limites, e que nunca
estaria cometendo equívocos no seu agir24.
A concepção de direitos fundamentais como obstáculos ao próprio Estado
consubstancia-se em direitos fundamentais de primeira geração25, um conjunto de direito civis
e políticos que forma a esfera de inviolabilidade do indivíduo frente ao Estado, representados
pelas máximas da liberdade e autonomia privada. Nessa linha, Alexy (2012, p. 196-191)
vislumbra algumas manifestações de direitos fundamentais como direitos de defesa26, num
sentido que os indivíduos têm a prerrogativa de ações negativas, separadas em direito ao nãoembaraço de ações, direito a não-afetação de características e situações, e direito à nãoeliminação de posições jurídicas. São direitos, como se nota, contra o Estado.
Todavia, as normas de direitos fundamentais não se resumem a ações contra o Estado
por abstenção na conduta individual dos cidadãos. Reconhece-se, também, a existência de
normas de direito fundamental que exigem uma atuação positiva do Estado, um fazer em
favor dos indivíduos, podendo se tratar de uma ação fática, a exemplo da seleção e admissão
24
É curioso perceber que a idéia de que o soberano não estava sujeito a qualquer limite nas suas decisões e
atuações vem exposta nos estudos de responsabilidade civil quando abordam o chamado período da
irresponsabilidade estatal, representado pelo adágio “the king can do not wrong”.
25
De acordo com Bonavides (2005, p. 563-572), “os direitos de primeira geração são os direitos de liberdade, os
primeiros a constituírem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos (...). Já os
direitos de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de
coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram
por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste século (...). os direitos de terceira geração (...) não se
destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado.
Têm por destinação o gênero humano mesmo (...). A teoria já identificou cinco direitos da fraternidade, ou seja,
da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. (...) são direitos de quarta
geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização
da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinarse no plano de todas as relações de convivência”.
26
Cumpre registrar que o citado autor não reduz sua compreensão sobre direitos fundamentais a direitos de
defesa, pois este é um dos conjuntos sobre os quais discorre na obra Teoria dos Direitos Fundamentais. Além
destes, Alexy (2012, p. 201 e ss.,) contempla explicitamente direitos a ações positivas.
57
de médicos no sistema público de saúde, ou uma ação normativa, como a edição de leis que
dêem concreção aos comandos constitucionais, valendo como ilustrativo o disposto no art. 48
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal brasileira de
1998, que impôs a obrigatoriedade da elaboração de um Código de Defesa do Consumidor27.
Mas seja pelos direitos que exigem uma abstenção, ou aqueles que reclamam uma
prestação, há uma característica comum nos direitos fundamentais até então expostos, qual
seja a oponibilidade, exigência e vinculação do Estado, nas relações estabelecidas com os
particulares. Surge, porém, um passo adicional na efetivação e concretização dos direitos
humanos transmudados em direitos fundamentais, traduzido do elastecimento da vinculação
para abranger os particulares nas relações puras entre si.
Em voga, nesse plano, a vinculação dos particulares a direitos fundamentais, defendida
por Steinmetz (2004, p. 97-101), à míngua de qualquer disposição explícita ou sugestiva do
texto constitucional a respeito. Para o citado estudioso, a primeira permissão constitucional
para se admitir a vinculação de particulares a direitos fundamentais é a inexistência de norma
constitucional que expressamente vede este esforço. A segunda abertura constitucional a tal
vinculação adviria da possibilidade de uma interpretação mediata, mais refinada e complexa,
das normas constitucionais e suas relações com os titulares-destinatários.
A vinculação dos particulares é também enfrentada, e acolhida, por Sarlet (2007, p.
395), para quem além de atarem os poderes públicos, “os direitos fundamentais exercem sua
eficácia vinculante também na esfera jurídico-privada, isto é, no âmbito das relações jurídicas
entre particulares”, o que rotineiramente vem sendo chamado de eficácia privada, eficácia
horizontal ou eficácia externa.
A discussão sobre a vinculação de particulares a direitos fundamentais parte da
premissa identificada por Alexy (2012, p. 528) de que nas violações de direitos fundamentais
entre Estado e cidadão há uma relação entre um titular daqueles direitos (o cidadão) e um nãotitular (Estado), porém quando se trata do embate entre particulares está-se diante de uma
relação entre titulares de direitos fundamentais, o que complexifica a questão.
A toda evidência, direitos fundamentais nunca perderam sua essência que é ser
obstáculo à atuação do Estado, que pode ser lido como uma barreira em prol dos indivíduos
contra a atuação dos poderes constituídos. Todavia, nas sociedades capitalistas
27
“Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará
código de defesa do consumidor” (ADCT)
58
contemporâneas ocorre um compartilhamento do poder, ou quando não ao um deslocamento,
passando do Estado para entes privados. Conforme expõe Steinmetz (2004, p. 85), é opaca a
visão de que modernamente o poder é concentrado exclusivamente pelo Estado, na medida
em que no mundo contemporâneo “pessoas e grupos privados não só detém poder político,
econômico e ideológico, como também de e pelo poder”.
O exercício de poder tem como efeito imediato a exclusão daqueles que não ostentam
o mesmo poder, o que na via dos particulares cria relações assimétricas, dando vazão a
prováveis violações a direitos fundamentais, reclamando, portanto, a defesa da vinculação dos
particulares a direito fundamentais.
A questão tem relevo no exame e proteção do direito à privacidade, objeto central do
presente estudo, uma vez que são tanto os poderes estatais quanto os particulares que, pelo
apoderamento de técnicas e tecnologias da Sociedade da Informação, tornam-se capazes de
praticar violações corriqueiras àquele direito.
2.2 PRIVACIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
“Não confio em quem carrega suas coisas em sacolas de papel”, diz Elizabeth Liz
Garfiel a seu filho Bobby Garfiel, ao ver o novo vizinho, Ted Brautigan, descarregando
sacolas e levando-as para sua residência. A cena acima é do filme Lembranças de Um
Verão28, e mostra a indignação da personagem Elizabeth ao ver que um vizinho trazia objetos
em sacolas de papel opacas, cujo conteúdo não podia ser conhecido de fora.
O recorte cinéfilo acima serve de estratagema para iniciar a proposição de como as
atitudes humanas tendentes, propositadamente ou não, a evitar o conhecimento e a descoberta
alheia sobre aspectos seus, lança uma nódoa de desconfiança sobre o segredo, o sigilo, enfim,
sobre a privacidade.
A indignação de Elizabeth por Ted ocultar os objetos que trazia consigo em sacolas
opacas leva automaticamente a reputá-lo indigno de confiança, sem ao menos conhecê-lo,
traduzindo uma ideia de que aquele que se propõe a deixar algo fora do conhecimento de
terceiros o faz por razões escusas e ilegítimas. Esta linha de pensamento liga-se à frase “a luz
do sol é o melhor dos desinfetantes” pronunciada por Louis Brandeis, ex-juiz da Suprema
Corte dos EUA em 1903, pondo em destaque o homem que nada tem a esconder sobre o qual
28
LEMBRANÇAS DE UM VERÃO (Hearts in Atlantis). Direção de Scott Hicks. Beverly Hills: Castle Rock
Entertainment. Dist. Warner Bros., 2001. 1 filmes (1h41min): legendado, colorido, 35mm.
59
fala Rodotà (2008, p. 25), materializando a concepção do “homem de vidro”, aquele que pode
ser transfixado pelos olhares alheios.
Em contrapartida à premissa acima está o nascimento da privacidade como uma
prerrogativa invocável pelo ser humano e oponível aos demais que o cercam, sugerindo o
direito de ser deixado só. A concepção é amiúde ligada à construção norte-americana baseada
nos estudos de Samuel Warren e Louis Brandeis, porque estes estudiosos, segundo Cachapuz
(2006, p. 76), foram os primeiros a elaborar um referencial racional e jurídico sobre a
privacidade, com nítida preocupação à construção da privacidade com um direito, sobretudo
assentado na jurisprudência inglesa e norte-americana em torno da questão29. Portanto, o
poder de escolher o que deixar que seja conhecido por terceiros, e por outro lado reservar
aspectos da vida apenas para si, trouxe novos ares a privacidade para afastar a premissa de
que aquilo que é secreto, sigiloso, que está oculto, é algo ruim.
Todavia, o despertar de um sentimento, e mesmo uma necessidade, de deixar certos
aspectos da vida e das relações fora do conhecimento alheio é anterior ao estudo norteamericano supracitado. O nascedouro da privacidade tem nítida ligação com a separação dos
corpos e o fortalecimento da autonomia individual, de acordo com Hunt (2009, p. 82-83):
Os indivíduos se tornaram mais autônomos à medida que sentiam cada vez mais a
necessidade de guardar para si mesmos os seus excretos corporais. O limiar da
vergonha baixou, enquanto a pressão por autocontrole aumentou. O ato de defecar
ou urinar em público tornou-se cada vez mais repulsivo. As pessoas começaram a
usar lenços em vez de assoar o nariz com as mãos. Cuspir, comer numa tigela
comum e dormir numa cama com um estranho tornaram-se atos repugnantes ou ao
menos desagradáveis. As explosões violentas de emoção e o comportamento
agressivo passaram a ser socialmente inaceitáveis. Essas mudanças de atitude em
relação ao corpo eram as indicações superficiais de uma transformação subjacente.
Todas assinalavam o advento do indivíduo fechado em si mesmo, cujas fronteiras
tinham de ser respeitadas na interação social. A compostura e a autonomia
requeriam uma crescente autodisciplina.
(...)
A elite da sociedade parisiense começou a insistir numa variedade de quartos para
uso privado, que iam desde os boudoirs (que vem do francês bouâer para "amuarse" — um quarto para expressar seu mau humor em privado) à toalete e aos quartos
de banho. Ainda assim, o movimento em direção à privacidade individual não deve
ser exagerado, ao menos na França. Os viajantes ingleses queixavam- se
incessantemente da prática francesa de três ou quatro estranhos dormirem n um
mesmo quarto numa hospedaria (ainda que em camas separadas), do uso de
lavatórios à vista de todos, do ato de urinar na lareira e do de jogar o conteúdo dos
penicos na rua pelas janelas.
29
Para Doneda (2006, p. 105-106), Warren e Brandeis não restringiram a privacidade ao “direito de ser deixado
só” (right to be alone), e esta compreensão deve-se a uma associação feita na obra do magistrado Thomas
Cooley, sendo que Warren e Brandeis teriam apresentado uma perspectiva mais aberta de privacidade.
60
É no fim do período feudal e início da modernidade, portanto, que exsurge o germe
da privacidade como limitação à intromissão ou mesmo à simples expectação alheia. Nesse
plano, Rodotà (2008, p. 26) pondera que a privacidade está associada à dissolução das formas
de relação próprias da sociedade feudal, marcadas pela intensa ligação permanente dos
indivíduos na vida cotidiana, de sorte que o isolamento era uma regalia de poucos ou daqueles
que viviam distantes da comunidade, grosso modo por razões religiosas, além dos pastores e
criminosos.
2.2.1 Dicotomia entre espaços públicos e espaços privados
O discernimento da privacidade como um direito defensável e invocável por
qualquer indivíduo pressupõe investigar a dicotomia entre vida pública e vida privada, e
consequentemente entre espaço público e espaço privado. Nessa raia, de acordo com Lafer
(1998, p. 237), vida pública e vida privada possuem objetivos e interesses diversos que
compõem seus núcleos e, portanto, devem ser vistas isoladamente.
A cisão entre recônditos privados e aberturas de espaços públicos é fruto da
modernidade, numa clara associação ao reconhecimento do direito de propriedade, e daquilo
que se possa garantir de exclusivo aos indivíduos, pressuposto para então se poder falar em
espaços não-privados, isto é, públicos e compartilháveis com uma coletividade.
Rousseau (2006, p. 23) apresenta uma relação de integração do indivíduo que, pelo
contrato social, submete-se reciprocamente a espaços públicos e privados, ressaltando que
“cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, acha-se comprometido numa
dupla relação, a saber: como membro do Estado em face dos particulares e como membro do
Estado em face do soberano”. Na visão rousseauniana, a vontade geral reflete-se na
coletividade, no espaço público, sobrepondo-se ao privado.
Habermas (2003, p. 92), porém, ao investigar a modernidade, à luz da burguesia,
identifica uma vital conformação do espaço público, chamado de esfera pública, em cotejo
com o espaço privado, tomando-o como um fenômeno social de interação e diálogo, pois a
esfera pública consistiria no espaço propício para a comunicação, a formação da convicção, a
expressão de opinião e, enfim, o convencimento pelo consenso, resultante da conjunção de
opiniões públicas sobre temas específicos.
Essa concepção permite inferir que na sociedade existem os espaços privados
(íntimos), a priori representados pela família e sociedade civil, ao passo que também existem
61
os espaços públicos (esfera públicas) nos quais, por meio do agir comunicativo, se propiciaria
a intermediação entre sociedade e Estado.
Entremeando esta inter-relação atuariam os direitos fundamentais, para de um lado
assegurar o princípio da autonomia privada, e de outro o exercício das liberdades públicas. Já
a participação ou mesmo a simples estada da pessoa em espaço público é apreendida com
Arendt (2007, p. 59-60), que vislumbra um locus temporal-espacial de aparecimento e
visibilidade, quando assim descreve:
a aparência — aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a
realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e
escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima ... vivem uma espécie de vida
incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e
desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se adequadas à aparição
pública.
(...)
A realidade da esfera pública conta com a presença simultânea de inúmeros aspectos
e perspectivas nos quais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma
medida ou denominador comum pode jamais ser inventado.
Martins (2005, p. 157), por sua vez, pressupõe um aspecto diferenciado dos espaços
públicos, apontando que “em termos sociais, todavia, o espaço público designa a constituição
de uma intersubjectividade prática, do reconhecimento recíproco como sujeitos, da ligação
das pessoas e do encadeamento das suas acções na cooperação social”. E nesse propósito,
Habermas (2003, p. 93), prospecta que
(...) as esferas públicas ainda estão muito ligadas aos espaços concretos de um
público presente. Quanto mais elas se desligam de sua presença física, integrando
também, por exemplo, a presença virtual dos leitores situados em lugares distantes,
de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia, tanto mais clara se
torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações
simples para a generalização da esfera pública.
A par dos espaços públicos, os espaços privados apresentam-se como aqueles
destinados ao exercício das faculdades privativas do ser humano que se quer deixar a salvo do
conhecimento alheio, sobremodo entrelaçados com os ideais de privacidade, intimidade e
sigilo. Nesse aspecto, Arendt (2007, p. 61) pondera que a “esfera pública só tolera o que é
tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante torna-se
automaticamente assunto privado”.
A toda evidência, a dicotomia entre espaços públicos e privados identifica-se, num
primeiro momento, sob o aspecto físico e espacial, tomando por base espaços físicos. Não se
62
pode olvidar que o reconhecimento de um ambiente ser espaço privado ou público também
está condicionado a um determinado momento histórico, e até mesmo no contingente cultural
de determinada comunidade, pois quanto mais individualista for o pensamento cultural, mais
espaços privados existirão, e do contrário, quando mais coletivo e transcendente ao indivíduo
for determinada cultura, avolumar-se-ão os espaços públicos.
Ao presente estudo importa, pois, a qualificação dos espaços públicos e privados por
seu cunho institucional e jurídico, na linha prelecionada por Martins (2005, p. 158):
Por sua vez, pelo critério institucional ou jurídico, são qualificados como públicos os
lugares ou os problemas que relevam de uma instituição pública. Neste caso, o
privado opõe-se ao público e o segredo ou a inacessibilidade constituem a condição
da sua protecção. Podemos falar então do domicílio ou da empresa, que relevam de
uma autoridade privada, e das ruas ou das praças, que relevam da ordem pública.
Dada esta incerteza, fica claro que não existe um espaço público natural e que a
nossa atenção deve recair não apenas na evolução e na porosidade da fronteira entre
público e privado, mas também na evolução das significações que estas noções
revestem, por exemplo, nas deslocações entre uma acepção física concreta e uma
acepção imaterial do espaço público.
É certo, porém, que a fronteira entre espaços públicos e privados nem sempre é
pressentida e facilmente identificada, dado que experimentam um latente processo de
imbricação decorrente da própria dinâmica dos sujeitos neles insertos e por meio deles
reciprocamente envolvidos.
A rigor, os espaços públicos e a vida pública são marcados pela ampla visibilidade,
pela divulgação e publicidade. Em contraposição, os espaços privados e igualmente a vida
privada consubstanciam-se na esfera de resguardo do indivíduo, daquilo que permite o
isolamento da vida, o sigilo das relações, o desaparecimento da vivência aos olhos alheios. No
plano da vida não divulgável, dos espaços não-públicos, reside a privacidade.
A publicidade caracterizadora do espaço público encontra resistência na defesa da
privacidade, dizendo Arendt (2007, p. 81) que “as quatro paredes da propriedade particular de
uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum – não só contra
tudo que nela ocorre, mas também contra a sua própria publicidade, contra o fato de ser visto
e ouvido”. Nesse sentido, um local privado, exclusivo e infenso à publicidade, seria o único
modo de garantir a ocultação contra terceiros e contra o Estado.
Vê-se, portanto, que a privacidade sedimenta-se como um direito obstativo a terceiros
e ao Estado, podendo exigir abstenções concretas e intelectuais de particulares e dos poderes
públicos.
63
Estariam no conjunto de abstenções concretas todos os atos e movimentos, diretos ou
com uso de aparatos tecnológicos, tendentes a conhecer aquilo que o indivíduo reservou fora
do espaço público, ao que não deu divulgação e publicidade. Na via das abstenções
intelectuais está o reconhecimento de que não se pode ter acesso a toda e qualquer informação
sobre outras pessoas e sobre as relações que elas travam com particulares e também na
sociedade. Significa um refreamento no ânimo e na possibilidade de conhecer.
O direito a privacidade fulgura no conjunto dos direitos fundamentais, e como tal é
também componente dos direitos humanos, admitidos como direitos que cabem ao ser
humano pelo simples fato de assim se constituir, pois se trata de um Ser dotado de dignidade.
Na linha preconizada por Hunt (2009, p. 24-27), há um sentimento sobre a importância e
necessidade de os indivíduos ter preservado seu momento consigo mesmo e com aqueles em
que confiam, evitando que se constituam em objeto do conhecimento alheio.
2.2.2 Normatização objetiva da privacidade
A objetivação do sentimento em torno da necessidade da privacidade vem com sua
inclusão explícita na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu art. XII
dispõe: “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar
ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à
proteção da lei contra tais interferências ou ataques” [grifou-se]. Esta inclusão, segundo Lafer
(1998, p. 240), dá tom revolucionário a este direito por trazer embutido um significado de
rompimento com o totalitarismo.
Na mesma raia põem-se outros instrumentos internacionais, de intuito universalista,
sobre direitos humanos. A Declaração Islâmica Universal dos Direitos Do Homem, de 1981,
prevê taxativamente, no art. XXII que “toda pessoa tem direito à proteção de sua
privacidade”. A Carta Árabe dos Direitos Humanos estabelece em seu art. 21 que “ninguém
será sujeito a interferências arbitrárias ou ilegais em relação a sua privacidade, família, lar ou
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou a sua reputação”, e ao versar sobre os
direitos da pessoa acusada de algum delito, inclui, entre as garantias processuais, no art. 8º, “o
direito ao respeito da sua segurança pessoal e sua privacidade em todas as circunstâncias”. Por
sua vez, a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia (2000) regra que “todas as
pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas
suas comunicações”.
64
Há, portanto, razoável consenso entre inúmeras nações, e por mais de um instrumento
declaratório, que a privacidade é um direito inerente a todo ser humano e merece ser protegida
e assegurada.
Do plano intencional regulatório internacional, para os ordenamentos jurídicos
nacionais, igualmente se encontra a privacidade passando pelo filtro da positivação de direitos
humanos e tornada um direito fundamental, o que revela o valor a ela conferido.
Na Constituição Federal brasileira de 1988 está contida no art. 5º, inciso X, ao
prelecionar que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”
[grifou-se].
A Constituição Portuguesa, de 1974, adota a privacidade sob a nomenclatura de direito
pessoal, prevendo-a em seu art. 26, 1: “a todos são reconhecidos os direitos à identidade
pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e
reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à
protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” [grifou-se]. Já a Constituição
Espanhola, de 1978, garante em seu art. 18, 1, “o direito à honra, à intimidade pessoal e
familiar, e à própria imagem”.
Infere-se, pela análise dos instrumentos internacionais e internos acima referidos que
a privacidade tem estreita proximidade com intimidade, por vezes tratada como sinônimos.
Entretanto, entende-se que são aspectos e direitos não unívocos, sendo importante traçar suas
distinções. A própria doutrina que se dedica ao assunto não é uniforme a respeito, como
expõe Doneda (2006, p. 101) ao mencionar que se há uma profusão de termos, por vezes sem
muito critério, para tratar dos aspectos envolvidos por ela, dentre os quais destaca vida
privada, intimidade, segredo, sigilo, recado, reserva, e outros.
Nota-se que enquanto a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e a
Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia adotam apenas o termo “vida privada”, a
Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem e a Carta Árabe dos Direitos
Humanos tratam explicitamente de privacidade. As Constituições Portuguesa e Espanhola,
por seu turno, fazem uma singela associação entre intimidade e família, na medida em que a
primeira contempla “vida privada e familiar”, e a segunda concebe a “intimidade pessoal e
familiar”.
No caso pátrio, pela dicção dada ao art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988,
65
percebe-se que o constituinte originário contemplou direitos distintos, ainda que próximos,
isto porque reconheceu como direitos fundamentais a intimidade e a vida privada. Com efeito,
o constituinte desdobrou a vida privada em uma faceta ainda mais específica, sob o caráter de
um direito à intimidade, defendendo Mendes e Branco (2012, p. 315), ainda que não percam
de vista que privacidade e intimidade possuem arestas de contato, que:
O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos
atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e
profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público.
O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais
íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas.
Inegável que para os autores acima citados visa-se proteger a pessoa da interferência
e intromissão alheia, por isso o foco consiste em almejar por a salvo de qualquer curiosidade e
expectação desautorizada. A questão da distinção entre privacidade e intimidade, sua
intensidade e espécies de manifestações pessoais, modo de ser e relações que podem conter,
são tuteladas por cada direito.
A intimidade, de acordo com Farias (1996, p. 114) protege o modo de ser de cada
indivíduo a ponto de excluir do conhecimento alheio estas circunstâncias que se relacionam
exclusivamente à própria pessoa, impedindo a indiscrição alheia sobre assuntos puramente
privados, alcançando ligação com o princípio da exclusividade inerente à esfera privada,
assim identificado por Hannah Arendt, em contraponto ao princípio da igualdade que é
essencial à esfera pública. Lafer (1998, p. 267-268) mostra, a partir do pensamento trilhado
por Hannah Arendt, que o princípio da exclusividade contrasta com o conformismo social,
enaltecendo o individualismo e a autonomia, deixando em um plano valorativo secundário o
ajustamento às regras sociais.
Portanto, a intimidade ata-se sobremaneira ao comportamento individual, às
condutas, às escolhas e aos sentimentos de cada indivíduo. Daí porque são exclusivos da
pessoa a que se referem, de sorte que, com refere Lafer (1998, p. 269), sua transposição para a
arena pública “se transforma na trivialidade do mexerico, banalizando o público”.
A exclusividade inerente à intimidade faz com que esta alcance, segundo discorre
Farias (1996, p. 114-115), uma discrição pessoal inerente a acontecimentos atomizados da
vida pessoal, envolvendo, por exemplo, dados pessoais, vida amorosa e conjugal, saúde física
e mental, costumes domésticos reservados pela pessoa para si.
66
Já a privacidade, baseando-se na investigação da doutrina alemã feita por Farias
(1996, p. 113), pode ser identificada em uma junção das esferas da vida privada
(Privatsphäre), da vida confidencial e secreta (Vetrauensphäre, Geheimsphäre) e da vida
íntima (intimsphäre). A primeira abrange os aspectos relacionados a todos os assuntos,
notícias e expressões que se deseja excluir do conhecimento de terceiros, a exemplo da
imagem física. A segunda diz com aquilo que o indivíduo permite que seja conhecido por
outro(s) a partir de um liame de confiança que os une, ficando excluído do conhecimento de
qualquer pessoa que não esteja previamente situada no espectro da confiança da revelação de
um dado ou comportamento. E a terceira atine ao uma dimensão mais profunda e interna,
própria daquelas relações do indivíduo consigo mesmo, antes aqui vista como intimidade.
A vinculação daquilo que não deve ser levado ao conhecimento alheio em virtude de
um princípio de confiança, decorrente do dever de confidencialidade entre indivíduos unidos
por uma relação intersubjetiva qualquer, amiúde negocial, é esposada por Cachapuz (2006, p.
92-93) a partir de caso da jurisprudência inglesa sobre a publicação não autorizada de
fotografias do casamento de um casal de artistas. A violação à privacidade ocorreria, neste
particular, pela quebra da crença de que a informação seria mantida apenas entre as partes
envolvidas contratualmente.
A vista destas ponderações doutrinárias quer parecer que a distinção básica entre
privacidade e intimidade pressupõe a ideia de relação, isto é, se tratará como privacidade o
direito de proteger do conhecimento e intervenção externa as informações e aspectos de atos e
fatos do indivíduo com outro – porque estas informações só interessam aos envolvidos – , ao
passo que será intimidade o direito de impedir que qualquer pessoa tenha conhecimento sobre
fatores da relação do indivíduo consigo mesmo. A privacidade pode ser entendida, portanto,
como um aspecto maior que abrange um destacamento mais profundo concebido como
intimidade. E são essas as premissas distintivas entre privacidade e intimidade adotadas no
presente estudo.
2.3 PRIVACIDADE COMO DIREITO DE PERSONALIDADE
A construção e o desenvolvimento da privacidade, e sua sedimentação como um
direito atribuído e invocável remonta a uma ideia de direito patrimonial, com antecedentes
firmados na liberdade, na propriedade, no direito contratual, na inviolabilidade de domicílio e
na não violação de correspondência.
67
Com efeito, o exercício do direito de propriedade com a fixação de contornos para
sua fruição pelo indivíduo, criando uma área de oponibilidade a terceiros, constituiu o
ambiente propício para o surgimento da privacidade segundo a percepção apresentada por
Arendt (2007, p. 81) de que a garantia de refúgio a pessoa resultava da proteção entre quatro
paredes proporcionada pela propriedade particular.
2.3.1 Privacidade na passagem da propriedade à pessoa humana
Percebe-se que na gênese a privacidade estava atrelada a bases físicas: a residência, o
contrato, a correspondência. Não era vista como um valor inerente à pessoa humana.
Schreiber (2013, p. 135) expõe a privacidade centrada inicialmente na proteção da vida íntima
e familiar, donde se vê uma direta alusão à suposição da proteção entre quatro paredes
referida por Arendt (2007, p. 81), isto é, construída sob um modelo proprietário de direito,
refletindo que se não se entrava na propriedade sem permissão, igualmente não se adentrava à
vida privada sem autorização, revelando um direito de conteúdo puramente negativo, ou seja,
apto a exigir um dever geral de abstenção.
Estas vinculações a aspectos físicos ainda prevalecem, e são importantes, mas não
resumem do direito à privacidade, senão lhe conferem complexidade. Basta notar que na
Constituição Federal de 1988 encontram-se os direitos fundamentais de inviolabilidade de
domicílio (art. 5º, XI), de correspondência, de comunicações e dados (art. 5º, XII).
Contudo, a tutela da privacidade necessita de uma fundamentação mais robusta que o
vínculo com direito de propriedade. A autonomia da privacidade, com objeto distinto e
inerente à pessoa, deságua no seu reconhecimento como um direito de personalidade.
Antecedentes históricos contribuíram para a conformação da privacidade como um direito
subjetivo, e Echterhoff (2010, p. 127-128) aponta como principais, o estudo elaborado por
David Augusto Röder em 184630 versando sobre um direito natural à vida privada, o caso
Affaire Rachel julgado em França em 185831, e o artigo sobre o direito de ser deixado só
(right do be alone) produzido nos Estados Unidos da América em 1890 por Dennis Warren e
30
David Augusto Röder, jurista e filósofo alemão, escreveu em 1846 o trabalho “Grundzüge des naturrechts”
(características básicas do direito natural), onde apontava como alguns atos considerados violadores de um
direito natural à vida privada, a exemplo de “incomodar alguém com perguntas indiscretas” ou “entrar em um
aposento sem se fazer anunciar”.
31
Após a morte da famosa atriz Francesa Elisa Rachel, seus retratos no leito de morte foram publicados em
grande número, levando sua irmão a pedir ao Tribunal Civil de la Siene que determinasse a interrupção das
publicações, pedido que foi acolhido em respeito à dor dos familiares.
68
Louis Dembitz Brandeis32.
Estes precedentes, doutrinários e casuísticos, provocaram uma alteração na essência
da privacidade, libertando-a a propriedade e do contrato, para ser um direito autônomo
atrelado à condição humana. Nesse sentido Sampaio (1998, p. 59) argumenta que a tutela da
privacidade passou a se assentar em bases espirituais, justificada por uma inviolabilidade da
personalidade, com vazão à proteção de bens jurídicos imateriais.
A privacidade, assim, para além de inviolabilidade de domicílio, de correspondências
e comunicações, albergou a proteção ao pensamento, às emoções e sentimentos, ou seja,
expressões da vivência humana e do modo de ser e se realizar do indivíduo, deslocando-se
para os contornos de um direito de personalidade, de sorte que Cachapuz (2006, p. 96)
menciona sua aproximação ao direito de tradição romano-germânica, em certa reação ao
direito anglo-saxão cujas bases eram contratuais.
A categoria dos direitos de personalidade é tão controvertida quanto rica, inexistindo
consenso cabal sobre sua conceituação, extensão e nuanças albergadas. Oliveira (2012, p. 43),
por exemplo, mostra que a visão positivista toma tais direitos como direitos subjetivos
erigidos em torno da personalidade civil, e assim limitados a bases fixadas pelo direito
positivo estatal, ao passo que naturalistas repugnam esta adstrição, ao fundamento que é
difícil, senão impossível, a limitação da pessoa ou ao menos sua redução diante da
diversidade de significados de sua existência.
A construção da categoria de direitos de personalidade, e reconhecimento de certas
faculdades e prerrogativas da existência humana nela incluídas, dependeu de uma
transformação na concepção da própria figura da pessoa humana nos sistemas jurídicos, a
partir do rompimento com a ideia civil-napoleônica do indivíduo como mero elemento
integrante de relações jurídicas. Necessitava-se à pessoa, mais que isso. Essencial que fosse
tomada como o centro das atenções, não como ente formal de relações contratuais, mas como
sujeito de direito, dotado de dignidade e, portanto, de personalidade digna de tutela especial.
Pessoa e patrimônio sempre tiveram relevância vital nos sistemas jurídicos,
convivendo de maneira entrelaçada e exercendo influência recíproca. Sujeito e objeto sempre
32
Nos Estados Unidos, em 15 de dezembro de 1890 foi publicado na Harvard Law Review, o artigo intitulado
The Right To Privacy, escrito pelo advogado Samuel D. Warren, estudo que é frequentemente tomado como a
primeira declaração implícita de um direito dos EUA de privacidade. Warren e Brandeis escreveram que a
privacidade é o “direito de ser deixado em paz” e tem por foco proteger os indivíduos. Esta abordagem foi uma
resposta aos recentes desenvolvimentos tecnológicos da época, como a fotografia, e jornalismo sensacionalista,
também conhecido como “jornalismo amarelo”.
69
exerceram papel essencial na construção e sustentação do direito. O patrimônio, de projeção
da pessoa, por vezes tornou-se mais importante que ela própria, a julgar pelos ordenamentos
liberais e patrimonialistas. A esse modo, Fachin (2006, p. 33-34) discorre que primariamente
pessoa representava um papel exercido socialmente, uma atuação do indivíduo no cenário
jurídico.
Entretanto, a evolução jurídico-filosófica levou à construção do direito a partir do
indivíduo, pois da pessoa emanariam direitos fundamentais aptos a nortear todos os demais
impulsos jurídicos que se seguissem. O efeito daí surgido está em que a pessoa como centro
das emanações jurídicas provoca o reconhecimento de valor jurídico a fragmentos próprios da
existência humana, a exemplo da individualidade, da consciência, dos sentimentos e ideais,
como refere Echterhoff (2010, p. 114).
Logo, a vinculação entre dignidade humana e personalidade é inescondível. Doneda
(2006, p. 73) ensaia que o Cristianismo forneceu bases para a construção da ideia de
dignidade da pessoa humana, quando encampou a concepção de que o ser humano era um
princípio divino. A racionalização da dignidade, principalmente com Kant, conduziu às
aspirações de elevar a pessoa como um centro de referência normativo, afirmando que a
pessoa seria seu próprio fim e teria direito a desenvolver-se como fim em si mesma.
Entretanto, os Códigos Civis oitocentistas, extremamente patrimonialistas e privatísticos,
praticamente ignoraram a pessoa como referência às suas normatizações.
O toque da mudança apropriada aos direitos de personalidade adveio da perda da
hegemonia normatizadora dos Códigos Civis, operada pela noção de norma fundamental
refletida das Constituições democráticas e sociais, que não apenas regulavam a separação dos
poderes e a estruturação do Estado e seu processo legislativo. A visão constitucional voltada
para a pessoa, reconhecendo-a como sujeito detentor de liberdades, mas também do direito a
prestações, alocou o indivíduo no centro das emanações jusfundamentais dos sistemas
normativos. O código civil, portanto, já não era mais suficiente por sua visão de direitos
subjetivos estruturados em torno da tutela da propriedade.
A subjetividade, assim, ganhou relevo jurídico e passou a orientar as escolhas dos
sistemas jurídicos, justificadas sobremodo pela dignidade da pessoa humana, cerne dos
direitos de personalidade. Não por outra razão Tepedino (2003, p. 38) afirma que “a lógica
fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana”.
Daí porque passou a ser comum falar-se em direitos ao nome, honra, imagem,
70
intimidade, privacidade, corpo, integridade física e psíquica, e outros, que acabaram sendo
encampanados pelas legislações civis. Direitos de personalidade, nessa via, podem ser
considerados aqueles essenciais à pessoa, inerentes a ela e extrapatrimoniais, ainda que
quanto a este último carácter seja ao menos em princípio.
A definição de direitos de personalidade se aproxima, por vezes, da própria definição
de direitos humanos, pois seriam direitos garantidos ao homem pelo simples fato de ser
homem. Nesse plano, Dray (2006, p. 17) ventila que a personalidade representa a capacidade
de ser pessoa, e Schreiber (2013, p. 13) supõe que consistem em atributos essenciais da
pessoa humana, resultado de conquistas históricas, com especial proteção nas relações
privadas, ainda que não exclusivamente, tendo por valor a tutela da dignidade da pessoa
humana.
A importância dos direitos de personalidade para as conformações jurídicas
contemporâneas pode ser pressentida por sua adoção em variados códigos privados, além de
instrumentos de direito internacional. Nesse sentido, encontra-se a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, de 1969, conhecida por Pacto de San José da Costa Rica, que em seu
art. 3º estabelece que “toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade
jurídica”.
Podem ser concebidos, ademais, como aquele conjunto de direitos que asseguram o
mínimo necessário ao conteúdo de personalidade, próprios da pessoa, logo inatos, aptos a
dotar a pessoa do poder de proteger sua essência como ser humano e suas qualidades.
Seguindo a definição clássica elaborada por Limongi França (1975, p. 411), os direitos
da personalidade representam todo o espectro físico, psíquicos e morais do indivíduo. No
conjunto dos aspectos físicos ingressam a vida, a integridade física, a imagem. No aspecto
psíquico está a liberdade de pensamento, a intimidade, o segredo. E no aspecto moral
encontram-se a identidade pessoal, a honra, as criações intelectuais.
A pessoa humana, enquanto titular de situações jurídicas, o que é resultado do
reconhecimento de sua personalidade, inclusive personalidade jurídica, é igualmente titular de
situações jurídicas ativas de personalidade, e isto induz a que, segundo Dray (2006, p. 27),
seja titular de bens atinentes a si, relacionados com a vida, a integridade física e moral, a
honra, o bom nome, a privacidade e a imagem.
Tais direitos, essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, modernamente
71
reconhecidos nas legislações privatísticas, a exemplo de Códigos Civis33, passam a ser
enxergados, conforme a explanação de Gomes (1996, p. 130), como direitos absolutos sem a
possibilidade de disposição, uma vez que se prestam a salvaguardar a dignidade da pessoa
humana de quaisquer atentados.
Em tempo, quanto à indisponibilidade dos direitos de personalidade, cabe uma salutar
distinção. Seguindo a linha construída por Stancioli (2010, p. 97-99), em verdade é possível
renunciar ao exercício de um direito de personalidade, o que exprime a atuação da autonomia
da vontade, justamente um dos pilares formadores desta espécie de direito. Não se perde, não
se renuncia por completo a estes direitos, segundo propõe referido estudioso, pois a perda, ou
extinção, de um direito de personalidade, acarretaria a perda da personalidade, logo o
desaparecimento da própria pessoa.
Importante notar que a junção de aspectos físicos, psíquicos e morais, revela a pessoa
digna de respeito e proteção em todas essas dimensões que lhe constituem, o que somente se
faz possível a partir da tutela de sua personalidade, fator que propicia espaço para o
desenvolvimento pessoal de sua humanidade. Daí porque Miranda (2013, p. 11177) aduz que
o objetivo jurídico da tutela da personalidade é assegurar e proteger a identidade, a capacidade
da pessoa desenvolver suas características individuais e pessoais, seu pensamento, suas ações,
valores, enfim, tudo que lhe permite Ser um ser único, autônomo e extremado dos demais, no
sentido de uma personalidade inconfundível.
A efetivação dos direitos de personalidade pressupõe, segundo escorço de Stancioli
(2010, p. 84-85), a coexistência de três eixos formativos e de sustentação. O primeiro deles
atine à autonomia da vontade, porque assegura espaço à pessoa para, com liberdade, construir
em si mesma normas de acordo com noção do que lhe é bom e justo. O segundo contempla a
alteridade, num necessário reconhecimento e afirmação do outro, pois só há sentido em se
falar de personalidade em razão do outro, em razão do diálogo e das relações comunicativas
em sociedade. O terceiro eixo, por fim, consiste na dignidade, tomada como algo reconhecido
e não conferido pelo Estado, representando uma busca por autorrealização propiciada pela
junção da autonomia e alteridade.
Nessa raia, direitos de personalidade, por exaltarem a pessoa como ser de identidade
única digna de tutela e a quem deve ser garantido o direito ao livre desenvolvimento de sua
condição humana, portando de sua personalidade, provocam a retomada da liberdade, da
33
O Código Civil brasileiro vigente (Lei 10.406/2002) buscou regular os direitos de personalidade entre seus art.
11 a 22, em capítulo denominado “Dos Direitos da Personalidade”.
72
autonomia privada em sentido tanto interno quanto externo. Nos moldes preconizados por
Miranda (2013, p. 11178), garante-se a autonomia de se construir uma personalidade livre da
intervenção de terceiros, refletindo em um direito à individualidade resultante da confluência
de liberdades de agir e não interferência ou impedimentos.
2.3.2 Autonomia decisional em privacidade
Justamente na polarização da autonomia pessoal, pelo viés positivo da garantia de
liberdades, em contraponto com o viés negativo da vedação à intervenção externa por
terceiros, é que a privacidade desponta como resultado por excelência dos direitos de
personalidade. Privacidade, nela incluído o desdobramento da intimidade como adotado neste
estudo, desde sua clássica construção, sintetiza a tensão entre estas duas vertentes, isto é,
assegurar um espaço de livre agir do indivíduo - outrora dentro dos limites do domicílio ou
dos contornos das relações contratuais - além de funcionar como uma barreira para a
liberdade de agir de terceiros sobre a esfera particular de outro.
O desenvolvimento da personalidade assentado na privacidade é exposto por
Szaniawski (1993, p. 176-179), quando estuda a proteção à vida privada construída pela
jurisprudência alemã a partir da teoria das esferas, preconizada por Hubmann34, traduzida na
coexistência de três círculos concêntricos de níveis de proteção à vida privada, e dentro dos
quais se desenvolveria a personalidade humana. A proteção à privacidade, sendo ampla,
contempla a vida íntima, os segredos entre pessoas e os fatos que podem ser acessados e
conhecidos por um círculo restrito de partícipes, funcionando como espaço essencial ao
desenvolvimento da personalidade por instaurar uma arena livre de intervenções.
A seara dos mais variados direitos de personalidade, e de outros direitos fundamentais,
tem vinculação estreita com a privacidade. Exemplos dessa atração que sofrem outros direitos
pela proteção da privacidade podem ser sentidos no texto da Constituição Federal de 1988.
Por primeiro, no próprio art. 5º, X, tem-se a garantia do direito fundamental à imagem,
inegavelmente um direito de personalidade. O nascedouro da proteção à imagem, conforme
relata Farias (1996, p. 120-121), está com o direito a intimidade, muito em decorrência da Lei
34
Na linha desta teoria, a esfera mais íntima (intimsphäre), mais interna e atinente ao indivíduo consigo mesmo,
sendo absoluta. A esfera secreta (Geheimnisphäre) teria uma maior abrangência que a anterior por abarcar
determinadas pessoas que fazem parte da vida recôndita do cidadão e conhecem determinados segredos. Por fim,
a esfera privada (Privatsphäre), mais abrangente que as outras, engloba fatos cujo conhecimento é adstrito a
determinado círculos de pessoas, ficando alheia apenas a grande coletividade que não tem pertinência com
aqueles fatos.
73
Alemã da Fotografia, em 1876. Não é raro que a violação do direito à imagem traga
embutido, e até mesmo como questão precedente, a violação à privacidade, especialmente
quando se trata da captação de imagem sem prévio consentimento da pessoa a que se refere.
A estreita vinculação entre imagem e privacidade foi enfocada pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento do ARE 756917 AgR/SP, onde discutiu-se se haveria ofensa a
privacidade pela publicação de fotografias pessoais em jornal de grande circulação. Nesse
particular caso, a Corte Constitucional brasileira concluiu que se as fotografias foram antes
disponibilizadas na Internet pelos próprios autores (de quem elas se referiam), em ambiente
público que permitia o acesso irrestrito de qualquer pessoa, não existiu violação à
privacidade35.
Outro caso emblemático quanto à ligação de direitos de peso com a privacidade é o do
direito à liberdade de pensamento em conexão com a liberdade de consciência e crença,
alocados na Constituição Federal de 1988 como direitos fundamentais, no art. 5º, IV e VI. A
respeito, Silva (2012, p. 241) esboça que a liberdade de pensamento, no aspecto interno, não
desperta maiores preocupações, pois como pura consciência ou mera opinião tem pleno
reconhecimento.
A problemática da liberdade de pensamento estaria na comunicação do pensado,
porque sujeito ao controle social. Já no tocante à liberdade de crença, engloba um aspecto
extremamente privativo do indivíduo, ligado às suas funções intelectuais, pois compreende a
liberdade de ter uma crença, e seguir seus preceitos como elementos norteadores de sua
consciência, bem como a liberdade não ter crença alguma, o que também deve ser tutelado.
No ponto afeito à liberdade de pensamento, a privacidade lhe confere uma nova
dimensão a funcionar como um obstáculo à implantação de ideias, pensamentos, gostos, na
consciência da pessoa. A partir de técnicas desenvolvidas em estudo de psicologia e
neurologia, pode-se induzir as pessoas a determinados pensamentos e atitudes pelo uso de
mensagens subliminares36 em propagandas, ou então antecipação dos gostos e opções por
perfis de informações criados no mercado de consumo a partir de dados pessoais
manipulados.
Quanto à indução a determinada escolha, em franca violação à liberdade de
35
(STF – 1ª Turma - ARE 756917 AgR – Rel. Min. Luiz Fux – j. 29.10.2013 – DJE 19.11.2013. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 01.06.2014).
36
Qualifica-se a chamada publicidade subliminar que se define por qualquer estímulo realizado abaixo do limiar
da consciência que produz efeitos na atividade psíquica e mental do indivíduo, termo esse inventado por James
Vicary, especialista em marketing americano, no ano de 1957.
74
pensamento no seu aspecto interno, Schreiber (2013, p. 167-168) discorre sobre o risco em
potencial do mecanismo de cookies37, amiúde utilizados em operações de comércio
eletrônicos.
A toda evidência, a autenticidade de pensamento pode ser comprometida por ações
externas, o que ocorre quando se rompe a barreira da privacidade que o protege, sendo fruto
de técnicas refinadas de manipulação de informações, e mostra que, ao contrário da visão
explanada por Silva (2012, p. 241), a liberdade de pensamento em seu âmbito interno merece
atenção. A violação aqui, para além da privacidade, toca o reduto mais profundo inerente à
intimidade, que não deve ser devassado por qualquer interferência, já que diz respeito
puramente ao indivíduo, somente a ele se refere e a quem cabe conhecer.
É justamente nesse panorama que o Código de Defesa do Consumidor assegura, entre
os direitos básicos ali encetados, o da liberdade de escolha (art. 6, II, Lei 8.078/1990), que
consiste, na visão ajustada à tutela do direito à privacidade aqui empregada, no direito de não
ter seu pensamento direcionado a uma determinada opção por estímulos deliberadamente
implantados por terceiros interessados.
O exame dos direitos à imagem e às liberdades de pensamento e crença acima
executados, inflexionados num contexto de direitos de personalidade, permite inferir que a
privacidade reacende a inata liberdade pessoal para decidir sobre si, sobre seus atos próprios,
sob seus desígnios e seus projetos de vida. Disso a automática implicação nas relações
negociais, afetivas e familiares, e as decisões individuais na condução destes
comportamentos, apenas com a ressalva de não se consubstanciar em invasão da mesma
esfera de autonomia de outrem.
Autonomia em privacidade, portanto, diz respeito às decisões que se pode tomar sobre
sua própria personalidade, não sendo dado decidir sobre aspectos da personalidade alheia, sob
qualquer justificativa, seja ela de índole moral, jurídica ou política, e outras mais.
É nesse âmbito que Cohen (2012, p. 181), ao discutir a invalidade da restrição de
métodos contraceptivos a pessoas solteiras, como verificado no caso Eisentadt vs. Baird, de
1972, mostra que questões afetas à procriação humana estão sob o manto da privacidade, esta
refletida em uma autonomia decisional, revelando que a privacidade reflete, mormente, a
37
Os cookies, que são pequenos arquivos com informações do consumidor – seus rastros na consulta por
produtos e serviços – permitem reconhecer o usuário e podem levar à identificação de supostas preferências
deste, apresentando produtos que o manipulador das informações, notadamente o fornecedor, considera afinadas
com o perfil daquele consumidor.
75
autonomia do indivíduo sobre si. A privacidade, portanto, assegura autonomia de decisão
pelos indivíduos a respeito de questões intensamente pessoais. Porém na contramão dessa
noção, no Brasil a Lei 9.263/1996, que versa sobre o planejamento familiar, proíbe a
esterilização de pessoas sob convivência conjugal se não estiver presente autorização explícita
do casal.
Quando enfocada a privacidade conjuntamente com o direito sobre o corpo, emerge
um sentido de autoconfiança de que se pode dispor livremente do próprio corpo, porque isto
representaria autonomia decisional. Nessa senda, ao enfocar a questão do aborto, Cohen
(2012, p. 180) pondera que uma gravidez indesejável impõe a mulher um papel que ela não
quer, além uma transformação física, psicológica e simbólica, dando origem a perda de sua
identidade e sentimento individual, além de violar a liberdade de reprodução que é essencial à
construção da identidade da mulher, estando protegido pelo direito geral de privacidade.
Também centrado em questões decisórias sobre as conduções de projetos de vida em
âmbito familiar e recluso, o Supremo Tribunal Federal destacou a aderência do direito à
privacidade no tema relativo à permissão ou não, com valor jurídico, das relações
homoafetivas. O caso em tela consistiu na ADPF 132/RJ, julgada em maio de 2011, em
conjunto com ADI 4277/DF, de onde se extrai o seguinte ponto de interesse:
(...) nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua
própria sexualidade. Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a
essa prática, um lógico encaixe do livre uso da sexualidade humana nos
escaninhos jurídico-fundamentais da intimidade e da privacidade das pessoas
naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte inicial do art.
10 da Constituição, verbis: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas’.
(...)
Daqui se deduz que a liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se
inscrever no âmbito de incidência desses últimos dispositivos constitucionais (inciso
X e §1º do art. 5º), se houvesse enunciação igualmente constitucional em sentido
diverso. Coisa que não existe. Sendo certo que o direito à intimidade diz respeito
ao indivíduo consigo mesmo (pense-se na lavratura de um diário), tanto quanto
a privacidade se circunscreve ao âmbito do indivíduo em face dos seus parentes
e pessoas mais chegadas (como se dá na troca de e mails, por exemplo) [grifou-se].
No caso acima esquadrinhado pelo Supremo Tribunal Federal construiu-se uma fina
vinculação entre a liberdade sexual e a intimidade, resultando no reconhecimento de que a
sexualidade humana está circunscrita ao âmbito da privacidade. Na análise dos votos
edificados no julgamento em foco, localiza-se a enfática tutela de proteção ao uso concreto da
sexualidade, elemento extremamente íntimo sobre o qual ninguém além do indivíduo, ou de
76
quem com ele envolto, possam conhecer e decidir a respeito. A esse modo, o Ministro-Relator
Ayres Britto altercou que “nada é de maior intimidade ou de mais entranhada privacidade do
que o factual emprego da sexualidade humana”.
Ademais, o julgado fez uma sutil distinção entre intimidade e privacidade, reputando a
primeira como a relação do indivíduo consigo mesmo, e a última como a relação estabelecida
com outras pessoas elegidas, deixando a margem terceiros sem pertinência nesta vinculação.
É, pois, exatamente a diferenciação adotada no presente estudo alhures esboçada.
Além disso, a exemplo do elo traçado por Cohen (2012, p. 81), o supracitado julgado
do Supremo Tribunal Federal em foco, na dicção do voto do Ministro Luiz Fux, ressaltou a
vertente da autonomia decisional que deflui da privacidade, quando discorreu que a pessoa
homossexual faz uma escolha – ato resultando de sua autonomia decisional – entre tornar
pública sua opção sexual ou vive-la secretamente. Assim, continuou o referido Ministro,
“(Pre)determinada a sua orientação sexual, resta-lhe apenas escolher entre vivê-la
publicamente, expondo-se a toda sorte de reações da sociedade, ou guardá-la sob sigilo,
preservando-a sob o manto da privacidade, de um lado, mas, de outro, eventualmente
alijando-se da plenitude do exercício de suas liberdades” [grifou-se].
A sintonia traçada neste caso-base entre privacidade e circunstâncias sexuais é em
doutrina discorrida por Schreiber (2013, p. 158-159), ao enfocar os chamados dados pessoais
sensíveis - espécie de informações que na contemporaneidade conferem nova tônica às bases
do direito à privacidade de seus desdobramentos – envoltos nas questões de sexualidade
humana e a cautela que se deve ter com a despropositada e desnecessária publicidade às
questões sexuais. Com efeito, se nem questões de igual ou maior interesse como dados
referentes ao caráter da pessoa ou sua vida pregressa merecem a mesma publicidade, não se
justifica a exposição exacerbada dos aspectos íntimos da personalidade.
Há um conjunto de dados pessoais que merece maior proteção por estarem ligados a
aspectos substancialmente íntimos do Ser, que fazem parte da sua constituição como pessoa,
que erigem sua identidade e lhe fornecem espaço para existência em autonomia, livre de
qualquer tolhimento ou intromissão. Nesse aspecto, podem ser reputados como dados
sensíveis aqueles atinentes à saúde, religião, ideologia política, opção sexual, etc. Dados
sensíveis, de acordo com Rodotà (2008, p. 78) devem constituir o núcleo duro da privacidade,
pois carregam em si a força de se tornarem focos de discriminação das pessoas a que se
referem.
77
O enfrentamento da privacidade a partir das inferências contidas no julgamento
conjunto da ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF, pelo STF, serviu de estribo para confirmar sua
hodierna posição de direito adrede à pessoa, vinculado à personalidade e a própria identidade,
o que lhe confere um maior âmbito de proteção por fixar sua justificativa na dignidade a
pessoa humana.
Privacidade, portanto, passa a se configurar como um componente indissociável da
vivência pessoal, que acompanha o indivíduo em suas multifacetadas dimensões e atuações.
Lícito dizer, assim, que a privacidade faz parte do aspecto existencial do ser humano.
É nesse sentir a ponderação de Schreiber (2013, p. 13) de que com o advento das
tecnologias de comunicação e informática, as fronteiras do domicílio – antigo e tradicional
reduto da privacidade - foram levada para os espaços públicos, “permitindo que cada pessoa
‘carregue consigo’ a sua intimidade”, e isto reclama a proteção desta intimidade nos múltiplos
ambientes em que o indivíduo atuar.
À visão de Schreiber, no tocante à proteção de dados pessoais, se faz necessário incluir
o conceito de Ser Informacional, desenvolvido neste estudo, que permite lembrar da
separação entre a pessoa natural e a pessoa formada por informações, e esta última a que é
primeiramente pressentida na Sociedade da Informação. Nesse passo, para além de a proteção
da privacidade aceder à pessoa onde quer que atue, precisa, também, encobrir os dados
pessoais já separados da pessoa e que gravitam nas vias tecnológicas das mais variadas
aplicações, públicas e privadas, na Sociedade da Informação, mas que nem por isso deixaram
de representar e pertencer à pessoa que lhe foi fonte.
Não somente o Ser concreto é digno de proteção da privacidade, mas também o Ser
Informacional merece a mesma tutela, sob pena de esvaziar as possibilidades de efetiva
proteção de tão preciso direito ante as funcionalidades das tecnologias na Sociedade da
Informação.
O direito a privacidade passa a atuar longa manus, não apenas junto à pessoa onde
estiver e viver, mas também sobre os dados que “saem” do indivíduo e passam a compor seu
alter ego de informações, antecipando-se com um filtro a qualquer aplicação que se pretenda
dar aquelas informações, solitárias ou em conjunto com outras.
A privacidade retoma assim, assim, sua vocação de trazer opacidade à vida e estada
pessoal, atualmente escancarada pela ampla visibilidade propiciada pelos diversos meios
tecnológicos próprios da Sociedade da Informação.
78
3 PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Nas mais variadas ações e relações entre pessoas e instituições na Sociedade da
Informação, o direito à privacidade é posto em evidência e sob teste, dada a potencialidade
das tecnologias de informática e comunicação torná-lo inoperante ou esvaziado. A invasão
dos aspectos privados do cotidiano das vidas humanas pela aplicação destas tecnologias
provoca o fenômeno da ampla visibilidade, e conduz a uma arriscada noção de que a
publicidade é a regra e a privacidade seja a exceção.
O fluxo de dados pessoais, a vigilância eletrônica e a visibilidade resultante de
variados mecanismos tecnológicos, estes não mais apenas apoderados pelos poderes estatais,
mas hodiernamente também nas mãos de qualquer indivíduo38, conferem uma nova dimensão
às preocupações em torno do direito à privacidade.
Uma busca por efetiva proteção dos dados pessoais, reconhecendo a necessidade de
cessão de determinadas informações para algumas ações, ao lado da percepção de um
interesse individual na autoexposição, e ainda as facilidades com que a vigilância eletrônica
pode conferir visibilidade à vida humana, são os fatores que permitem discutir a defesa de
uma legítima expectativa de privacidade da Sociedade da Informação.
3.1 A TUTELA DOS DADOS PESSOAIS
Os estudos e teorizações em torno da privacidade na Sociedade da Informação são
praticamente uníssonos em afirmar que a concepção deste direito deslocou-se da fórmula
clássica do “direito de estar só”, num viés negativo de pôr-se a salvo do conhecimento alheio,
para um sentido positivo consistente em exercer o controle sobre os usos e destinos dos dados
pessoais.
É nessa direção que Schreiber (2013, p. 135-136) discorre sobre as transformações do
cenário de relevância do direito à privacidade, a partir de 1960, com o desenvolvimento
tecnológico e o surgimento de mecanismos para coleta, armazenamento e manipulação de
informações pessoais. A partir destas possibilidades, o fluxo de informações passa a ser uma
característica da Sociedade da Informação, e também um pressuposto para as suas finalidades
mais variadas. Notando que a exposição da vida aos olhos alheios por meio dos dados
38
Nesse sentido, Lyon (2010. p. 115) fala de uma “sociedade expectadora”, de um “sinóptico”, onde muitos
observam poucos. Na linha de pensamento exposta por este autor, é possível dizer que as tecnologias levaram a
um cenário onde todos observam todos.
79
pessoais fornecidos ou coletados, por vezes de forma não mito transparente, consiste em um
novo perigo à autonomia pessoal e à dignidade humana, desponta o direito de manter controle
sobre os dados pessoais como uma nova dimensão da tutela da privacidade.
Não que o sentido clássico da privacidade tenha sido abandonado, e nem o deve, pois
continua relevante e imprescindível para impedir a intromissão dos poderes públicos ou dos
intentos privados. O direito de estar só, de opor uma barreira intransponível ao acesso alheio
ainda permanece e é essencial na Sociedade da Informação em que mecanismos tecnológicos
cada vez mais sofisticados - micro câmeras, dispositivos de captação sonora, de visualização
de fontes de calor, e outros - permitem adentrar, à distância, no âmago das vidas e
relacionamentos humanos.
3.1.1 Privacidade a partir dos dados pessoais
Hodiernamente a privacidade recebeu um novo influxo, uma nova nuança que a
redimensionou, um avultamento como prefere Zanon (2013, p. 56). Especialmente na
Sociedade da Informação a privacidade assume uma feição funcional, esmiuçada por Rodotà
(2008, p. 92) com a possibilidade de o indivíduo conhecer informações que estejam em
qualquer local a seu respeito, controlar o uso destas informações e, ainda, interromper seu
fluxo. A privacidade se mostra, assim, como um direito de controlar as próprias informações,
fazendo surgir um direito de oposição em três níveis: opor-se à sua coleta, ao seu
armazenamento e ao seu uso, neste último caso incluída a manipulação, a divulgação e a
transmissão a terceiros.
Esta percepção já era partilhada há muito por Doneda (2000, p. 120) ao apontar para
“uma transformação na definição do direito à privacidade, do ‘direito de ser deixado em paz’
para o ‘direito a controlar o uso que outros fazem das informações que me digam respeito’”.
O reconhecimento de que a proteção de dados pessoais faça parte do conteúdo do
direito à privacidade é essencial diante das transformações operadas na e pela Sociedade da
Informação, especialmente ante o fenômeno do Ser Informacional, que torna o conjunto dos
dados pessoais precedentes à própria pessoa a que se referem, e orientam a tomada e decisões,
a realização de direitos e a imposição de restrições. Incorreções, ausências, incompletudes,
manipulação errônea ou alteração proposital, são ocorrências que põem em severo risco as
possibilidades e mesmo a vida dos titulares destes dados.
Exatamente como pondera Schreiber (2013, p. 137), toda a complexidade da pessoa,
80
sua identidade e singular individualidade, é transmudada em uma representação virtual
decorrente de seu conjunto de informações, o Ser Informacional de que já se falou neste
trabalho39, e “o destino da pessoa humana acaba decidido não com base na sua real
personalidade, mas com base na representação virtual que é construída a partir de dados
pessoais coletados de modo mais o menos aleatório”.
Um exemplo concreto da preocupação ressaltada pelo jurista acima citado pode ser
visualizado no exame de um caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná que envolvia a
prisão errônea de uma pessoa, confundida com outro por ter o mesmo nome que o indivíduo
verdadeiramente procurado pelas autoridades policiais40. Dos autos desta demanda consta que
o Instituto de Identificação inseriu os nomes errados na filiação do indivíduo preso
indevidamente, e estes foram os fatores levados em conta para ter sua prisão efetivada e ficar
encarcerado por 12 (doze) anos. A responsabilização estatal no caso decorreu de decisões e
atos de autoridades baseados em dados pessoais.
Inegável que no caso acima relatado a pessoa concreta e sua personalidade foram
postas em segundo plano, privilegiando-se o Ser Informacional, que não correspondia ao ser
real, e desaguando em grande prejuízo. O caso alerta para o risco das ações com base em
dados pessoais.
Para propugnar uma tutela em torno dos dados pessoais, entretanto, mostra-se
necessário traçar contornos a respeito desta categoria. Doneda (2006, p. 152) menciona que os
termos “informação” e “dado” são utilizados frequentemente como sinônimos, referindo-se a
um fato ou aspecto da realidade. Todavia, a fundo são aspectos distintos. O dado seria uma
pré-informação numa acepção mais primitiva e fragmentada, ao passo que a informação seria
a representação decorrente do dado propiciando o conhecimento sobre algo.
No plano geral dos dados, têm relevância ímpar os dados atinentes às pessoas,
universo no qual Echterhoff (2010, p. 156) apresenta uma distinção entre dados não
nominativos e dados nominativos. Os primeiros transparecem como dados anônimos, amiúde
estatísticos, econômicos, políticos, sociais, não relacionados diretamente com nenhuma
pessoa específica. Já os dados nominativos são aqueles que de forma direta ou indireta
identificam uma pessoa ou permitam a identificação.
Daí, para os dados pessoais, verifica-se que podem ser compreendidos, em
39
Cf., Capítulo 1, Seção 1.2.
TJPR - 4ª Câmara Cível – ACR nº. 359904-0 – Rel. Adalberto Jorge Xisto Pereira - j. 06.03.2007. Disponível
em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 21 jun. 2014.
40
81
consonância com a proposta de Vieira (2007, p. 255), como aqueles atinentes a determinada
pessoa identificada ou identificável. Os dados pessoais traduzem alguma mensagem, direta ou
indireta sobre o indivíduo a que se referem, e figuram nesta categoria também aqueles dados
que mesmo não relacionados a pessoa identificada permite a identificação quando associados
a outros dados.
A identificação do indivíduo a partir da associação de dados variados, o que só é
possível pelo fluxo de dados presente na Sociedade da Informação, faz vezes à Teoria dos
Mosaicos, explicada por Conesa apud Bessa (2003, p. 91), segundo quem existe inúmeras
informações pessoais que em si mesmas são irrelevantes na preocupação da privacidade,
porém quando atreladas a outras informações são capazes de tornar pública e transparente a
personalidade e a vida de determinada pessoa, tal como ocorre com pequenas pedras que
formam os mosaicos, que em si não dizem nada, porém unidas podem formar conjuntos
cheios de significados.
Na Sociedade da Informação o fluxo de dados é uma constate, necessária para a
própria funcionalização da conformação social, e no emaranhado de informações que
gravitam entre as mais diversificadas relações, estão seguidamente os dados nominativos. Por
dizerem respeito a vários aspectos da vida humana, uns compartilháveis e não passíveis de
ocultação, outros dignos de proteção e aptos a serem ofuscados do conhecimento alheio, estes
dados pessoais ainda podem ser apresentados como dados sensíveis e dados não-sensíveis.
Os dados sensíveis, de acordo com Doneda (2006, p. 160-161), são aqueles que se
coletados e processados surtem um potencial de discriminação ou de lesividade aos titulares, e
em alguns casos até para coletividades. A rigor, no conjunto de dados sensíveis estariam os
relacionados a raça, convicções políticas, credo religioso, opção sexual, históricos médicos,
aspectos genéticos. Por outro lado, os dados não sensíveis, conforme expõe Echterhoff (2010,
p. 157), são aqueles considerados de domínio público, não reservados ao seu titular, a
exemplo de nome, estado civil, domicílio, profissão.
Invocando a teoria alemã das esferas da privacidade, Vieira (2007, p. 256) traça uma
classificação alternativa dos dados pessoais, suscitando a existência de dados em três níveis:
dados não-sensíveis, dados sensíveis e dados de tratamento proibido. Os primeiros estariam
alocados na esfera privada (Privatsphäre), os segundos na esfera da intimidade (Intimsphäre),
e os últimos na esfera do segredo absoluto (Geheimsphäre).
Na tríade de dados pessoais acima apresentada, os dados não sensíveis podem ser
82
coletados e armazenados sem consentimento do titular. Para os dados sensíveis a captação e
armazenamento pressupõe prévia, inequívoca e expressa concordância do titular a que se
referem. E os dados de tratamento proibido são indisponíveis, por se referirem diretamente à
dignidade humana do titular, nem mesmo sob consentimento podem ser coletados,
armazenados e manipulados.
O enquadramento de determinado dado pessoal em uma ou outra das categorias acima
é fundamental para averiguar o nível de proteção que merece e como a tutela da privacidade
incide sobre a informação.
A necessidade de uma tutela especial a estes dados leva alguns estudiosos a defender a
existência de um direito autônomo à proteção de dados pessoais, justificando Zanon (2013, p.
146) que isto seria resultado da incapacidade do tradicional direito à privacidade contemplar
proteção eficaz diante das novas circunstâncias e complexidades da Sociedade da Informação.
Enquanto a privacidade tocaria aquilo que é privativo, confidencial e secreto, a proteção dos
dados pessoais tutela aquilo que é inerente ao próprio indivíduo, que lhe é pessoal. Além de
significar o direito de se opor contra intromissões estatais e privadas na esfera particular, a
proteção de dados pessoais mostra-se afeta à autonomia decisional, conferindo à pessoa,
segundo continua Zanon (2013, p. 147), o poder de controlar “até onde vai a sombra que paire
sobre as informações que lhe respeitam, construindo-se como uma liberdade de determinar o
usos dos próprios dados”.
3.1.2 Normatizações internacionais e internas acerca dos dados pessoais
Percebe-se que a ideia de um direito singular à proteção dos dados pessoais não é
essencialmente nova, tendo constado explicitamente na Carta de Direitos Fundamentais da
União Européia ao incluir como um direito contido no conjunto das liberdades, conforme a
dicção de seu art. 8º, item 1: “todas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter
pessoal que lhes digam respeito”. O item 2 do mesmo artigo ainda prevê que o tratamento que
se dê aos dados pessoais deve ser leal, para fins específicos, e precedido do consentimento da
pessoa a que se referem, além de que às pessoas é assegurado o direito de acesso aos dados
coletados que lhes digam respeito e pleitear retificações quando necessárias.
Com efeito, a normatização da Comunidade da União Européia é a mais profusa na
disciplina
da
proteção
aos
dados
pessoais.
Notadamente
que
também
existem
regulamentações do direito norte-americano, sobremodo baseadas no chamado right to
83
privacy, funcionando como um sistema complexo de difícil condensação em um núcleo
comum, já que, de acordo com Doneda (2006, p. 271-272), ocorre uma fragmentação da
proteção aos dados pessoais em razão do grande conjunto de fontes normativas sobre a
matéria, o que é típico do sistema de common law.
Observa Zanon (2013, p. 111) uma diferença ontológica no trato conferido aos dados
pessoais pela visão europeia e a concepção estadunidense. A primeira parte da premissa da
inserção da proteção dos dados pessoais no âmbito dos direitos fundamentais, tencionando
uma autonomia do instituto. A segunda encara a proteção aos dados pessoais pelo viés do
direito à liberdade, resultando na proteção setorizada por legislações estaduais e federais, pela
interpretação e aplicação conforme a Constituição, e pelas normas de Direito Penal.
Pelo enfoque afinado com os direitos fundamentais, apropriada aos propósitos deste
estudo, adota-se preferencialmente as punções normativas do direito comunitário europeu no
tocante à proteção dos dados pessoais. Nesse plano, a defesa de um direito autônomo à
proteção dos dados pessoais pressupõe objeto específico, normas próprias e princípios
reitores. As Diretivas 95/46/CE e 2002/58/CE, fornecem estes subsídios, especialmente na
forma de princípios orientativos da proteção dos dados pessoais, que segundo Vieira (2007, p.
28) são aplicáveis a qualquer forma de tratamento de dados pessoais nas relações jurídicas
travadas entre os titulares destes dados e os poderes públicos ou entes privados.
Em 1995 a Comunidade Européia editou a Diretiva 95/46/CE, voltada especialmente
à proteção de dados pessoais, traçando definições sobre esta categoria de dados, seu
tratamento, arquivamento, e outros (art. 2º). Para a proteção dos dados pessoais, a Diretiva em
comento fixou princípios específicos, iniciando por aquele de que o tratamento de dados deve
ser leal e lícito, perpassando ao de que o recolhimento de dados deve ter finalidade explícita,
legítima e predeterminada, seguindo ao princípio de que os dados captados devem ser
adequados, pertinentes e que não excedam às finalidades, fluindo ao princípio de que os dados
devem ser exatos e atualizados, e enfim devem ser conservados de forma a permitir a
identificação do indivíduo a que se referem apenas dentro dos limites da finalidade de coleta
pré-estabelecida (art. 6º).
Importante transcrever que a Diretiva 95/46/CE define o tratamento de dados
pessoais como “qualquer operação ou conjunto de operações efectuadas sobre dados pessoais,
com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, registo, organização, conservação,
adaptação ou alteração, recuperação, consulta, utilização, comunicação por transmissão,
difusão ou qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão,
84
bem como o bloqueio, apagamento ou destruição” (art. 2º), e estipula em seu art. 7º alguns
princípios aplicáveis a este tratamento como forma de assegurar a proteção dos dados
pessoais envolvidos nestes processos.
Tem-se fixado, assim, o princípio do consentimento inequívoco do titular, o princípio
da necessidade de tratamento para a realização ou conclusão de relação jurídica em que esteja
envolvida a pessoa, o princípio da necessidade de tratamento para o cumprimento de
obrigação legal, o princípio da necessidade de tratamento para atender a interesses vitais da
pessoa em referência, o princípio da necessidade para atendimento de ação de interesse
público ou ato legítimo de autoridade, e o princípio da necessidade ao atendimento de
interesses legítimos a quem os dados devam ser comunicados.
No lastro da Diretiva supra, a Comunidade Européia editou em 2002 a Diretiva
2002/58/CE, com o propósito de cuidar da circulação e tratamento de dados pessoais nas
comunicações eletrônicas. Em especial nesta Diretiva, o art. 5º versa sobre a
confidencialidade dos dados nas comunicações eletrônicas, que não devem ser coletados e
armazenados sem o consentimento das pessoas a que se referem, ressalvando-se ordens
judiciais para tanto. Ainda, o art. 6º disciplina que os dados de tráfego, assim aqueles
necessários para o estabelecimento de conexão e envio de comunicações, sejam desprezados
tão logo do procedimento de comunicação se complete. Como se pode notar, os dois
dispositivos em tela trazem embutido o direito ao esquecimento, refletindo a concepção de
que a estada nos meios de informação e comunicações deve ser efêmera, critério que se
mostra ideal para a garantia da proteção de dados pessoais.
A linha principiológica encetada pelas Diretivas 95/46/CE e 2002/58/CE acima
analisadas não contou com absorção por todos os ordenamentos jurídicos dos países da União
Europeia, como reconhece Vieira (2007, p. 282), e as influências em países alheios ao âmbito
de incidência daquelas normas se mostraria ainda mais longínqua.
Todavia,
na
recente
legislação
brasileira
são
encontradas
tentativas
de
regulamentação do tratamento de dados pessoais, nem todas, como se verá, afinadas com os
princípios presentes nas diretivas do Direito Comunitário Europeu. Ainda não se tem,
contudo, uma legislação específica apropriada para o tratamento e proteção dos dados
pessoais, tramitando no legislativo federal o Projeto de Lei n. 4.060/2012 tendente a regrar o
tratamento de dados pessoais com preocupação dirigida à proteção da individualidade,
privacidade e intimidade das pessoas.
85
No conjunto de normas nacionais já editadas e vigorantes e que, de algum modo,
tocam e regulam certos aspectos atinentes aos dados pessoais, têm-se com maior vulto
normatizações de direito do consumidor e de transparência pública. Antes disso, porém, a
proteção de dados pessoais consta do texto constitucional, quando no art. 5º, XII, assegura-se,
como direito fundamental individual, o sigilo de dados. Entretanto, como pondera Zanon
(2013, p. 13) a respeito, a norma constitucional não protege os dados sem si, mas sim a
violação da comunicação, ou seja, a inviolabilidade do sigilo acoberta a comunicação dos
dados, mas não os dados em sua essência, posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal41.
Ainda em nível constitucional encontra-se o instituto do habeas data, medida
processual à disposição das pessoas para que possam conhecer os dados mantidos pelos
poderes públicos a seu respeito. De acordo com o arr. 5º, LXXII, da Constituição Federal, o
habeas data é manejável para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa
constantes em bancos de dados de caráter público, podendo ainda ser solicitada a retificação
de informações por ventura ali errôneas. A Lei 9.507/1997, que regulamentou o instituto do
habeas data reiterou as funcionalidades constitucionais em seu art. 7º, e acrescentou uma
outra possibilidade, a de realizar “anotação nos assentamentos do interessado, de contestação
ou explicação sobre dado verdadeiro mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou
amigável”.
Um passo importante na proteção de dados pessoais é encontrado no Código de
Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), lei federal que por primeiro enfocou diretamente
uma tutela dos dados pessoais, ainda que para casos restritos ao universo consumerista. Em
sua seção VI o citado código cuida “Dos Bancos de Dados e Cadastros de Consumidores”,
assegurando aos consumidores o “acesso às informações existentes em cadastros, fichas,
registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas
respectivas fontes” (art. 43, caput, CDC). A sistemática implantada pelo código consumerista
ainda estabelece a qualidade que devem possuir os dados pessoais ao exigir que estes
cadastros permitam acesso à informação com clareza e veracidade, além da prerrogativa de
solicitar correção e exclusão (art. 43, § 1º e 2º). A preocupação que circunda estes bancos de
dados está, como anota Amaral (2010, p. 189), no fato de que possuem uma capacidade
depreciativa considerável, na medida em que são, a rigor, bancos de dados negativos e que
41
“Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica
distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto
registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados” (STF – 2ª
Turma - HC 91867 – Re. Min. Gilmar Mendes – j. 24 abr. 2012 – Dje 20 set. 2012. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 23 jun. 2014) [grifou-se].
86
deságuam em restrições à pessoa-consumidora.
Ainda no âmbito das relações de consumo, a Lei 12.414/2011 criou o mecanismo do
Cadastro Positivo de Consumidores, objetivando a formação de bancos de dados com
informações de adimplemento para fins de histórico de créditos, e a consulta dos dados nessa
conformação armazenados. A propósito, Zanon (2013, p. 141) destaca uma vantagem da
norma em foco por prever expressamente a vedação à coleta e tratamento de dados sensíveis
pela proibição contida em seu art. 3º, § 3º, II.
Noutro passo, objetivando concretizar o direito constitucional de acesso às
informações públicas (art. 5º, XXXIII, CF/1988), foi editada a Lei 12.527/2011, vindo a ser
comumente denominada de “Lei de Acesso à Informação”. Apesar de seu foco não ser os
dados pessoais, até porque tem por objeto as informações públicas, acaba contemplando certa
normatização àquela espécie de dados. Bem a esse modo, o art. 31 da lei em tela dispõe que
“o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à
intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias
individuais”.
Ainda que a Lei 12.527/2011 reconheça restrição especial à coleta de dados pessoais
concernentes à intimidade, vida privada, honra e imagem, e necessidade de consentimento do
titular para divulgação, por outro lado o seu art. 31, § 1º dá abertura para a possibilidade de
coleta e tratamento de dados pelas exceções que estabelece no § 3º do mesmo artigo, quando
estas informações forem necessárias para prevenção e diagnóstico médico (inciso I), para fins
estatísticos (inciso II), para o cumprimento de ordens judiciais (inciso III), para defesa de
direitos humanos (inciso IV), para proteção do interesse público e geral preponderante (inciso
V), e para apuração de irregularidades que envolvam a pessoa ou para recuperação de fatos
históricos relevantes (§ 4º).
Em que pese o cuidado dedicado pela Lei 12.527/2011 com as informações pessoais,
é procedente a crítica trazida por Zanon (2013, p. 144) no sentido de que a norma ignorou o
princípio da proibição do tratamento de dados sensíveis, consistente na garantia máxima de
impedir que o Estado possa coletar e manipular esta espécie de dados.
Além disso, causa preocupação a adoção pela Lei de cláusulas excessivamente
abertas para a permissão de coleta e tratamento de dados pessoais, quando não se poderá, ao
menos segundo a dicção da norma, invocar a restrição fundada na intimidade, vida privada,
honra e imagem, como ocorre nos incisos IV e V do art. art. 31, § 1º, ao mencionar os
87
conteúdos abstratos, indefinidos e multifacetados de “defesa dos direitos humanos”, “interesse
público e geral preponderante” e “fatos históricos relevantes”.
No cenário da prevenção criminal, a Lei 12.654/2012 autoriza a coleta de material
genético com o objetivo de identificação criminal, dispondo que “a identificação criminal
poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético” (art. 1º,
caput) e que “os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em
banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal” (art.
2º), garantindo, porém, que o conjunto de informações genéticas coletado e os perfis
genéticos gerados não poderão ter traços somáticos ou comportamentos dos indivíduos a que
se referem.
No que respeita à coleta e tratamento de dados genéticos, cumpre lembrar os
apontamentos feitos por Echterhoff (2010, p. 206) no sentido de que são informações
pertencentes à categoria dos dados pessoais sensíveis, portanto integrantes da esfera íntima do
indivíduo. Como tal, seguindo a classificação já feita neste estudo, tratando-se de dados
sensíveis a coleta e o tratamento devem ser necessariamente precedidos de consentimento
claro, explícito e inequívoco do titular, estando vedada a coleta fora destas circunstâncias, por
qualquer justificativa.
Por fim, sobreveio a Lei 12.965/2014, denominada de Marco Civil da Internet,
norma que, apesar de construída para regular o uso da Internet no país, pode funcionar em
uma variedade de casos como lei específica sobre a proteção dos dados pessoais, ao menos
àqueles envolvidos em operações por intermédio da Internet. A atenção conferida pela norma
em tela à proteção dos dados pessoais é evidenciada logo ao dispor sobre os princípios
regentes dos usos e operações na Internet, quando destaca a proteção da privacidade (art. 3º,
II), a proteção dos dados pessoais (art. 3º, III), a inviolabilidade da intimidade e vida privada
(art. 7º, I), a inviolabilidade e sigilo do fluxo das comunicações (art. 7º, II) e a inviolabilidade
e sigilo das comunicações privadas armazenadas (art. 7º, III).
As ressalvas a essas proteções ficam por conta do interesse público, amiúde com o
intuito de identificar agente praticante de um delito ou causador de um dano, quando dados
poderão ser fornecidos a partir de requerimentos de autoridades policiais, administrativas, ou
do Ministério Público, mas sempre contando com a atuação de uma ordem judicial (art. 10, §
1º, § 3º; art. 13, § 2º; art. 15, §§ 1º e 2º; art. 22).
A Lei 12.965/2014 pende, a partir do contido no art. 7º, I e II, ao reconhecimento da
88
privacidade e da proteção aos dados pessoais como direitos distintos a merecer tutela nas
operações via Internet, perfilhando a proposta de Zanon (2013, p. 181) no sentido de que a
proteção de dados pessoais é um direito autônomo com contornos e regime próprio, estando
ao lado da privacidade com um desdobramento extensivo de um direito geral de
personalidade.
A norma em foco, porém, relega a efetivação da proteção dos dados pessoais ao uma
lei específica, como se vê no art. 7º, III. Nem por isso, entretanto, na ausência desta lei
especial, haverá espaço para a manipulação indiscriminada de dados pessoais, uma vez que
entre as garantias asseguradas às pessoas em suas operações via Internet está a vedação do
fornecimento de dados a terceiros sem prévio consentimento livre e informado do titular dos
dados (art. 7, VII). No mesmo sentido, complementar à garantia anterior, está o direito de
receber informações claras e completas sobre a coleta, uso, armazenamento de dados pessoais,
com o adendo de que seu tratamento só poderá ocorrer se o princípio da finalidade justificar,
se for lícito nos termos legais, ou estejam previstos em contratos (art. 7º, VII).
De certo modo o direito ao esquecimento também foi acolhido pela Lei 12.965/2014,
em seu art. 7º, X, ao prever a possibilidade de exclusão definitiva dos dados pessoais
fornecidos para a criação e execução de uma determinada aplicação na Internet, quando
encerrada a relação este as partes envolvidas. Entretanto, esta exclusão não é automática, e
dependerá do requerimento expresso do titular dos dados.
Em que pese as punções em torno da preservação da inviolabilidade da privacidade,
da intimidade, dos dados pessoais, da imagem e honra, do sigilo de comunicações, a Lei
12.965/2014 estabelece um precedente de duvidosa validade sobre a retenção de dados de
registro de conexão e de acesso42. Em sequência, o art. 10 disciplina que haverá guarda de
registros de conexão e acesso, bem como dos dados pessoais e conteúdo das comunicações
privadas, ainda que nesse mister deva ser observada a preservação da intimidade, da vida
privada, da honra e da imagem das pessoas envolvidas. Mais intrusivo se mostra o § 1º do
indigitado artigo ao prever que o provedor que retiver os dados de que trata o caput, deverá
fornecê-los mediante ordem judicial, de forma autônoma ou associados a outras informações,
remetendo diretamente à Teoria dos Mosaicos alhures citada, para prever a identificação da
42
Na estipulação de conceitos, a Lei 12.965/2014 define como registros de conexão o “conjunto de informações
referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo
terminal para o envio e o recebimento de pacotes de dados” (art. 5º, VI), e como registros de acesso a aplicações
na internet “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação na internet
a partir de um determinado endereço IP” (art. 5º, VIII).
89
pessoa a que se referem os dados ou ao menos o terminal tecnológico de onde partiram.
Nessa via, de acordo com os art. 13 e 15 da Lei 12.965/2014, respectivamente, os
registros de conexão devem ser mantidos armazenados pelo administrador do sistema por um
período de 01 (um) ano, ao passo que os registros de acesso a aplicações deverão ser
armazenados pelo prazo de 06 (seis) meses, em ambos os caso sob sigilo. Estes prazos
poderão ser ampliados extrajudicialmente a requerimento das autoridades policiais,
administrativas ou do Ministério Público, porém deverá ser requerida ratificação deste
elastecimento de prazo de retenção de dados mediante ordem judicial (art. 13, §§ 2º e 3º; art.
15, § 2º).
Como se vê, a Lei 12.965/2014 abre espaço para a coleta e armazenamento de dados
pessoais, o que se põe em confronto com a tutela da privacidade defendida neste estudo à luz
das categorias dos dados pessoais (não-sensíveis, sensíveis e de tratamento proibido). Nesse
plano, o Marco Civil da Internet representa um retrocesso quando cotejado com normas de
outros países que não obrigam diretamente a guarda de registros de acesso e aplicações na
internet, o que se pode verificar, por exemplo, com o art. 6º, 1, da Diretiva 58/2002 CE
quando dispõe que “os dados de tráfego relativos a assinantes e utilizadores tratados e
armazenados pelo fornecedor de uma rede pública de comunicações ou de um serviço de
comunicações electrónicas publicamente disponíveis devem ser eliminados ou tornados
anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação”.
Nota-se que o olhar para a proteção dos dados pessoais, uma característica marcante
da Sociedade da Informação, deságua na identificação de um direito à privacidade
informacional ou autodeterminação informativa, que, seguindo a exposição de Cachapuz
(2006, p. 290), catalisa tanto a possibilidade de o indivíduo restringir aspectos particulares do
conhecimento público, quanto em que medida dados podem ser tornados públicos, a partir de
uma objetivação de sua vontade. Por esse prisma, a autodeterminação informativa
corresponde, nas palavras de Vieira (2007, p. 35), ao “direito que cabe a cada indivíduo de
controlar e de proteger os próprios dados pessoais, tendo em vista a moderna tecnologia e
processamento da informação”.
3.2 VISIBILIDADE E VIGILÂNCIA ELETRÔNICA
As tecnologias e mecanismos da Sociedade da Informação propiciam um fenômeno
específico consistente na promoção da visibilidade e vigilância das vivências e estadas
90
pessoais e coletivas. O diferencial operado pela Sociedade da Informação é a possibilidade de
transportar momentos do local onde ocorrem para o conhecimento de qualquer pessoa que
não participa daquele cenário, sem barreiras territoriais.
Com efeito, a união de tecnologias de captação de imagens e áudios com as redes de
transmissão de dados de alta velocidade permitem que um fato seja captado por um
dispositivo em determinado local e no mesmo instante encaminhado a um local remoto para
armazenamento, ou mesmo a incontinenti disseminação via redes de comunicação para acesso
imediato a um infindável número de interessados.
Estas possibilidades resultam na ampliação da visibilidade e da vigilância eletrônicas,
ocorrências que põem em evidência a preocupação com o direito fundamental à privacidade,
porque os aparatos tecnológicos, conforme pontua Vieira (2007, p. 205), deságuam na
transparência do comportamento humano na sociedade. No mesmo sentido, Limberger (2007,
p. 169) adverte que as imagens coletadas podem ser utilizadas ou comercializadas
indevidamente, o que põe em risco o direito das pessoas nelas representadas.
Nesse passo, volta à tona a dicotomia entre espaços públicos e espaços privados,
sempre preciosa para privacidade, e como aduz Cachapuz (2006, p. 74), a exigência de
visibilidade é o elemento diferenciado entre as esferas pública e privada, conquanto uma
mínima ou nenhuma visibilidade é conferida aos espaços privados e ao menos alguma
visibilidade às coisas próprias dos espaços públicos.
À míngua dos contornos e tenacidades destes espaços, a questão determinante consiste
em responder se o que está no espaço público tem visibilidade tal que permita a vigilância
integral e o apoderamento e manuseio dos dados vigiados. Notadamente que aquilo que
mesmo no espaço público não possa ser captado, menos ainda será passível de vigilância e
visibilidade quando em espaços privados.
De acordo com a percepção de Schreiber (2013, p. 110-111), o paradigma do local
público tem sido desvirtuado e aberto a abusos, levando inclusive à sustentação de que
espaços públicos não são somente aqueles de livre acesso do público, mas também os prédios
ocupados pelos poderes públicos. Todavia, a conotação pública de determinado ambiente não
concede ampla margem de atuação para a livre captação de imagens e outras formas
reveladoras da estada e do comportamento humano nestes locais;
Os aspectos da vigilância e visibilidade, neste ponto, circunscrevem-se aos
mecanismos e tecnologias de captação de imagens e sons que revelam comportamentos
humanos, hodiernamente instalados tanto em locais públicos quanto privados. Ressalta-se que
nos espaços públicos sempre se justificaram por questões de interesse público e segurança,
91
todavia são cada vez mais presentes em âmbitos privados, amiúde também por segurança,
para inibir ações criminosas, ou para vigilância familiar, a exemplo dos sistemas de
videovigilância de filhos por seus pais.
3.2.1 Provocação de visibilidade
A rigor, é possível afirmar que são ao menos cinco razões que levam às ações
tendentes à visibilidade dos comportamentos humanos: a) segurança e interesse público; b)
exercício das liberdades de expressão; c) ser elemento de um produto ou serviço no mercado
de consumo; d) causar dano proposital a outra pessoa; e) porque simplesmente a tecnologia
propicia a produção da visibilidade.
No tocante a questões de segurança e interesse público, técnicas e tecnologias foram
percebidas pelos poderes públicos como instrumentos eficientes no controle social,
discorrendo Rodotà (2008, p. 238) que atualmente se depara com um avultamento dos modos
de controle social justificados, sobretudo, por razões de segurança e interesse público,
impulsionados pelo argumento da luta contra o terrorismo.
Para exemplificar, Bigo, Carrera, et all (2013, p. 7) mencionam a chamada “guerra
contra o terror” deflagrada após os eventos de 11 de setembro de 2001 no Estados Unidos que
arrefeceram as posturas das democracias no sentido de não realizar vigilância em massa. Os
Estados Unidos e alguns países europeus iniciaram, a partir daí, programas secretos de
vigilância populacional empregando variadas tecnológicas de captação e manipulação de
informações.
Nesse mesmo passo Limberger (2007, p. 169) aponta que o controle de sons e
imagens por meio de sistemas de videocâmeras dirige-se à promoção de uma segurança
coletiva. E sob este estrado, a vigilância passada de uma medida excepcional para uma
existência do cotidiano, como se fosse parte da vida ordinária, não mais direcionada a classes
perigosas, mas auscultando qualquer pessoa, sem justo motivo predeterminado. Logo, todos
os indivíduos passam a ser potenciais inimigos do Estado.
Também perpassa pela nota do interesse público uma busca do Estado pela
transparência de suas ações, do que é resultado no cenário brasileiro, por exemplo, a
divulgação de salários dos agentes estatais para consulta pública nos sites governamentais
oficiais na Internet. A partir da Lei de Acesso à Informação (Lei nº. 12.527/2011), vários
entes públicos passaram a disponibilizar na internet a relação dos servidores, cargos ocupados
e respectiva remuneração.
92
Inúmeras foram as ações judiciais intentadas por servidores públicos que sentiram sua
privacidade violada ante a revelação pública de seus vencimentos. O Supremo Tribunal
Federal, no julgamento da Suspensão de Segurança 3.90243 e da Suspensão de Liminar
623/DF44, firmou o entendimento que a remuneração dos agentes públicos é informação do
interesse coletivo ou geral, o que justifica a ampla visibilidade dos dados. Apreciando caso
análogo, o Tribunal de Justiça do Paraná45, mantendo a visibilidade da relação de nomes dos
servidores estaduais e seus respectivos salários na internet, justificou que há uma tendência
nacional de divulgação de todos os gastos realizados pelos órgãos públicos, o que é almejado
pelo princípio constitucional da publicidade (art. 37, caput, CF/1988) e pelo dever de dar
acesso à informação aos cidadãos.
Noutro passo, no plano da liberdade de expressão, a visibilidade tem papel central, na
medida em que a rigor a liberdade de expressar importa intrinsecamente no exercício do
direito de informação, que se desdobra nos direitos de informar, de se informar, e de ser
informado46. A livre movimentação da informação é essencial para a sustentação dos modelos
democráticos, para participação na vida coletiva, para a inserção social dos indivíduos,
consubstanciando-se em elemento essencial do desenvolvimento da dignidade da pessoa
humana. Além disso, fomenta espaço para a exploração econômica pela atuação dos meios de
comunicação, resultando na liberdade de imprensa e vedação à censura.
Com efeito, a liberdade de expressão segue a ideia geral de proibição de censura
prévia, apresentada por Toller (2010, p. 23-25) sob a denominação de doutrina das restrições
prévias, a prior restraint doctrine do direito anglo-saxão47. Compõe o núcleo desta doutrina,
primeiramente, a concepção de que nenhuma ideia, nenhum pensamento, nenhum tipo de
manifestação está previamente vedado ou sujeito a algum filtro autorizativo, de modo que há
um direito de que toda expressão seja difundida ao menos uma vez. A partir daí, a segunda
concepção revela um sistema repressivo, fundando na sanção posterior à divulgação ou
publicação da manifestação, quando já produzido um dano.
Um caso providencial neste contexto, enfocando a captação à distância de momentos
43
STF – Pleno - SS 3.902-Agr – Rel. Min. Ayres Brito – j. 06 jun. 2007. DJ 29 jun. 2007. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 06 jul. 2014.
44
STF – SL 623/DF – Min. Ayres Brito – j. 10 jul. 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 06
jul. 2014.
45
TJPR - 3ª Câmara Cível – AC 1077128-3 - Rel. Des. Hélio Henrique Lopes Fernandes Lima – j. 27 ago. 2013.
Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 23 jul. 2014.
46
Cf., exposto no Primeiro Capítulo deste estudo.
47
Esta doutrina é também conhecida por ideia blackstoniada ou princípio de Blackstone, em referência a
William Blackstone que, no século XVIII, expôs em comentários a leis inglesas o que viria a ser condensado
como as bases da liberdade de imprensa e, consequentemente, da liberdade de expressão.
93
da vida pessoal, a partir do uso de câmeras fotográficas de alta capacidade, é o da exposição
artística "The Neighbors" (os vizinhos), ocorrida em Nova York, EUA. Esta exposição reuniu
fotografias captadas clandestinamente de moradores de um prédio, a partir da janela do
apartamento de prédio vizinho, pelo fotógrafo Arne Svenson. Entre as fotografias estão
pessoas comuns deitadas, se alimentando, escoradas na janela, fazendo serviços domésticos, e
até mesmo de roupas íntimas.
O fotógrafo em questão foi alvo de ação judicial por alguns moradores sob a
alegação de violação da privacidade e risco à segurança de crianças, gerando o caso Foster vs.
Svenson. Ao julgar a questão, em agosto/2013, a Suprema Corte de Nova York decidiu que as
fotografias poderiam ser exibidas porque se consubstanciam em arte, e “Arte é liberdade de
expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda [da Constituição dos EUA]”48.
A liberdade de imprensa é também amiúde dependente da visibilidade da vida humana
obtida por refinadas tecnologias de informática e informação. Não raro se vê nos meios
televisivos, sobretudo, reportagens investigativas com uso de câmeras escondidas e escutas
clandestinas, com intuito de obter informações privilegiadas e levá-las a conhecimento do
público. As ocorrências se avolumam quando os fatos objeto da atividade atinem ao universo
criminógeno.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná apreciou caso em que um hotel
ingressou com demanda em face de um veículo de comunicações que fez reportagem sobre
malversação de dinheiro público com gastos indevidos a título de diárias de vereadores de
funcionários de câmaras municipais. O ponto sustentado pelo hotel foi a exibição de imagens
de suas dependências, sem ter concedido autorização, com ênfase à fachada e ao nome do
estabelecimento, o que passaria imagem de que hotel participava do esquema de fraudes
divulgado pela reportagem, quando na verdade suas dependências apenas serviram para a
realização de um curso onde estiveram as pessoas alvo da reportagem.
Na decisão, o Tribunal registrou que o repórter se valeu de câmera oculta em parte da
matéria e que as pessoas abordadas não sabiam estarem sendo filmadas. Apesar disso, decidiu
que as filmagens não acarretaram dano, senão verdadeira divulgação do hotel em horário
nobre e sem custo, o que lhe seria benéfico. Ademais, registrou o órgão julgador que a
matéria tinha cunho investigativo e informativo, não tendo por objetivo abalar a imagem do
hotel, e que visou “prestar à população e aos seus telespectadores a informação acerca dos
48
New York Supreme Court. Foster vs. Svenson, 01 ago. 2013. Disponível em:
<http://law.justia.com/cases/new-york/other-courts/2013/2013-ny-slip-op-31782-u.html>. Acesso em: 10 jul.
2014.
94
fatos por ela apurados que, casualmente, ocorreram no interior do estabelecimento
apelante”49.
Em outro caso, o mesmo Tribunal reconheceu a visibilidade indevida dada a uma
pessoa filmada ocasionalmente na cena de um acidente automobilístico, quando recolhia
alguns pertences de uma das vítimas. No programa televisivo, que deixou transparecer que o
personagem filmado tivesse se apropriado indevidamente do bens, ainda que não tenha sido
mostrado seu rosto, outros aspectos como o uniforme que vestia permitiram sua identificação.
A conclusão do Tribunal neste caso foi no sentido de que reportagem não tinha caráter
meramente informativo, constituindo-se em sensacionalismo fomentado por intuito
econômico, imputando ao veículo de comunicação o dever de indenizar50.
No universo mercadológico a visibilidade das vidas e dos comportamentos humanos
também fulgura com uma mercadoria preciosa, e muitas vezes há ligação íntima com a
liberdade de expressão em uma dimensão econômica. A esse modo, basta lembrar dos reality
shows que atingem números expressivos de audiência nas redes televisivas por todo o mundo.
Mas um serviço peculiar ao fazer uso da visibilidade humana é o Google Street View, que
permite explorar lugares no mundo todo por meio de imagens em 360 graus ao nível da rua,
mediante acesso público via internet. De acordo com os idealizadores do serviço, seu
funcionamento é similar ao que se vê dirigindo ou caminhando pelas ruas51. Em outras
palavras, tudo que estiver nos espaços públicos escaneados pelos equipamentos do Google
Street View, inclusive pessoas, poderão ter suas imagens coletadas e tornadas acessáveis por
qualquer pessoa em qualquer parte do mundo.
Entretanto, ao menos duas ocorrências mostram os riscos de tamanha visibilidade,
apesar de o serviço informar que adota as providências de desfocar os rostos e placas de
automóveis para preservar a privacidade e o anonimato das pessoas. O primeiro, na Inglaterra,
quando um homem fora flagrado pelo serviço com carro estacionado em frente a uma loja Sex
Shop. A esposa surpreendeu-se ao ver pela Internet a imagem de seu marido captada pelo
serviço, pois imaginava que o cônjuge estivesse em outra cidade, e isto desaguou no divórcio
do casal52. No segundo caso, ocorrido em 2013 na Rússia, uma mulher ao buscar em serviço
parecido com o Goggle Street View informações sobre determinada rua de sua cidade acabou
49
TJPR - 10ª Câmara Cível – AC 942023-1 – Rel. Themis Furquim Cortes – j. 22 nov. 2012. Disponível em:
<http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 05 jul. 2014.
50
TJPR - 1ª Turma Recursal – RI 20120001452-0 – Rel. Juiz Leo Henrique Furtado Araújo – j. 21 jun. 2012.
Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 05 jul. 2014.
51
Cf., descrição disponível no website do serviço. Disponível em: <http://www.google.com.br/intl/ptBR/maps/about/behind-the-scenes/streetview/privacy>. Acesso em: 06 jul. 2014.
52
Notícia disponível em: <http://www.thesun.co.uk/sol/homepage/news/article2350771.ece>. Acesso em:
05.03.2013.
95
visualizando imagem de seu namorado na companhia de outra mulher, o que também levou
ao fim do relacionamento53.
Outrossim, não tardou a percepção de que a produção de visibilidade da vida pessoal
poderia ser um importante fator de prejuízo, sendo usado deliberadamente para provocar
danos a desafetos ou inimigos. Com efeito, notar que a visibilidade pode configurar um dano
à pessoa reforça a necessidade de proteção da privacidade. A esse modo, serve de exemplo o
fenômeno conhecido por vingança pornô (porn revenge), consistente na divulgação, em regra
via Internet, de imagens e vídeos íntimos de casais, por um dos parceiros quando findo o
relacionamento.
Neste caso, é inegável que o intuito é ferir o(a) ex-parceiro(a) com a visibilidade de
momentos de profunda intimidade. A preocupação com a vingança pornô é tamanha que nos
Estados Unidos, os estados da Califórnia e New Jersey já possuem leis sobre a matéria54. No
Brasil, estão em discussão no Congresso Nacional dois projetos de lei atinentes ao tema. O
Projeto de Lei nº. 5555/2013 pretende alterar a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) para
ampliar o rol de categorias de violência doméstica e incorporar a violação da intimidade, pela
Internet ou qualquer outro meio, sem consentimento. Já o Projeto de Lei nº. 6630/2013 busca
acrescentar ao Código Penal o delito de divulgação de fotos ou vídeos com cenas de nudez ou
ato sexual sem autorização da vítima.
Num outro sentido, por fim, a visibilidade das vivências e comportamentos humanos é
provocada pelo simples fato de as tecnologias a permitirem, sem se ter uma razão subjacente
atrelada a questões de interesse público, econômicos, de exercício da liberdade de expressão,
ou visando causar um prejuízo. Indivíduos equipados com dispositivos tecnológicos cada vez
mais potentes passam, deliberadamente, a captar a vida alheia e disseminar estes momentos
ao um grande e desconhecido público.
Essa razão de visibilidade pode ser ilustrada com o caso da modelo brasileira Daniella
Cicarelli, que em 2006, numa praia espanhola, foi flagrada em atos íntimos e sexuais com o
namorado. Em instantes o vídeo ali captado por uma pessoa que se encontrava no local foi
lançado na Internet, espalhando-se tal qual um vírus de alta capacidade de replicação. A
modelo ingressou com pedido judicial pretendendo que fosse vetada a exibição e circulação
nos meios midiáticos da Internet, obtendo êxito no intento por força da decisão proferida pelo
53
Notícia disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/02/russa-descobre-traicao-de-noivo-porimagem-no-google-street-view.html>. Acesso em: 05 jul. 2014.
54
Notícia disponível em: <http://www.portaldoholanda.com.br/lei-da-califrnia-criminaliza-postagem-deimagens-erticas-por-vingana#sthash.cm37XtSc.dpbs>. Acesso em: 05 jul. 2014.
96
Tribunal de Justiça de São Paulo55, após aguçada celeuma e controvérsia entre os julgadores,
prevalecendo a tese de que não havia um motivo público que justificasse a legitimidade
daquela visibilidade.
Outro fato peculiar que demonstra o afã por captar situações íntimas a distância, com
uso de equipamentos tecnológicos, ocorreu em Sarajevo, Bósnia e Herzegovina. Uma juíza do
local chegava todos os dias ao tribunal às 08h00, quando o prédio estava vazio, e quando em
sua sala, fechada, se despia por completo e passava a fazer ginástica. Esta conduta foi captada
por um funcionário da prefeitura a partir de um prédio vizinho, utilizando-se de câmera
fotográfica de longo alcance, com o detalhe de que este funcionário não estava no exercício
de suas funções públicas ao produzir estas fotografias, que foram levadas às autoridades e
acarretaram a destituição da magistrada56.
Os casos acima relatados demonstram a fragilidade da privacidade diante das
potencialidades dos aparatos tecnológicos de visibilidade e vigilância eletrônica. Mesmo que
se reconheça que as tecnologias da Sociedade da Informação dão vazão a visibilidades e
vigilâncias, muitas vezes clandestinas, e, portanto, ilícitas, é preciso perseguir um limite de
suas aplicações dentro da permissão dos direitos fundamentais, porque isto permite buscar
tutelas jurídicas para garantir o respeito à privacidade.
3.2.2 Autoexposição e busca por visibilidade
Por um outro lado, é também importante contemplar um oposto à preocupação com a
guarda da privacidade, qual seja o comportamento humano que busca a visibilidade por meio
de aparatos tecnológicos, notadamente impulsionados pelos programas televisivos de reality
shows. Paira uma hipótese de que, a fundo, as pessoas deixaram de dedicar importância
crucial à privacidade, pois frequentemente buscam a exposição, a visibilidade, por vezes com
intuitos econômicos, como ocorrem com os programas de reality shows, e outras vezes pelo
puro interesse ou necessidade de se fazer notar. Ou seja, as pessoas querem ser vistas,
refletindo uma necessidade de constituição como ser humano, percebida por Arendt (2000, p.
17) quando afirma que “nada e ninguém existe nesse mundo cujo próprio ser não pressuponha
um expectador”.
O isolamento, a opacidade da vida, que é comum à privacidade, parece ter perdido seu
55
TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani –
j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 06 jul. 2014.
56
http://oglobo.globo.com/blogs/pagenotfound/posts/2014/02/10/juiza-destituida-por-fazer-ginastica-pelada-emtribunal-523818.asp
97
valor na Sociedade da Informação massificada pela disseminação de tecnologias e
equipamentos de captação da vida cotidiana, por ato voluntário das próprias pessoas que
almejam exposição. Proximamente à linha argumentativa traçada por Moraes e Silva (2006, p.
44), as pessoas expõe suas vidas, suas intimidades a um público para suas confissões,
tornando a “espetacularização da intimidade” uma forma de aproximação com o expectador.
Esta autoexposição não decorre apenas da participação da vida comum mediante
compartilhamento de experiências e tecnologias e conteúdos, mas também, de acordo com
Cachapuz (2006, p. 241) porque há um desejo individual por aparecer, se fazer visto pelos
outros.
Detecta-se mesmo uma necessidade de expor, de mostrar a vida, a intimidade, e de
obter o reconhecimento alheio, de saber que se é notado pela visibilidade alcançada pelos
mecanismos tecnológicos. De acordo com Bruno (2004, p. 118), a conduta de se expor e
expor a intimidade para um público qualquer, desconhecido, intermediado pelas tecnologias
de informática e comunicação, notadamente pela Internet, representa uma busca pelo olhar do
outro, reproduzindo-se em uma conquista da atenção alheia. Na modernidade, para que a
intimidade e a interioridade sejam reconhecidas, para que tenham valor, elas devem ser
mostradas, tornadas visíveis, voltando-se pra fora de modo a obter reconhecimento.
Por outro lado, para os ávidos pela expectação está o sentimento de conhecer a vida
alheia para reconhecer a sua própria, e segundo Moraes e Silva (2006, p. 50) constitui um
modo de testar “se a própria vida é normal”. Até mesmo aspectos mais frugais da vida
cotidiana tornam-se dignos de exposição e despertam a curiosidade alheia. Este efeito que há
tempos era exclusivo da vida de pessoas de notoriedade (artistas, políticos, esportistas),
atualmente perpassa a vida cotidiana de qualquer pessoa que se predisponha a revelar-se sem
pudores nos mecanismos visibilizantes da Sociedade da Informação.
Há, nesse sentido, pessoas que expõe sua vida diuturnamente a quem quiser
acompanhar, mediante gravação ininterrupta da vida ordinária e disponibilização na Internet.
Existem serviços, por outro lado, que permitem ao usuário mostrar onde se encontrar, em que
locais esteve, etc., ou seja, torna visível e transparente os rastros espaciais do cotidiano57.
Trata-se de exposição voluntária ao olhar alheio, numa visível renúncia momentânea à
preservação da privacidade. E vista por esse prisma, a liberdade de expor-se, de dar vazão aos
aspectos então privativos e íntimos, encontra respaldo jurídico no pleno exercício da liberdade
57
Nesse sentido cita-se o serviço FourSquare (www.foursquare.com) que tem como função principal permitir
que seus usuários indiquem, a partir de ações de check-in, informar e divulgar os locais que estiveram e a avaliálos com notas. Outros usuários podem conhecer estas estadias. O serviço se intitulado como fomentador do
compartilhamento de lugares entre pessoas.
98
de expressão (art. 5º, IX, Constituição Federa de 1988). A prerrogativa de mostrar-se, de
promover autoexposição, pode ser encarada como um meio de inclusão que satisfaz a
necessidade de reconhecimento, de igualação, na exata perspectiva acenada por Ehrenberg
apud Bruno (2004, p. 119-120) de que há “o aumento do sentimento de ser igual, malgrado as
desigualdades reais, permite investir sobre o indivíduo qualquer, inteiramente semelhante ao
telespectador qualquer, o estilo de identificação que era privilégio dos heróis da cultura de
massa”.
A toda evidência, a busca pela visibilidade, em franca demonstração da necessidade
de integração, de inclusão humana, operando como um fator de rompimento da solidão e do
isolamento provocados pela separação entre espaços públicos e privados, conduz ao risco de
lançar a privacidade a um aspecto desimportante, ou ao menos alocá-la em um direito de
segunda classe. Contra esta perspectiva, é que não se pode olvidar dos perigos do controle e
dominação propiciados pela vigilância eletrônica, pois como há muito pontuado por Focault
(1987, p. 166), “a visibilidade é uma armadilha”.
Com efeito, as variações de exploração da visibilidade humana propiciada pelos
aparatos tecnológicos são incontáveis, relatando Vieira (2007, p. 205 e 209), no particular, as
aplicações com câmeras de seguranças em locais públicos, os circuitos internos de vídeo em
locais privados, rastreamentos por sinais de celular, chips de monitoramento de usuários,
microfones
minúsculos,
microcâmeras,
rastreamentos
por
satélites,
sistemas
de
posicionamento global (GPS), reconhecimentos faciais e de voz, e outros mais.
Nesse plano de ampla vigilância, que força a privacidade para fora, buscando os
indivíduos transparentes e à plena visibilidade, a vigilância parece desconhecer limites, ao
menos tecnológicos, e por esta razão medidas jurídicas devem ser apontadas como
possibilidades de refreamento.
3.3 LEGÍTIMAS EXPECTATIVAS DE PRIVACIDADE
As dificuldades atinentes à proteção dos dados pessoais e a crescente onda de
vigilância por um lado, e a busca por visibilidade de outro, tornam a defesa da privacidade um
caminho tormentoso na Sociedade da Informação. O ponto crucial está em que as tecnologias
intrusivas simplesmente permitem devassar o interior das vidas humanas. Nesse sentido,
pensar-se em um viés reparatório para as violações e abusos à privacidade pelos usos e
aplicações de técnicas e tecnologias não atende ao conteúdo de direito fundamental da
privacidade, até porque factualmente se mostra pouco provável a eliminação definitiva de
99
uma ação invasiva à privacidade nos limiares tecnológicos da Sociedade da Informação.
Em outras palavras, não há mínima garantia de que um dado pessoal coletado
ilegitimamente seja excluído e não deixe de existir a possibilidade de ser divulgado em
qualquer outro momento. Não há garantia que uma presença pessoal, em espaço público ou
privado, captada cladestinamente, não seja disseminada pelos mais variados meios de
compartilhamento de informações em rede. Tutelas reparatórias, portanto, desconsideram a
carga de fundamentalidade do direito à privacidade, que para sua real efetivação pressupõe o
impedimento de ações invasivas.
3.3.1 Categoria das legítimas expectativas e aplicação à privacidade
A problemática acima denunciada, robustecida pela nem sempre clara linha distintiva
entre espaços públicos e privados e qual a intensidade da proteção à privacidade em cada um
destes, fruto inegável da influência das tecnologias da informação, dificulta soluções
peremptórias. Uma proposta de resolução que põe em confronto a aplicação de técnicas e
tecnologias e a privacidade dos indivíduos está na localização de legítimas expectativas de
privacidade, situações em que as circunstâncias fáticas, temporais e territoriais, a conduta dos
indivíduos, e os impulsos dos ordenamentos jurídicos em torno de uma tutela de confiança
individual e coletiva permitem exigir ou não a abstenção de aplicações tecnológicas.
Hodiernamente as expectativas suplantaram a concepção de serem externas ao direito,
passando ao um estágio em que produzem efeitos jurídicos relevantes. A encampação da boafé, da tutela do investimento de confiança, do refreamento ao abuso de direito, produzem um
cenário propício a se cogitar de expectativas legítimas, justas, que vinculam partes entre si e
também a coletividade.
A tutela a confiança é defendida por Martins-Costa (2004, p. 119) ao sustentar que vai
além de segurança à lei ou boa fé, traduzindo-se em crédito social, tornando a confiança
positivada no normativo estatal, pois o Estado de Direito é fundamentalmente um Estado de
Confiança. A propósito, o Supremo Tribunal Federal traça, em sua jurisprudência58, uma
ligação simbiótica entre confiança e segurança jurídica, fator que revela o peso atual deste
conceito para o ordenamento jurídico pátrio.
Com efeito, a materialização da confiança eleva as expectativas do clássico plano da
58
STF – 2ª Turma - ARE 786383 AgR – Rel. Min. Teori Savascki – j. 25 mar. 2014 – DJE 10 abr. 2014.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 23 jul. 2014; STF – 2ª Turma - AC 3172 MC-AgR – Rel.
Min. Celso de Mello – j. 19 fev. 2013 – Dje 10 maio 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em:
23 jul. 2014.
100
mera esperança59 em vista de um direito futuro porque ainda não reunidas todas as condições
para seu exercício, para o status de legítimas e justas expectativas diante da inculcação da
crença sincera advinda de uma situação objetiva que inspira a certeza na concretização do
direito.
Nesse passo, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal encontram-se
importantes julgados em que as justas expectativas ou expectativas legítimas constituíram
fundamentos jurídicos de peso nas decisões proferidas no âmbito daquele tribunal de índole
constitucional.
Assim, ao analisar a previsão constitucional em torno do direito à saúde, no RE
393175 AgR, o referido Tribunal aferiu que a disposição constitucional em foco (art. 196,
Constituição Federal de 1988) não poderia ser interpretada como uma simples promessa, “sob
pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade”60[grifou-se].
No julgamento do MS 29350 reconheceu que a remoção de servidores públicos e
nomeação de investidos por concurso deve respeitar as legítimas expectativas dos servidores
depositadas na legislação vigorante, sob pena de ofensa ao princípio da confiança61. Já na
apreciação da ADC 30 cogitou da existência de razoável expectativa de um indivíduo
concorrer a um cargo público eletivo com base na moralidade que é presumida62.
Portanto, face à tutela da confiança, o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo
justas, legítimas e razoáveis expectativas como fundamentos capazes de sustentar a invocação
da tutela jurídica para a proteção ou garantia de um direito. Estes postulados em torno de
expectativas imperativas, que neste estudo são denominas de legítimas expectativas, fornecem
bases para as expectativas de privacidade que se pode invocar na Sociedade da Informação.
De modo mais próximo ao tema aqui desenvolvido, alguns aspectos importantes
podem ser extraídos da Teoria da Expectativa Razoável de Intimidade construída no direito
norte-americano. O nascimento desta teoria está no julgamento do emblemático caso Katz vs.
U.S., em 1967, quando a Suprema Corte, seguindo proposta do juiz Harlan, considerou ilegal
59
De acordo com Amaral (1998, p. 194), os direitos subjetivos podem formar-se instantânea ou gradativamente,
e neste último caso dá-se uma situação de incerteza, de expectativa. A expectativa é um direito em formação
dependente de um ou outro elemento. Será uma expectativa de fato quando resumir-se a uma mera esperança, e
será expectativa de direito quando o direito já se configura em parte, existindo uma situação dependente de
requisito legal ou determinado fato.
60
STF - RE 393175 AgR – Rel. Min. Celso de Melo – j. 12 dez. 2006 – DJ 02 fev. 2007. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 jul. 2014.
61
STF – Pleno – MS 29350 – Rel. Min. Luiz Fux – j. 20 jul. 2012 – Dje 01 ago. 2012. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 jul. 2014.
62
STJ – Pleno – ADC 30 – Rel. Min. Luiz Fux – j. 16 fev. 2012 – Dje 28 jun. 2012. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 jul. 2014.
101
o ato estatal consistente na captação, sem conhecimento e consentimento do indivíduo ou sem
prévia autorização judicial, de conversas telefônicas mantidas em cabines públicas63.
Em Katz vs. U.S. foi suscitada a tese de que há uma confiança sobranceira dos
cidadãos frente às intromissões estatais. Por isto, uma cabine telefônica consiste em um
ambiente, tal como a casa, em que há uma expectativa razoável de intimidade, de forma que o
acesso clandestino tanto à informação física com a eletrônica nestes locais constitui uma
violação à vida privada das pessoas.
Na ótica edificada pelo precedente norte-americano, discorre Guerrero Peralta (2011,
p. 61) que uma expectativa razoável de privacidade tem dois pressupostos: a) que a pessoa
tenha esboçado uma expectativa atual de intimidade; b) que a coletividade esteja preparada
para reconhecer tal expectativa como razoável e, portanto, aceitável. Diante disso, a razoável
expectativa de intimidade se reflete, na jurisprudência norte-americana, amiúde diante da
vigilância das comunicações, vigilância eletrônica sobre propriedade e indivíduos, e
vigilância implicitamente consentida nos dados fornecidos e documentos produzidos em
virtude de uma relação contratual. A premissa de razoável expectativa do direito norteamericano é adotada no presente estudo, pela similaridade conceitual, com a legítima
expectativa identificada da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Quanto à primeira categoria, no direito pátrio há uma legítima expectativa que leva os
indivíduos a um sério investimento de confiança de que suas comunicações não serão alvo de
auscultação estatal. Isto deflui do art. 5º, XII, da Constituição Federal ao estabelecer que há
um sigilo a princípio inviolável sobre correspondências e comunicações (telegráficas de dados
e telefônicas). Logo, somente situações extremas nos estritos limites constitucionais – para
fins de investigação criminal ou instrução processual penal – se mostrarão mais justas que a
legítima expectativa e poderão arrefecer o sigilo imanente às comunicações.
Nesse contexto, também o Supremo Tribunal Federal conclui no julgamento do RE
389.808, ao enfocar a quebra de sigilo bancário, que a privacidade é a regra, portanto a
legítima expectativa, de sorte que a superação da privacidade depende do crivo judicial para
os casos que a própria Constituição Federal estabelece. Na decisão, o Tribunal consignou que
“conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na
relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte”64.
No tocante à segunda categoria, alusiva à vigilância sobre propriedade e sobre os
63
US
Supreme
Court.
Katz
vs.
US,
18
dez.
1967.
Disponível
em:
<http://supreme.justia.com/cases/federal/us/389/347>. Acesso em: 10 jul. 2014.
64
STF – Pleno RE 389.808 – Rel. Min. Marco Aurélio – j. 15 dez. 2012 – DJe 10 maio 2011. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 jul. 2014.
102
indivíduos, também a Constituição Federal de 1988 fornece a legítima expectativa que as
pessoas e suas propriedades não devem ser monitoradas pelos poderes públicos ou por outros
particulares. Os direitos fundamentais de liberdade (art. 5º, II) e de propriedade (art. 5º, II)
geram a confiança coletiva de que não haverá intrusão estatal nestes aspectos, e novamente
apenas uma causa constitucionalmente justificável pode transcender a justa expectativa de
privacidade atuante contra esta vigilância.
O respeito à dignidade da pessoa humana é o sustentáculo de fundo desta expectativa,
ao menos quanto à vedação ao monitoramento de indivíduos, pois só se poderia validamente
vigiar uma pessoa se fosse considerada uma ameaça, e os cidadãos têm a confiança de que os
poderes públicos não os considerarão como tal, mesmo por “razões de Estado”.
Na contramão desta perspectiva, Bruno (2013, p. 173) relata a ideia defendida pela
polícia britânica no sentido de fomentar um banco de dados para mapeamento de dados
genéticos de crianças que apresentem comportamento indicativo de que no futuro possam se
tornar criminosas, sendo que os dados seriam coletados nas escolas primárias, ante a
percepção de um comportamento do gênero.
No tocante à vigilância de propriedade, Guerrero Peralta (2011, p. 67-68) ilustra com
os casos de vigilância por sobrevôo decididos pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Por
primeiro, com base na doutrina de “simples vista”, só se admitiria se se tivesse contato visual
de imediato com a propriedade almejada, sem utilização de mecanismos tecnológicos para
ampliar os sentidos humanos. Entretanto, no caso Califórnia vs. Ciraolo, a Suprema Corte
entendeu que o sobrevôo de aeronave policial a mil pés de altura com a identificação de
plantação de maconha dentro da propriedade, o que não podia ser visto ao nível do solo diante
das cerca levantadas no entorno, não violava razoável expectativa de intimidade, porque
qualquer pessoa que sobrevoasse a propriedade nas mesmas circunstâncias teria a mesma
visão que os agentes policiais do caso65.
Por fim, a vigilância implicitamente consentida é outro aspecto que desperta o debate
sobre a legítima expectativa de privacidade. Trata-se do caso de dados fornecidos para o
estabelecimento de relações contratuais, assim como os documentos gerados a partir destes
dados, a exemplo de faturas telefônicas, de cartões de créditos, e similares. Aqui, por se estar
amiúde diante de relações privadas, avulta-se a legítima expectativa de que as informações
fornecidas ou coletadas serão utilizadas essencialmente para a construção e formalização de
certa e determinada relação jurídica, cofiando mutuamente as partes que estas informações
65
US
Supreme
Court.
California
vs.
Ciarolo,
19
maio
<http://supreme.justia.com/cases/federal/us/476/207>. Acesso em: 15 jul. 2014.
1986.
Disponível
em:
103
não deixarão este âmbito privado, não serão levadas a conhecimento de terceiros não
participantes da relação contratual.
Nesse passo, entra em cena o consentimento, que deve ser explícito, informado e
legítimo, defendendo Rodotà (2008, p. 75) que o indivíduo deve ter o direito de escolher
aquilo que está disposto a revelar aos outros, voltando as atenções para o consentimento do
interessado, que na Sociedade da Informação deve consistir em um consentimento informado
com prescrições sobre quais devem ser as informações fornecidas ao interessado para que
possa validamente prestar seu consentimento à coleta, armazenamento e utilização de
informações. A legítima expectativa de privacidade, nesse âmbito, é definida pelo grau de
clareza e precisão das informações que incentivaram ou conduziram a um consentimento
sobre o fornecimento ou coleta de dados. Logo, a coleta clandestina de informações viola a
legítima expectativa de privacidade.
3.3.2 Legítimas expectativas de privacidade na Sociedade da Informação
O reconhecimento de que na Sociedade da Informação o direito à privacidade
representa também o direito de exercer o controle sobre as próprias informações, devendo-se
compreender no conjunto de informações não somente dados armazenados em bancos de
dados ou flutuando nas redes de comunicações, mas também as estadas e vivências captáveis
por mecanismos de vigilância e visibilidade. Isto deságua na admissão de que paira uma
legítima expectativa de sempre poder exercer este controle, e somente em situação
excepcionais tal expectativa não se firmaria.
O teor de direito fundamental da privacidade permite que sempre o titular de um dado
pessoal possa exigir a cessação da visibilidade que lhe fora infligida, sobremodo quando há
também a legítima expectativa de que os dados pessoais tenham a coleta previamente
autorizada, os usos claramente definidos, a transmissão restringida, e o seu desparecimento
possível. As Diretivas da Comunidade Europeia, já analisadas, fornecem bases de sustentação
a estas legítimas expectativas de privacidade no tocante aos dados pessoais.
Na captação de comportamentos à distância (câmeras, lunetas, e outros), há uma
legítima expectativa de que no âmbito dos recônditos privados e domiciliares nenhuma ação
dessa natureza deva ocorrer, pois impera a confiança que se pelos sentidos normais de
qualquer pessoa na mesma posição do observador não se possa conhecer o que há no espaço
alheio, mecanismos tecnológicos não podem romper essa barreira fática natural. Mas mais
que isso, e aqui reside a maior expectativa legítima em torno da privacidade: mesmo que
104
pelos simples sentidos seja possível conhecer o que se passa com uma pessoa em um
ambiente alheio, equipamentos tecnológicos não podem ser aplicados para capturar estes
momentos e levá-los a outras pessoas que não fazem parte do mesmo cenário e que não
tenham a mesma capacidade de cognição por sentidos próprios.
Nesse passo, a legítima expectativa de privacidade inibe que sejam capturados atos e
fatos tanto em espaços privados quanto públicos e sejam disseminados pelos meios de
informática e comunicação para outros observadores distantes e sem acesso ao mesmo campo
observatório. Esta ideia de legítima expectativa de privacidade pode ser reconhecida implícita
no julgamento do já referido caso da modelo brasileira Daniela Cicarelli quando a
possibilidade de impedir a veiculação de imagens e vídeos prevaleceu66 sobre a ideia primária
de que ao se expor em uma praia, um inegável espaço público, se despira de toda proteção do
direito de privacidade67.
Porém, nem sempre a legítima expectativa de privacidade é observada diante da
investida invasiva dos mecanismos tecnológicos da Sociedade da Informação. Assim foi que
o Superior Tribunal de Justiça decidiu no ano de 2004, quando concluiu, ao apreciar o caso de
uma banhista que fez topless e teve esta imagem fotografada e divulgada em jornal, que “se a
demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução
pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição
realizada”68.
Com efeito, a decisão acima não se atentou para a evolução da privacidade como o
direito de controlar os dados e informações que dizem respeito ao indivíduo. Se é certo que
nos espaços públicos não se pode impedir as percepções sensoriais daqueles que o
66
O voto vencedor, da lavra do Desembargador Ênio Santarelli Zuliani, assentou a concepção de que “não soa
razoável supor que a divulgação cumpre funções de cidadania; ao contrário, satisfaz a curiosidade mórbida,
fontes para mexericos e ‘desejo de conhecer o que é dos outros, sem conteúdo ou serventia socialmente
justificáveis’(...). Não há motivo público que justifique a continuidade do acesso. (...) Tendo em vista que o
vídeo não contém matéria de interesse social ou público, há uma forte tendência de ser, no final, capitulada como
grave a culpa daqueles que publicaram, sem consentimento dos retratados e filmados, as cenas íntimas e que são
reservadas como patrimônio privado. Portanto e porque as pessoas envolvidas são conhecidas, a exploração da
imagem poderá ter um sentido e uma conotação mercantilista, o que justifica mensurar a astreinte na mesma
proporção das vantagens que as requeridas pretendem auferir com a divulgação, sob pena de se tornar inócua a
providência judicial” (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio
Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 18 jul. 2014).
67
O voto vencido, do Desembargador-Revisor Maia da Cunha, de que não teria existido preocupação pelo casal
flagrado com a preservação de seus direitos à imagem, e que “como pessoas públicas, ao resolverem agir como
agiram, abriram mão da intimidade e da privacidade” até porque “sabiam que numa praia, com tanta gente,
corriam o risco de não terem a sua imagem preservada” (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de
Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em:
<http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 18 jul. 2014).
68
STJ - REsp 595.600/SC – 4ª Turma - Rel. Min. Cesar Asfor Rocha – j. 18 mar. 2004 – DJ 13 set. 2004.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 18 jul. 2014.
105
compartilham presentemente, é igualmente lícito invocar o controle das informações para
evitar a captura e disseminação a observadores longínquos, sobremodo por meio das redes de
comunicação. Não há ofensa à privacidade por parte daqueles que comungam o mesmo
espaço que o indivíduo, porém paira uma legítima expectativa de que a estada e os
comportamentos ali ocorridos não serão captados por dispositivos tecnológicos, ao menos não
sem o explícito, prévio e informado consentimento. E não é porque simplesmente as
tecnologias permitem esta captação que haverá uma concordância tácita para que passem a
flagrar e captar indistintamente as pessoas em seus trânsito e vivências públicas.
Nesse panorama, tanto a modelo brasileira quanto a mulher que fez topless na praia
não podiam exigir que os presentes no local fechassem os olhos para não vê-las, pois isto
implicaria em inadmissível restrição de liberdade coletiva. Porém, ambas poderiam
validamente impedir o uso de dispositivos eletrônicos para captá-las, para transformar aqueles
momentos efêmeros em dados e transmiti-los daquele local. A abstenção nesse sentido era a
legítima expectativa de privacidade que circundava o momento.
Também o caso antes apontado do serviço Google Street View, sendo especialmente
um serviço de mapeamento fotográfico de ruas, fornece subsídios para a investigação das
legítimas expectativas de privacidade, porquanto seu resultado é a captação das vidas em
locais públicos, com o objetivo de gerar uma base de dados para facilitação de acessos das
pessoas aos lugares.
É notório que as ruas e praças são locais públicos por excelência, assim como as praias
nas situações antes enfocadas. É também bastante razoável defender que os atos,
comportamentos e estadas nas vias públicas não podem ser acobertados pela tutela da
privacidade no sentido de impedir que outros os conheçam. Com efeito, não se pode invocar a
privacidade contra quem compartilha in loco do mesmo ambiente.
Diferentemente, à luz da proteção dos dados pessoais, revela-se possível sustentar a
privacidade para impedir que mecanismos tecnológicos façam um ‘recorte’ dos
comportamentos e vias públicas, os eternize em algum suporte tecnológico e assim possam
disseminá-los a um outro público. Aqui atua a legítima expectativa de privacidade para
assegurar que a vivência em locais públicos seja efêmera, passageira e se dissolva no instante
seguinte. A propósito, Soares (2011, p. 11) relata que em vários países, inclusive o Brasil, o
serviço Google Street View captou imagens de pessoas em situações constrangedoras, a
exemplo de cenas de nudez e violência, expondo-as ao ridículo e gerando demandas judiciais
que questionamento a violação da privacidade.
É importante perceber que na Sociedade da Informação, onde há uma certa
106
promiscuidade entre espaços públicos e espaços privados, existindo quem defenda a
existência de espaços semipúblicos, conforme referência feita por Duarte e Firmino (2010, p.
103), a privacidade outrora imanente e exclusiva dos espaços privados não esmaece ou deixa
de ter importância. Pelo contrário, a privacidade avança aos espaços públicos, porque a pessoa
quando nestes carrega consigo o direito de invocar uma proteção para refrear captações
indevidas ou não autorizadas de sua vida. A legítima expectativa de privacidade indica que o
direito de não ser tornado visível por mecanismos tecnológicos acompanha a pessoa onde
estiver, seja na condição de ser natural nos espaços físicos, seja sob o caráter de ser
informacional inserto no fluxo de informações das redes comunicacionais.
Esta visão, leva ao investimento de confiança de que os poderes e agentes públicos, a
coletividade, e mesmo os indivíduos, não deverão atuar de qualquer modo para provocar
visibilidade às vidas humanas. Logo, permite inferir quão errônea foi a decisão da Suprema
Corte do Estado de Nova York no caso Foster vs. Svenson, envolvendo a captação de imagens
do cotidiano de pessoas em suas casas e as tornando publicizadas em uma exposição de arte.
Escapou da análise em Foster vs. Svenson que dentro dos recônditos domiciliares a
vida pessoal e familiar goza de uma elevada expectativa de privacidade, porque o âmbito é
eminentemente privado e ainda aproveita da proteção ao sigilo do domicílio. A esse modo,
basta lembrar que as constituições portuguesa e espanhola reconhecem o direito a uma
intimidade da vida familiar. A proteção das quatro paredes, lembrada por Arendt (2007, p.
81), torna ainda mais expressiva a confiança de que nada do que ocorre no ambiente familiar
será captado por dispositivos tecnológicos, estejam estes dentro dos ambientes ou à distância.
Por isso, se mesmo em ambientes inegavelmente públicos (ruas e praças, por exemplo)
se pode invocar a tutela da privacidade para obstar visibilidade, não há razão, mesmo sob a
justificativa de expressão artística, para que seja dada visibilidade às vidas humanas dentro de
seus domicílios. No direito pátrio, a propósito, a confiança nessa não-invasão deflui do direito
à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, Constituição Federal de 1988). Aliás, ao interpretar
o dispositivo o Supremo Tribunal Federal afirma que abrange tanto o período noturno quanto
diurno69, como também elastece o conceito de “casa” contido em sua redação para abranger
quartos de hotéis70 e escritórios profissionais71, nos quais, portanto, paira a legítima
expectativa de não ter a privacidade devassada por dispositivos tecnológicos.
69
STF – 1ª Turma - RE 460880 – Rel. Min. Marco Aurélio – j. 25 set. 2007 – Dje 29.02.2008. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 jul. 2014.
70
STF – 2ª Turma RHC 90376 – Rel. Min. Celso de Mello – j. 03 abr. 2007 – Dje 18 maio 2007. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 jul. 2014.
71
STF – 2ª Turma - HC 82788 – Re. Min. Celso de Mello – j. 14 abr. 2005 – DJ 02 jun. 2006. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 jul. 2014.
107
Ainda, no cenário da captação de comunicações telefônicas e de dados também é
possível discutir as legítimas expectativas de privacidade. De acordo com o art. 5º, XII, da
Constituição Federal de 1988, as comunicações telefônicas e de dados são sigilosas e
invioláveis, e somente ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal pode romper esta proteção. Para conferir concretitude procedimental à
quebra do sigilo de comunicações, a Lei 9.296/1996 tratou da interceptação telefônica e de
dados, fixando quando poderá ser realizada, sob que critérios e justificativas, e qual o alcance
e destinação dos dados coletados.
A doutrina, especialmente penalista72, cuidou de traçar distinções em torno da coleta
de comunicações, identificando a existência de interceptação telefônica e de dados, escuta
telefônica e gravação ambiental. Somente a primeira estaria albergada pela Lei 9.296/1996,
conquanto trate da possibilidade de um terceiro, desde que por ordem judicial, capte e registre
as conversas ou transmissões de dados ocorridas entre outras pessoas sem que saibam da
existência desta intromissão. Já a escuta ambiental consiste na captação da conversa por um
terceiro precedida do conhecimento e anuência de um dos interlocutores. E, por fim, a
gravação ambiental, também chamada de gravação clandestina, é a coleta do conteúdo da
conversa ou da transmissão de dados diretamente por um dos interlocutores, sem que o outro
tenha conhecimento.
Pela tutela da confiança, tanto a escuta ambiental quanto a gravação ambiental são
expedientes que não atendem à legítima expectativa de privacidade, porque a norma
constitucional informa que o sigilo recainte sobre as comunicações e dados somente poderá
ser levantado mediante ordem judicial e para fins de instrução processual criminal. Isto leva
os indivíduos a investir uma confiança de que poderão comunicar-se e transmitir dados com
seus interlocutores, sem risco de captação clandestina por quem consigo interaja na
comunicação.
Daí porque se defende que a gravação clandestina é ofensiva à privacidade, apesar do
entendimento jurisprudencial pátrio em contrário73, pois não basta que um dos interlocutores
saiba da gravação ou a faça, porque ao fazê-lo exprimiu seu consentimento, mas falta o
consentimento do outro interlocutor, o que impede a formação da base sólida da visibilidade
72
GRECO FILHO, 1996, p. 4-6; GOMES e CERVINI, 1997, p. 95-96.
Para Supremo Tribunal Federal, por exemplo, em julgamento com repercussão geral, “é lícita a prova
consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro” (STF Pleno - RE 583937 QO-RG – Rel. Min. Cezar Peluso – j 19 nov. 2009 – Dje 18 dez. 2009. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 jul. 2014.
73
108
que é o livre consentimento informado da publicização das manifestações e dados de todos os
envolvidos no ambiente.
Também se pode debater a legítima expectativa de privacidade na divulgação de
vencimentos e salários pelas fontes pagadoras. As informações relativas aos valores pagos
como contraprestação por um trabalho ou pelo desempenho de uma função pública são
conhecidas como dados econômicos e, de acordo com Rodotà (2008, p. 78), há uma crescente
tendência de excluí-los nos contornos da privacidade porque há um interesse estatal e público
pela transparência das operações financeiras, especialmente para fins de tributação.
Nesse aspecto, desde o advento da chamada Lei de Acesso à Informação (Lei
12.257/2011), vários órgãos públicos brasileiros, inclusive as instâncias do Poder Judiciário,
passaram a divulgar a relação de valores pagos aos servidores públicos, incluindo o nome e
cargos destas pessoas. Ante a divulgação de nomes associados aos vencimentos recebimentos,
não tardaram as reclamações sobre a ofensa a privacidade, assunto que chegou ao Supremo
Tribunal Federal74, e como alhures discorrido, entendeu o Tribunal não existir tal violação
porque a privacidade cedia espaço ao dever de publicidade e transparência da Administração
Pública, e que os valores recebidos pelos servidores representariam informação de interesse
coletivo e geral.
Mas há na divulgação dos vencimentos dos servidores públicos, quando informado o
nome do servidor em associação com cargo e remuneração, uma frustração da expectativa de
privacidade, especialmente por não existir disposição explícita da Lei de Acesso à Informação
que autorize a divulgação dos dados desta forma. Os vencimentos de servidores públicos não
podem ser encarados pelo viés da fonte pagadora, ou seja, quanto e a quem os cofres públicos
remuneram, mas sim pelo prisma de quem aufere tais valores com resultado da função ou
cargo público desempenhado. Em se tratando de uma informação pessoal, e pela relevância e
influência na vida pessoa e familiar, pode ser alcandorada ao status de dado pessoal sensível,
e logo não pode ser tornado visível sem o explícito consentimento informado do titular, a não
ser que haja justificada previsão constitucional específica, o que não é o caso.
Em novel e criteriosa decisão envolvendo esta questão, o Tribunal de Justiça do
Paraná conclui que, mesmo após o advento da Lei de Acesso à Informação, a divulgação
nominal de cada servidor com cargo e remuneração representa exposição desmedida que afeta
a própria segurança das pessoas, e ademais a identificação pública do servidor associado e
seus vencimentos não está dentro das exigências de publicidade e transparência, implicando
74
STF – Pleno - SS 3.902-Agr – Rel. Min. Ayres Brito – j. 06 jun. 2007. DJ 29 jun. 2007. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 jul. 2014.
109
em atentado à dignidade daquele que tem seus dados sigilosos tornados visíveis ao público.
Arrematando, o Tribunal registrou que “o conhecimento de dados tão pessoais deva se
resumir aos órgãos de fiscalização e às pessoas que trabalham nos departamentos em que tais
informações sejam essenciais à consecução dos serviços”75.
Há confiança dos servidores públicos, portanto, de que seus dados pessoais, ainda que
gerados necessariamente em razão do cargo exercido, não serão tornados visíveis sem seu
prévio consentimento, pois há um dever do órgão que o remunera de conservar sigilosas
aquelas informações e não transferi-las a terceiros ou levá-las ao público. A disciplina da
proteção aos dados pessoais é a premissa que induz a esta legítima expectativa de
privacidade76.
Mas uma das legítimas expectativas de privacidade mais evidentes face às
potencialidades da miríade de tecnologias da Sociedade da Informação está em não ter a vida
aprisionada para sempre pela coleta indiscriminada de dados pessoais e vivências. Noutras
palavras, as atuações e passagens humanas devem ser quanto mais instantâneas e efêmeras
possíveis, não devendo ser indiscriminada e despropositadamente captadas e armazenadas e
disso transportadas perenemente para o universo tecnológico.
Os atos e ocorrências da vida humana não podem ficar eternamente conservados de
modo a permitir seu reavivamento a qualquer momento. Essa paz quanto ao passado revela o
importante papel do direito ao esquecimento, que abrange tanto dados pessoais quanto
visibilidades imagens e movimentos captados por dispositivos tecnológicos.
Justamente nessa linha decidiu o Tribunal de Justiça da União Européia77, no caso
Google Spain SL. e Google Inc. v. AEPD e Mario Costeja Gonzáles78, ao concluir que o
75
TJPR - Órgão Especial – MSOE 1112649-1 - Rel. Clayton de Albuquerque Maranhão – j. 31 mar. 2014.
Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 22 jul. 2014.
76
É curioso perceber que antes da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.257/2011) a jurisprudência nacional
direcionava-se para considerar a divulgação de salários e vencimentos na Internet intrusiva e violadora da
privacidade. A título de ilustração, o Tribunal de Justiça do Paraná havia se manifestado no sentido de que “A
identificação pública do nome do servidor e o seu respectivo salário distancia-se do que genuinamente se
entende por publicidade e transparência, atentando-se contra a dignidade daquele que tem seus dados sigilosos
publicizados, de modo que não se garante com tal exposição a segurança jurídica da coletividade, mas apenas o
acalento da curiosidade de alguns” (TJPR - Órgão Especial - MSOE - 654649-0 - Foro Central da Comarca da
Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Ronald Juarez Moro - Por maioria - j. 18.02.2011). Em sentido similar,
o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (Paraná) também repudiou a divulgação dos nomes e respectivos
salários de agentes de uma autarquia, afirmando que “A divulgação pela autarquia de lista de nomes e salários de
seus empregados na Internet caracteriza ato ilícito, na medida em que representa afronta aos direitos
fundamentais da intimidade e vida privada, consagrados no art. 5°, X, da CF” (TRT 9ª Região – 2ª Turma - RO
03400-2007-322-09-00-4 – Aco 03235-2009 – Rel. Marlene T. Fuverki Suguimatsu – DJPR 03 fev. 2009.
Disponível em: <http://www.trt9.jus.br>. Acesso em: 20. 07.2014).
77
Tribunal de Justiça da União Européia – Grande Seção – Processo C-131/12 – j. 13 maio 2014. Disponível em:
<http://curia.europa.eu>. Acesso em: 27 jul. 2014.
78
O caso consiste em ação intentada por um cidadão espanhol contra o Google, desde o ano de 1010. Em janeiro
de 1998 o jornal La Vanguardia publicou um anúncio de um leilão judicial de imóveis para o pagamento de
110
indivíduo pode requerer que dados relacionados a si deixem de estar a disposição do público,
inclusive nos serviços de buscas de informações na Internet, direito que prevalece tanto sobre
interesses econômicos quanto sobre o interesse do público em ter acesso, por qualquer razão,
a tais dados.
Livre consentimento informado, autorização legal clara e justificada, ou ordem judicial
motivada, esta última desde que afinada à razoabilidade e à proporcionalidade79, são os
fatores que podem abrandar as legítimas expectativas da privacidade na Sociedade na
Informação. Logo, toda visibilidade na Sociedade da Informação deve que obtida com
transparência e sinceridade, para que não se aniquile a confiança pessoal.
De resto, as possibilidades e potencialidades tecnológicas per si não são suficientes
para afastá-las, sob pena de se criar uma expectativa inversa, ou seja, de que a vigilância e a
visibilidade sejam a regra do cotidiano e a reserva a exceção. Este pensamento não se coaduna
com o direito fundamental à privacidade, tanto no sentido clássico de um direito de estar só,
quanto no novel prisma do franco exercício do controle sobre a coleta e usos das informações
que digam respeito a si próprio. Mais que um simples direito de regras objetivas, a
privacidade da Sociedade da Informação perfaz-se a partir de um compromisso ético de
legítimas expectativas em torno de si.
dívidas à Segurança Social, constando o nome dos devedores. Após a venda dos imóveis e conclusão do
processo, o nome destes devedores permaneceu associado à dívida nas divulgações do referido jornal, agora na
Internet. Um destes devedores requereu que essa fase e sua vida fosse apagada da Internet, ingressando com
demanda contra La Vanguardia, exigindo que escondesse seu nome das publicações, e contra o Google, exigindo
que não indexasse aquela causa nos resultado das buscas que usuários fazem.
79
A proporcionalidade, segundo Alexy (2012, p. 117-118), é vista em três nuanças: adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito. Considerando que na condição de mandamentos de otimização a realização
de princípios deflui de possibilidades fáticas e jurídicas, o sopesamento advém de uma relativização de
possibilidade jurídicas a priori, ao passo que as possibilidades fáticas permitem a atuação das máximas da
adequação e necessidade. A máxima da necessidade convence que dentre as várias maneiras que permitam um
mesmo resultado, deve-se optar por aquela que provoque o menor sacrifício a outros interesses igualmente
envolvidos no caso em decisão. A adequação na busca da medida que, entre várias, é a mais apropriada ao caso.
111
CONCLUSÃO
Legítimas expectativas de privacidade na Sociedade da Informação constituíram o
objeto primordial de investigação desenvolvido no presente estudo, em que se debateu o
comportamento da privacidade como um direito fundamental e a proteção que lhe possa ser
atribuída, diante das potencialidades e riscos resultantes das tecnologias da informação.
Nesse contexto, a difícil acomodação da privacidade na Sociedade da Informação,
como um direito de invocar uma redoma particularizada para o livre exercício e
desenvolvimento da personalidade do indivíduo, infensa a qualquer intromissão alheia,
pressupôs a identificação dos contornos desta inovadora sociedade, os efeitos das variadas
tecnologias de informática, comunicação, e outras mais, e os comportamentos humanos diante
dessas circunstâncias.
Técnicas e tecnologias são elementos essenciais da Sociedade da Informação e viu-se
que conquanto as primeiras sejam um descobrimento ou um modo de se fazer algo, as últimas
congregam sociedade e cultura, sendo resultado da combinação de técnicas e conhecimentos
científicos. As mais variadas técnicas e tecnologias, assentadas no conhecimento humano,
inegavelmente imprimem mudanças às sociedades, porém a presente pesquisa permitiu
verificar que não são elementos determinantes de todas as mudanças e rumos sociais.
Contudo, combinadas com outros elementos exercem papel de grande relevo.
A Sociedade da Informação baseia-se em técnicas e tecnologias que envolvem e se
envolvem em informação, esta o elemento definidor da sociedade informacional
contemporânea, elevada ao patamar de mercadoria e propulsora de novos modos de produção,
redimensionados em escala global. Nesse plano, conferiu-se que a informação e as técnicas e
tecnologias que a manipulam desconhecem fronteiras espaciais, sobretudo pelo conceito de
operação em rede característico da Sociedade da Informação.
Portanto, as próprias relações sociais e os comportamentos humanos passam a se
estabelecer em um sentido de interligação, tornando as informações pessoais elementos
essenciais para as vivências e participações humanas nas mais variadas facetas da vida em
sociedade. Identificou-se, nessa raia, o fenômeno do “ser informacional”, resultante da
decomposição da pessoa humana natural em um espectro de informações, dados e signos
representativos de si, de tal forma que o indivíduo é conhecido e reconhecido antes pelas
informações que se tem a seu respeito. Consequentemente, o “ser informacional” conduz a
112
uma redefinição da própria identidade do indivíduo, chegando ao ponto de suplantar a vida
fática pelo conjunto de dados pessoais, o que chama atenção para uma proteção dos dados
pessoais, porque em última instância será a proteção da própria pessoa concreta.
A redução do controle das próprias informações pessoais, aquelas mesmas que dão
vazão ao “ser informacional”, é uma consequência do fluxo de dados na Sociedade da
Informação, na medida em que o fornecimento, o compartilhamento, a troca e a captação de
informações, passam a ser pressupostos para o estabelecimento de relações negociais,
financeiras, políticas e sociais.
A toda evidência, a análise das informações pessoais gravitantes na Sociedade da
Informação permitiu delimitar duas grandes categorias. Tem-se as informações originárias,
assim consideradas as surgidas com a própria pessoa, reveladas por técnicas e tecnologias, e
então catalogadas, como é o caso do código de DNA e a tipagem sanguínea. Por outro lado,
tem-se as informações atribuídas, consistentes em dados criados e artificialmente vinculados
ao indivíduo e que passam a fazer parte de sua identidade, como o nome, os números de
documentos pessoais, e outros.
Na pesquisa aqui elaborada percebeu-se que o fluxo de informações pessoais e a
possibilidade de sua coleta e apoderamento leva a vigilância dos indivíduos a novos
patamares, muito mais eficientes, amiúde utilizadas pelos poderes estatais sob justificativas de
interesse público, segurança, e também como mecanismos eficazes no controle da tributação.
Porém a massificação dos dispositivos eletrônicos e das tecnologias de informática e
comunicação, propiciando o amplo acesso aos particulares, estende a possibilidade de
vigilância de todos por todos, simplesmente porque assim possibilitada pelo atual aparato
tecnológico da Sociedade da Informação.
A vigilância eletrônica, a partir da captação de informações pessoais e sua
manipulação por técnicas matemáticas e estatísticas, aliadas a tecnologias de informática,
passa a ser uma característica da Sociedade da Informação, pois a possibilidade de vigilância
e fiscalização é intermitente, conduzindo os indivíduos a condição de objetos de observação.
Rotinas como captação de imagens e movimentos em ambientes públicos e também privados,
coleta e cruzamentos de dados pessoais, produção de perfis pessoais, podem ser utilizados
para
se
antecipar
ao
indivíduo
prevendo
comportamento
ou
sugerindo
ações.
Homogeneização de comportamentos, e exclusão de indivíduos que por suas informações não
se harmonizam com um perfil desejado, seja para fins econômicos ou políticos, são os mais
113
novos riscos do controle e vigilância na Sociedade da Informação, que inclusive excedem
limites territoriais quando se verificam as ocorrências de espionagem exercidas por um país
em face de outro.
Mas seja dentro dos limites territoriais de cada país, ou em âmbito internacional, o fato
é que a vigilância da vida humana põe em risco os direitos à liberdade e privacidade
individual, aspecto que implica na necessidade de atuação de mecanismos de efetivação e
proteção de direitos fundamentais.
Nessa linha de raciocínio, especialmente considerando o potencial globalizante da
Sociedade da Informação, averiguou-se duas categorias importantes para o direito à
privacidade enfocado no presente estudo, isto é, examinou-se os direitos humanos e os
direitos fundamentais. A par da história evolutiva destas categorias, onde se viu que sua
solidificação pressupôs o surgimento de um reconhecimento individual e coletivo da
importância de certos direitos para si e para terceiros, os direitos humanos são vistos como
aqueles detidos pelos indivíduos por pertencerem ao gênero humano, ao que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, da ONU, se consubstancia no instrumento
internacional mais recorrentemente invocado na espécie, ainda que não seja a única
declaração a versar sobre tais direitos.
E se os direitos humanos são dotados de um caráter universalista, imutáveis por
quaisquer fronteiras espaciais, diversamente operam os direitos fundamentais, vistos neste
trabalho como os direitos humanos eleitos por uma determinada ordem jurídica interna e
assim estabelecidos em suas normas fundamentais. Viável concluir, portanto, que os direitos
fundamentais são os direitos humanos positivados dentro de um ordenamento jurídico
nacional.
Traçadas estas distinções, a pesquisa rumou ao direito à privacidade como um direito
fundamental, especialmente à luz do ordenamento jurídico brasileiro. E para se falar de direito
fundamental, foi importante recapitular a evolução do direito à privacidade, encontrando sua
gênese no direito norte-americano, pela fórmula do right to be alone, isto é, o direito de ser
deixado só, numa direta alusão ao direito de manter aspectos da vida e das relações fora do
conhecimento de quaisquer pessoas.
A descoberta de um ideal de privacidade confronta com a dicotomia entre espaços
públicos e privados, ambientes separados como adventos da modernidade, em associação aos
114
direitos de liberdade e às barreiras contra o Estado, porque há aspectos que ninguém deve
conhecer e intervir, nem os poderes públicos, tampouco os particulares.
Quando se admite que existem espaços que podem ficar desconhecidos de terceiros
por decisão individual, ao lado daqueles a que todos podem conhecer e ter acesso, surge a
visibilidade como elemento redefinidor da privacidade, própria então dos espaços públicos.
Visibilidade apresenta-se como o oposto da privacidade, já que esta permite a conclusão de
que certos fatos, atos e comportamentos possam ser tornados invisíveis a outras pessoais. A
problemática no particular é a tênue separação entre espaços privados e espaços públicos nos
quais se possa, por um lado invocar uma invisibilidade e noutro fazer uso da visibilidade para
conhecer aspectos da vida alheia, apoderar-se de informações nesse nível e reproduzi-las ou
aplicá-las em diversas destinações.
Nesse cenário, a privacidade pode ser entendida, conforme adotado no presente
estudo, como uma cláusula geral que engloba o direito à privacidade estrita e o direito à
intimidade. Tratam-se de direitos relacionais, porque a privacidade em sentido estrito dá-se na
relação do indivíduo com o externo, com outros, ao passo que a intimidade consiste na
relação do indivíduo consigo mesmo. A atuação do direito à privacidade opera, portanto, nas
informações resultantes ou necessárias a estes relacionamentos do indivíduo com outros ou
consigo próprio.
E, decididamente, porque a privacidade liga-se ao “eu”, para além de um direito
fundamental foi também possível reconhecê-la como um direito de personalidade,
redimensionando sua conotação de direito vinculado meramente às liberdades e propriedades
para um direito inerente à pessoa humana, justificada na sua dignidade, porquanto a
subjetividade pessoal tornou-se merecedora de valor jurídico.
Direitos de personalidade ressaltam a autonomia individual, porque somente o
indivíduo tem o poder de definir-se a si próprio. Assim, a privacidade é um direito de
personalidade por excelência, por exaltar a autonomia do indivíduo ao conciliar um viés
positivo de garantia de liberdade com um viés negativo de obstacularização de intervenções
externas. Autonomia em privacidade, portanto, representa as decisões do indivíduo sobre sua
própria personalidade, sobre seus projetos de vida, levando a privacidade a ser parte do
aspecto existencial do ser humano.
A partir da inferência de que a privacidade está alocada no plano existencial do ser
humano, e recordando-se do desvelamento do fenômeno do “ser informacional”, a proteção
115
das informações pessoais torna-se imprescindível para segurança dos direitos da pessoa a que
se referem, pois a violação do espectro informacional repercute em ofensas relevantes à
vivência concreta da pessoa. Daí porque o direito à privacidade experimentou um
redimensionamento, passando do estágio do direito de ser deixado só ao direito de o indivíduo
exercer o controle de suas próprias informações, concepção mais afinada com as
potencialidades e riscos da Sociedade da Informação.
Vários casos concretos analisados ao longo do presente estudo permitiram verificar
como a tomada de decisões sobre a vida dos indivíduos é feita a partir do conjunto de dados
pessoais de que se tem conhecimento e pode provocar efeitos fortemente prejudiciais,
bastando exemplificar a prisão indevida de indivíduo homônimo de outro ou a supressão de
prestações ou benefícios sociais pelo Estado.
Por outro lado, a manipulação de dados pessoais, seja pela coleta autorizada ou
consentida, ou ainda por captação clandestina, gerando perfis pessoais pelo cruzamento de
informações, deságua em processos com potencial para discriminações ou lesões a indivíduos
ou coletividades.
A proteção aos dados pessoais, portanto, passa a fulgurar para alguns estudiosos como
um direito fundamental autônomo, e tem suas bases mais sólidas firmadas no direito
estrangeiro, especialmente na Comunidade da União Européia, pelas Diretivas CE 95/46 e
2002/58, que estabelecem princípios de proteção e manipulação de informações pessoais, bem
como a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia que traça explicitamente o direito
de todas as pessoas à proteção dos dados e caráter pessoal que lhe digam respeito.
O estudo destes instrumentos de direito alienígena no tocante à proteção dos dados
pessoais foi a opção do presente estudo porque o ordenamento jurídico brasileiro é incipiente
na questão, ainda que algumas leis recentes versem em parte sobre o assunto, como o fazem
do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), a Lei de Acesso à Informação (Lei
12.257/2011), e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Além disso, a experiência
jurídica da Comunidade da União Européia, por seu cuidado, bom senso e rigor técnico, tem
servido de paradigma inspiratório para regulamentações internas de vários países.
A preocupação com uma tutela específica dos dados pessoais fez retornar, então, às
questões da visibilidade e vigilância eletrônica, porquanto vivências e estadas dos indivíduos
podem ser captadas e transportadas de um momento ou local para outro, levando ao
conhecimento de um indeterminado contingente de pessoas em ambientes distintos e
116
longínquos, com a consequente possibilidade de reprodução e conservação intertemporal
daquele momento obtido. Ou seja, um momento pessoal captado por uma câmera de
segurança pode ser compartilhado instantaneamente em rede a qualquer pessoa com o acesso
apropriado mediante equipamentos e tecnologias de informática e comunicação.
O indivíduo perde, assim, qualquer possibilidade de controle das informações que lhe
dizem respeito, cuja ideal operação deve contemplar a possibilidade de impedir a divulgação
de vivências. Uma conclusão que se firma em torno do direito à privacidade, ante as
possibilidades das tecnologias na Sociedade da Informação é que é preciso assegurar um
trânsito efêmero dos indivíduos nos ambientes públicos e privados, não podendo ter seus
momentos captados sem o explícito consentimento informado e levados a conhecimento de
um público à distância por meio das tecnologias em rede.
Neste estudo observou-se que a vigilância a partir dos dados pessoais captados e
cruzados entre si expõe ações tendentes à visibilidade dos comportamentos, que se explicam
por cinco razões: segurança e interesse público, exercício de liberdades de expressão,
consubstanciar-se em produto ou serviço no mercado de consumo, causar danos
propositadamente a quem se referem, e porque as tecnologias simplesmente propiciam a
visibilidade.
Em outro passo, identificou-se que a visibilidade é muitas vezes cobiçada pelas
pessoas para se reencontrarem com o outro, para afirmarem sua identidade e alcançarem o
reconhecimento como seres humanos, já que a aplicação de tecnologias de informática e
comunicação, conquanto tenha eliminado distâncias físicas, leva as pessoas ao isolamento e
solidão. Nesse plano, surge o ânimo de autoexposição em rede a partir de mecanismos
tecnológicos, revelando uma inovadora face do direito à liberdade de expressão.
Todo este cenário, implementado pelos perigos da circulação de dados pessoais e sua
fraca proteção, bem como a ampla visibilidade provocada por aparatos de tecnologias de
informática e comunicação, tornando a vigilância uma quase-condição da Sociedade da
Informação, despertou ao problema central da pesquisa que foi como proteger a privacidade
nessa nova conformação social.
A partir de um estudo da busca por ampla efetividade de direitos fundamentais ante
ameaças ou riscos de lesões à privacidade, aliado aos postulados da proteção à confiança,
aflorou o conceito das legítimas expectativas como fundamento para o encontro de pontos de
117
defesa à privacidade na movediça dicotomia entre espaços públicos e privados, cujos limites
foram esmaecidos pelas tecnologias de informática e comunicação.
Partindo da doutrina e jurisprudência norte-americanas sobre a expectativa razoável de
intimidade, surgida em paradigmático caso sobre a inviolabilidade de conversas mantidas em
cabine telefônica pública, conjugando com o moderno teorema da tutela da confiança,
sobretudo justificado na jurisprudência brasileira, notadamente do Supremo Tribunal Federal,
o presente estudo prospectou a categoria das legítimas expectativas de privacidade, isto é,
expectativas imperativas capazes de sustentar a invocação de proteção desse direito.
No tocante à privacidade, o texto constitucional brasileiro já estabelece legítima
expectativa de salvaguarda deste direito, induzindo a confiança dos indivíduos que suas
comunicações não serão auscultadas pelos poderes estatais ou por particulares, e de que a
propriedade e os indivíduos não serão monitorados, de modo que somente situações extremas
podem afastar esta confiança criada.
Quanto aos dados pessoais, há legítima expectativa, pela tutela da confiança, de que
dados fornecidos em relações privadas ou públicas terão uso restrito à finalidade previamente
esclarecida para a qual foram fornecidos ou captados, numa clara alusão à hodierna roupagem
da privacidade como o direito de controlar os usos e destinos dos dados pessoais.
No tocante à vigilância por dispositivos eletrônicos, paira a legítima expectativa de
uma passagem efêmera e que os comportamentos e atos dos indivíduos não devem ser
captados, conservados e levados ao conhecimento de terceiros que não obtém o conhecimento
do outro pelos puros e próprios sentidos divididos no mesmo ambiente. Assim, por exemplo,
não se pode impedir que quem esteja em uma praia veja outra pessoa praticando topless, mas
se pode vedar que este momento seja dali captado por dispositivos tecnológicos, eternizado
em meios eletrônicos e levado para além deste ambiente naturalmente compartilhado entre os
interlocutores.
A legítima expectativa de privacidade indica que o direito de não ser tornado visível
por mecanismos tecnológicos acompanha a pessoa onde estiver, seja na condição de ser
natural nos espaços físicos, seja sob o caráter de ser informacional inserto no fluxo de
informações das redes comunicacionais.
Por fim, a pesquisa aqui realizada encontrou a mais expressiva legítima expectativa de
privacidade no direito ao esquecimento, no sentido de que há uma confiança individual e
coletiva de que o Ser Informacional não poderá ser aprisionado pela coleta de dados e
118
vivências. A vida pessoal não pode ser transportada perenemente para os canais de dados
tecnológicos e ali permanecer com a possibilidade de recuperação e reavivamento a qualquer
instante, pois na Sociedade da Informação a expectativa deve ser sempre o controle integral
pelo próprio indivíduo das informações que lhe digam respeito.
119
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