uern campus avançado prof.ª maria elisa de a. maia – cameam

Propaganda
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN
CAMPUS AVANÇADO PROF.ª MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL
MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS
PAULA REGINA DA SILVA
TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA
FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
PAU DOS FERROS
2013
PAULA REGINA DA SILVA
TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA
FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como
requisito exigido para a obtenção do grau de Mestre
em Letras.
Orientador: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo- Gomes
PAU DOS FERROS
2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Silva, Paula Regina da
Tendências do processo da coalescência em construções da fala de
remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil. / Paula Regina da Silva . Mossoró, RN, 2013.
111 f.
Orientação: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo Gomes
Monografia (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia. Programa de Pósgraduação em Letras.
1. Linguística Funcional Centrada no Uso. 2. Gramaticalização. 3. Coalescência. 4.
Fala - Remanescentes Quilombolas. I. Gomes, João Bosco Figueiredo.
II.Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.
UERN/BC
CDD 418
Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319
A dissertação ‘‘Tendências do processo da
coalescência
em
construções
da
fala
de
remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil’’,
autoria de Paula Regina da Silva, foi submetida à Banca
Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como
requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre
em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN.
Dissertação defendida e aprovada em 29 de maio de 2013.
BANCA EXAMINADORA
Dedico ao meu Deus todo poderoso, pois durante todo meu
trajeto de vida, tenho plena convicção de que Ele sempre
esteve comigo. E cada vitória conquistada foi concedida não
por outro, mas segundo a Sua vontade e consentimento.
Portanto, toda honra e toda glória sejam dadas somente ao
Senhor.
AGRADEÇO
Primeiramente a Deus, sem auxílio de quem, eu, certamente, não teria escalado mais esse
degrau de minha vida intelectual e profissional;
Ao meu esposo, Dariosmar de Souza Duarte, pela compreensão, apoio e amor durante essa
etapa da minha vida;
Ao meu filho, Ângelus Christian, a quem amo incondicionalmente, tendo sido gerado
nesse período meio atribulado de pesquisa e estudo intenso e suportou junto a mim as
difíceis provações;
À minha família, em especial, a minha MÃE, símbolo de força, dedicação e amor;
À minha família de fé, que orou por mim e pelo desenvolvimento desse trabalho;
À minha estimada amiga de mestrado, de fé e de viagens, Márcia Moraes, pelo amor,
carinho, atenção e, sobretudo, pelas palavras de encorajamento e afeto proferidas na hora
certa;
Às irmãs, Secleide e Ciclene Alves, que me incentivaram a participar do processo seletivo
do PPGL no Campus de Pau dos Ferros, e me acolheram em seu lar durante parte do
período em que me mantive nessa cidade;
À diretora e colegas de trabalho da Escola Estadual Dom João Costa, onde trabalho, por
terem me apoiado e colaborado significativamente para que eu pudesse realizar esta
pesquisa;
Ao prof. Dr. João Bosco Figueiredo-Gomes, por ter aberto um novo horizonte de
conhecimento em minha vida intelectual e profissional, pela dedicação, compreensão e
relevante orientação;
À profª. Drª. Maria Alice Tavares (UFRN), que tive o prazer de conhecer, e que me
proporcinou orientações importantes para a escrita desta dissertação;
Ao prof. Luciano Pontes, que sabiamente também contribuiu para a construção desse
trabalho;
Ao professor Wellington Mendes, pessoa extremamente generosa que, mesmo sem ter uma
relação tão próxima, sempre esteve disponível para atender meus pedidos;
À professora Socorro Maia, um exemplo de dedicação e compromisso para com a docência
e para com os discentes;
Ao professor Gilton Sampaio, pelo incentivo e pelos argumentos precisos, na hora precisa;
Ao professor Guilherme, por proporcionar discussões relevantes que engrandeceram minha
compreensão, especialmente, no campo metodológico;
A todos aqueles que de forma direta ou indiretamente torceram e torcem pelo meu êxito.
RESUMO
Estudos mais recentes sobre gramaticalização têm-se preocupado com o desenvolvimento
não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais. Esta pesquisa objetiva
analisar construções gramaticais cujo processo de vinculação de sentido e forma se dá, via
gramaticalização, por meio do processo da coalescência. A fundamentação teórica deste
trabalho tem como suporte a abordagem da Linguística Funcional Centrada no Uso, que
reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas e que abriga, sobretudo, o
estudo da gramaticalização desse modo, a pesquisa se fundamenta nos estudos de Givón
(1995), Heine et al. (1991), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee
(2010) Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005),
Martelotta (2005) dentre outros. A noção de coalescência se baseia, principalmente, em
Lehmann ([1982] 2002). A pesquisa analisa, sincronicamente, dados amostrais do Corpus
A fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, organizado por Sousa;
Mendes e Fonseca (2011), e caracteriza-se como descritiva qualitativa, baseada em dados
quantitativos, uma vez que a frequência é um dos fortes indícios impulsionadores de
gramaticalização. Para tanto, utiliza o pacote estatístico do programa "Statistical Package
for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Os resultados empíricos da
pesquisa mostram uma certa regularidade no uso de coalescências fonético-fonológicas
pelos informantes estudados, porém apenas 43% dessas unidades se configuram como
construções gramaticais. Por motivações discursivo-pragmáticas, há uma forte tendência
de gramaticalização das formas coalescentes, demonstrada pela trajetória ESPAÇO >
DISCURSO. O processo de vinculação de sentido e forma que dá origem às novas
construções da comunidade estudada tende a desenvolver-se no continuum: significado
referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Concluise que o processo de gramaticalização das construções coalescentes do grupo de indivíduos
estudados segue a regularidade das mudanças da língua portuguesa e, como não há ainda
um estudo das construções encontradas com as de outros grupos de fala similares (mas não
remanescentes dos quilombolas), não se pode afirmar que há construções coalescentes
características ou peculiares da fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.
Palavras-Chaves: Linguística Funcional Centrada no Uso. Gramaticalização. Coalescência.
Fala. Remanescentes Quilombolas.
RESUMEN
Estudios recientes sobre gramaticalización están preocupados con el desarrollo no sólo de
los elementos lexicales, sino también con construcciones gramaticales. Esta pesquisa
objetiva analizar construcciones gramaticales cuyo proceso de vinculación de sentido y
forma se da, vía gramaticalización, por medio del proceso de la coalescencia. La
fundamentación teórica de este trabajo tiene como soporte el abordaje de la Lingüística
Funcional Centrada en el Uso, que reúne tanto presupuestos funcionalistas como
construccionistas y que abarca, sobretodo, el estudio de la gramaticalización de modo que
la pesquisa se funda en los estudios de Givón (1995), Heine et al. (1991), Traugott e
Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010) Langacker (1987), Goldberg (1995;
2006), Croft (2001), Tomasello (2005), Martelotta (2005) dentre outros. La noción de
coalescencia se basa, principalmente, en Lehmann ([1982] 2002). La pesquisa analiza,
sincrónicamente, datos de muestras de Corpus “A fala dos remanescentes quilombolas de
Portalegre do Brasil”, organizado por Sousa; Mendes y Fonseca (2011), y se caracteriza
como descriptiva cualitativa, basada en datos cuantitativos, una vez que la frecuencia es
uno de los fuertes indicios impulsores de gramaticalización. Para tanto, utiliza el dato
estatístico del programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al.
[1968] 2007). Los resultados empíricos de la pesquisa muestran una cierta regularidad en
el uso de coalescencias fonético fonológicas por los informantes estudiados, pero sólo 43%
de esas unidades se configuran como construcciones gramaticales. Por motivaciones
discursivo pragmáticas, hay una fuerte tendencia de gramaticalización de las formas
coalescentes, demostrada por la trayectoria ESPACIO > DISCURSO. El proceso de
vinculación de sentido y forma que da origen a las nuevas construcciones de la comunidad
estudiada tiende a desarrollarse en continuum: significado referencial > significado textual
discursivo > significado pragmático discursivo. Se concluye que el proceso de
gramaticalización de las construcciones coalescentes del grupo de individuos estudiados
sigue la regularidad de los cambios de la lengua portuguesa y, como no hay aún un estudio
de las construcciones encontradas con las de otros grupos de habla similares (pero no
remanecientes de los “quilombolas”), no se puede afirmar que hay construcciones
coalescentes características o peculiares del habla de los remanecientes “quilombolas” de
Portalegre/RN.
Palabras Claves: Lingüística Funcional Centrada en el Uso. Gramaticalización.
Coalescencia. Habla. Remanecientes “Quilombolas”.
LISTA DE FIGURA E ESQUEMA
Figura 1 – Motivações em competição ................................................................................23
Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção .....................................40
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização .................................................46
Quadro 2 – Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático ........................................47
Quadro 3 – Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático ...........................................47
Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente .......................................................................58
Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente ........................... 58
Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN
.............................................................................................................................................65
Quadro 7 – Significados do verbo Deixar (FERREIRA, 2010) ..........................................94
Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes quilombolas
de Portalegre/RN .............................................................................................. 66
Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes
quilombolas de Portalegre/RN ..........................................................................67
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO .....................................................................................11
1.1 O objeto de pesquisa ......................................................................................................11
1.2 Background ....................................................................................................................12
1.3 Fundamentação teórica ..................................................................................................13
1.4 Objetivos........................................................................................................................ 14
1.5 Metodologia ...................................................................................................................14
1.5.1 Corpus......................................................................................................................... 15
1.5.2 Etapas da pesquisa ......................................................................................................16
1.5.3 Tratamento dos dados .................................................................................................17
1.6 Relevância acadêmica e social ......................................................................................17
1.7 Organização da Dissertação........................................................................................... 18
CAPÍTULO
2
–
A
GRAMATICALIZAÇÃO
DAS
CONSTRUÇÕES
NA
PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO .............20
2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso .............................................22
2.2 Gramaticalização ...........................................................................................................25
2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade .......................................................................30
2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização .....................................................33
2.3 Construção gramatical numa perspectiva centrada no uso ............................................38
CAPÍTULO 3 – COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E
ESTUDOS .......................................................................................................................... 42
3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995) .......................... 45
3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa ......................................................... 50
3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no
Português Brasileiro ............................................................................................................57
CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA
DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN ....................... 64
4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN ...........64
4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de
Portalegre/RN ...............................................................................................................66
4.2.1 Né? / Nera? ................................................................................................................69
4.2.2 Quiném ......................................................................................................................72
4.2.3 Cumé qui / Qué qui ....................................................................................................74
4.2.4 Praculá / Praqui praculá ............................................................................................. 77
4.2.5Puraí / Puraqui / Puraculá ............................................................................................ 80
4.2.6 Cumé? ......................................................................................................................... 86
4.2.7 Daculá ........................................................................................................................ 87
4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora ..........................................................................89
4.2.9 (a)bombasta ................................................................................................................91
4.2.10 Peraí ......................................................................................................................... 92
4.2.11 Daqui praculá............................................................................................................92
4.2.12 Xeu vê / Destá .........................................................................................................93
4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de remanescentes
quilombolas de Portalegre/RN .....................................................................................97
CAPÍTULO 5 – CONCLUSÃO......................................................................................99
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 102
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, os estudos sobre gramaticalização têm-se preocupado com o
desenvolvimento não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais.
Martelotta (2011) afirma que alguns autores vêm incorporando aspectos da teoria
cognitivista aos estudos do desenvolvimento de mudanças nas línguas, relacionando-os ao
surgimento das construções gramaticais. Nessa concepção, elas constituem a unidade
preliminar da gramática, que pode ser caracterizada por qualquer elemento formal
diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma
estrutura informacional. Assim, a noção de construção cobre desde morfemas simples,
palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado
composicional, até padrões sintáticos abstratos.
1.1 O objeto de pesquisa
Considerando que a gramaticalização vem estudando também construções
gramaticais e dado o objeto desta pesquisa que é: as construções coalescentes presentes na
fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, desenvolvemos esta pesquisa
seguindo a perspectiva da gramaticalização das construções gramaticais. Assim, a pesquisa
tem como interesse estudar a gramaticalização das construções coalescentes utilizadas na
modalidade oral de analfabetos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN.
Aliado ao interesse de estudar o processo de gramaticalização das construções
gramaticais na língua portuguesa, reside também a preocupação de verificar o processo da
coalescência que pode surgir no movimento de mudança dessas construções.
Esse interesse pelo estudo das construções, envolvendo o processo da coalescência,
surgiu a partir do contato com o Corpus A fala de remanescentes quilombolas de
Portalegre do Brasil, organizado por Souza; Mendes; Fonseca (2011), e a constatação da
abundante recorrência de construções coalescentes utilizadas na fala de indivíduos
descendentes quilombolas analfabetos, conforme os negritos de (1).
(1)
(...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas
casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui
fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/
eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é
11
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a
mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-depuêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma.
(H61-05-036-IQ3-69-44)1
Na amostra (1), classificamos as formas pras, pros e quisso, como exemplos de
coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens
envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma
unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e
sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e
não + é = né? marcador discursivo).
Com base nessa constatação, optamos por investigar esse fenômeno na fala dos
remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, devido a alguns questionamentos que nos
instigaram a refletir, quais sejam: que funções/significados as formas resultantes da
coalescência linguística desempenham no uso da língua? Que processos/mecanismos
podem explicar o surgimento da coalescência na língua? Quais são os indícios/tendências
de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes
quilombolas de Portalegre/RN?
1.2 Background
Assim como são recentes os estudos sobre gramaticalização de construções
gramaticais realizados por pesquisadores brasileiros, também são escassos os estudos
recentes que investiguem especificamente o processo de coalescência e, ainda mais, se
atentarmos para a associação dessas duas temáticas.
Diante dessa incipiência, encontramos estudos, que têm se desenvolvido no Brasil,
cujos objetos de análise tratam-se do desenvolvimento da gramaticalização em certos itens
ao longo do tempo, contudo, notamos que esses itens ao se modoficarem fizeram uso do
processo de coalescência na gramaticalização das palavras analisadas. Entre esses
trabalhos, destacamos o de Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008).
Nunes (2003) realiza um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente,
reconstruindo o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português
contemporâneo. Analisa o grau de variação na fala oral entre formas sintética e perifrástica
1
As amostras estão codificadas na sequência: número da ocorrência, sexo(M/F), idade, número do
informante, identificação do inquérito, linha e página.
12
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
na cidade de Pelotas e faz o confronto das formas encontradas ao longo do trajeto
do futuro do presente, identificando as mudanças e os elementos desencadeadores do
processo que determinam a sobrevivência de uma forma em detrimento de outra. Em linhas
gerais, trata das formas verbais formadas pelo futuro do presente, verbos estes que,
proferidos na forma sintética atual, passaram pelo processo de coalescência, havendo uma
fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal, tornando-se uma única palavra. É por isso
que enquadramos esse estudo como referente à coalescência mesmo sem a autora tê-lo
produzido com esse enfoque.
Rocha (2006) investiga a motivação conceptual que levou os itens mas, porém,
contudo, todavia, entretanto, no entanto a apresentarem traços de oposição que justifiquem
o fato de serem tradicionalmente classificados em português
como conjunções
adversativas. A autora investiga a gramaticalização desses itens que, com exceção do mas,
se formaram pelo processo de coalescência. Embora a pesquisa de Rocha (2006) não
trabalhe especificamente com o fenômeno da coalescência, finda por analisar itens
oriundos do processo de união construcional.
Felício (2008) também trabalha com a gramaticalização da conjunção concessiva
embora. O item embora é formado pelo processo de coalescência das formas: em + boa +
hora que, em latim, corresponde à in bona hora e, no português, ao advérbio em boa hora.
Baseia-se, portanto, em dados sincrônicos e diacrônicos, investigando o processo de
mudança responsável pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de
significado) da já conjunção concessiva embora.
Essas pesquisas, embora não destaquem especificamente o processo da
coalescência tendem a tocar nesse processo para explicar o desenvolvimento de seus
objetos de estudo. Desse modo, as referidas pesquisas servem como aparato para
refletirmos sobre o estudo de construções que, normalmente, o falante comum não tem
consciência que se originaram da coalescência entre palavras diferentes, formando um
único vocábulo, como, por exemplo, as construções amarei, porém e embora, investigados
nos estudos citados.
1.3 Fundamentação teórica
A presente pesquisa toma como suporte teórico a Linguística Funcional Centrada
no Uso (LFCU), que reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas, pois
13
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
essa abordagem considera haver uma estreita relação entre a estrutura das línguas e o uso
que os falantes fazem delas em contextos reais de comunicação. Reflete, portanto, as
pesquisas que abrigam, sobretudo, o estudo da gramaticalização, praticado por Givón
(1995), Hopper (1987), Heine et al. (1991), Traugott (1993;2003), Traugott e Dasher
(2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010),
entre outros, destacando a noção de
coalescência baseada, sobretudo, em Lehmann ([1982] 1995); e os estudos de
representantes da Linguística Cognitiva que abrigam, principalmente, a gramática das
construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello
(2005), Martelotta (2005).
1.4 Objetivos
A pesquisa tem como objetivo geral analisar construções gramaticais cuja relação
de sentido e forma se dá por meio do processo da coalescência, como relativo aos estudos
de gramaticalização, a partir do uso oral de analfabetos remanescentes quilombolas de
Portalegre/RN. Mais especificamente, objetiva: a) levantar os usos das construções
coalescentes na fala dos descendentes quilombolas de Portalegre/RN; b) analisar as
construções coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e
morfossintática) e à dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva);
c)
verificar os processos/mecanismos que podem descrever o modo como se dá o surgimento
desse processo linguístico; e d) buscar indícios de mudança linguística, aferidos qualitativa
e quantitativamente, que evidenciem o possível processo de gramaticalização dos
diferentes usos das construções coalescentes.
1.5 Metodologia
Nossa pesquisa caracteriza-se como descritiva/explicativa, de cunho qualitativo,
mas com base em dados quantitativos, já que a frequência é um forte indício de
gramaticalização.
A pesquisa é descritiva/explicativa porque descrevemos as construções coalescentes
detectadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN e explicamos suas
funções nos contextos em que foram utilizadas. Embora esta pesquisa seja de cunho
14
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
qualitativo fez-se necessário utilizarmos o pacote estatístico do programa "Statistical
Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007).
Com base nos resultados obtidos, nos foi possível descrever as construções
coalescentes em seu contexto de uso e então, detectar o funcionamento das construções
coalescentes nas situações comunicativas em que ocorreram.
1.5.1 Corpus
A pesquisa tem como corpus A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre
do Brasil, obra resultante de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e
Literários de Pau dos Ferros/NELLP, do Departamento de Letras, do Campus Avançado
“Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia”/CAMEAM, da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte/UERN. Essa obra constitui um banco de dados que contém eventos de
fala real dos moradores das comunidades Pêga, Arrojado e Engenho Novo do município de
Portalegre, no Estado do Rio Grande do Norte. Essas comunidades estão localizadas a
oeste da zona rural do município de Portalegre, possuem uma extensão de
aproximadamente dois mil metros quadrados e abrigam moradores predominantemente
negros e/ou pardos, cuja mestiçagem se deu através de brancos e índios.
Os informantes foram escolhidos de modo que o Banco de Dados possuísse
representantes de ambos os sexos e de faixa-etária mais velha, objetivando, em tempo
aparente, resgatar estágios mais antigos do desenvolvimento da língua dessas
comunidades.
Foram, então, realizadas trinta horas de entrevistas, do tipo Diálogos entre
Informantes e Documentador – DID, versando sobre experiências pessoais, religião e
política local. Na transcrição, aparecem apenas os dados relativos ao sexo e idade, na
tentativa de manter o anonimato, embora, no diário de pesquisa, encontram-se o nome
completo do informante, a idade, o sexo, a cor, o grau de instrução, a ocupação, o tempo de
residência na comunidade, data e hora da coleta. A transcrição do corpus é fiel à fala de
indivíduos de parte da referida comunidade, mas mantém, tanto quanto possível, as
convenções da ortografia padrão. A fala do entrevistador é transcrita conforme a variedade
padrão, embora tenham sido conservadas as inadequações gramaticais.
O corpus é constituído por seis inquéritos, cujos informantes estão aqui
codificados:
15
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
IQ1 – Inquérito 01: Documentador e duas mulheres:
Informante 2:M50-02. 2
Informante 3: M56-01
IQ2 – Inquérito 02: Documentador e quatro homens:
Informante 7: H37-04
Informante 8:H39-03
Informante 9: H49-01
Informante 10:H55-02
IQ3 – Inquérito 03: Documentador e um homem:
Informante 12: H61-05
IQ4 – Inquérito 04: Documentador, um homem e duas mulheres:
Informante 14: H84-06
Informante 1: M(NS)-04
Informante 6: M81-03
IQ5 – Inquérito 05: Documentador e um homem e uma mulher:
Informante 4: M63-05
Informante 13: H64-07
IQ6 – Inquérito 06: Documentador e um homem e uma mulher:
Informante 11: H58-08
Informante 5: M63-06
Embora o corpus contemple variados fenômenos linguísticos passíveis de análise,
esta pesquisa se limitará à investigação especificamente das construções que envolvem a
coalescência, registradas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, como
relativas ao processo de gramaticalização.
1.5.2 Etapas da pesquisa
Subdividimos o nosso trabalho investigativo em duas etapas: na primeira,
realizamos o levantamento dos usos das construções coalescentes na fala dos descendentes
quilombolas de Portalegre/RN. Em seguida, passamos a analisar as construções
2
M= Mulher; H = Homem números idade-identificação. A ordem dos informantes está organizada segundo
sexo e idade constante da Tabela 2, do capítulo 4.
16
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e à
dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva), constatadas em cada contexto
de uso comunicativo, observando as:
a) propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos elementos
linguísticos no contexto de uso;
b) propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos elementos
linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu enunciado e sua
preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte;
c) propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso dos
elementos linguísticos.
Enfim, analisamos as construções, observando a relação estreita entre a estrutura e
o uso que os falantes fazem delas no contexto real de comunicação, posto que sua
habilidade linguística seja vista como constituída das regularidades no processamento
mental da linguagem em situações de uso.
1.5.3 Tratamento dos dados
A análise dos dados se deu a partir de uma abordagem quantitativa e, com base
nela, fizemos uma análise qualitativa. Para a análise quantitativa, fizemos o cálculo da
frequência das coalescências fonético-fonológicas e das coalescências gramaticais.
Ressalvamos que as coalescências fonético-fonológicas são construções que não implicam
mudança de função, são apenas palavras colididas, enquanto que, as coalescências
gramaticais formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens
envolvidos. Depois, analisamos o cruzamentos dos dados. Para essa análise, utilizamos o
pacote estatístico do programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE
et al. [1968] 2007). Salientamos que partimos da análise da frequência, por ser um dado
indicador do processo de gramaticalização para, assim, descrever as construções
coalescentes em seus contextos de uso.
1.6 Relevância acadêmica e social
Trabalhar com a fala de remanescentes quilombolas culmina na relevância histórica
e social que esse povo representa no país, posto que comungamos com o ponto de vista de
17
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Mattos e Silva (2004) de que os africanos e afro-descentes foram e são agentes principais
da difusão do português no território brasileiro, na sua face majoritária, a popular ou
vernácula.
Por esse motivo, cremos que trabalhos dessa natureza proporcionam um diálogo
com temáticas ainda pouco valorizadas e exploradas no meio acadêmico e social. Assim,
acreditamos que os frutos deste estudo contribuirão tanto para a compreensão dos
fenômenos linguísticos na perspectiva funcionalista e construcionista, quanto para as
questões relativas às diferenças numa visão social/histórica não discriminatória dos usos
linguísticos.
Além disso, a pesquisa pode trazer contribuições no tocante ao plano pedagógico,
visando à melhor orientação dos alunos na compreensão do funcionamento e na
conscientização docente e discente sobre a existência de outras variedades linguísticas,
assim como o acesso ao conhecimento do processo de mudança linguística.
1.7 Organização da Dissertação
A dissertação está organizada em cinco capítulos. O primeiro capítulo traz a
introdução, que apresenta uma visão panorâmica a cerca dos procedimentos e
desenvolvimento da pesquisa.
No segundo capítulo, expusemos o fundamento teórico em que esta pesquisa se
sustenta, ou seja, a Linguística Funcional Centrada no Uso, cuja abordagem une a
perspectiva funcionalista e cognitiva.
No capítulo três, caracterizamos e conceituamos a coalescência. Expusemos, nele,
os parâmetros e os processos de Lehmann ([1982] 1995), dentre os processos exibidos pelo
autor destacamos o processo de coalescência. Além disso, apresentamos a coalescência
segundo a história da Língua Portuguesa e estudos recentes sobre a gramaticalização de
alguns itens do português brasileiro que ao longo de seu desenvolvimento utilizaram o
processo de coalescência.
No quarto capítulo, partindo da frequência de usos das coalescências encontradas
no corpus, analisamos os aspectos formais e funcionais característicos de cada construção
coalescente. Realizada a análise dos agrupamentos das construções coalescentes,
apresentamos tendências de trajetórias de gramaticalização das construções coalescentes
em uso na fala dos remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN.
18
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Por fim, vem a conclusão como quinto capítulo, apresentando a síntese dos achados
da pesquisa, bem como sugestão de estudos futuros.
19
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
2 A GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES NA PERSPECTIVA DA
LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO
Este capítulo apresenta a fundamentação teórica em que esta pesquisa se insere, ou
seja, os pressupostos da Linguística Funcional Centrada no Uso. Nessa perspectiva,
apresentamos as concepções sobre gramaticalização, mostrando que ela não se dá de modo
aleatório, mas sim apresenta regularidade, pois os eventos de uso dirigem a formação e o
funcionamento do sistema linguístico interno do falante, cuja estrutura não se separa do
processamento mental que ocorre no uso que faz da língua. Assim, a regularidade do
sisitema se desenvolve a partir da repetição ou ritualização desses eventos. Além disso,
mostraremos que subjaz à gramaticalização a hipótese de unidirecionalidade, segundo o
qual os elementos envolvidos tendem a desenvolver, com o uso, valores mais subjetivos e
abstratos, e, no caso das construções, os itens tornam-se internamente menos
composicionais, formando uma unidade mais integral.
A Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), a qual é uma tradução do termo
usage-based model utilizado inicialmente por Langacker (1987) e aqui, no Brasil, para
designar essa tendência alguns autores como Tomassello (2005) e Martelotta (2008)
preferem o termo Linguística Cognitivo-Funcional. Embora haja variação quanto ao termo,
aclaramos que em nossa pesquisa adotamos o termo Linguística Funcional Centrada no
Uso (LFCU) devido à objetividade do termo, o qual (como os demais termos apresentados)
privilegia o uso da língua. Esses pesquisadores utilizam o termo para abalizar as análises
que refletem a junção das tradições das pesquisas funcionalistas que abrigam,
especialmente, o estudo da gramaticalização, praticadas por Givón (1995), Hopper (1987),
Heine et al. (1991), Traugott (1993), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007),
Bybee (2010), Furtado da Cunha (2003), Gonçalves et al. (2007), Martelotta (2011), entre
outros; e os estudos de representantes da Linguística Cognitiva que abrigam,
principalmente, a gramática das construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995;
2006), Croft (2001), Tomasello (2005) e Martelotta (2008).
De modo sintético, a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) é um tipo de
abordagem:
a) resultante dos estudos que analisam as línguas, observando a relação estreita entre a
estrutura e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação;
b) que, em sua análise, abrange tanto a observação de aspectos formais como dados
relativos ao contexto comunicativo, ou seja, os semânticos, pragmáticos e discursivos.
20
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Assim, há o interesse pela dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e a
dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva);
b.1 propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos
elementos linguísticos no contexto de uso.
b.2 propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos
elementos linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu
enunciado e sua preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte.
b.3 propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso
dos elementos linguísticos. Ex.: o fato de a informação já ter sido mencionada
anteriormente (dada) ou não (nova) no enunciado produzido pelo falante.
c) que, em sua análise, leva em conta aspectos relacionados a restrições cognitivas que
incluem a percepção de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na
memória.
d) que, em sua análise, leva em conta aspectos associados à capacidade de organização,
acesso, conexão, utilização e transmissão coerente dos dados da experiência.
Nessa perspectiva, a habilidade linguística do falante é vista como constituída das
regularidades no processamento mental da linguagem em situações de uso. É no contexto
interativo que os eventos de uso são cruciais para o desenvolvimento da estruturação do
sistema linguístico do falante, pois fornecem o input para os sistemas de outros falantes,
através, por exemplo, de reanálises, analogias e outros processos que implicam alterações e
extensões no emprego das expressões linguísticas. Os novos usos resultantes desses
processos, caso se tornem habituais ou rotineiros, podem transcender o contexto
comunicativo em que são empregados e incorporarem-se ao sistema. Resumindo, a partir
da repetição ou ritualização desses eventos, o sistema linguístico, por ser dinâmico e
emergente, desenvolve-se, adaptando certos contextos comunicativos a eventos de
comunicação específicos.
Então, essa abordagem teórica visa explicar a língua por meio do uso que se faz
dela. Isso significa atribuir ao falante, ao ouvinte, a seus papéis adquiridos
socioculturalmente e ao contexto situacional uma integração tamanha que a ausência de um
desses componentes pode comprometer todo o funcionamento linguístico. A linguagem é
vista, pois, como um instrumento de interação social, ou seja, é por meio das relações
sociais e pela necessidade comunicativa do ser humano que a linguagem aflora e se
desenvolve.
21
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Assim, essa perspectiva se preocupa em refletir a relação entre as estruturas
gramaticais das línguas e os diferentes contextos comunicativos nos quais essas estruturas
estão sendo utilizadas. Ultrapassa a mera preocupação em estudar apenas a forma ou
estrutura gramatical e passa a se preocupar com o uso dessas estruturas inseridas em
situações comunicativas reais, levando em conta os interlocutores, seus propósitos
comunicativos e o contexto em que ocorre a interação.
Assim, a abordagem centrada no uso busca, para seu objeto de estudo, dados reais
de fala ou escrita captados em verdadeiras situações sociocomunicativas para, desse modo,
explicar as funções que os enunciados e textos desempenham nas situações interativas
reais.
2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso
O termo gramática, atualmente, pode nos levar a diversas concepções, pois os
estudos linguísticos vêm expondo vários tipos de gramáticas (normativa, descritiva,
gerativista, funcionalista...) e trabalhar com uma delas significa se posicionar a favor de
uma dada concepção teórica. Por exemplo, o uso da gramática normativa remete a uma
concepção estruturalista, pois nessa concepção de gramática são prescritas as normas,
regras de uma língua, não admitindo, portanto, as variações linguísticas nem o uso real
cotidiano, ou seja, nesse modelo, todos os falantes devem usar a língua de forma
homogênea.
A abordagem centrada no uso se distingue dessa proposta no sentido de que adota
uma concepção de gramática que admite a diversidade linguística, a mudança linguística,
os sujeitos que fazem uso dela e o contexto em que estão inseridos. Tem-se com esse
modelo uma proximidade mais ampla do real funcionamento linguístico. Assim, a
gramática é constituída de regularidades da língua, levando em conta a situação
comunicativa como um todo, ou seja, o locutor, sua intenção comunicativa, o interlocutor,
e o contexto em que se dá a comunicação, a interação sociocultural.
Du Bois (1985, 1987) descreve a gramática como um sistema adaptativo em que
forças motivadoras dos fenômenos externos interagem com o sistema interno da língua,
confrontando, e harmonizando-se sistematicamente entre si. A Figura 1 representa essas
motivações em competição:
22
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Figura 1 – Motivações em competição
Fenômenos externos
Forças internas
Fonte: (DU BOIS, 1985, p. 361)
Sendo a gramática susceptível às pressões do uso, ela se resolve no equilíbrio entre
forças internas e forças externas ao sistema. Esse modelo dá conta do fenômeno da
gramaticalização, que reconhece a presença de construções relativamente livres no
discurso que, devido às necessidades comunicativas, passam por um processo de evolução
e se tornam construções relativamente fixas na gramática. Segundo Du Bois (1993, p.11), a
gramática molda o discurso e o discurso molda a gramática.
Nesse sentido, Langacker (1987) afirma que a gramática de uma língua constitui
um conjunto de princípios dinâmicos que se associam a rotinas cognitivas que são
moldadas, mantidas e modificadas pelo uso. Desse modo, não há uma gramática
inteiramente pronta.
Essa concepção também é vista em Hopper (1987), quando defende que a
gramática das línguas é compreendida como constituída de partes cujo estatuto vai sendo
constantemente negociado durante o processo da fala, não podendo ser separado das
estratégias de construção do discurso. Desse modo, a língua é entendida como atividade
em tempo real, o que por sua vez o leva a crer que não existe gramática como produto
acabado, mas sim numa contínua gramaticalização.
23
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
24
Para Givón (1995), é impossível compreender e descrever a língua a partir de um
sistema autônomo. Segundo o autor, a gramática só pode ser entendida se relacionada à
cognição e comunicação, ao processamento mental, à interação social e cultural, à
mudança e variação, à aquisição e evolução.
Assim, o autor defende a não autonomia do sistema linguístico e que a gramática
faz parte de um processo emergente, que surge de necessidades comunicativas. Em outras
palavras, a gramática deve ser entendida como instruções de processamento mental do
falante para o ouvinte, o conjunto de estratégias empregadas para se produzir uma
comunicação coerente no contexto discursivo.
No mesmo texto, Givón acrescenta que a contribuição mais relevante da gramática
está no fato de o processamento da informação ocorrer por meio das funções básicas da
linguagem humana, que residem na representação e na comunicação do conhecimento. O
sistema de representação cognitivo, nesse caso, envolve três níveis: o nível léxicoconceptual (mapa cognitivo de nossas experiências físicas, sócio-culturais e mentais – em
que atua a memória semântica permanente); o nível da informação proposicional
(conceitos, palavras, orações – em que atua a memória episódica); e o discurso
multiproposicional (combinações de orações num discurso coerente – em que atua a
memória episódica). Já o sistema de codificação comunicativo envolve o código sensóriomotor periférico (compete à fonética, à fonologia e à neurologia) e o código gramatical que
desempenha simultaneamente funções dos níveis oracionais e discursivos.
A concepção givoniana de gramática se apoia em princípios como: i) a linguagem é
uma atividade sociocultural, ou seja, é o uso da língua na comunicação; portanto, a
estrutura é maleável, não rígida, modelada por pressões externas (do contexto
extralinguístico – sociocultural, situacional e discursivo) e por pressões internas (do
contexto, sistema propriamente linguístico); ii) é não-arbitrária, motivada, icônica e serve a
uma função cognitiva (processamento mental) ou comunicativa (interação) – há uma
relação de dupla via, forma e função; iii) as categorias não são discretas, há um continuum
que sugere uma perspectiva escalar; iv) a mudança e a variação estão sempre presentes,
portanto, as gramáticas são emergentes (GIVÓN, 1995).
Logo, percebemos que Givón (1995) reconhece a relação entre a sintaxe e as
propriedades
semânticas
e
discursivo-pragmáticas,
inclusive
concorda
com
o
posicionamento, defendido por Du Bois (1987), de que o discurso molda a gramática e de
que a gramática molda o discurso.
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Traugott (1995; 1997) também defende que, além de a gramática considerar os
aspectos fonológicos, morfossintáticos e semânticos, há que se levar em conta também as
inferências que surgem fora da forma linguística (discursivo-pragmáticas). Sobre a noção
de gramaticalização, enfatiza principalmente os aspectos semântico-pragmáticos da
mudança. A autora analisa o componente pragmático nos estágios iniciais da
gramaticalização, que pode ser fortalecido no momento em que há acréscimo do
envolvimento e da expressividade subjetiva do falante no tocante a atitudes e crenças.
Martelotta et al. (1994) defendem a gramática como um sistema construído a partir
das regularidades resultantes das pressões de uso que estão relacionadas a interesses e
necessidades discursivas/pragmáticas. Para eles, a concepção de gramática se associa a
uma estrutura que pode ser definida como maleável e emergente, reconhecem também a
validade da gramaticalização em seus estudos, ou seja, os processos especiais de mudança
linguística.
Embora cada autor apresente sua concepção a respeito da gramática, podemos
encontrar pontos comuns entre os conceitos de gramática apresentados. Nessa perspectiva,
é notório o consenso entre esses autores sobre a não autonomia da sintaxe e sobre a defesa
de uma gramática maleável e emergente.
Por fim, acrescentamos que atrelada/sobreposta a essas concepções de gramática,
apresentadas pelos teóricos, estão inclusos os pontos de vista e definições sobre a
gramaticalização, pauta de discussão a seguir.
2.2 Gramaticalização
A gramaticalização se refere a processos especiais de mudanças linguísticas, o
processo de gramaticalização se instaura no momento em que uma unidade linguística
começa a adquirir propriedades de formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical,
tem sua gramaticalidade alterada. Superficialmente a gramaticalização parece ser um
processo recente, porém, levando em conta sua trajetória, notamos que nem o interesse por
este processo nem sua ocorrência são recentes.
Assim sendo, os primeiros estudos sobre gramaticalização datam do século X na
China e, posteriormente, passam a se desenvolver no século XVII, com Condillac e
Rosseau, na França e Tooke, na Inglaterra. No século seguinte, é a vez de Bopp, Schlegel,
Humboldt, Gabelentz, na Alemanha, e Whitney nos Estados Unidos. Porém, é somente no
25
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
século XX (especificamente em 1912) que a gramaticalização é nomeada como tal, sendo
Meillet (na França) considerado o fundador dos estudos modernos de gramaticalização,
inclusive, o primeiro a utilizar o termo gramaticalização.
Contudo, antes de adentrarmos na complexidade da definição acerca da
gramaticalização, salientamos que, assim como acontece com a concepção de gramática
anteriormente descrita, a gramaticalização também não apresenta uma definição uniforme
entre os estudiosos desse assunto, por isso muitas são as discussões em torno desse termo.
Para uns, a gramaticalização é vista como processo, outros a veem como
paradigma, e há aqueles que a concebem como fenômeno diacrônico ou sincrônico.
Segundo Gonçalves et al. (2007, p. 16), a gramaticalização é um paradigma quando é
observada num estudo da língua que se preocupe em focalizar a maneira como formas
gramaticais e construções surgem e como são usadas. É considerada processo quando há a
preocupação com a identificação e análise de itens que se tornam mais gramaticais.
Conforme os autores, a gramaticalização pode ser estudada sob duas perspectivas: a)
diacrônica, quando a preocupação do estudo se voltar para a explicação de como as formas
gramaticais surgem e desenvolvem-se na língua; b) ou sincrônica, quando a preocupação
se voltar para a identificação de graus de gramaticalidade que uma forma linguística
desenvolve conforme os deslizamentos funcionais a ela conferidos pelos padrões fluidos de
uso da língua num dado recorte de tempo.
Embora haja controvérsias em torno do caráter metodológico do estudo da
gramaticalização como, por exemplo, a relação diacronia/sincronia que, numa visão mais
tradicional, representam perspectivas divergentes, Traugott & Heine (1991) rompem esse
paradigma, quando afirmam que o termo gramaticalização remete a um processo
linguístico tanto diacrônico quanto sincrônico, ainda que, numa época remota, tenha sido
visto apenas por uma perspectiva diacrônica.
Assim sendo, esclarecemos que o presente trabalho segue por um enfoque
sincrônico (recorte de um dado momento da língua), pois tomamos como corpus de análise
o livro: A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, que contém dados
coletados da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, no ano de 2001.
Conforme já afirmamos, muitas são as reflexões em torno da definição sobre a
gramaticalização, por isso expomos, a seguir, algumas definições sobre esse termo.
Começamos com a definição de Meillet (1912), fundador dos estudos modernos da
gramaticalização. Para ele, a gramaticalização é definida como “(...) passagem de uma
26
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
palavra autônoma à função de elemento gramatical” (MEILLET, 1912, p. 131). Nesse
sentido, o conceito de gramaticalização, proposto por Meillet pode ser simplificado pela
trajetória: [item lexical] > [item gramatical] (item sintático > item morfológico).
O autor trabalha inicialmente com a gramaticalização numa perspectiva histórica,
visando compreender a origem e as mudanças típicas envolvendo morfemas gramaticais, o
que complementava o campo da etimologia e da evolução histórica das palavras. Porém,
através da distinção de três classes de palavras: as principais, as acessórias e as
gramaticais, as quais remetem gradualidade, Meilet passa a adquirir uma percepção de
gramaticalização como um processo sincrônico.
Kurilowicz (1964) amplia o conceito de gramaticalização proposto por Meillet,
corroborando que a gramaticalização, além de considerar a mudança de um item lexical a
um item gramatical, considera também itens/construções que partem do menos para o mais
gramatical.
Já para Heine et al. (1991, p. 21), “Gramaticalização é um processo que pode ser
encontrado e pode envolver qualquer tipo de função gramatical; ocorre quando uma
unidade gramatical assume uma função mais gramatical ainda”.
Entendamos, então, como compreendemos as noções item lexical e item gramatical.
O primeiro refere-se a palavras de uma categoria lexical plena como: nomes, sentimentos,
ações, qualidades... (substantivos, adjetivos e verbos), cujas propriedades fazem referência
a dados do universo bio-psíquico-social; já o item gramatical são as palavras que
apresentam funções tradicionalmente definidas como gramaticais, funcionais ou
interacionais (preposições, advérbios, auxiliares...), cujas propriedades cuidam de
organizar, no discurso, os elementos de conteúdo, por ligarem palavras, orações e partes do
texto, marcando estratégias interativas na codificação de noções como tempo, aspecto,
modo, modalidade etc.
Uma vez esclarecidas essas noções, passemos à definição de gramaticalização
segundo Traugott (2001). Para ela, gramaticalização pode ser definida como a mudança
pela qual itens e construções lexicais vêm em certos contextos linguísticos servir a funções
gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções. Ainda conforme a autora,
as mudanças não têm que ocorrer. Elas também não têm que chegar ao término; em outras
palavras, elas não têm que fazer todo o percurso ao longo do aclive [=cadeia], ou mesmo
prosseguir, uma vez que já tenha começado.
27
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Martelotta (2011) amplia a definição de Traugott (2001), afirmando que
gramaticalização é um processo de mudança linguística unidirecional em que itens lexicais
e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais
e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Como
podemos ver, a trajetória de gramaticalização do item logo3 que Martelotta (2011, p.97-8)
ilustra nas amostras apresentadas em (2):
(2)
a. A primeira natureza da poonba he que en logo de cantar geme. (Livro das Aves, 1965)
b. A Serra estava totalmente deserta, e os pingos de chuva que começavam a cair, logo se se transformaram
em um verdadeiro temporal. (Corpus D&G)
c. ... e sentei-me na cama afim de vesti-la, mas acontece que havia um ferro de
passar roupa usado a poucos instantes e logo quente ainda, sente-me sobre ele e foi uma dor enorme. (Corpus
D&G)
d. Falar do quarto! Logo do meu quarto! bem o meu quarto é uma verdadeira bagunça. É roupa pra lá e roupa
pra cá. Você sabe como é quarto de menino. (Corpus D&G)
O uso do item logo em (2a), um uso do português antigo, demonstra a origem
espacial dos usos atuais presente na locução em lugar de, com origem latina loco, locu(abl.), que significa no lugar, no momento, logo (MACHADO, 1997). A amostra (2b)
apresenta o valor temporal do item logo e a (2c) demonstra o valor textual como conjunção
conclusiva. Por último, a amostra (2d) ilustra um uso enfático de logo, indicando a atitude
do falante em relação ao que fala. Dessa maneira, temos a trajetória advérbio > conjunção,
que segue, como veremos adiante, um processo metafórico ESPAÇO > (TEMPO) >
TEXTO (HEINE et al.1991), caracterizando uma tendência translinguística que leva
elementos de valor espacial a assumirem funções típicas das conjunções.
Baseado nas funções da linguagem (cf. HALLIDAY, 1985), Martelotta (2011)
acrescenta também que o processo de gramaticalização ocorre no momento em que um
elemento deixa de atuar no nível representacional, quando os itens ou expressões que
fazem referência a dados do universo biossocial (objetos, entidades, sentimentos, ações e
qualidades), para atuar no nível interpessoal, que abrange as expressões de valor
processual, como ocorre no uso do item logo em (2d), isto é, expressões “cujas funções se
relacionam aos processos através dos quais o falante elabora seu enunciado para um
determinado ouvinte em um contexto específico de uso. (MARTELOTTA, 2011, p.92)
3
Mais adiante, ilustramos, bem como analisamos a trajetória de construções, nosso objeto de estudo.
28
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Bybee (2010) também apresenta um relevante conceito sobre gramaticalização,
segundo a autora funções pragmático-discursivas são entendidas como integrantes da
trajetória de gramatialização, como pontos mais avançados de uma escala. Desse modo, as
mudanças linguísticas decorrentes de monitoramento textual e interacional são vistas como
fenômenos de gramaticalização, situadas em ponto mais avançado de uma dada trajetória.
Salientamos que, embora muitos concordem que a gramaticalização se caracteriza
como processo, autores como Campbell (2001), Joseph (2001), Newmeyer (1992) criticam
fortemente a concepção de gramaticalização concebida como processo. É seguindo por este
viés que Newmeyer (1992) afirma que a gramaticalização, para ser tratada como processo,
necessitaria de um conjunto próprio de leis, o que, de fato, não é perceptível em
gramaticalização. Assim, sugere que ao invés de processo a gramaticalização deveria ser
caracterizada como um “fenômeno a ser explicado”.
Traugott (2001), empenhada em definir gramaticalização, abstém-se da palavra
processo, embora defenda que o termo processo não deva ser abandonado tão facilmente e
explica que o termo tem sido mal compreendido, pois a linguagem é uma capacidade
humana e social, e não há uma maneira única pela qual se possa guiar.
Comungamos com os estudiosos da abordagem centrada no uso que consideram a
gramaticalização como processo, pois partimos do pressuposto de que o termo processo
possibilita levar em conta o dinamismo do sistema linguístico, seu caráter evolutivo e as
regularidades constatadas nas mudanças que colocam a língua e a gramática em estágios de
algum modo diferenciado. Assim, entendemos que, no processo de gramaticalização, os
padrões gramaticais já instituídos servem de modelo para os novos usos comunicativos e, à
medida que esses usos passam a circular com constância no meio social, tornam-se fortes
candidatos a se gramaticalizarem.
Aliado à concepção da gramaticalização como processo, está a noção de
unidirecionalidade (continuum na mudança), a qual consideramos como hipótese. Isso
porque se consideramos a unidirecinalidade como um princípio da gramaticalização,
poderiam surgir deduções de que defendemos a gramaticalização como uma teoria em si.
Assim, na próxima seção, exploramos, de modo mais amplo, a relação entre
gramaticalização e unidirecionalidade.
29
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade
A unidirecionalidade tem sido associada à gramaticalização há muito tempo, tanto é
que tem sido usada como teste para validar se determinadas mudanças são ou não um caso
de gramaticalização. No entanto, considerar a unidirecionalidade como princípio da
gramaticalização parece querer rotulá-la como teoria, questão essa, conforme discutido
anteriormente, não é consensual. Sendo assim, é mais coerente considerar a
unidirecionalidade como uma hipótese associada ao processo de gramaticalização.
Essa posição de considerar o princípio de unidirecionalidade como hipótese se dá
também pelo fato de a unidirecionalidade ser alvo de críticas quanto a sua eficiência
metodológica, o que gera contradições e falta de consenso entre os estudiosos que se
dedicam à gramaticalização.
Desse modo, mencionamos alguns pontos de vista sobre a unidirecionalidade
propostos por pesquisadores como Hopper & Traugott (1993), por exemplo, que veem a
unidirecionalidade como uma hipótese passível de verificação empírica. Já Heine et al.
(1991) defendem a unidirecionalidade como propriedade definidora do processo. Ziegeler
(2004), por sua vez, propõe que a unidirecionalidade é um fenômeno colateral da
gramaticalidade, uma entidade manifestada independente do viés analítico.
Além disso, alguns autores utilizam o rótulo continuum (unidirecionalidade) para se
referir às transformações entre classes de palavras; outros usam continuum para mostrar os
deslizamentos empreendidos por categorias semânticas.
Embora haja diversas discussões em meio à eficácia da unidirecionalidade, o
presente trabalho faz uso dessa hipótese devido a dois motivos: primeiro por ser uma
hipótese amplamente utilizada, de modo empírico em diversas línguas e segundo, porque o
número de contra exemplos é consideravelmente mínimo e alguns deles conforme
menciona Figueiredo-Gomes (2008), são casos de estabilidade.
Considerando a relação entre unidirecionalidade e gramaticalização, levamos em
conta que a gramaticalização remete a um processo tanto diacrônico como sincrônico.
Traugott & Heine (1991) observam que, embora num determinado momento se encontre
uma estrutura substituindo completamente outra, as duas formas coexistiram durante um
momento no tempo, ou seja, a forma nova e a forma velha passaram a entrar num processo
de variação. Como observa Neves (1997, p. 118), “essa variação encontrada nada mais é
do que o reflexo do caráter gradual da mudança linguística”. Enfatizando o aspecto
30
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
gradativo da mudança linguística, Heine & Heh (1984, p. 15) corroboram que “a
gramaticalização é um continuum evolutivo e que qualquer tentativa de segmentação de
unidades discretas é arbitrária”.
Desse modo, podemos compreender a unidirecionalidade como uma trajetória que
acaba por evidenciar o percurso pelo qual um elemento lexical passa para a condição de
item gramatical ou um elemento gramatical torna-se um elemento ainda mais gramatical.
Em outras palavras, as mudanças que se caracterizam como gramaticalização se
implementam sempre de maneira gradual, numa escala unidirecional e contínua de
aumento de gramaticalização/abstratização.
O próprio Meillet (1912), considerado o fundador dos estudos modernos de
gramaticalização, ao propor a existência de três classes de palavras: as palavras principais,
as palavras acessórias e as palavras gramaticais, indica que há entre elas uma transição
gradual. Ou seja, essa relação gradual remete a uma cadeia evolutiva pela qual certos itens
e construções linguísticas passam ao longo do tempo. Portanto, ao reconhecer o caráter
gradativo da língua, Meillet parece reconhecer também o caráter gradual da
unidirecionalidade.
Seguindo a hipótese da unidirecionalidade, percebemos que, ao longo do
desenvolvimento e exploração desse raciocínio por parte de diversos pesquisadores que
investigam o processo de gramaticalização, tem-se notado o surgimento de diversas
trajetórias contínuas. Essa diversidade pode ser explicada pelo fato de que os
pesquisadores, por um interesse próprio de estudar um dado objeto, findam por formular
trajetos que melhor explicam seus objetos. Como exemplo disso, podemos mencionar
trajetórias como: Local > temporal > lógico > ilocutivo > discursivo (ABRAHAM, 1991);
Proposicional/ideacional > textual > interpessoal/expressivo (TRAUGOTT; KÖNIG,
1991); Pessoa > objeto > espaço > tempo > qualidade (HEINE et al., 1991).
Além dessas trajetórias, há outras que lidam com objetos mais específicos.
Contudo, o surgimento de tantas trajetórias não implica fragilidade a noção da
unidirecionalidade. Ao contrário, desde que apresentem regularidades capazes de explicar
a passagem de um dado elemento lexical à categoria gramatical ou um elemento gramatical
a uma elevação de mais gramatical ainda, isso apenas comprova que a unidirecionalidade
vem sendo constatada em diversos fatos empíricos analisados e explicados sob o prisma
dessa hipótese.
31
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Nessa perspectiva, Heine & Reh (1984) mostram que os três níveis da estrutura
afetados pela gramaticalização – o funcional, o morfossintático e o fonético – em geral se
arranjam, na gramaticalização, nessa mesma ordem: os processos funcionais (como
dessemantização,
expansão, simplificação)
precedem
os
morfossintáticos
(como
permutação, composição, cliticização, afixação), que precedem os fonéticos (como
adaptação, fusão, perda).
Dessa maneira, caracterizam a gramaticalização como, inicialmente, havendo uma
perda na complexidade semântica, na significação funcional, no valor expressivo; perda
pragmática com ganho na significação sintática; diminuição de membros num mesmo
paradigma sintático; diminuição na variabilidade sintática, com maior fixidez na ordem;
obrigatoriedade de uso em determinados contextos, com exceção de uso em outros;
coalescência semântica, morfossintática e fonética com outra(s) unidade(s), (é o caso do
nosso objeto de investigação) e a perda de substância fonética.
Já Heine et al. (1991) enumeram como características gerais da unidirecionalidade:
i) a precedência do desvio funcional (conceptual ou semântico), sobre o formal
(morfossintático e fonológico); ii) a descategorização de categorias lexicais prototípicas;
iii) a possibilidade de recategorização, com restabelecimento da iconicidade entre forma e
significado; iv) a perda de autonomia de um elemento (uma palavra autônoma passa a
clítica, um clítico passa a afixo); e v) a erosão ou enfraquecimento formal.
Embora a unidirecionalidade seja representada por meio de escalas para melhor
refletir os estágios de mudanças linguísticas via gramaticalização, lembramos que a
mudança pode ser esgotada seguindo todo um percurso, mas também pode ser
interrompida em um dado ponto do seu trajeto, tendo em conta que as mudanças não têm
que ocorrer, nem têm que chegar ao término (TRAUGOTT, 2001). Pelo fato de a
linguagem ser uma capacidade humana e social, não existe uma maneira exata pela qual se
pode predizer precisamente como se darão as mudanças ao longo do tempo.
Portanto, partindo do pressuposto de que a unidirecionalidade indica o trajeto pelo
qual a mudança linguística percorre, seguindo o rastro contínuo da evolução é possível
entender que toda gramaticalização, necessariamente, pressupõe estágios de mudanças,
mas nem toda mudança pode ser identificada como gramaticalização. Essa máxima pode
ser exemplificada com a diferença encontrada no nosso corpus entre coalescência fonéticofonológica e coalescência gramatical. Assim, as formas pras, pros e quisso, são exemplos
de coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens
32
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma
unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e
sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e
não + é = né? marcador discursivo).
Ressalvamos que a unidirecionalidade por si mesma não dá conta de explicar o
processo de gramaticalização, por isso, atrelada a hipótese de unidirecionalidade, seguem
os mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização dentre os quais
destacamos: a metáfora e a metonímia; e a analogia e a reanálise – tema sobre o que versa
a próxima seção.
2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização
Os mecanismos motivadores da gramaticalização nos auxiliam a compreender de
forma mais ampla as mudanças que ocorrem no uso linguístico, entre os diversos
mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização como, por exemplo,
a reanálise, a analogia, a erosão fonética, a metáfora, a metonímia, dentre outros.
Destacamos especificamente para essa discussão, quatro desses mecanismos:
metáfora e analogia; metonímia e reanálise.
Heine (1994) corrobora que, para se chegar à gênese e ao desenvolvimento de
categorias gramaticais, é necessário considerar a análise de manipulação cognitiva e
pragmática, de modo que a transferência conceptual e os contextos que favorecem uma
reinterpretação devem ser observados. O autor destaca que o processo de mudanças
gramaticais envolve dois mecanismos: a) a transferência conceptual (metáfora), que
aproxima domínios cognitivos diferentes; b) a motivação pragmática, que envolve a
reinterpretação induzida pelo contexto (metonímia).
Partindo para uma compreensão mais vasta sobre a metáfora na perspectiva da
gramaticalização, a presente pesquisa se apoia no modelo cognitivo do realismo
experiencialista, defendido por Lakoff (1987) e Sweetser (1990).
O primeiro acredita que os sistemas de conceitos da língua surgem a partir do
contato físico-social dos falantes com o mundo real. Assim, para traduzir esse mundo, o
falante fez e faz uso de metáforas fundantes.
O falante passa a significar o mundo a partir de suas experiências no mundo do qual
faz parte. Johnson (1987) relata que o pensamento trabalha com conceitos apreendidos por
33
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
meio do contato com o mundo concreto e, através dessas experiências, o indivíduo passa a
construir uma realidade mais abstrata que se revela como o mundo das idéias. Portanto é a
metáfora que permite que as pessoas compreendam o mundo das ideias a partir do mundo
concreto.
Daí a noção de que as línguas possuem um sistema cognitivo real experiencialista.
Podemos compreender, então, que a metáfora em gramaticalização envolve a abstratização
de significados, de forma que os domínios lexicais e menos gramaticais sofrem uma
extensão metafórica, elevando-se a domínios gramaticais ou mais gramaticais, ou seja, há
uma transferência do domínio do mundo real para domínios do mundo mais abstrato,
seguindo, portanto, o percurso concreto > abstrato.
Segundo Sweetser (1990), a transferência de domínios mediada pela metáfora
ocorre de maneira estável, regular e motivada. Segue uma trajetória unidirecional por meio
das seguintes etapas: a fase concreta (realidade físico-social), depois a fase abstrata
(experiência) e, por fim, a fase discursiva. Assim, o significado mais abstrato deriva-se
sempre de um significado mais concreto.
É por meio da transferência metafórica que os conceitos ancorados na concretude
passam a conceitos mais abstratos. Então os conceitos que estão mais próximos da
experiência humana são utilizados para expressar outros que são mais abstratos, de modo
que a experiência não-fisica é entendida em termos da experiência física.
Dessa maneira, as metáforas não formam novas expressões, porém predicações
preexistentes são introduzidas a novos contextos ou aplicadas a novas situações por meio
da extensão de significados, propiciando a gramaticalização. Nesse sentido, o
desenvolvimento das estruturas gramaticais pode ser descrito em termos de certas
categorias cognitivas, partindo sempre, unidirecionalmente, do elemento mais concreto
rumo a um mais abstrato. Nessa perspectiva, vejamos a escala proposta por Heine et al.
(1991):
Pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade
Nessa escala, cada categoria refere-se a uma variedade de conceitos, ou seja,
transformações pelas quais uma dada forma passou e tais processos de mudanças compõem
um domínio de conceptualização importante da experiência humana.
Associado ao processo de metáfora está um mecanismo conhecido como analogia.
A analogia pode ser definida como um mecanismo que atrai formas preexistentes por
34
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
outras construções já existentes no sistema, envolvendo assim, inovações ao longo do eixo
paradigmático, ou seja, a analogia é um mecanismo que não causa exatamente a mudança
linguística, mas a expansão da língua.
Sobre a analogia Bybee (2010, p. 57) a define como: “the process by which a
speaker comes to use a novel item in a construction”. A analogia atua a partir da
comparação de um item novo com membros mais antigos, já armazenados no sistema
mental do falante. De modo que, os itens mais frequentes ou as frases mais
convecionalizadas servem como base para a formação analógica.
Já Kiparsky (1968) na tentativa de redefinir a analogia na mudança fonológica
como extensão de regra, conseguiu dar conta formalmente do fato de que a analogia não se
trata de uma mudança linguística, mas sim, trata-se especificamente de uma generalização
ou otimização de uma regra, de um domínio relativamente limitado para um domínio mais
amplo.
Desse modo, a analogia visa, por meio de regras existentes, igualar itens similares a
essas regras. Trata-se, portanto, da extensão de um uso mais geral para substituir usos
menos gerais. A analogia em sua atuação é representada por uma fórmula do tipo: A : B ::
C : D, em que D equivale a forma surgida por analogia.
Assim sendo, a analogia pode ser considerada sob duas dimensões, segundo Hopper
& Traugott (1993): (i) da generalização dos tipos de estruturas linguísticas, e (ii) da
generalização por meio do padrão, que, por sua vez, é baseada na frequência com que as
estruturas em questão podem ocorrer no tempo.
Expostos os mecanismos de metáfora e analogia, destacamos também no processo
de gramaticalização, numa discussão mais profunda, os mecanismos de metonímia e de
reanálise.
Conforme Traugott e König (1991), a metonímia refere-se à especificação de um
significado em termos de outro que se apresenta no contexto, ou seja, representa uma
transferência semântica. Para esses autores, a metonímia está intrinsecamente ligada a um
mecanismo denominado de inferência por pressão de informatividade, o qual considera que
um item linguístico passa a assumir um valor novo, pressuposto do original, graças à
convencionalização de implicaturas conversacionais por meio de pressões do contexto de
uso. Assim, quando uma implicação naturalmente surge como forma linguística, pode ser
tomada como parte do significado desta, podendo até mesmo chegar a substituí-la.
35
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Para Lakoff & Johnson (1980), a metonímia possui uma função referencial a qual
permite usar uma forma em substituição da outra.
Assim como a metáfora se associa à analogia, o mesmo acontece entre a metonímia
e a renálise, porém, ao contrário da analogia, que representa uma expansão de mudança
linguística e, portanto, não causa propriamente a mudança na língua, a reanálise é capaz de
criar novas estruturas gramaticais.
Langacker (1977, p. 58) define a reanálise como “mudança na estrutura de uma
expressão ou classe de expressões que não envolve qualquer modificação imediata ou
intrínseca em sua manifestação de superfície”. Em outras palavras, a reanálise pode ser
compreendida como reestruturação de itens ou construções, que, por sua vez, resulta em
uma reinterpretação das relações entre eles. O mecanismo de reanálise envolve a
reorganização e mudança nesses itens ou construções situados no eixo sintagmático, porém
essas mudanças não ocorrem necessariamente de forma imediata na superfície da
construção reanalisada.
A reanálise, portanto, compreende fatos linguísticos em que os falantes mudam a
construção de determinadas formas de sua língua, por meio da abdução, a qual tem a
propriedade de apagar os limites entre certas formas, estabelecendo, assim, novos “cortes”.
Um dos principais tipos de reanálise presentes na gramaticalização é a eliminação das
fronteiras entre duas ou mais formas morfológicas no processo de desenvolvimento de
novas categorias gramaticais.
Por isso, embora a reanálise não altere imediatamente a unidade sobre a qual se está
operando, certamente apresentará consequências futuras mesmo no eixo sintagmático,
visto que uma nova categoria está prestes a surgir.
Para finalizar o capítulo, traçamos um paralelo entre os mecanismos abordados;
primeiramente entre metáfora e metonímia e, em seguida, entre analogia e reanálise, visto
que esses mecanismos têm sido válidos, no tocante a compreensão das mudanças
linguísticas em geral, especialmente nas mudanças morfossintáticas.
Assim, sobre a metáfora e a metonímia, Gonçalves et al. (2007) comentam que as
inferências metafóricas e metonímicas podem ser percebidas como processos
complementares. A respeito desses dois mecanismos, Martelotta et al. (1996, p. 54)
expõem que:
A metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo
qual conceitos que estão próximos da experiência humana são utilizados para
expressar aquilo que é mais abstrato e, consequentemente, mais difícil de ser
36
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança ou mudanças por
contiguidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático.
Entretanto, existem conflitos entre os teóricos no tocante ao modo como veem os
mecanismos de metáfora e metonímia em relação ao processo de gramaticalização, pois há
aqueles que defendem tanto a transferência metafórica quanto a transferência metonímica
como atuantes do processo de gramaticalização, enquanto outros teóricos aceitam um
mecanismo e excluem o outro. Apesar dos diferentes posicionamentos, todos concordam
num ponto em relação aos resultados da atuação desses mecanismos: a previsão de um
percurso de abstração crescente.
Quanto ao paralelo entre analogia e reanálise, Hopper e Traugott (1993) afirmam
que a reanálise modifica as propriedades gramaticais – morfológicas e sintáticas – e as
propriedades semânticas, que se referem às mudanças na reinterpretação, na classificação
sintática e no significado e, portanto, implica mudança de regra; embora o efeito da regra
estenda-se no próprio sistema linguístico ou na comunidade linguística em que o dado uso
linguístico se realiza. Contudo, taxam a reanálise como o mecanismo mais importante para
a gramaticalização, posto que somente ela pode criar novas estruturas gramaticais.
Já Figueiredo-Gomes (2008) defende uma postura complementar entre os dois
mecanismos. Essa complementaridade ocorre no processo de gramaticalização, pelo fato
de a analogia provocar a mudança por reanálise ou, em muitos casos, pelo fato de a
analogia ser a primeira evidência de que os falantes de uma língua detectam que a
mudança ocorreu.
Considerando o que a reanálise representa para o processo de gramaticalização,
acrescentamos que, embora a reanálise pareça ter uma relação intrinsecamente dependente
com a gramaticalização, temos que levar em conta a advertência realizada por Heine et al.
(1991), quando afirmam que há motivos para manter a reanálise e a gramaticalização
estritamente separadas e duas evidências podem justificar tais alegações: a) a
gramaticalização é essencialmente um processo unidirecional, a reanálise não o é; b) a
gramaticalização não precisa de ser acompanha pela reanálise.
Mesmo não havendo uma dependência total entre a gramaticalização e os
mecanismos abordados, tanto a reanálise quanto a analogia são relevantes abordagens no
tocante a uma compreensão mais ampla sobre certos casos de gramaticalização. A
reanálise implica a reorganização linear, sintagmática, local e uma mudança de regra, que
não é diretamente observável. Por outro lado, a analogia essencialmente implica a
37
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
organização paradigmática, mudanças nas colocações de superfície e nos padrões de uso.
Logo, a analogia faz as mudanças inobserváveis da reanálise observável.
Em suma, os mecanismos metonímicos e metafóricos findam por se completarem.
Enquanto o primeiro resulta da contiguidade de significações, devido à proximidade de
formas linguísticas, havendo, por isso, uma associação entre processo cognitivo de
metonímia e o mecanismo de reanálise, o segundo possibilita a transferência de um
domínio a outro, ocorrendo também uma associação entre o processo cognitivo de
metáfora e o mecanismo da analogia.
Sintetizando, podemos afirmar que a abordagem centrada no uso considera que, na
gramaticalização, o elemento ou expressão que originalmente apresenta sentido
representacional, fazendo referência ao nosso mundo biossocial, passa a ser utilizado para
expressar noções gramaticais e veicular estratégias comunicativas e atitudes subjetivas dos
usuários. Assim, na mudança por gramaticalização, os elementos envolvidos tendem a se
tornar mais idiomáticos, perdendo o valor literal e, em termos morfossintáticos, tornandose mais fundidos entre si, como acontece com as construções.
Hopper e Traugott (1993) enfatizam a especificidade dos contextos discursivos que
propiciam a gramaticalização e afirmam que a passagem de [lexical] > [gramatical] não é
direta. Esse processo se dá de modo gradual, em que os elementos vão mudando de
sentido, perdendo características morfossintáticas, na medida em que seu uso vai sendo
estendido para novos contextos. Do ponto de vista semântico e discursivo-pragmático,
podemos compreender que essa tendência de gramaticalização parte de valores mais
concretos para mais abstratos, ocorrendo uma mudança em direção a uma subjetivação
(com o aumento da expressividade consequente da perspectiva do emissor) e/ou a uma
intersubjetivação (em função de essa expressividade estar voltada para as expectativas do
receptor).
2.3 Construção gramatical numa perspectica centrada no uso
A gramática das construções é uma linha de investigação teórica em franca
ascensão, no sentido de que diversos estudiosos têm se debruçado sobre ela. Segundo esta
proposta, a unidade preliminar da gramática é a construção gramatical.
Conforme Goldberg (1995, p. 1), as sentenças básicas da língua são exemplos de
construções – “correspondências de forma-significado”, que passam a funcionar, nessa
38
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
teoria, como unidades básicas e centrais da língua, ou, nos termos de Trousdale (2008, p.
6), como unidades simbólicas convencionais, visto que operam em diferentes níveis da
gramática. Assim, a construção pode ser caracterizada por qualquer elemento formal
diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma
estrutura informacional. Logo, a noção de construção cobre desde morfemas simples,
palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado
composicional, até padrões sintáticos abstratos.
Traugott (2008, p. 5) e Goldberg e Jackendoff (2004, p. 532-3) caracterizam a
Gramática das Construções como uma abordagem sincrônica em que:
a) forma e sentido são pareados como iguais;
b) a gramática é concebida de forma holística, ou seja, nenhum nível é central;
c) a gramática é baseada no uso, isto é, está baseada nos falantes e nas expressões;
d) construções individuais são independentes, mas relacionadas em um sistema
hierárquico com vários níveis de esquematicidade que podem interseccionar;
e) existe um cline de fenômenos gramaticais, desde o totalmente geral ao
totalmente idiossincrático.
Estas características são corroboradas por Croft (2001, p.18), para quem a
construção consiste em um pareamento de forma e sentido, cujo significado não se
restringe à soma dos sentidos dos membros da construção. Nesse sentido, a forma
compreende as propriedades sintáticas, morfológicas e fonológicas; e na dimensão do
sentido, situam-se as propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcionais, numa
correspondência simbólica interna à construção.
Croft (2001, p.18) propõe um modelo de estrutura simbólica para uma construção,
como podemos visualizar no Esquema 1:
39
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção
_____________________________________________________________________
Propriedades sintáticas
Propriedades morfológicas
FORMA
Propriedades fonológicas

←
ELO DE CORRESPONDÊNCIA
SIMBÓLICA
Propriedades semânticas
Propriedades pragmáticas
SENTIDO
Propriedades discursivo-funcionais
_____________________________________________________________________
Fonte: (CROFT, 2001, p. 18, adaptado)
Conforme o Esquema 1, o termo sentido está ligado a todos os aspectos funcionais
da construção. O sentido pode incluir não somente propriedades específicas da situação
descrita pelo enunciado, como também propriedades da situação pragmática dos
interlocutores e do âmbito discursivo maior de articulação.
Martelotta (2011) exemplifica essa relação entre gramaticalização e construção
gramatical por meio da análise do processo de mudança que envolve o uso da construção
um bocado de. Segundo Cunha (2010, p. 93), o uso da palavra bocado data no português
do séc. XIII. Originalmente, o termo bocado significa uma porção que cabe na boca,
formado da união boca + o sufixo –ado. Vejamos, a seguir, as amostras (3), (4), (5) e (6)
que ilustram o desenvolvimento da construção um bocado de.
(3)
E nunca o rei come huu bocado seguramente, com temor de peçonha...(Boosco deleitos – séc.XIV, de
MAGNE, 1950)
(4)
Ca nom he dace nenhuũa cousa aaqueles que esperam em engolir mui grave bocado que nom pode ser
escusado ...(Boosco deleitoso - séc.XIV, de MAGNE, 1950)
(5)
Levem 7 litros de mel ao fogo, e assim que levantar fervura ponham no tacho 15 gramas de pimenta-doreino. Deixem ferver um pouco mais, e comecem a pôr no mel fervente bocados de farinha dos biscoitos,
alternados com 450 gramas de erva-doce, também lançada aos bocados. (Um tratado da cozinha portuguesa
do século XV, de GOMES FILHO, 1994)
(6)
Em todos este trinta anos nao pôs pé no chao e tao pouco em muitos deles nao comeu coisa alguma tirando
um bocado de pao molhado ou parte de uma maça assada ou tâmara... (corpus do Português. Disponível
em:http://www.corpusdoportugues.org/)
40
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Podemos observar, em (3) e (4), o sentido original que predomina no séc. XIV. Em
(5), o item bocado já vem empregado como uma medida de quantidade “bocados da
farinha”. Em (6), a expressão “um bocado de pao” já parece indicar a construção um
bocado de N, que, segundo Martelotta (2011), começa a ser empregada no séc. XVI, mas
com o sentido aproximado do original, relativo à boca.
Conforme o autor, somente a partir do século XVIII é que se encontram a
expressões um bocado de terra, um bocado de paciência, em que bocado na construção
quantifica algo que não se relaciona a alimentos. Assim, o item bocado passa a instanciar
uma construção mais ampla e mais generalizada na língua, por meio da estrutura (forma):
Det (determinante) + N1 (nome) + de (preposição) + N2 (nome), que semanticamente
indica quantidade, como podemos ver nas construções “um monte de gente”,“ um pouco
de açúcar”,“ uma pitada de sal”, entre outras, cujo elemento N1 passa a expressar a noção
de quantidade como termos designativos de coisas que podem funcionar como recipientes:
um punhado de, um bocado de; termos designativos de parte ou fração de um todo: uma
porção de, uma gama de; termos designativos de quantidade coletiva: um bando de, uma
cambada de; termos designativos de grandeza: um monte de, um montão de; e termos
designativos do ato de bater: uma paulada de, uma cacetada de.
Observando o desenvolvimento dessa construção, podemos desenhar a trajetória
gradual que caracteriza as alterações no uso de item bocado que passa a funcionar na
construção Det + N1 + de + N2. Na mudança gradual, o item começa a dessemantizar e
passa a ter características semânticas compatíveis com a construção como um todo. Além
disso, podemos observar que essa estrutura funciona como padrão para novas formações
que designem o sentido de quantidade da construção.
Cremos que essas informações básicas nos permitam analisar construções
coalescentes praqui praculá, vô mimbora, xeu vê, destá, em uso por parte da comunidade
dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.
41
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
3 COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E ESTUDOS
Neste capítulo, conceituamos o fenômeno da coalescência, salientando desde já,
que é um processo linguístico ainda pouco explorado em nossa literatura. Além disso,
expomos e discutimos os parâmetros do Lehmann ([1982] 1995), que direciona um olhar
mais focado sobre o processo da coalescência, ao incluí-la como um processo da
gramaticalização. E discorremos também sobre gramaticalização de determinados itens
(logo mais expostos) que envolvem o processo de coalescências no português brasileiro.
Desse modo, introduzimos o capítulo estabelecendo a noção de coalescência, qual
seja: palavra de origem latina proveniente da forma coalecere, junção do prefixo co(junto) com o verbo alecere (crescer), significando, assim, o crescimento de duas partes em
uma única por mútua assimilação.
O termo coalescência possui acepções diferentes a depender das várias áreas de
conhecimento em que pode ser utilizado. A título de informação, esse termo pode ser
encontrado em áreas como a Linguística, a Psicologia, a Botânica, a Genética, a Medicina,
a Astronomia, a Meteorologia, a Física, a Química etc. Para este trabalho, portanto, atemonos ao termo com seu uso corrente na área da Linguística.
Nessa perspectiva, como sua própria origem latina expressa, a coalescência consiste
na junção (crescimento ou acréscimo) de duas, e até mais palavras, formando uma única
construção. Martelotta (2011) chama esse mecanismo de univerbação. Na Língua
Portuguesa, há casos de junções de verbos bem como a junção de palavras pertencentes a
classes gramaticais diferentes e, até mesmo, sentenças inteiras que se transformaram em
palavras, quando não se reduziram a locuções gramaticais. Como exemplos, podemos citar
o caso das formas atuais: embora, amarei, portanto, entretanto, todavia, você, entre outras.
Mais adiante, discorreremos de modo mais específico sobre algumas dessas e de outras
formações coalescentes na história da nossa língua.
A formação coalescente é um fenômeno linguístico que ocorre há muito tempo em
nossa língua, como é o caso da contração da preposição de que perde fonema /i/ ao se unir
com artigos, pronomes e advérbios, como em do, dele e daqui.
Neste ponto, é importante registrar que a coalescência não é um fenômeno
específico da Língua Portuguesa usada no Brasil, mas ocorre em diversas outras línguas,
conforme atesta Bagno (2011, p. 184-5):
42
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Em francês os pronomes indefinidos n‟importe quoi, n‟importe qui, n‟importe
où, n‟importe comment etc. se formaram com base no verbo importer e devem
ser traduzidos por „qualquer coisa‟, „qualquer um‟, „qualquer lugar‟, de „qualquer
forma‟ etc. (...) O francês peut-être, literalmente „pode ser‟, mas com o sentido
do nosso „talvez‟, é em tudo semelhante ao inglês maybe (de may „poder‟, e be,
„ser‟) e ao catalão potser, „talvez‟. Em inglês também são muitas as palavras
gramaticais provenientes de aglutinação: whenever, whoever, wherever, forever,
whatsoever, notwinthstanding, tonight, today, together, everyday, nowadays,
afternoon, however, anyhow, none, someone, sometimes, somewhere, alone (de
all, „todo‟ e one, „um‟: sozinho, que em francês se traduz exatamente por tout
Seul, literalmente „todo só‟) etc. A palavra „coisa‟ também aparece com
frequência em palavras gramaticais: quelque chose, em francês, com sentido de
„algo‟; cosa, em italiano, como interrogativo com o sentido de „o quê?‟;
qualcosa, também em italiano, „algo‟; anything, everything, nothing, something
em inglês, todos formados com base em thing, coisa‟ etc. (grifos do autor)
Apesar de a fusão entre palavras ser um processo que acontece no desenvolvimento
de diversas línguas, o termo coalescência empregado na perspectiva da gramaticalização
tornou-se mais usual a partir da proposta do funcionalista alemão Winfred P. Lehmann
([1982] 1995). Ele, com atenção ao processo gradual de mudança linguística e
considerando os diferentes níveis que um item pode atingir no processo de
gramaticalização, propôs parâmetros e processos que permitem aferir o estatuto gramatical
de uma forma linguística em níveis mais ou menos avançados de gramaticalização, a saber:
integridade, paradigmaticidade, variabilidade paradigmática, escopo, conexidade e
variabilidade sintagmática.
Dentre esses parâmetros, a conexidade corresponde ao grau de coesão de um item
com outros no sintagma. Segundo o autor, o aumento de coesão é chamado de
coalescência, e vai da justaposição à fusão (aglutinação), que é quando o item se torna, por
exemplo, afixo. Assim, quanto maior a coesão, mais gramaticalizado está o item.
Destacamos que o processo de coalescência não se dá de forma abrupta, mas passa
por fases. Inicialmente, há a aproximação de certos itens no uso linguístico de uma dada
comunidade, a justaposição, ou seja, não há perda ou acréscimo na junção entre as formas,
e só com o decorrer da alta frequência de uso dessas formas, ocorre a fusão ou aglutinação,
que consiste na junção das duas ou mais formas aproximadas. Nesses casos, porém, já
ocorre a perda de material fonológico, atingindo, portanto, o processo de coalescência.
Lembramos que esse fenômeno, assim como a maior parte das mudanças linguísticas,
ocorre num trajeto evolutivo ao longo de muito tempo.
Além disso, para que um termo se torne gramaticalizado, é preciso que faça parte
do uso linguístico de pelo menos um grupo (não apenas de um único falante) e, a partir de
43
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
sua alta frequência pela comunidade de falantes, o termo passa a integrar o sistema
linguístico.
Na tentativa de compreendermos as razões que levam determinados itens a se
fundirem ou coalidirem, acreditamos que a concepção de gramaticalização proposta por
Bybee (2003) pode contribuir para um entendimento mais amplo de como ocorre o
processo de coalescência.
Para ela, a repetição tem um relevante papel no processo de gramaticalização,
porque uma sequência de morfemas ou palavras frequentemente usadas se torna
automatizada como uma única unidade no processamento linguístico do falante. Por essa
proposição, inferimos que o mesmo se dá com a formação e o uso dos itens coalescentes.
Bybee (2003) enumera cinco propriedades que explicitam as consequências
causadas pela repetição: (i) a frequência de uso leva ao enfraquecimento semântico por
habituação – processo pelo qual um organismo cessa de responder no mesmo nível a um
estímulo repetido; (ii) mudanças fonológicas – redução e fusão de construções – que estão
passando por gramaticalização são condicionadas pela sua frequência alta; (iii) o aumento
da frequência condicionada, um aumento da autonomia da construção, ou seja, os
elementos que compõem a construção enfraquecem semanticamente ou perdem a sua
associação com outros exemplos do mesmo item; (iv) a perda da transferência semântica
de construções em gramaticalização leva a ampliação do contexto de uso, estendendo a
possibilidade de novas associações pragmáticas; e (v) a autonomia de uma expressão
frequentemente cristalizada na língua condiciona a preservação de características
morfossintáticas obsoletas.
Tais propriedades parecem relacionar-se com a trajetória que o processo de
coalescência segue. Partindo do pressuposto de que o processo de coalescência pode se
fazer presente no decorrer da gramaticalização de determinados itens, Freitag (2010, p.
150) faz um comentário que justifica como se dá a relação gramaticalização e coalescência.
As mudanças fonológicas que ocorrem em construções que estão passando por
gramaticalização, como a fusão e a redução, são impulsionadas pela sua alta
frequência de uso. Morfemas ou construções com alta frequência de uso sofrem
mudança de som a uma velocidade mais rápida do que palavras ou construções
com baixa frequência de uso. (...) A perda da clareza semântica das construções
que estão passando por gramaticalização leva à ampliação do seu contexto de
uso. Um dos mecanismos mais atuantes no processo de gramaticalização é o
esbranqueamento semântico ou generalização, por meio do qual características
específicas do sentido vão sendo perdidas.
44
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Nas proposições de Bybee (2003) e Freitag (2010), fica evidente o ponto de vista
aproximado sobre as mudanças que um item que está em processo de gramaticalização
pode comportar.
Na seção que segue, apresentamos mais detalhadamente os parâmetros de Lehmann
([1982] 1995), o que deve possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do processo de
coalescência.
3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995)
Para definir a gramaticalização, Lehmann ([1982] 1995) apoia-se em Meillet
([1912] 1948) e Kurylowicz ([1965] 1975), afirmando que a gramaticalização é um
processo que transforma lexemas em formativos gramaticais, e formativos gramaticais em
mais gramaticais ainda.
Visando aferir o grau de autonomia de um item e, consequentemente, o grau de
gramaticalidade, pois a autonomia de um signo é inversamente contrária ao seu estatuto
gramatical, Lehmann ([1982] 1995) propõe parâmetros, apoiando-se, em parte, numa das
dicotomias saussureanas: o sintagma e o paradigma.
Dessa forma, Lehmann ([1982] 1995) une a visão saussureana de sistema interno da
língua (formalista) ao usar a dicotomia paradigma/sintagma e as forças externas
(funcionalistas) ao usar critérios como: o peso, a coesão e a variabilidade. O autor visa,
com esse modelo de parâmetros, à identificação não do fenômeno da gramaticalização,
mas da autonomia de um signo. Contudo, o critério de autonomia implica a
gramaticalização, uma vez que quanto mais autônomo um item, menos gramaticalizado é,
e quanto mais dependente, mais gramaticalizado.
Gonçalves et al. (2007, p. 70-1), esclarecendo a questão da autonomia e da
gramaticalização a partir dos parâmetros de Lehmann, propõe que:
Paradigmática e sintagmaticamente, essa autonomia diminui à medida que o item
contrai certas relações de coesão (paradigmaticidade vs escopo) com outros
signos, e aumenta quanto maior sua variabilidade, mobilidade ou alternabilidade
com outros itens (variabilidade paradigmática vs variabilidade sintagmática).
Com o propósito de facilitar a compreensão acerca do que está sendo exposto,
apresentamos, a seguir, o quadro que contempla os seis parâmetros de Lehmann:
45
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
46
Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização
Parâmetros
Integridade
(peso)
Paradigmaticidade
(coesão)
Variabilidade
Paradigmática
(variabilidade)
Escopo
(peso)
Conexidade
(coesão)
Variabilidade
Sintagmática
(variabilidade)
GR4 incipiente
Item
possivelmente
polissilábico com muitos
traços semânticos
Participação “frouxa” do
item
em
um
campo
semântico
Escolha livre dos itens,
segundo
as
intenções
comunicativas
Relações do item com
constituintes
de
complexidade arbitrária
Justaposição
do
item
independentemente
Liberdade de movimento do
item
Processo
Atrição
Paradigmatização
Obrigatoriedade
Condensação
Coalescência
(união)
Fixação
GR avançada
Item
geralmente
monossilábico,
com
poucos traços semânticos
Item integra paradigma
pequeno,
altamente
integrado
Escolhas
sistematicamente
restritas, uso obrigatório
Item modifica a palavra
ou a raiz
Item é afixo ou traço
fonológico
O item ocupa uma
posição fixa
Fonte: (LEHMANN, [1982] 1995, p. 164, adaptado)
Segundo Lehmann ([1982] 1995), esses seis parâmetros podem ser estudados de
forma isolada quanto às funções envolvidas no processo de gramaticalização. Porém,
quanto à sua correlação, o autor indica que eles são teoricamente dependentes um do outro,
devido a sua base constitutiva.
Conforme já comentado, o autor divide seus parâmetros em dois eixos: o
paradigmático e o sintagmático, pretendendo, com isso, mostrar que, no eixo
paradigmático (integridade, paradigmaticidade e variabilidade paradigmática), observa-se a
integração dos traços semânticos do item, o grau de participação no domínio funcional das
formas de expressão do quadro de que ele faz parte e a possibilidade de sua escolha,
considerando outros itens de mesmo valor semântico-pragmático.
Já no eixo sintagmático (escopo, conexidade e variabilidade sintagmática),
observam-se as relações que o item estabelece com outros constituintes das diferentes
construções de que ele participa, sua colocação e seu grau de mobilidade na construção.
Caetano (2011) reproduz o quadro da obra original de Lehmann, porém o apresenta
em dois momentos distintos, isto é, divide-os de acordo com os eixos propostos por este,
com adaptações realizadas de sua parte, conforme podemos verificar nos Quadros 2 e 3.
_____________________________
4 A sigla GR utilizada no quadro 1 refere-se ao termo gramaticalização.
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
A fim de didatizar um pouco mais os parâmetros de Lehmann, apresentamos
também a proposta de Caetano (2011, p. 72):
Quadro 2 - Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático
Parâmetros
(aspectos)
PESO
(Integridade)
GRAMATICALIZAÇÃO
(Gr) iniciante
Item
provavelmente
polissilábico,
com
proeminência de traços
semânticos
Processo ou curso de
gramaticalização
Atrição fonológica ou
erosão fonética por
causa
da
dessemantização
ou
bleaching semântico
Paradigmatização
GRAMATICALIZAÇÃO
(Gr) avançada
Item
provavelmente
dissilábico
>
monossilábico, com raros
traços
semânticos
ou
extralinguísticos
COESÃO
Correlação e participação
Item integra paradigma
(Paradigmaticidade) “frouxa” do item em dado
pouco vasto e muito intercampo semântico
relacionado a outros do
mesmo paradigma
VARIABILIDADE
Liberdade de escolha dos Obrigatorização ou
Escolhas cada vez mais
(Variabilidade
itens, segundo as intenções Obrigatoriedade
sistematicamente restritas
Paradigmática)
pragmáticas
de
> uso cada vez mais
comunicação
obrigatório
Fonte: (CAETANO, 2011, p. 72 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164)
Caetano (2011, p. 73) destaca, no Quadro 2, que, no eixo paradigmático, os três
aspectos centrais da teoria de Lehmann apontam para baixa gramaticalização, uma vez que
esse eixo remete ao eixo das possibilidades, os usos linguísticos têm maior liberdade. Ao
passo que, inversamente, quanto ao eixo sintagmático, os parâmetros do mesmo autor
revelam graus mais elevados de gramaticalização, pois no eixo sintagmático os itens
estabelecem um posicionamento mais definido nas situações comunicativas de uso,
conforme podemos notar no Quadro 3 a seguir.
Quadro 3 - Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático
Parâmetros
GRAMATICALIZAÇÃO Processo ou curso de GRAMATICALIZAÇÃO
(aspectos
(Gr) iniciante
gramaticalização
(Gr) avançada
PESO
Relações do item com Condensação
Item modifica a palavra >
(Escopo, objetivo ou constituintes
de
o radical > a raiz
meta)
complexidade arbitrária
COESÃO
Independência de
União ou coalescência Item é afixo ou morfema
(Conexão
ou Justaposição do item
redundante
(geralmente
conexidade)
traço fonológico)
VARIABILIDADE
Liberdade de movimento Fixação
O item passa a ocupar
(Variabilidade
do item
posições cada vez mais
Sintagmática)
fixas
Fonte: (CAETANO, 2011, p.73 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164)
47
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
De modo sintético, a apresentação de cada parâmetro pode ser assim descrita:
(I) Integridade – refere-se ao tamanho substancial de um signo considerando seu caráter
semântico e fonológico. Segundo o autor, esse parâmetro diferencia um signo dos demais
membros de sua classe e dá-lhe certa proeminência no contraste com outros signos.
(II) Paradigmaticidade – diz respeito ao grau de coesão de um item com outros em um
paradigma, ou seja, relaciona-se a “classes abertas”, as das formas nocionais, e “classes
fechadas”, as das formas gramaticais. Desse modo, para aferir esse parâmetro, há que se
levar em conta a integração formal e semântica do item em análise dentro desse paradigma.
(III) Variabilidade paradigmática – possibilidade de escolha de um signo dentro de um
paradigma, sendo possível até a escolha pelo “zero”. É nesse momento que uma forma
pode passar a competir com outra, tornando-se a preferida em um dado contexto. Em
outras palavras, esse parâmetro refere-se à liberdade com a qual o indivíduo escolhe um
signo dentre aqueles pertencentes a um mesmo paradigma (ou não escolhe nenhum deles),
deixando que essa seleção ocorra pelo contexto de uso. Devido a essa possibilidade de
escolha, tanto a Sociolinguística quanto a Estilística podem servir como aparatos
explicativos relevantes.
(IV) Escopo – refere-se à extensão da construção de um item. Assim, quanto mais
gramaticalizado um item, menor é seu escopo. Um item gramaticalizado passa a
relacionar-se com uma palavra ou com um radical (sua extensão é limitada).
(V) Conexidade – trata-se da coesão de um item com outro, ou seja, trata-se do grau com
que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Esse critério aplica-se mais
em casos de morfologização, porém sua aplicação também é possível em outros casos.
(VI) Variabilidade sintagmática – esse critério tem tendência à ordem fixa dos
constituintes. A posição fixa do item dentro do sintagma é indício de aumento de
gramaticalidade como, por exemplo, quando um item lexical atinge um alto grau de
morfologização.
Para compreendermos a transição entre gramaticalização incipiente ou inicial e a
gramaticalização avançada, temos que compreender os parâmetros propostos por Lehmann
([1982] 1995) e os processos responsáveis por essa transição. Conforme os Quadros 1, 2 e
3, apresentamos, a seguir, os seis processos indicados por ele: atrição, paradigmatização,
obrigatoriedade, condensação, coalescência e fixação. Passemos, portanto, a cada um
deles:
48
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
1º) Atrição – esse processo está diretamente relacionado ao desgaste fônico e inclusive à
perda semântica. Daí a afirmação de que esse processo pode ser analisado sob duas
perspectivas: a da atrição fonológica (ou erosão fonética, nos termos de Heine et al., 1991)
e a da dessemantização ou bleaching semântico. Esse processo ocorre devido à alta
frequência de uso.
2º) Paradigmatização – nesse processo, verifica-se o tamanho e a homogeneidade do
paradigma, ou seja, a quantidade de similaridades entre seus membros integrantes e a
regularidade nas diferenças entre eles. Embora seja complexo precisar o tamanho do
paradigma que o item em gramaticalização passa a integrar, Lehmann alerta para o fato de
que paradigmas altamente gramaticalizados tendem a ser menores do que os menos
gramaticalizados.
3º) Obrigatoriedade – esse processo representa mais uma tendência de a forma opcional
tornar-se obrigatória, porque nesse processo está contida a liberdade com a qual o sujeito
escolhe ou não um signo para um dado contexto de uso. Contudo, a obrigatoriedade se
impõe quando há de fato escolhas sistematicamente restritas.
4º) Condensação – refere-se à redução das formas e isso ocorre quando, na transferência
(por meio da condensação) de um estado da língua para outro, o item passa da relação com
constituintes de complexidade arbitrária para a relação com palavra ou com radical.
5º) Coalescência – trata-se da coesão de um item com outro, isto é, refere-se ao grau com
que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Assim, a coalescência é
compreendida como uma união ou fusão entre itens ou tendência de aglutinação de formas
adjacentes.
6º) Fixação – diz respeito à posição fixa do item dentro de um sintagma (indício de seu
aumento de gramaticalidade), como ocorre quando um item lexical atinge um grau alto de
morfologização. Em outras palavras, por esse processo, pode-se entender que a ordem,
antes livre, torna-se fixa.
Apresentado cada processo contido nos parâmetros de Lehmann ([1982] 1995),
observamos, portanto, que, de fato, há uma correlação entre eles. Um item pode ser
analisado sob a perspectiva dos seis processos, como se um processo condicionasse
diretamente o outro. Isso ocorre pelo fato de eles serem teoricamente dependentes um do
outro, tendo em conta a base dedutiva comum da sua constituição.
Depois dessa exposição, que serve ao propósito de aferir o grau de autonomia de
um item e, consequentemente, o grau de gramaticalidade, na seção seguinte passamos a
49
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
refletir sobre formas linguísticas utilizadas na Língua Portuguesa atual que, no entanto, são
originadas pelo processo coalescente. Ressalvamos que, devido ao uso atual e às novas
funções atribuídas a essas palavras, o falante comum finda por não saber ou não perceber o
enlace de palavras que deu origem à forma coalescente, que utilizamos comumente sem a
consciência de tal processo formador.
3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa
Nesta seção, expomos alguns casos em que palavras hoje consideradas
gramaticalizadas são provenientes de um longo percurso histórico que envolve o processo
de coalescência. Uma vez gramaticalizadas, essas palavras passaram por diversas etapas,
como: o enfraquecimento semântico atenuado; fixação em lugares precisos na
morfossintaxe e a perda de material sonoro ou erosão fonética. Contudo, muitas delas,
cristalizaram-se de tal maneira que sua forma original não é reconhecida pelos usuários
comuns da língua.
Conforme mencionamos anteriormente, a coalescência não é um processo surgido
recentemente. Ao contrário, diversas gramáticas históricas trazem registros desse processo,
por isso apresentamos também algumas formas do latim (origens etimológicas) que se
fundiram, visto que a Língua Portuguesa é originária do latim.
A título de ilustração de formas provenientes de uma junção de palavras e que
sofreram gramaticalização, podemos mencionar a palavra embora, que provém da locução
adverbial em boa hora (in + bona + hora). Conforme Coutinho (1976), os advérbios
portugueses derivam-se do latim, especialmente do latim vulgar e nessa modalidade era
comum e mais frequente o uso de locuções com valor adverbial.
O latim clássico tinha várias terminações para formar os advérbios de modo.
Eram elas: -im, -ter, -tus, -e, -o,-um: sensim, firmiter, radicitus, romanice, certo,
multum. Tais advérbios de modo não passaram ao latim vulgar. Dos terminados
em –e, entretanto, podem ser citados: tarde > tarde, bene > bem, male > mal.
Para compensar esta perda, usou longamente o latim vulgar duma locução que
consistia em se ajuntar a um adjetivo qualquer no feminino a palavra mens, tis
(espírito) no caso ablativo (...)
Desta locução surgiu o novo processo de formação de advérbios de modo que se
radicou nas línguas românicas. (COUTINHO, 1976, p. 264, grifos do autor)
50
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Além do embora, o mesmo autor apresenta uma lista de outros advérbios
portugueses que têm sua origem no latim e, assim como aconteceu com a palavra embora,
que se formou a partir da aglutinação de palavras diferentes, o mesmo aconteceu com
outros advérbios: avante < ab+ ante, atrás < ad +trans, após < ad + post, jamais < Jam +
magis, quiçá < quid + sapit entre muitos outros.
Bagno (2011, p. 184) também expõe alguns advérbios que foram criados a partir de
locuções adverbiais latinas: “Nosso advérbio hoje provém de hodie, que já era uma
gramaticalização em latim de hoc die „este dia‟, enquanto ontem provém de ad noctem, „ à
noite‟.”
No caso da palavra embora, Said Ali (2001) menciona que a locução em boa hora,
presente em frases optativas/ imperativas, era usada para expressar sinceridade ou por mera
cortesia, tal expressão começou a ser proferida em razão da crença de que o êxito dos atos
humanos dependia da hora em que eram empreendidos.
Com o uso frequente, o autor relata que as três palavras fundiram-se em uma só.
Contudo, a palavra aglutinada embora continuou a ser usada nos contextos como advérbio
temporal, mas, com o passar do tempo, essa forma passou a figurar em certos contextos
como concessão, como possibilidade de um fato. A partir disso, o uso de embora veio a
transformar-se em conjunção concessiva.
Coutinho (1976) registra a mudança de função do embora, de advérbio para
conjunção concessiva, ou seja, o processo de gramaticalização na palavra embora já
apresentava o seguinte trajeto: ADVÉRBIO > CONJUNÇÃO. Assim sendo, durante um
período do tempo, a forma embora admitia dois usos funcionais diferentes, ou seja, o item
tanto era usado para desejar boa sorte no momento de determinada ação, como era usado
para indicar concessão, isto é, funcionava tanto como advérbio temporal como conjunção
concessiva, e o contexto se encarregava de indicar tal diferença.
Além do embora, outras conjunções, como porém e contudo, são casos típicos de
formações coalescentes. Para evidenciarmos o caráter coalescente dessas formas,
recorreremos também as suas origens etimológicas.
Sobre as conjunções, Coutinho (1976, p. 269) relata que:
Ao contrário das preposições, poucas foram as conjunções que o português
herdou do latim.
Para suprir tal deficiência, recorreu a língua às outras classes de palavras,
sobretudo aos advérbios e às preposições, dando-lhes função conjuncional:
todavia, também, para que, depois que, etc. (grifos do autor)
51
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Pelas observações do autor, já podemos identificar o processo de gramaticalização
comum a muitas palavras que são empregadas na sincronia atual como conjunções.
Em consonância com Coutinho (1976), Mattos e Silva (2001) relata que, entre as
coordenativas, apenas e, ou e nem já se encontravam entre as conjunções coordenativas
latinas; as demais se originam do português arcaico. Ainda segundo Mattos e Silva (1996),
o período correspondente ao português arcaico começa no século XIII e vai até o século
XV (momento histórico que ficou conhecido também por período ou fase medieval).
Ainda sobre o período medieval, o português, assim como as demais línguas
românicas em geral, passou por grandes mudanças, entre as quais as conjunções ganham
destaque. Meillet ([1912] 1948), ao observar a formação das conjunções em geral, conclui
que elas são elementos susceptíveis à renovação constante, processo esse comum às
línguas em geral.
Embora as conjunções, até aqui mencionadas, não remontem ao latim com tal
função (até porque poucas foram as conjunções herdadas do latim), é relevante termos em
mente que as línguas românicas surgem do latim popular (língua amplamente usada pelo
povo daquela época), de modo que a origem epistemológica no que se refere à formação
dessas palavras ─ porém e contudo ─ traz à tona referências do latim, bem como marcas
do latim popular como, por exemplo, a preferência por formas analíticas em detrimento do
sintetismo peculiar do latim clássico. Daí porque, a priori, as formas porém e contudo se
originaram, respectivamente, das formas por ende, co tudo.
Ainda sobre essas conjunções, Barreto (1999) apresenta, em glossário, as origens
etimológicas das duas conjunções adversativas. Em seu glossário, porém se origina da
preposição latina per + em, forma que sofreu apócope do advérbio latino ende, que
funcionava como pronome.
Cunha (2000, p. 623) também descreve as origens etimológicas do porém da
seguinte forma: “porém conj. „contudo, todavia‟ǀ XIV, porende XIII, poren XIV etcǀ De
por + ende (<lat. Ǐnde), frequente no port. Med., desde o séc. XIII”.
Já o contudo formou-se da preposição com (do latim cum) + indefinido tudo (do
latim totu-).
Como já afirmamos com Coutinho (1976), foi necessário usar outras classes de
palavras como advérbios e preposições para originar novas conjunções. Por isso,
acreditamos que, para a formação dessas novas conjunções, fez necessário o uso do
processo de aglutinação, ocorrendo também a gramaticalização desses termos.
52
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Segundo Meillet ([1912] 1948), as conjunções adversativas se enquadram em suas
propostas, já que, de uma classe acessória (a dos advérbios, elementos sem autonomia
plena), chegou-se a uma classe gramatical, a das conjunções. Salientamos que, nessa fase
de transição entre as categorias, ocorre o que Meillet denomina de “esvaziamento de
sentido”. Tanto o é que a função adverbial é determinada por suas propriedades
pronominais.
Logo, para o autor referido, o desaparecimento das formas latinas e a formação de
conjunções empreendidas no português medieval nada mais são do que a gramaticalização
em plena atividade.
Sobre as conjunções adversativas de um modo geral, é mister mencionarmos a
existência de um conflito entre estudiosos no que se refere à classificação desses itens, de
modo que há aqueles que defendem esses itens como pertencentes à categoria dos
advérbios e há os que os definem como conjunções adversativas. A esse respeito, Bagno
(2011, p. 891) afirma que:
Embora a TGP continue a dizer que entre as conjunções adversativas se incluem
as formas porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto, os estudiosos
contemporâneos rejeitam essa classificação e incluem esse itens, como fizemos,
na classe dos advérbios. Assim procedem, por exemplo, Perini (1996:45),
Bechara (1999:322), Neves (2001:241), Azeredo (2008:306) e Castilho
(2010:354). Ao contrário de mas esses itens, por serem advérbios , admitem uma
ampla mobilidade no interior da sentença (...).
Outra característica dos advérbios, além da mobilidade dentro da sentença, é
poderem vir antecedidos da conjunção aditiva e, como no exemplo acima ─ e no
entanto o homem está sujeito ─ , o que é impossível para a conjunção
adversativa: e mas eu sei que a Bernadete.. (grifos do autor)
Em contrapartida, trabalhos recentes (cf. ROCHA, 2006) defendem a ideia de que
palavras como mas, porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto podem ser
classificadas como conjunções adversativas.
Lembramos que o interesse pelos termos porém e contudo, nesta pesquisa, está no
fato de sua formação provir do processo de coalescência, entendendo este como um
processo que faz parte do trajeto histórico de nossa língua.
Ainda para exemplificar as formas coalescentes presentes na história da Língua
Portuguesa, não poderíamos deixar de citar a gramaticalização ocorrida com o pronome
você que, ao longo do tempo, passou pelo processo de coalescência.
53
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Etimologicamente, o pronome você provém da expressão Vossa Mercê, formada
por pronome possessivo (Vossa) mais um nome abstrato (Mercê). Através do processo de
mudança linguística, essa forma composta sofreu erosão fonética do seguinte tipo: Vossa
Mercê > Vossemecê > Vosmecê > Vosmicê > Você.
Atualmente, podemos notar que a palavra você tem sofrido outras reduções como:
ocê > cê. Desse modo, por meio da evolução em evidência, percebemos que uma
construção usada a priori como pronome possessivo + um nome abstrato se colidiu e, no
momento presente, é usada como uma única palavra.
Sobre essas transformações, Coutinho (1976, p.133) faz o seguinte comentário: “Os
tratamentos Vossa excelência e Vossa Mercê deram, respectivamente, vossência e você.
Variantes populares desta última forma, no Brasil, são vossemecê, vosmicê, vomecê,
vamencê, vamincê, vancê, mecê, ocê”. (grifos do autor)
Além do desgaste fonético, o pronome de tratamento Vossa Mercê também sofreu
enfraquecimento ou “desbotamento” semântico e extensão pragmática, generalizando-se
como pronome pessoal recorrente da segunda pessoa do singular. Assim, podemos
ressaltar que a alta frequência de uso desgastou o propósito comunicativo inicial de
cortesia, respeito, distanciamento, indiretividade, características dos pronomes de
tratamento.
Estudos diacrônicos, segundo Lopes (2010), têm mostrado que a expressão de
tratamento “Vossa Mercê” e suas variantes como: vosmecê, mecêa, vosse... já chegaram ao
Brasil sem a força cortês dos primeiros tempos ─ século XIII a XIV ─ quando era
empregada para se dirigir ao rei com deferência. Mas foi por volta da metade do século
XVIII que o emprego de Vossa Mercê e você tornaram-se funcional e discursivamente
divergentes.
A partir daí, a forma popular você tornou-se produtiva nas relações assimétricas de
superior para inferior, isso porque a forma Vossa Mercê ainda se fazia presente nas
relações assimétricas de prestígio, ao passo que o uso da forma você expandia seu contexto
de uso. É justamente devido a essa expansão pragmática do termo você que, no século
XIX, aqui no Brasil, a forma você passou a concorrer com o pronome pessoal tu em
relações solidárias mais íntimas e de confiança.
Acerca disso, Lopes (2010, p. 13) relata que:
(...) a implantação de você não ocorreu da mesma forma em todos os subtipos de
pronomes (pessoais, possessivos, demonstrativos, oblíquos, etc.), gerando um
54
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
paradigma pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a terceira
pessoa do singular. Você e tu coexistem no singular e vocês é praticamente
categórico no plural na posição de sujeito, nas demais posições, contudo, nem o
pronome complemento o/a/os/as nem o possessivo vosso se mantiveram
produtivos, em seu lugar se empregam com maior freqüência te variando com
você, lhe e objeto nulo; teu/tua variando com seu/sua, de você(s) e o uso do
imperativo formado a partir do presente do indicativo (imperativo de 2ª pessoa)
variando com o de subjuntivo (imperativo de 3ªpessoa). (grifos do autor)
Diante de todo esse processo de mudança linguística, que ocorreu e que ainda vem
ocorrendo com a forma você, podemos dizer que o que, de fato, inseriu a forma você no
quadro de pronome pessoal de segunda pessoa do singular, substituindo diversas vezes o
pronome tu, foi a posição de sujeito pleno que a forma pronominal você adquiriu.
A forma você apresenta reduções como ocê e cê no uso linguístico de algumas
comunidades de falantes do Brasil. Sobre isso, Vitral e Ramos (2006) constataram que a
redução fonética cê só ocorre na posição de sujeito, enquanto ocê se combina a formas
preposicionadas (e.g. isso é procê). Nesse último caso, podemos observar que a forma
reduzida do pronome você vem apresentando, no momento presente, novas coalescências
(a união do pronome ocê com preposições), especialmente, nas variedades populares,
como, por exemplo, nocê, procê, docê.
Bagno (2011, p. 184) também faz menção ao processo de gramaticalização do
pronome você:
No PB, esse pronome já alcançou o estágio da cliticização: quando exerce a
função de sujeito, e somente nessa função, se reduziu a cê, que ocorre
exclusivamente em próclise ao verbo: cê viu, cê sabe, cê quer?
Em algumas variedades, com destaque para Minas Gerais, é muito corrente a
forma ocê, que contrai com as preposições formando docê, nocê, concê, procê.
Na função de sujeito, ocê concorre com cê. Tendo se tornado um verdadeiro
clítico-sujeito, não tem nenhuma justificativa a persistência da gramática
normativa em classificar você como “pronome de tratamento”, já que ele é, de
fato, o índice de segunda pessoa mais empregado em todo Brasil. (grifos do
autor)
É na posição de sujeito que a gramaticalização do pronome você está mais
avançada, pois esse pronome passou a funcionar como clítico. No caso em questão, o
pronome de tratamento Vossa Mercê sofreu enfraquecimento semântico, extensão
pragmática, erosão fonética e fixação pragmática até se transformar na forma que usamos
atualmente, você.
55
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Mesmo tendo passado por todas essas etapas de mudanças, o pronome você
continua a trazer marcas que lembram sua forma original como a indiretividade, o que, por
sua vez, estaria relacionado a um processo de abstratização do sema de cortesia. Além
disso, outra evidência que relembra a origem do termo você provindo de um pronome de
tratamento se encontra no fato de que, mesmo substituindo a segunda pessoa do singular
tu, a concordância verbal mantém a especificação formal de terceira pessoa, característica
típica de sua forma inicial.
Essas marcas da forma origem vão ao encontro do princípio de persistência,
proposto por Hopper (1991), segundo o qual certos itens e construções findam por deixar
vestígios de sua história evidenciados em sua forma e/ou em seu significado, em qualquer
momento temporal. Por esse princípio, é possível investigar a linha evolutiva de um
determinado item ou construção para melhor compreender o modo pelo qual essa forma é
utilizada no tempo contemporaneamente.
Diante dos casos até aqui apresentados, percebemos que o processo de mudança
linguística tem uma motivação pragmático-discursiva. Em outras palavras, os casos de
construções coalescentes seriam utilizadas a priori casualmente no discurso com uma
função comunicativa e, embora tivessem funções gramaticais, seus usos não eram
necessariamente sistemáticos e fixos. Somente com o aumento da frequência desses usos é
que essas formas se enrijeceram e tornaram-se totalmente gramaticais.
Portanto, de modo geral, a coadunação entre palavras é um processo de longa data
que se dá no discurso, no uso não necessariamente sistemático, mas com o aumento da
frequência, essas palavras aglutinadas findam por tornarem convenções, ou seja,
gramaticalizam-se.
O trajeto histórico da língua apenas reforça o fato de que a coalescência não é um
processo linguístico novo na história da Língua Portuguesa.
Na seção que segue, discorremos sobre os estudos recentemente desenvolvidos no
Brasil sobre a gramaticalização, cujos objetos de estudo são palavras formadas por
processo de coalescência.
56
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no
Português Brasileiro
Muitos são os estudos que têm se desenvolvido no Brasil com o objetivo de
compreender e explicar a ocorrência da gramaticalização, entre os quais destacamos os de
Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008) e, embora haja outros, daremos ênfase a
esses, pelo fato de apresentarem, em seus objetos de análise, o processo de coalescência.
Nunes (2003) apresenta um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente,
com o objetivo de reconstruir o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português
contemporâneo, analisando o grau de variação na fala oral entre formas sintética e
perifrástica na cidade de Pelotas/RS, a fim de confrontar as formas encontradas ao longo
do trajeto do futuro do presente para identificar as mudanças e apontar os elementos
desencadeadores do processo que determinam a sobrevivência de uma forma em
detrimento de outra.
Para dar conta do primeiro objetivo da pesquisa, Nunes aponta a heterogeneidade
existente na língua latina bem como o sistema verbal empregado na época. Assim, observa
que o latim clássico empregava a forma sintética, no tocante ao uso verbal (imperabo;
legam). Já o latim popular (chamado de vulgar pela autora) optava pelo uso de perífrase
verbal (imperare habeo; legere habeo).
Nunes (2003) explica que o povo passou a usar a perífrase verbal devido ao futuro
do presente apresentar formas semelhantes em algumas das pessoas da conjugação do
pretérito perfeito (educavit), do presente do indicativo (legis) e do presente do subjuntivo
(legam). Essas formas “parecidas” incitaram o uso de uma forma simples constituída de
Infinitivo do verbo principal + presente do indicativo do verbo auxiliar.
Para a construção de sua trajetória, a autora observa que o processo evolutivo da
perífrase do futuro do presente continuou. Tanto é que, no período arcaico da Língua
Portuguesa, o verbo auxiliar apresentou uma forma sincopada, evoluída do verbo auxiliar
(habeo > hei), que constituiu uma nova expressão de futuro “estudar hei”. Em pouco
tempo, o verbo “hei” tornou-se uma desinência verbal para o verbo no infinitivo
(estudarei), completando temporariamente o processo de gramaticalização.
Diacronicamente, Nunes (2003) remontou à seguinte trajetória do futuro do
presente:
57
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente
Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei
Forma analítica
Forma sintética
do passado
do presente
Fonte: (NUNES, 2003, p. 18)
Como no processo evolutivo da língua não é obrigatória a paralisação, podendo
apenas ocorrer a estabilização temporária, a pesquisa de Nunes (2003) apresenta a
evolução do futuro do presente, até o português contemporâneo. Para isso, a autora
analisou amostras que permitiram avaliar o grau de variação entre a forma sintética e a
perifrástica, na cidade de Pelotas/RS.
Conforme vai construindo sua análise, a autora reconstitui o trajeto do futuro do
presente, incluindo uma nova forma recorrente, sobretudo na linguagem oral dos
pelotenses:
Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente
Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei ~ vou amar
Forma analítica
do passado
Forma sintética Forma analítica
do presente
inovadora
Fonte: (NUNES, 2003, p. 89)
Desse modo, a autora aponta o processo de gramaticalização como sendo
responsável pelas mudanças formais no verbo, que são tidas como variantes, mas que
depois constituíram mudanças na língua e foram incorporadas às normas gramaticais,
indicando que o processo de aceitação das novas formas linguísticas é lento e gradativo.
A pesquisa de Nunes (2003), em linhas gerais, trata das formas verbais formadas
pelo futuro do presente e que, na forma sintética atual, passaram por processo de
coalescência, já que houve uma fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal tornandose uma única palavra.
58
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Nessa mesma perspectiva, o trabalho de Rocha (2006) tem como objetivo investigar
a motivação conceptual que levou os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no
entanto a apresentarem traços comuns capazes de justificar o fato de serem
tradicionalmente englobados sob o mesmo rótulo em português: o das conjunções
adversativas.
Inicialmente, Rocha (2006) apresenta uma lista de autores (BECHARA, 1999;
NEVES, 2001; ROCHA LIMA, 1994, dentre outros) que classificam os itens referidos não
como conjunções adversativas, mas como pertencentes à categoria dos advérbios, com
exceção de mas, que é por eles considerada uma conjunção adversativa.
De encontro ao ponto de vista desses autores, Rocha (2006) indica que os que
discordam de que os itens porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto sejam
classificados como conjunções adversativas, o fazem por acreditar que a falta de fixação
das conjunções está no fato de funcionarem, no português medieval, como advérbio. Além
disso, apegam-se à ordem sintática e acabam por excluir a relação semântica presente nos
contextos em que esses itens são usados.
Por meio de sua análise, Rocha (2006) defende a motivação metafórica como
condição possível para que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto
apresentem traços comuns capazes de justificar o fato de serem englobados sob o mesmo
rótulo em português: o de conjunções adversativas.
A autora justifica a motivação metafórica pelo fato de a palavra mas, por exemplo,
ter guardado, em sua origem etimológica o sentido de comparação (herança do sentido de
inclusão). Assim, ao longo do tempo, vem se especializando em contextos contrajuntivos,
opacificando os seus sentidos originais, ou seja, gramaticalizando-se e passando a ligar-se,
para o falante, à própria ideia de contrajunção.
Rocha (2006) conclui que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no
entanto servem para sinalizar relações contrajuntivas existentes entre unidades do texto
que devem também ser analisadas segundo o sentido global do texto em que se inserem.
Por mais polissêmica que seja a relação contrajuntiva, ela se assenta sobre o sentido
básico da diferença, do choque existente não entre dois segmentos, mas entre duas ideias
que, quando não expressas linguisticamente, podem ser apreendidas por uma análise que
compreenda os domínios epistêmicos e conversacional da língua e considere o
subentendido que permeia a linguagem como um todo.
59
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
A presença da coalescência é também observada em estudo realizado por Barreto
(1999), que apresenta um glossário para explicar a formação dessas mesmas conjunções.
Segundo a autora, o porém origina-se da preposição latina per + em, forma apocopada do
advérbio latino ende; contudo forma-se da preposição com (do latim cum) + indefinido
tudo (do latim totu-); todavia constitui-se de toda (do latim tuta-) + via (do latim via);
entretanto forma-se da preposição entre (do latim inter) + tanto (do latim tantu); entanto
forma-se da preposição em + indefinido tanto (do indefinido latim tantu).
Assim, embora a pesquisa de Rocha (2006) não trabalhe o processo da coalescência
propriamente dito, finda por analisar itens que se formaram por meio do processo
coalescente.
Felício (2008) é outra autora que também trabalha a gramaticalização de um item
formado pelo processo de coalescência. Nesse caso, a autora trabalha com a
gramaticalização de embora, que, conforme já mencionado, forma-se a partir do processo
coalescente entre as formas: em + boa + hora que, em latim, correspondia a in bona hora.
O trabalho de Felício (2008) se baseia em dados sincrônicos e diacrônicos do
português e tem como principal objetivo investigar o processo de mudança responsável
pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de significado) da conjunção
concessiva embora.
Para isso, a autora segue o trajeto da forma embora do século XV ao XIX,
indicando que, no século XV, usava-se a expressão em boa hora e, conforme descrito por
Said Ali (2001), a expressão era usada para desejar boa sorte no momento de determinada
ação (a expressão funcionava como locução adverbial temporal), como é exemplificada por
Felício (2008, p.10):
(07)
Vaamos em boa hora nosso caminho. (Zurara, Guiné 337)
Pelo trajeto histórico, Felício (2008) relata que é a partir do século XVI que
começam a surgir os primeiros indícios da aglutinação da expressão em boa hora com a
perda do /a/ do adjetivo boa, passando a ser usada assim: em bo‟ hora. Contudo, nesse
mesmo século, era possível notar o uso das seguintes formas: em boa hora, em bo‟ hora e
embora. Nesse período, as três formas citadas exerciam a função de advérbio, podendo
indicar circunstâncias como tempo, espaço ou ainda tempo/concessão.
60
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
As formas em boa hora, em bo‟hora e embora eram compreendidas como advérbio
temporal quando denotavam um bom momento. Além disso, o acompanhamento de verbos
como: nascer, ficar e ser, usados no pretérito do indicativo, no imperativo e/ou no
subjuntivo eram evidências que as caracterizavam como locução/ advérbio temporal.
Assim, Felício (2008, p.139) evidencia o uso do embora com essa conotação no
exemplo (08):
(08)
Eu quero-o ir avisar
Ca lhe cumpre de rezar,
E tornar-se a seu serviço.
Por sua cruz, manas minhas,
Qu‟ella está dele assanhada
Oh virgem nossa avogada
Que os gados encaminhas!
Quem m‟a vira!
Quem lá fora!
Tu, prima, nasceste embora
Se viras o cachopinho,
Tão formoso e sesudinho,
Filho de nossa Senhora!
Tudo eu hei de dizer
Ao nosso cura tá ó cabo,
E o prol (16 APP,36)
Porém, se essas formas viessem precedidas junto a um verbo de movimento, como
“vir” ou “ir”, com ou sem a presença de vocativo, as mesmas passavam a ser
caracterizadas como advérbio espacial. Felício (2008, p.141) exemplifica esse uso com o
exemplo (09):
(09)
Venhas embora, Fernando!
Eu t‟esperarei á portella.
Parece cá MAdanella? (16APP,30)
Com a alta frequência de uso, o embora passou a refletir, em certos contextos, um
uso ambíguo, possibilitando duas leituras: uma referente ao tempo outra referente a
concessão. A leitura concessiva era possível devido à presença de contextos adversativos e
negativos, o que não impedia que o significado temporal também fosse recuperado.
Sobre esse momento de ambiguidade da forma embora num mesmo contexto,
Felício (2008, p. 144) relata que:
61
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
(...) no século XVI, esse contexto ambíguo pode ser chamado de contexto
bridging. Vale lembrar que conforme Heine (2002) esse contexto é aquele que
possibilita uma interpretação concessiva, uma vez que o contraste entre as partes
do enunciado implica essa nova leitura, mas, por outro lado, a leitura temporal
não é totalmente excluída. O contexto bridging também foi verificado nos dados
do século XVII.
No século XVII, o uso da forma aglutinada embora se tornou predominante e
passou a exercer a função de advérbio espacial ou advérbio temporal/concessivo em
contextos há pouco mencionados. Contudo, no mesmo período em que o embora ainda era
usado com essa função, no decorrer do tempo, o uso começou a ser organizado e
reanalisado para ser interpretado como conjunção.
Felício (2008) destaca ser possível encontrar o embora funcionando como
preposição com valor concessivo. Isso ocorre porque o embora aparece unindo termos
dentro das orações, estabelecendo um valor concessivo entre esses termos. Tais
características, portanto, remetem ao conceito clássico das preposições. Para demostrar o
embora funcionando como preposição Felício (2008, p.148) expõe o exemplo (10):
(10)
Mas faça ifto embóra o Mundo cego, venho a Deos no prefebio, que alfim o pagará com o não vêr o Ceo:
nos, quem ele por fua Bondade abrio os olhos, que faremos?(17SN, 68).
Quanto ao século XVIII, o uso do embora seguiu sem grandes variações em relação
ao século anterior. No século XIX, o embora já totalmente aglutinado apresenta uma
variedade grande de funções a depender do contexto: advérbio espacial, advérbio
concessivo, conjunção concessiva e ainda preposição concessiva. Segundo Felício (2008),
nesse período o sentido concessivo tornou-se habitual entre os falantes do português em
contexto apropriados.
Ademais, o item passou por vários mecanismos de gramaticalização, como
automatização, redução fonética, generalização de significado por metáfora e
pragmatização de significado por metonímia.
Pela descrição sincrônica, foi possível verificar que devido à alta frequência do
advérbio embora acompanhado do verbo ir, o item ganhou um significado mais abstrato do
que o espacial, a saber, de avanço/rapidez, que talvez tenha se especializado em textos de
relato de procedimento.
62
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Já os dados diacrônicos permitiram sinalizar a evolução de seus usos ao longo dos
séculos, apurar as frequências token e type, apontar contextos que favorecem as leituras de
tempo, concessão e de ambiguidade, o que permitiu visualizar trajetória de mudança
responsável pelo surgimento da concessiva embora e, sobretudo seu ganho de
expressividade.
Quanto à implicação do novo significado, a investigação histórica permitiu verificar
que, no século XVI, diferentemente do que afirmam as gramáticas históricas, embora já
implica concessão, em contextos de negação. O período de transição, entre o valor
temporal e o concessivo, provavelmente, se deu no século XVII, em que o item começa a
ser utilizado em contextos não só de adversidade e negação, mas também de condição,
possibilidade e desejo.
Diante das pesquisas expostas, observamos que, o falante comum não tem
consciência que certas construções como embora, porém, amarei, entre outas, originaramse da coalescência entre palavras gramaticalmente diferentes, formando um único
vocábulo. Com isso, percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações
em sua estrutura, sofrem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se a gramaticalização, via
processo de coalescência.
As pesquisas expostas, embora não tratem do processo de coalescência em si,
tratam da gramaticalização de itens, que durante seu processo de construção até adquirir a
forma e função atual, fizeram uso da coalescência ao longo de seu desenvolvimento.
Lembramos que esses mesmos itens continuam sujeitos a gramaticalização e ao uso do
processo coalescente, posto que a gramaticalização não necessita ser finita.
Em outras palavras, as pesquisas expostas subsidiam nosso trabalho no sentido de
que percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações em sua estrutura,
tendem a sofrerem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se à gramaticalização, via
processo de coalescência.
63
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
4 ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN
Neste capítulo, descrevemos os mecanismos e propriedades formais e funcionais
que caracterizam o processo da coalescência como relativos aos estudos de
gramaticalização, a partir de construções linguísticas utilizadas na modalidade oral de
analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN.
Primeiramente, apresentamos o levantamento dos usos da coalescência, tanto
fonético-fonológica quanto gramaticais, presentes na fala dos remanescentes quilombolas
de Portalegre/RN e sua frequência. Depois, delimitamos, para análise, apenas as
coalescências que resultaram em construções gramaticais. A seguir, com base na análise,
apresentamos as tendências de gramaticalização das construções coalescentes na fala dos
quilombolas.
4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN
Numa primeira etapa da nossa pesquisa, fizemos o levantamento das ocorrências
de coalescência, extraindo-as do corpus e conservando o seu contexto de uso em um
excerto significativo de fala, como mostramos em (1) e retomamos em (11).
(11)
(...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas
casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui
fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/
eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é
isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a
mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-depuêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma.(H61036-IQ3-69-44)
Na amostra (11), em que o informante mostra como se faz a farinha, classificamos
as formas pras, pros e quisso, como exemplos de coalescência fonético-fonológica, cuja
junção não implica mudança de função dos itens envolvidos (preposição e artigo,
conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma unidade fonológica; já as formas
quiném e né? formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens
envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e não + é = né? marcador
discursivo).
64
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Esse levantamento resultou em 58 (cinquenta e oito) formas, que apresentamos, no
Quadro 6, segundo a ordem alfabética das ocorrências.
Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de
Portalegre/RN
Coalescências
1. Abombasta (ah, bom, basta!)
30 . Presse (Para esse)
2. Armaria (Ave Maria!)
31. Preu (Para eu)
3. Cumé? (Como é?)
32. Pros (Para os)
4. Cumé qui...? (Como é que...?)
33. Prum (Para um)
5. Daculá (De + acolá)
34. Pruma (Para uma)
6. Daqui praculá (De + aqui para acolá)
35. Pu (Para o)
7. Decá (Dê cá)
36. Puraculá (Por acolá)
8. Destá (Deixe estar)
37. Puraí (Por aí)
9. Deu (De + eu)
38. Puraqui (Por aqui)
10. Dôtu (De outro)
39. Pureu (Por eu)
11. Eraqui (Era aqui)
40. Purisso (Por isso)
12. Ir mimbora (Ir me em boa hora)
41. Qué qui ...? ((O) Que é que ...?)
13. Ir simbora (Ir se em boa hora
42. Quela (Que ela)
14. Marréra (Mas era)
43. Quelas (Que elas)
15. Né? ( Não é?)
44. Quele (Quele)
16. Nera? ( Não era?)
45. Queles (Queles)
17. Neu (Em + eu)
46. Quenum (Que num)
18. Nôtu (Em + outro)
47. Quera (Que era)
19. Nouto (Em + outro)
48. Quessa (Que essa)
20. Peraí (Espera aí)
49. Quesse (Que esse)
21. Peu (Para eu)
50. Quesses(Quesses)
22. Praculá (Para acolá)
51. Queu (Que eu)
23. Praqueles (Para aqueles)
52. Quiném (Que nem)
24. Praqui Praculá (Para aqui para acolá)
53.Quisso (Que isso)
25. Pras (Para as)
54.Sela ( Se ela)
26. Precê (Para você)
55. Seu (Se eu)
27. Prela (Para ela)
56.Umeno (Ao menos)
28. Prele (Para ele)
57.Vir simbora (Vir se em boa hora)
29. Pressas (Para essas)
58. Xêu Vê (Deixe eu ver)
Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)
Separamos as formas coalescentes flexionadas em número e em gênero para
verificarmos a frequência de uso, constante da Tabela 1, mas selecionamos apenas as
construções para a análise de suas propriedades formais e significativas, como veremos na
seção 4.2.
Vejamos, então, a Tabela 1 que demonstra as construções coalescentes detectadas
no corpus, seguidas de sua frequência individual de cada uso e a frequência geral das
ocorrências.
65
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes
quilombolas de Portalegre/RN
Frequência
Individual
Coalescências
Né
Queu
Quele
Quera
Pro
Deu
Qué
Quela
Purisso
Nera, Quiném
Preu
Praculá, Cumé qui...? Puraí, Quesse
Cumé?, Peu, Puraculá, Puraqui, Qué qui...?
Pras
Armaria, Daculá, Dôtu, Presse, Quessa, Vir
simbora
Abombasta, Pros, Prum, Pureu, Queles
Daqui Praculá, Ir simbora, Neu, Peraí,
Praqueles, Praqui Praculá, Prele, Quesses,
Sela, Umeno
Decá, Destá, Dum, Eraqui, Marréra, Nôtu,
Nouto, Precê, Prela, Pressas, Pruma, Pu,
Quelas, Quenum, Quisso, Seu, Xêu vê
Total
Geral de Ocorrências
Absoluta
Relativa
213
146
51
32
26
25
24
19
16
14
9
7
6
5
4
28,9%
19,8%
6,9%
4,3%
3,5%
3,4%
3,3%
2,6%
2,2%
1,9%
1,2%
1%
0,8%
0,6%
0,5%
213
146
51
32
26
25
24
19
16
28*
9
28
30
5
24
3
2
0,4%
0,3%
15
20
1
0,1%
17
Total
Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)
721
*soma dos tipos de coalescência presentes na primeira coluna.
Da Tabela 1, extraímos as 20 (vinte) construções coalescentes para análise. As
demais formas coalescentes, como ainda não se gramaticalizaram, pois não identificamos
qualquer alteração em suas propriedades significativas nos diferentes contextos em que se
apresentam, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial de mudança, que
pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser constatada em
momentos futuros. Passemos, então, à análise das construções coalescentes na seção 4.2.
4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de
Portalegre/RN
Nesta seção, a análise parte do processo de vinculação de sentido e forma que dá
origem a novas expressões, no caso, da fala de parte da comunidade de remanescentes
66
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
quilombolas, interpretando, assim, as suas motivações discursivo-pragmáticas como
também as tendências de trajetória de mudança do processo de coalescência mais
frequentes na fala dos quilombolas.
Vejamos, na Tabela 2, a frequência e uso das 20 (vinte) formas coalescentes,
presentes no corpus em estudo, conforme a faixa etária e sexo.
Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes
quilombolas de Portalegre/RN
Informante
Coalescência
Total
Mulher
Homem
Faixa etária
Faixa etária
I
II
III
I
II
III
F
%
1
2
3
4
6
8
9
10
11
12
13
14
Né?
6
2
3
15
-
-
2
2
73
53
5
52
213
68,1%
Quiném
-
-
-
2
-
-
2
-
1
8
-
1
14
4,5%
Nera?
-
2
2
1
-
-
1
-
-
2
1
5
14
4,5%
Praculá
-
-
4
1
-
-
-
-
1
-
-
1
7
2,2%
Puraí
-
-
3
-
2
-
-
-
1
-
-
1
7
2,2%
Cumé qui
-
-
1
-
-
-
-
-
1
2
1
2
7
2,2%
Cumé?
-
-
-
1
-
-
-
-
1
4
-
-
6
1,9%
Puraculá
-
-
-
-
-
-
-
-
6
-
-
-
6
1,9%
Puraqui
-
-
-
-
1
-
-
-
3
-
1
1
6
1,9%
Qué qui
-
-
2
-
-
-
-
-
4
-
-
-
6
1,9%
Praqui praculá
-
-
2
1
-
-
-
-
1
-
-
1
5
1,6%
Daculá
-
-
-
-
2
-
1
-
1
-
-
-
4
1,3%
Vir simbora
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
4
4
1,3%
(a)bombasta
-
-
-
-
-
2
-
-
-
-
-
1
3
1%
Ir mimbora
-
-
-
-
-
-
1
-
-
2
-
-
3
1%
Peraí
-
-
1
-
-
-
-
-
1
-
-
-
2
0,6%
Daqui praculá
-
-
-
1
-
-
-
-
-
-
-
1
2
0,6%
Ir simbora
-
-
-
1
1
-
-
-
-
-
-
-
2
0,6%
Destá
-
-
-
-
-
-
-
-
1
-
-
-
1
0,3%
67
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Xeu vê
Total
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
1
6
4
18
23
6
2
7
2
95
71
8
71
10
41
57 (18,2%)
6
9
176
71
1
0,3%
313
100%
256 (81,8%)
Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011)
Frequência individual de cada construção coalescente exposta.
Segundo os dados da Tabela 2, os informantes usam 20 diferentes construções
coalescentes, distribuídas em 313 ocorrências. Dentre elas, registramos as maiores
ocorrências da construção Né?, com o total de 213 (68,1%), seguidas de 14 (4,5%)
ocorrências tanto da construção Nera como da construção Quiném?.
Quanto aos informantes e aos respectivos usos, os dados mostram também que o
Né? e o Nera? são as construções mais usadas por diferentes falantes. Seguem-se os usos
das construções Quiném e Cumé qui ...? com cinco usuários diferentes e das construções
Praculá, Puraí, Puraqui, Praqui praculá, com quatro falantes diferentes. Se juntarmos as
ocorrências das construções com “Vir simbora , Ir simbora e Ir mimbora”, resultaria no
total de cinco falantes que se valem dessa construção de deslocamento5. Acreditamos que
as construções usadas por diversos informantes possam caracterizar a fala dos
remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN, porém não podemos afirmar que
sejam específicas, posto não termos feito ainda um estudo comparativo com comunidades
de fala vizinhas ou regionais.
Ainda sobre os informantes, os quais ao todo consta a participação de 14 (catorze)
para composição do corpus, ressaltamos que não houve registro de nenhuma das 20
construções coalescentes, constantes da Tabela 2, na fala dos informantes 5(M6Q63) e
7(H2Q37). Além disso, a diferença de usos entre homem (81,8%) e mulher (18,2%) não foi
levada em conta para efeito de comparação, devido à assimetria dos volumes textuais do
corpus. Justificamos que o referido corpus não teve o controle dessas variáveis, mas que
nos foi útil para a consecução dos demais objetivos propostos nesta investigação.
_______________________
5
As contruções estão ilustradas e comentadas nas subseções 4.2.1 a 4.2.12
68
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Com base nas frequências observadas na Tabela 2, passamos, a seguir, na ordem
decrescente, à análise das construções, em cuja formação ocorre o processo da
coalescência, presentes no corpus da comunidade de fala em estudo.
4.2.1 Né? / Nera?
Conforme podemos notar na Tabela 2, Né? foi a construção mais usada. Das 313
(trezentas e treze) ocorrências de coalescências gramaticalizadas que foram coletadas no
corpus, 210 (68,1%) foram apenas ocorrências da construção Né?, seguidas da alta
frequência de uso da sua construção variante, ainda em desenvolvimento, Nera?, com 14
(4,5%) ocorrências. Salientamos que a construção coalescente Né? se manifesta na fala de
10 (dez) informantes dos 14 (catorze) que participaram do corpus, o que representa um uso
significativo. Acreditamos que isso ocorra pelo fato de essa já ser uma construção
coalescente cristalizada e de uso comum, não só em parte dessa comunidade como também
no português do Brasil como um todo, que pode ser evidenciado, em diversos estudos
sobre o Né?.
As construções coalescentes Né? e Nera? apresentam como formas originais: não
(advérbio de negação) + é, era
(verbo ser). Com a alta frequência de uso, essas
construções foram sendo formadas a partir da perda de massa fônica da negação, bem
como seu significado inicial foi sendo gradativamente alterado, desempenhando
atualmente a função de Marcador discursivo.
Sobre Marcador discursivo, Lyra (2007) relata que os marcadores discursivos
frequentemente aparecem na fala quando os falantes precisam reformular suas ideias,
processar mentalmente informações, atuar no monitoramento da conversação e reorganizar
o discurso.
O Né? como marcador discursivo, desempenha três funções: é um elemento de
contato que solicita a aquiescência e a atenção do ouvinte, mantém o fluxo da conversa;
além disso atua como marcador rítmico e perde sua modulação interrogativa.
Sobre a perda da modulação interrogativa sofrida pelo Né?, Martlotta; Votre;
Cezario (1996) apontam uma trajetória que evidencia o percurso realizado por marcadores
discursivos dessa natureza, o qual pode ser apresentado da seguinte forma:
Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica
69
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Seguindo esse trajeto, uma pergunta plena é aquela que o falante espera e deseja
uma resposta do ouvinte. Assim, falante e ouvinte devem compartilhar de conhecimentos
afins no contexto de interação. Já a pergunta semirretórica é aquela que o falante faz e ele
próprio responde, esta é uma estratégia que visa focar alguma parte do texto e, ao mesmo
tempo, manter a atenção do ouvinte. Por fim, a pergunta retórica é aquela que é realizada
pelo falante, mas não requer uma resposta. Fávero (2000, p.95) diz que a “pergunta retórica
ocorre quando o falante elabora a pergunta, mas já conhece a resposta; usada como recurso
para manter o turno ou para estabelecer contato (função fática)”.
Marcuschi (1986) considera que o uso de palavras, como o Né? presente na
oralidade, orienta o turno, preenche pausas, organiza o pensamento e monitora o ouvinte.
A forma Né? tem como funções especialmente em contextos orais: chamar a
atenção do ouvinte como forma de interação e inclusão do mesmo na conversa; chamar a
atenção para determinado trecho como objetivo pragmático de ativar a informação na
memória do interlocutor, checar a compreensão do que foi dito, destacar certas
informações em relação a outras e inclusive desempenham funções textuais, pois
organizam o texto e ordenam segmentos textuais.
Podemos observar todas essas característica da construção coalescente Né? bem
como flagrarmos, sincronicamente, os diferentes estágios por que passou a construção Né?,
na amostra (12):
(12)
H61-05: Era bem diferente, né?
((RISOS))
E: Porquê? Qual é a diferença?
H61-05: Porque o povo farrea muito, é direto, né? Agora nesse nesse São João e nesse são Pedo/ faiz uma
festa só/ direto sem pará aqui im Portalegre passô ...forum oito dia... parece, num foi? de festa só de uma
festa pra ôta e quando se acabava num canto era nouto, né? O povo de hoje só qué vive o tempo todo de
brincadera, num é não? ((PAUSA)) no meu tempo... no meu tempo... tinha, vô dizê qui num tinha não... mas
era um bailezim aqui ôtu aculá... DEMORAVA... num era desse jeito qui é hoje não/ mas também no meu
tempo as coisa era mais difici... assim num tinha/ eu num já disse? Num tinha as facilidade de hoje, né não?
(H61-05- 194/195/196-IQ3-46 -140a149)
A amostra (12) apresenta três usos da construção já cristalizada. Entretanto,
encontramos, na linha 144 (cento e quarenta e quatro), a forma num foi? , que ainda se
encontra em desenvolvimento igual a Nera?, que apresenta as formas de tempo passado,
além do flagrante enfraquecimento do “não”, que passa para num antes da coalescência
com a forma fixa do verbo ser no presente é e o apagamento do não tônico que intenta
70
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
intensificar, ao lado de né, a negação da oração, em “né não”?, na última linha. Dessa
maneira, os dados sincrônicos indiciam o desenvolvimento do cline: NUM FOI [ERA] >
NUM É NÃO > NÉ NÃO > NÉ.
Analisemos, então, a função dos usos das construções coalescentes Né? e Nera?
presentes nas amostras (13) e (14)
(13)
H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muito nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere í tudo pra
rua também, né?! O síto/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente
tem, mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem
futuro aqui qui indo simbora fica inté milhó, né?
(H61-05-52/53/54 -IQ3-46-131/132/133)
(14)
H49-01: ele só quer branca, rapais... só qué canara branca...
H39-03: uma canara pra pra pra pintassilga só tira um canaro bunito é uma canara é é é se fô é salsa, rapais...
uma salsazinha se for... um dia eu arrumei uma aparei o rabo dela um poquim aquele pintassilgo lá cruzava
cum ela direto lá im casa, rapais, inda chegô inté a pô... aí discasô... num sei se era ele qui num tava incheno
qui num tava forte, nera? Ou era ela...
(H36-03- 117-IQ2-35-356)
Na amostra (13), o informante expõe, nesse contexto, sua opinião sobre a realidade
do sítio onde mora. Percebemos que o informante faz uso três vezes da construção
coalescente Né? e, embora essa construção venha seguida de uma interrogação, em ambas
as situações em que foram usadas, o emissor não requer uma resposta de seu ouvinte, mas
apenas sua atenção, o apoio discursivo, e, assim, mantém o fluxo da conversa. Assim, a
construção Né? desempenha em contextos dessa natureza a função de marcador discursivo
ou conforme Figueiredo-Gomes (2008) Requisito de Apoio Discursivo - RAD. Desse
modo, o Né? não se confunde com “não é”, negação do verbo ser, não só pela pronúncia
sem a nasalidade e abreviada, bem como pelo contorno menos interrogativo e ainda por
seu posicionamento em final de enunciado.
A mesma função é desempenhada por Nera?, em (14), que apresenta como formas
originais: não (advérbio de negação) + era (verbo ser), em que a forma era carrega ainda
restrições gramaticais da categoria verbal tempo (pretérito imperfeito). Na amostra (14), o
informante relata sua experiência com pássaros, especialmente com um canário (fêmea). O
falante usa a coalescência Nera? em busca de apoio discursivo, pois ele, mal “interroga”,
já insere outra fala, o que nos evidencia que a interrogação apenas monitora a interação,
em que o falante quer saber se está sendo compreendido. Dessa maneira, perde a
modulação interrogativa. E mantém o fluxo da conversa.
71
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Reconhecemos nessa pesquisa que as construções coalescentes Né? e Nera?
desempenham a função de marcadores discursivos, e que desse modo, essas formas se
distanciaram de seu significado inicial, contudo reconhecemos também que o processo de
coalescência contribuiu para que essa nova função surgisse.
Como já anunciamos, existem vários trabalhos sobre a gramaticalização da
construção coalescente Né?”, embora não sob o enfoque da coalescência, conforme
objetivo nesta pesquisa, mas sim, sob o enfoque dos marcadores discursivos. A título de
informação entre os autores que apontam o Né? como marcador discursivo, podemos
mencionar: Castilho (1989), Marcuschi (1989), Martelotta (1996, 1997, 1998, 2004),
Risso; Silva, Urbano (1996), Votre; Martelotta (1998), Risso (1999), Freitag (2010),
dentre outros.
4.2.2 Quiném
A forma coalescente quiném aparece 14 (catorze) vezes na fala dos informantes
descendentes de quilombolas. Esse número corresponde a (1,9%) das construções
coalescentes encontradas no corpus.
A forma quiném é aqui compreendida como uma construção coalescente, visto que,
no próprio corpus, ela se apresenta conectada, inclusive, há estudos que refletem sobre a
expressão “que nem” sob a ótica de perífrase, considerando, assim, a construção “que
nem” como uma única palavra, especialmente no tocante à pronúncia.
Em nossa análise, constatamos que a coalescência quiném surge da junção entre a
conjunção “que” e a conjunção “nem”. Como não há ganho nem perda fonética na junção
entre essas duas palavras, a coalescência quiném se forma por justaposição. Apesar disso,
ocorre uma transformação no fonema /e/ da conjunção “que” o qual passa a ser
pronunciado como fonema /i/, mudança essa caracterizada como transformação por
assimilação parcial.
Sobre o termo “que”, é importante mencionar que se trata de um termo
multifuncional e pode indicar diversas funções a depender do contexto: pronome relativo,
conjunção coordenativa, conjunção subordinativa, pronome interrogativo, pronome
indefinido, substantivo, advérbio e até preposição.
72
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
O “nem” já não apresenta tantas multifuncionalidades e, geralmente, é classificado
como uma conjunção coordenativa aditiva, podendo em alguns contextos funcionar como
advérbio de negação.
Quanto ao aspecto sintático, o quiném se correlaciona à função de conectivo
comparativo ou introdutor de exemplificação. Em todas as ocorrências, a construção
quiném esteve presente em frases declarativas, com oscilação entre a posição inicial e
medial.
Vejamos nas amostras (15) e (16) situações em que a forma coalescente quiném é
usada pelos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. O primeiro contexto apresenta
uma conversa informal sobre pássaros entre o entrevistador e três informantes, e, no
segundo contexto, o informante de 58 anos relata a vivência de uma experiência espiritual:
sua confissão com Frei Damião:
(15)
H39-03: ela pôs im quê?
E: pôs na niêra...
H39-03: dos canaru?
E: não! Na niêra grande dela...
H39-03: ah! Na niêra grande...
H49-01: naquele tempo elas tinha quebrado os ovos, num fui?
E: foi... rapais, ela pôs mais eu ainda num tive condições de olha quantos ovos foi purque quando ela sai do
nim o macho entra...
H55-02: é danado...
E: é... quano ela num tá chocando/ sai pra cume... pra bebê água... pra discançá... aí o macho vai pra cima dos
ovos...
H49-01: sim é quiném pombo.
(H49-01-118-IQ2-35-373)
(16)
H58-08:confessô logo foi duas palavra a confissão quele fez cumigo só fez assim, butô a mão na minha
cabeça, incaicô, chore... precisa chora não, meu fii tá perduado, aí eu peguei uma pratazinha butei no
((incomp.)) agora quano eu saí dela, eu ia manero, num sabe? Quiném assim um capucho de aigudão, bem
manerim, cum aquela alegria e cum aquela ainimação e me arrpendendo de tudo queu fiz, acredita?
(H58-08- 597-IQ6-85-302)
Analisando as ocorrências, acreditamos que a união dos itens “que” e “nem”
configura um caso de gramaticalização, a estrutura passa a codificar uma circunstância
linguística mais abstrata e gramatical, em relação às multifunções que esses itens,
utilizados de forma independente podem desempenhar em diversos contextos já
cristalizados.
Ressalvamos que o “que” e o “nem”, tendo suas fronteiras estreitadas perdem a
variedade de funções e passam a funcionar como uma palavra única quiném, que
73
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
desempenha novas funções, como a de conectivo comparativo e introdutor de
exemplificação. Assim, constatamos que, em quase todas as amostras em que o quiném se
fez presente, ele funciona como conector de dois componentes informacionais e estabelece
entre eles um vínculo comparativo. Essa compreensão está também evidente na amostra
(15), em que o informante compara um pássaro chamado Salsa com um pombo, e, em (16),
em que o informante de 58 anos compara seu estado de espírito (leve) com uma lã
(capucho) de algodão, após confessar-se ao Frei Damião.
Além da função de conectivo comparativo, que idenitifcamos que, em dois casos, o
quiném pode funcionar como introdutor de exemplificação, função esta destacada por
Cordeiro (2012), segundo a qual, em certos contextos a construção “que nem” (quiném)
passa a integrar uma estrutura discursiva de exemplificação. Vejamos essa função nas
amostras (17) e (18):
(17)
H58-08:Eu vô dizê uma coisa, graças a Deus e a Nossa Siôra eu sô uma pessoa/ cê veja as pessoa chama inté
eu, os negui da minha qualidade, intendeu? Chama eu de aduladô, mar eu num sô adulado não siô, eu sô é
respeitadô... se uma pessoa chegá aqui na minha casa eu trato ele quiném uma pessoa bem tratadozim qui um
dia eu tô lá na casa dele, né meu cumpade?
(H58-08-523-IQ6-80-19)
(18)
H58-08:Quano ocê vê um quiném esse daí pobe dos pobe esses daí(...)
(H58-08-702-IQ6-90-559)
Nas amostras (17) e (18) o quiném não exerce função comparativa, mas o falante
deseja expressar uma exemplificação. No primeiro caso, o informante exemplifica o modo
como trata as pessoas que chegam a sua casa; já no segundo, o informante usa o exemplo
de uma pessoa pobre, a fim de tornar claro o assunto sobre o qual fala para o seu
interlocutor. Embora haja outras funções para o que nem ou quiném, é importante deixar
claro que a função mais comum do que nem ou quiném é de conector comparativo,
conforme atesta a maior parte das ocorrências registradas no corpus analisado.
4.2.3 Cumé qui / Qué qui
Registramos a coalescência, embora fonético-fonológica, nas construções Cumé
qui...? / Qué qui...? que parecem sinalizar uma tendência de desenvolvimento do
modalizador epistêmico enfático interrogativo “é que”, que também acumula a função de
modalizador epistêmico de asseveração, em construções oracionais interrogativas
74
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
(FIGUEIREDO-GOMES, 2008).
O “é que”, que o autor denomina como marcador
enfático-interrogativo (MEI), consiste de uma construção já cristalizada, que funciona,
segundo ele, como um operador que enfatiza a busca da certeza epistêmica do argumento
como resposta à informação desconhecida, como podemos ver nas amostras (19) e (20),
nas seções a e b, que seguem.
a) Cumé qui...?
O uso da construção “Cumé qui ...?” ocorre na fala de cinco informantes diferentes,
que ilustramos na amostra (19), em que um homem de 61 anos utiliza a forma coalescente
“cumé”.
(19)
Que de premero a rente trabaiava e via um resultado muito grande, num sabe? Né? e hoje a rente trabaia que
nem nesse ano eu butei ali um roçado ali pra baxu trabaei e num tirá nada de futuro/ a rente fica pensando:
cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente? Cumé qui vai se astrevê a brocá pra quando dá-se fé num
havê inverno de novo aí perto? Cumé inconstá im dois ano sem sem sem/ ficá ruim pro lado da rente, né?!
Quanto tempo, né? E só assim mesmo essas coisas assim, cumo se diz, da natureza de Deus qui num tá mais
cumo era intigamente, né?
E: E o que qui tinha antigamente que hoje num tem?
(H61-05-039/040- IQ3-46-109)
Na amostra (19), o trabalhador, refletindo acerca dos prejuízos da falta de inverno,
questiona um problema coletivo dos trabalhadores quanto ao futuro, que se incluindo com
o sintagma “a rente”, busca, por meio da forma “é que” uma certeza para um futuro
incerto/desconhecido, marcando a atitude do falante em querer buscar uma solução, em:
“cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente?” “Cumé qui vai se astrevê a brocá pra
quando dá-se fé num havê inverno de novo aí perto?. A forma “cumé” posiciona-se no
início das construções: COMO (Advérbio interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV ...?, em
que une
“como” + o “é” da construção modalizadora. Além de ter uma explicação
fonético-fonológica, uma sinalefa das vogais (inicial e final) de vocábulos vizinhos, parece
ser ser rotineiro e específico com o uso do é”(verbo ser), pois mais adiante isso não
acontece com as formas sublinhadas “Cumé incostá” e “cumo se diz”.
Assim, podemos pôr em evidência, através dos dados sincrônicos do próprio corpus
o desenvolvimento do cline: COMO É QUE > CUMÉ QUI > CUMÉ.
Se isso é uma tendência de gramaticalização, parece continuar esse processo,
quando nos deparamos com (20), que traz a construção “é que” na oração: “cumé qui vai
75
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
meu corené?”, em que a construção não tem a mesma função de modalizador epistêmico e
figura como uma pergunta meramente retórica:
(20)
E: diga aí, meu chefe...
H58-08: cumé qui vai meu coroné? Venho chegano quais agora da cidadade...
6
E: tá fazeno? Tá ocupado?
(H58-sd-IQ6- 80-007)
Na amostra (20), a pergunta já se cristalizou como “como é que vai” e tornou-se
retórica como apenas um cumprimento inicial de pessoas no contato de chegada, não
exigindo, pois, uma certeza de resposta à uma informação desconhecida. Cumpre apenas a
função fática.
b) Qué qui ...?
A construção “Qué qui ...?” é utilizada por apenas um homem e uma mulher da
faixa 2, em que o modalizador epistêmico se realiza na macroconstrução: (O)QUE
(Pronome interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV...?, cujos elementos iniciais apresentam a
forma “Qué qui”, resultante da aglutinação de “que” + “é” , como podemos ver em (21):
(21)
M56-01: purque o finado Juaquim de Paiva ele era desse homi carrasco, se ele dixesse qui pau era pau ERA
PAU, ele era homi quele, quele era mũto... MALINO...
“Aí, é Juaquim de Paiva, tanto qui nóis gostava de Juaquim de Paiva, o home morreu? Vamu levá ele” quano
chegô na subida, eles procuraro “vamo todo mundo um dum lado ôtu dôtu, vamo” quano chegô nũa subida
quera mêi imprensado “não, rapaz, dêxi nóis dois aqui levá... qui o canto é mũto ruim um pega num canto e
ôtu nôtu”... aí os homr desce e sobe, desce e sobe e toca o povo corrê atrais e nada e toca o povo e cadê o
homi, cadê o home?... Quano chegô mũto adiante só incontraro a rede... cadê Juaquim de Paiva? Aí “vala,
mĩa nossa siôra, um home rico cumo é ele, qué qui a gente vai fazê? Fazê pra interrá no cimitéro, qué qui
nóis vamo fazê?” aí
teve um home quera chéi das idéia, aí disse assim “sabe qué qui nóis vamo fazê? Nóis vamu passá lá naquela
baxa qui tem mũta banenêra, nóis procura um tronco de bananêra bem grosso, bota dento da rede” e assim
fizêro, assim fez. Chegô na bananêra, tirô, inrolô bem inrolado “quem é? Quem é? Quem morreu?” “foi
Juaquim de Paiva” “abra aí preu vê...” “Não rapaz, o home já tá mũto ruim, nũa situação ruim, qui num dá
pra gente vê não, PUXA! LEVA!
(M56-01-011/012/013-IQ1-343-017)
Em (21), temos a ocorrência de três construções “qué qui”, em que a contadora do
sumiço do morto busca uma resposta certa dos demais para solução do problema.
Formalmente, ocorre com essa construção o mesmo fenômeno da construção “cumé qui”,
cuja função de modalizador se repete, porém na forma coalescente “qué”. Flagramos
também um outro desenvolvimento do MEI, que parece ter uma tendência de apagamento
76
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
do “é” da forma coalescente passando a “que”, descrita na possível trajetória É QUE >
QUE, apresentada na forma sublinhada em (22).
(22)
(...) Que qui nós vamo jantá agora? Nada, puique nós num truxemo nada... é purai... rapais, quanto é essas
quatro párea de pêxe? Seu Dó é dois mirréis... munto bem, tome o dĩero... minha cumade, essas tainha ...
essas ... me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse
cumê aí pá esse povo todim aí,
(H58- sd-IQ6- 85-286)
Na pergunta do falante aos interlocutores, o “povo todim”: “Que qui nós vamo jantá
agora?”, há o fechamento do [] na forma coalescente [k] > [k], persistindo apenas o
“que” da outrora forma “é que”. É uma tendência que deve ser constatada em um estudo
específico.
Em suma, como desenvolvimento da construção coalescente “qué qui...?”
destacamos o seguinte cline: O QUE É QUE > O QUE QUI > QUÉ QUI (> QUE QUI).
4.2.4 Praculá / Praqui praculá
As construções Praculá e Praqui praculá tem em comum na forma original os
elementos para e acolá. A preposição para provém da aglutinação das formas latinas per e
ad e que, inicialmente, para/pera marcava “um percurso em direção definida”. Entretanto,
segundo Câmara Jr. (1976, p. 177), a indicação de direção se torna mais complexa, que
pode também indicar “chegada” e “permanência”.
Originalmente, o elemento Acolá,
conforme Cunha (2010, p.9), vem do latim eccum illac (= eis ali), e seu registro data do
séc. XIII na língua portuguesa como advérbio significando lá, mais além.
Vejamos, nos dados do corpus, que sentidos apresentam as construções
coalescentes Praculá e Praqui praculá.
a) Praculá
A construção coalescente Praculá aparece sete vezes no corpus, o que equivale a
2,2% de todas as construções coalescentes em análise.
A construção coalescente Praculá se forma a partir da aglutinação das palavras
Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), ou seja, PREP + LOC. No uso em
77
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
que há a junção desses dois elementos, ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da
sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas.
A preposição para isoladamente pode indicar diversos sentidos a depender do
contexto de uso em que esteja inserida como, por exemplo: “Olhe para frente!” nesse
contexto a preposição indica direção, já no contexto: “Trabalho para viver”, a preposição
para indica finalidade, a preposição para pode indicar também destino, como em: “Vou
para universidade”.
Já o advérbio acolá é originalmente locativo, ou seja, indica lugar. Como, por
exemplo: “Minha casa fica acolá”. Ele, como advérbio, pode, inclusive, ser substituído
pelo advérbio Ali.
Porém, em nossa análise, notamos que, com a coalescência das palavras Para +
Acolá = Praculá, há uma nova forma e um novo sentido e, como construção coalescente
Praculá continua com a noção de sentido locativo, mas, diferentemente dos sentidos
originais, passam a significar um indicador de direção indefinida, marcadamente, na
amostra (23), por se tratar de uma história do mundo fantástico.
(23)
M56-01: Antõim de Anania, é Antõim do Rêgo num tem um sítu praculá pra baxo num tĩa? E eu acho qui
ainda tẽim e num sei quem é qui hoje im dia toma conta que a gente toda a vida ia lavá rôpa, lá tĩa uma pedra
incantada. Quano a gente tava assim/ é, é, a merma pedra e o povo tava acustumado a í pra lá porque os galo
cantava, os guiné...
(M56-01-003-IQ1-13-151)
Na amostra (23), a informante comenta sobre um lugar onde supostamente há uma
pedra encantada (fantástica). Percebemos que, para indicar o local do sítio, a informante
faz uso da construção coalescente Praculá, de modo a não indicar o local preciso,
desviando a atenção do ouvinte quanto não só à direção do sítio como à existência dele
nesse mundo fantasioso da história. Isso pode ser uma forma de preservação de face da
falante para que a “mentira” seja contada como verdadeira, uma história de vida, para o
entrevistador (ouvinte), e não mera ficção.
Vejamos a confirmação desse uso, na amostra (24), em que o falante se
compromete com a confirmação da verdade, mesmo mentindo.
(24)
E: e quem disincanta fica rico?
M56-01: fica! Rico! E é, fica rico! E dêxa que uma... uma vai contá, uma históra qui lá no Sêi de Abrão... no
Sêi de Abrão aqui no sertão aqui ((APONTANDO)) praculá pra lá. (...)
(M56-01-008-IQ1-15-223)
78
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Percebemos, assim, que a construção coalescente Praculá apresenta uma mudança
semântica-pragmática-discursiva, em relação à indefinição locativa, portanto, da perda de
sentido de direção da construção para acolá que é geralmente usada em outros contextos
que, por exemplo, exigem clareza e objetividade.
b) Praqui praculá
A construção coalescente Praqui praculá ocorre cinco vezes no corpus analisado,
de modo que representa 1,6% de todas as construções coalescentes analisadas.
A construção em análise surge de duas construções coalescentes. A primeira é
Praqui, que se origina da aglutinação entre a preposição para e o advérbio locativo aqui.
Com a aglutinação entre esses vocábulos ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da
sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas, do mesmo
modo como se passou com a segunda construção coalescente, Praculá, a qual descrevemos
na subseção “a” e que gradativamente passou a desempenhar a função de indicador de
direção indefinida para o que, originalmente, indicava direção para locais definidos, certos.
Assim, em contextos quando as construções coalescentes são usadas, lado a lado,
notamos que a nova construção coalescente Praqui praculá perde seus significados
primeiros de direção e lugares definidos e fixos (praqui seria perto do falante e praculá
seria distante do falante e ouvinte), passando a representar a noção de deslocamento no
espaço (delimitado). Essa nova função pode ser identificada na amostra (25):
(25)
M50-01: tem! Tem! Aí, bem! Carlim, ôtu dia... aconteceu... qui o minino tomô uma cachaça, aí toda vida qui
tomava essa cachaça tĩa aquele sentido de í pra esse canto, aí desceu, quano desceu presse canto aí a criatura
ia buscá ele.
E: era como se fosse uma coisa qui chamasse, num era?
M56-01: pra buscá ele e levô, levô inté lá e intão o povo procurô, procurô, e cadê Vaval? Cadê Vaval?,
praqui, praculá, praqui praculá e nada, e nada, e nada de incontrá. Aí, quano foi mũto, mũto, mũto tarde/
aí sei qui a criatura vẽi dêxá ele até no terreiro de casa.
(M50-02-01/04 /05- IQ1-14-202)
Na amostra (25), a falante narra fatos lendários, em que uma suposta criatura teria
raptado Vaval, um conhecido da informante. No decorrer desse acontecimento, várias
pessoas se mobilizam à procura de Vaval e, nesse momento, a informante faz uso
repetidamente da construção praqui praculá, praqui praculá, indicando, dessa forma, o
deslocamento das pessoas num espaço não preciso, que, certamente, deixa a inferência que
79
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
seria aos arredores onde Vaval teria sido visto num último momento, mesmo sem a
exatidão do local.
Além de a construção coalescente praqui praculá, indicar deslocamento de espaço
inexato, detectamos outro contexto que essa construção pode indicar também duração no
tempo, como mostra (26)
(26)
E: e o racionamento chegô puraqui?
M63-05: de luz?
E: sim...
M63-05: chegô... sim qui aqui num tem nem o qui cunumiza puiqué cumu o siô pode vê só tem essa
televisão... mar im da véi muntu puique no mês passado veio doze e agora nesse mês agora vei seis num vei
munto ainda? Puiqué só dos mininu ficá praqui praculá assisitino televisão vei...
E: a sinhora a sinhora tem direito a gastar quanto?
M63-05: é quatro Toim? Direito de gastar?
E: aí faz o pavi de algodão...
M63-05: aí faz o pavi do aigudão ((incomp.)) nam eu sô uma pessoa queu num gosto munto de pidi não...
(M63-05-185- IQ5-75-223)
Na amostra (26), a informante conversa sobre o racionamento e o seu baixo
consumo de sua energia elétrica. Nessa amostra, o uso da construção Praqui praculá, não
indica, nesse contexto, um deslocamento de espaço, pois é difícil imaginarmos a
informante afirmar que os meninos assistiam à televisão saindo de um lugar para outro.
Desse modo, podemos inferir que o contexto indica que os meninos ficavam quase o tempo
todo, com intervalos de tempo, assistindo à televisão, o que caracteriza o gasto maior de
energia elétrica.
Assim sendo, percebemos que a construção Praqui praculá, seguindo o princípio
da unidirecionalidade, vem gradativamente apresentando modificações estruturais e novos
significados, tanto de suas partes como do todo, desde sua forma fonte até a construção
coalescente dupla.
Nesse sentido, podemos apontar o seguinte cline para a construção Praqui praculá
por meio da metáfora: ESPAÇO > TEMPO, partindo da noção de espaço concreto para a
noção mais abstrata de tempo.
4.2.5 Puraí / Puraqui / Puraculá
Embora as construções Puraí, Puraqui e Puraculá, fora do corpus, ainda não
tenham sofrido a coalescência morfológica (junção de palavras já cristalizada,
dicionarizada), têm tido, como há no corpus, a coalescência fonético-fonológica (junção de
80
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
palavras que ocorre apenas na oralidade) e mudanças semântico-pragmático-discursivas.
As três construções têm em comum o fato de possuírem, no primeiro elemento das formas
fontes, a preposição locativa Por, que significa lugar por onde, e o fato de terem um
advérbio (aí, aqui e acolá) como segundo elemento da forma original.
a) Puraí
A construção coalescente Puraí é usada sete vezes em todo o corpus e corresponde
a 2,2% das construções em análise.
A forma Puraí apresenta como forma fonte por + aí, ou seja, por (preposição
locativa lugar por onde) + aí (advérbio locativo). Essa união de palavras se deu por
justaposição, já que não houve ganho nem perda fonética, embora houvesse a alteração do
fonema /o/ da preposição “por” em /u/, resultando a forma “pur”.
Destacamos que, embora, no corpus, a construção por + aí se apresente de forma
justaposta, a coalescência entre esses termos, no uso geral da língua portuguesa, é apenas
fonético-fonológica, ou seja, ocorre na própria pronúncia.
Como flagramos mais de uma função do Puraí no corpus, passamos a analisá-lo a
partir da função que desempenha em cada contexto exposto nas amostras.
Em primeiro lugar, apresentamos a função da construção Puraí, como locativo, ou
seja, a construção refere-se a um lugar específico. Essa função está em consonância com a
forma fonte que compõe a construção Por + aí, visto que tanto a preposição quanto o
advérbio indicam inicialmente uma ideia de lugar. Vejamos essa função na amostra (27):
(27)
M81-03: mar meus neto ainda bem qui intendero... adoraro... um dia chegaro aqui “vovó...” eu digo “pronto”
“viemo pra duimi, dá certo?” eu digo dá pode incostá o cavalo puraí, arrebolaro as bicicreta aí, incostaro
puraí, quano acabaro foro ((incomp.)) eu sei qui, quano foi de mãianzinha, se levantaro, tumaro café... foro
simbora... quano eu cuidei qui não, fui lavá ropa no Riacho da Areia, quano eu cuidei qui não... cheguei aqui,
tava um bucado... vêi logo a tropa, logo quatro, ((incomp.)) chegaro aqui bebero logo um bucado de leite qui
tinha aí ((incomp.)) aí no dia queu fui casá/
(M81-03-154 e 155-IQ-68-891 e 892)
Na amostra (27), a informante narra sobre o dia em que seus netos chegaram a sua
casa, de surpresa. Notamos que, nessa amostra, o Por aí (puraí) foi usado desempenhando
a função de locativo, pois, em sua fala, o Puraí, indica o local onde os netos deveriam
guardar as bicicletas, inclusive, a falante reforça essa função, quando usa apenas o
81
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
advérbio de lugar aí, evidenciado no trecho: “arrebolaro as bicicreta aí”, um local
próximo ao ouvinte.
A segunda função que identificamos no uso da construção Puraí foi a de dêitico,
pois, nesse caso, a construção Puraí só é compreendida segundo a situação comunicativa,
ou seja, o uso da construção Puraí ganha um significado mais amplo e o contexto é
primordial para a construção e compreensão desse significado. Vejamos essa função na
amostra (28):
(28)
M56-01: era bom mermo, mas como cê sabe tudo acaba, meno a graça de Deus, né? Qui vĩa mũta gente de
fora... esse povo aqui de Portalegre ... esses maiore puraí, esses mais ô meno, vĩa tudim...
M50-02: num tĩa Dudu Germano?
M56-01: quano tĩa assim um lelão no dia de santo Antõim, uma galĩa, uma galĩa assada, nesse, nessa época...
ERA MIL/ qui nem hoje, mil era mil real, era mil real, nera? Nessa época, na época qui nóis tamo é o qui é
qui é, valia isso, num é? Ave Maria qui todo mundo arrematava, ave Maria, era só lelão, desses lelão mesmo
de inganchá mermos.
(M56-01-018 -IQ1-19-476)
Na amostra (28), a informante relata as comemorações típicas de Portalegre/RN.
Notamos que a informante, ao usar a construção Puraí, não a utiliza com a intenção de
indicar um local, mas sim a intenção de indicar as pessoas de fora que tinham dinheiro
“esses maiores puraí, esses mais ô memo...” que vêm participar dos leilões que a cidade
oferece. Compreendemos, assim, a construção Puraí com a função identificadora, embora
ambígua. A construção, nesse contexto, ganha novo sentido, que é só compreendido se se
considerar a situação discursiva.
Detectamos também que a construção Puraí desempenha ainda a função de
marcador discursivo. Entendemos marcadores discursivos como elementos presentes, no
caso, no discurso oral, que têm a função de participar da organização textual das
informações ao longo da fala e dar pista ao interlocutor do assunto a que o falante se refere,
além de orientar o turno, preencher pausas, organizar o pensamento e monitorar o ouvinte.
A amostra (29) exemplifica mais essa função da construção Puraí:
(29)
E: era de pés?
H58-08: de PÉS, rapais, meu fii dos ôtu, era pá saí daqui im pinitença, im missão lá pá Frei Damião, aí, cumu
o ditado, dá um pernoite no Riacho da Cruz pá no ôtu dia balançá pu pa pa pa pu pu pa cidadizinha, né? Meu
cumpade quane eu cheguei na fila, quano eu cheguei no camim mermo, eu já fui já me arrependeno daguma
coisa. Aí quano eu cheguei já fui dizeno “minino, vocês têm algum dĩero no bolso aí?” Não tem não tem
alguma a a a um inxemplo... cês num vão jantá? Que qui nós vamo jantá agora? Nada puique nós num
truxemo nada... é puraí... rapais, quanto é essas quatro parêa de pexe? - Seu Dó, é dois mirréis... - munto
82
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
bem, tome o diero... minha cumade, essas painha essas me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô
butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse cumê aí pá esse povo todim aí,
(H58-08-250-IQ6-85-286)
Em (29), o informante relata as longas viagens que, quando mais jovem fazia, em
busca de emprego. Observamos que a construção Puraí, nesse contexto, não funciona
como locativo, e vai além da função dêitica, pois serve para orientar o interlocutor sobre o
assunto e, ao mesmo tempo, é uma forma de organizar o pensamento resumidamente do
locutor; sendo, portanto, caracterizado como marcador discursivo orientado para o ouvinte.
Assim, percebemos, pelas amostras, que a construção Puraí segue a tendência de
uma trajetória gradual que desempenha as seguintes funções: Por aí (locativo) > Por aí
(dêitico) > Por aí (marcador discursivo). Por meio dessa trajetória, notamos que a
construção Puraí (por + aí), em um primeiro momento, apresenta um sentido mais
referencial e vai sofrendo mudanças até chegar a um sentido mais abstrato. Essa construção
é, portanto, uma forma já gramaticalizada.
b) Puraqui
A forma coalescente Puraqui aparece na fala dos informantes seis vezes e
corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise.
A construção Puraqui se constitui a partir da forma fonte Por (preposição locativa
lugar por onde) + aqui (advérbio locativo). Essa união de palavras se dá por justaposição,
já que não há ganho nem perda fonética, como já comentamos na subseção “a”.
Observamos que a construção Puraqui é indicativa das cercanias do lugar próximo
ao falante. Vejamos, então, esse uso na amostra (30).
(30)
H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele
não... chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonia ((incomp.)) entrô de cabeça a dento, arrastô um
tamburete se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só
no coração, num sabe? “Meu amigo, o siô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei
o que. - sô daculá. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? - Quero sim
siô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o siô vai pra onde?” “vô pá Tabulêro... uma hora dessa, meu
cumpade?” “É... vamo Paulo, vá dexá o rapais lá aculá no camim, quele num sabe do camim, é puraqui pu
perto”. Aí fumo lá e fumo cá ... fumo lá e fumo cá... aí fui insiná o camim a ele. Os caba dissero “homi,
ninguém cũiece aquele home, não, cê é doido?
(H58-08-223-IQ6-80-041)
83
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
No contexto de (30), o informante conta sobre o dia em que um estranho apareceu
na sua casa e, ao invés de se afastar do desconhecido, ele o tratou bem e o acolheu. Nesse
contexto, o sentido do Puraqui é usado como indicador de arredores de um dado lugar,
inclusive, o informante ao usar o advérbio locativo “perto” no trecho “(...) é puraqui pu
perto”, reforça o sentido apontado.
Contudo, percebemos que a construção Puraqui apresenta uma mudança em seu
significado, passando a desempenhar uma função textual-discursiva, como podemos ver na
amostra (31).
(31)
H58-08: rapais, o problema de de de de de da confusão o problema da cunfunsão eu num dô tempo nem vê...
puque quano eu vejo um trisquim , pá tiro o time, fora da brincadera, oxe! Quero não! Eu num espero não,
fora da brincadeira. Os caba manga é munto deu, mar eu tô inscapano EU INSTOU INSCAPANO, né? Num
inspero não... ah, aconteceu isso assim assim, aconteceu, cadê Dó? Eu digo “Já tá im casa! Já tá im casa é...
eu tô dançano e tô cum oi nas nas... eu tô cum oi ... tô cum oi... quano eu vejo um cumeço pá é puraqui,
agora sim, vamo ciscá pra casa...
(H58-08-242-IQ6-84-024)
Na amostra (31), o informante expõe o receio que sente quando está próximo de
uma confusão, preferindo se resguardar de situações como essas. Tanto é que ele profere o
seguinte: “(...) quano eu vejo um cumeço pá é puraqui agora sim, vamo ciscá pra casa...”.
Observamos que, nesse caso, a construção Puraqui tem função textual discursiva, que
significa a direção de uma escolha, uma saída, ainda que seja ambígua, por parte do
locutor. Há, portanto, uma mudança de sentido que segue a escala CONCRETO >
ABSTRATO.
c) Puraculá
A forma coalescente Puraculá também aparece na fala dos informantes seis vezes e
corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise.
Essa construção também equivale a uma coalescência do tipo fonético-fonólógica
no corpus, as palavras contíguas se juntam com uma função pragmática. O processo de
acomodação fonética se dá igual às construções Puraí e Puraculá.
A construção coalescente Puraculá se forma a partir da forma fonte Por (preposição
locativa lugar por onde) + acolá (advérbio locativo). Assim, como já comentamos sobre os
dois componentes da construção, a forma Puraculá também originalmente aponta um lugar
84
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
ou lugares distantes do falante e do ouvinte. Contudo, em nossas amostras, coletamos a
construção Puraculá com um sentido ambíguo na amostra (32):
(32)
H58-08: o primero gole é o qui distrói, aí eu invito... essa daqui, eu me juntei cum ela. Ela bibia mais o
marido dela... Era de vez im quano ...Era um buneco puraculá, tá veno? Aí eu cunvidei ela “vamo, mia fia,
ocê vivia sofreno, judiada, apanhada. ele açoitano mia fia, butava você pá bebê à força, ocê bibia à força, ocê
qué vim pá minha companhia? Agora eu vô dizê uma coisa, batê im você não... agora eu li dô carinho, mas
batimento, não...
(H58-08-252-IQ6-85-317)
Na amostra (32), o falante relata sua aventura amorosa, cuja mulher vivia mal com
o marido devido a problemas com bebida alcoólica. Nesse contexto, a forma Praculá
apresenta um sentido ambíguo, pois tanto parece apontar um lugar longínquo dos dois
interlocutores, embora a vista pudesse alcançá-lo, intensificado por “tá veno?”, quanto
também parece indicar a proporção, a intensidade do “buneco” (=a briga do casal
embriagado), e a expressão “tá veno?” poderia indicar a pergunta: está imaginando? está
percebendo?, posto que o verbo ver, no caso, pode estar funcionando como um estágio
mais avançado do verbo perceptivo.
Já na amostra (33), a construção Puraculá apresenta função textual-discursiva sem
ambiguidade. Vejamos esse uso em (33)
(33)
H58-08: Não, seu Dó... num tenha veigõia, é sua mulé... veigõia de quê? Veigõia é você dexá ela e pegá ôta
aculá... mas sua mulé? O quê? Você vai mais eu... eu já vino lá da mulé... não, Dó chegue aqui me acuda, não
deixe cumigo... queu vô dexá ele... chego lá, cumpade, dexo ele lá, é cumu diz o ditado, Dó e os
agradicimento, não só é isso... Repare, Chico Preto, meu irmão... ele num é home pá juntá um casal, quele
chega gritano... mais véi, Chico preto né assim não... é, rapais... não é não, é devagazim, cunveisano,
ajeitano, tudo bem puraculá e é assim... é... apois é... rapais, mais foi uma cunvessa amarrada num foi? Mar
mininu! ((RINDO))
(H58-08-734 -IQ6-92-655)
Na amostra (33), o informante exalta a sua capacidade de reconciliar casais.
Percebemos que o uso da construção Puraculá, no referido contexto, desempenha a função
de marcador discursivo resumidor, pois, usando a construção Puraculá, o falante resume a
cena ou encobre os detalhes, fazendo com que o ouvinte a infira.
Assim, a construção coalescente Puraculá também apresenta nuanças de mudança
de sentido e função, ou seja, a motivação pragmática gera mais uma tendência de
construção gramaticalizada.
85
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
4.2.6 Cumé?
A construção coalescente Cumé? se faz presente 06 (seis) vezes na fala de alguns
informantes que compuseram o corpus. Essa quantidade equivale a 1,9% das coalescências
analisadas.
A construção coalescente Cumé? apresenta como forma original a aglutinação entre
o Como (advérbio interrogativo) + É (verbo ser estativo identificador). Na aglutinação
entre os dois termos, ocorre a sinalefa do fonema átono final /u/ de Como com o fonema
tônico // da forma verbal é.
Ao juntar-se, a construção Cumé? já perde suas características originais, pois o
advérbio interrogativo já não desempenha mais uma indagação propriamente dita e o
verbo estativo já não desempenha a função de identificador de um estado. A forma Cumé?
desempenha a função de marcador discursivo. Podemos observar o uso dessa construção
na amostra (34):
(34)
E: você teve vinte e quatro filho com a primeira mulher?
H58-08: vinte e quatro filho... pode acreditá... vinte e quatro fii, agora nós dava uma farriada mêa grande. Eu
mais a véia dava uma farriada mêa grande queu adimito teve uma vez/ eu vô contá uma historinha aqui... o
sĩô aceita eu contá uma históra? Qué? Munto bem, tá certo! Eu vô contá uma históra do pilão... intendeu? A
históra do pilão... o o o aquele minino do do da cigarrera, cumé?... aquele minino, cumu é? Filó, ele tem uma
fita lá gravada lá no pilão... é... eu me casei novim... o o o cum cum uns cinco ano de casado, né? Eu num
tinha só Mocinha de Dó na relação de se vivê, era duas... três, né?
(H58-08-232-IQ6- 82-139)
Na amostra (34), o informante fala sobre família e relacionamentos amorosos
pessoais. Nessa amostra, percebemos que, ao usar a forma Cumé?, o informante pausa para
refazer o lapso de memória, um esquecimento temporário, por esse motivo a construção
coalescente Cumé? funciona como um marcador discursivo de hesitação/reformulação do
pensamento.
É nesse sentido que Lyra (2007) afirma que os marcadores discursivos comumente
aparecem na fala, quando os falantes precisam reformular suas ideias, processar
mentalmente informações e reorganizar o discurso.
Como foi dito e também é perceptível na amostra (34), a construção coalescente
Cumé? vem, assim como as construções Né? e Nera?, perdendo sua modulação
interrogativa. Retomemos, pois, a trajetória exposta por Martlotta; Votre; Cezário (1996)
que indica essa perda gradual.
86
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica
Assim, esse trajeto parece descrever o percurso pelo qual a forma Cumé? surgiu e
foi-se desenvolvendo até
se tornar essa construção coalescente. Curiosamente,
encontramos na fala dos próprios remanescentes quilombolas pistas sincrônicas dos
estágios por que passou a construção Cumé?, tanto da construção sublinhada “cumu é”?
em (34), quanto na amostra (35), a seguir:
(35)
E: E farinha boa.
H61-05: BOA! E essa de fora qui tá vino ela é é é, cumo é qui se diz?, mais doce mais fina, parece qué feita
de ôta coisa e parece queles faze dum jeito diferente qui faz mais barato. Seu pai inda num aprendeu a fazê
dela não? Sim, causo qui do jeito quele é, daqui uns dia vai aprendê pra fazê do mermo jeito... ((RI))
(H61-05-sd-IQ-47-197)
Na amostra (35), o informante fala com o entrevistador sobre a qualidade de uma
certa farinha comprada fora da região. Nessa amostra, o informante usa a forma analítica
Cumo é que se diz?, que cremos ser a origem da construção coalescente em análise. Desse
modo, é possível sugerir o seguinte cline:
cumo é qui se diz? > cumu é? > cumé?
Com isso, notamos que a expressão primeira foi se reduzindo, isto é, perdendo
material fonético até tornar-se uma construção coalescente, apresentando um único
formato. Além disso, a forma analítica parece corresponder a uma pergunta plena, ao passo
que a forma Cumu é? já apresenta
perda da modulação interrogativa (pergunta
semirretórica), até se tornar uma pergunta retórica representada pela construção Cumé?
Todos esses fatores tendem a evidenciar a gramaticalização do Cumé? como uma
construção.
4.2.7 Daculá
A Construção Daculá se faz presente quatro vezes no corpus analisado, de modo
que equivale a 1,3% de todas as coalescências sob análise.
A forma Daculá se origina da aglutinação entre a preposição de origem De e o
advérbio locativo Acolá. Com a aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do
fonema final /e/ da preposição De com o fonema inicial /a/ do locativo Acolá.
Lembramos que a forma Daculá já constitui uma coalescência dicionarizada em
Ferreira (2010) como uma forma de contração da preposição de com o advérbio acolá,
87
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
porém no dicionário etimológico de Cunha (2010) só há o verbete Acolá, que informa a sua
origem latina eccum illac (= eis ali), que data do séc. XIII como advérbio significando lá,
mais além.
Contudo, percebemos que, no corpus, a construção Daculá vem apresentando um
significado mais amplo, em relação ao sentido de lugar distante e certo, vejamos as
amostras (36) e (37):
(36)
M81-03: o queu sei dizê dessa dança de São Gonçalo... é qui os negro inscravo... os mais véi... a festejá a
libeidade qui arrumaru... uns daculá de Mossoró... quano acharu uns puraqui pur dentu inventaru/ aí o São
Gonçalo, meu fi, São Gonçalo era um homi farrista ele era munto farrista, num sabe?
(H81-03-137-IQ5-66-764)
(37)
H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele
não... Chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonĩa ((incomp.)) ... entrô de cabeça a dento, arrastô um
tamburete, se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só
no coração, num sabe? “Meu amigo, o sĩô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei
o que “sô daculá”. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? “Quero
sim, sĩô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o sĩô vai pra onde?” Vô pá Tabulêro...
(H58-08-222-IQ6-80-039)
Na amostra (36), a informante relata sobre o surgimento da dança de São Gonçalo,
dança tradicional de Portalegre e de valor histórico/cultural. E na amostra (37) o
informante H58-08 rememora a chegada de um estranho em sua residência. Em ambas as
amostras, a construção Daculá deixa de indicar um lugar distante e certo e passa a
funcionar em contextos dessa natureza como locativo indefinido, ou seja, expressa um
significado mais pragmático de lugar afastado ou desconhecido dos interlocutores.
Desse modo, notamos que a construção Daculá tem seu sentido metaforicamente
expandido. Sendo assim, a construção coalescente Daculá, que já é gramaticalizada,
constante do dicionário Aurélio, de Ferreira (2010), que sinaliza a tendência de a forma
Acolá desenvolver-se em construção, como também registramos os usos em 4.2.4, 4.2.5c e
4.2.11.
4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora
Nessa subseção, analisamos três construções coalescentes que envolvem a forma
embora em Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora. A primeira forma foi usada quatro vezes
no corpus, o que equivale a 1,3% das coalescências sob análise; a segunda construção se
88
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
fez presente duas vezes, equivalendo a 0,6% das coalescências gerais e a última construção
foi usada três vezes, o que corresponde a 1% das coalescências selecionadas para análise.
Embora representa uma já forma gramaticalizada que, ao longo do tempo, sofreu
reanálise na passagem em boa hora > embora. A reanálise é um mecanismo de mudança
em que o falante reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o
compõem, devido à pressão de informatividade. Desse modo, podemos dizer que a palavra
embora é, por si só, uma construção coalescente.
Além da forma embora, temos as formas ir e vir que, nas construções em estudo,
carregam ainda o seu sentido pleno de movimento físico. Os clíticos se e me, pela própria
natureza de serem átonos e de incorporarem-se ao vocábulo tônico vizinho, tendem à
coalescência.
Assim, a construção Vir simbora apresenta como forma fonte Vir (verbo de
movimento) + Se (clítico) +Em boa hora (locução advérbial). Já a construção Ir simbora
apresenta como forma fonte Ir (verbo de movimento) + Se (clítico) + Em boa hora (
locução advérbial). E a construção Ir mimbora apresenta como forma fonte Ir (verbo de
movimento) + Me (clítico) + Em boa hora (locução advérbial).
Assim, percebemos que as construções Vir simbora e Ir simbora desempenham, no
contexto das amostras do corpus da pesquisa, a função de deslocamento espacial incerto.
Vejamos tais constatações nas amostras (38) e (39):
(38)
H58-08: (...) Aí quano cuida Mane dizia assim/ aí vai o velho caiu duente lá... num teve nem um irmã, nium
filo qui chegasse perto do véio, a véa pegô, arrastô tudo quele tinha, pegô foi simbora, intendeu?
(H58-08-253-IQ6-86-363)
(39)
H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muitu nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere i tudo pra
rua também, né?! O sítu/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente
tem mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem
futuro aqui qui indo simbora. Fica inté milhó, né?
(H61-05- 185-IQ3-46-135)
Na amostra (38), o falante relata a frieza com que sua mãe tratou seu pai no
momento que este caiu doente. Já na amostra (39), o falante faz uma comparação entre o
sítio de antigamente e o sítio atual, concluindo que as pessoas estão preferindo a cidade ao
sítio. Em ambas as amostras, notamos que os informantes, quando usam as construções foi
simbora, indo simbora, ao usarem o clítico se, parecem não definir com precisão o destino
89
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
das pessoas as quais se referem, por isso essas construções ganham, nesse contexto, a
função de deslocamento espacial incerto ou ignorado.
Já a construção Ir mimbora, diferentemente das construções de (38) e (39),
desempenha a função de deslocamento espacial preciso, porque o pronome clítico me, se
refere a primeira do singular. Assim, quando essa construção coalescente é utilizada pelo
próprio emissor do discurso este parece usá-la com consciência sobre o lugar aonde
pretende ir (chegar). Vejamos esse uso na amostra (40):
(40)
H61-07: rapais, eu cumecei uma bebedera mais Césa aqui no Pega ali e cumecemo as seis da manhã e fuma
as seis dôtu dia e bebeno e fumano e joganu e fazeno tudo em sem cumê e qui cume qui nada... só bebeno...
passemo o dia cum a noite bebeno, (...)daí quano ele isbarrô eu dixe “tô sintino nada cumpade Antõi” aí ele
dixe “Cumade Teresa, o homi tá milhó e tá dizeno qui num tá sintinu nada, eu vô mimbora pra casa se
precisá de mim, mande mim buscá que eu levo ele pá rua” daí amainceu o dia era choro pu todo canto e a
muié chorano e eu digo “ô Teresa puiqui é qui você tá chorano” aí ela contô a históra, né? Aí eu digo “nam
num vi nada disso, num vi nada disso...
(H61-07-115-IQ5-78-413)
Na amostra (40), o falante relembra o momento de sua vida em que abusou do
álcool sendo preciso o auxílio de amigos. Então, um dos participantes da história,
Compadre Antônio, depois de prestar auxílio ao informante diz: “eu vô mimbora pra casa”.
Percebemos obviamente que, nessa situação, o emissor usa a construção com a função de
deslocamento espacial preciso, inclusive explicita o local para o qual para onde intenciona
se dirigir.
Com isso, constatamos que as formas fontes utilizadas de forma individual têm um
sentido, porém quando aglutinadas findam multiplicando outros sentidos em contextos
como os expostos nesta subseção. Assim, essas construções vêm se gramaticalizando, por
meio da reanálise, processo que envolve a organização e mudança em itens ou construções
situados no eixo sintagmático.
4.2.9 (a)bombasta
A construção em epígrafe apresenta duas formas: Abombasta, produzida duas vezes
pelo informante da faixa I, cuja forma original é AH (Interjeição) + BOM (adjetivo) +
BASTA (verbo bastar), e bombasta, produzida pelo informante da Faixa III, que, sem a
interjeição fica: BOM (adjetivo) + BASTA (verbo bastar), como podemos ver em (41) e
(42).
90
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
(41)
E: que cunversa é essa de passá asma pra cancão?
H55-02: não! Agora aí é certeza...
H39-03: cê num sabia não véi?
E: nam... cumo é?
H39-03: Abombasta! O caba qui tivé asmaito pode criá um cancão. O cancão fica seco im vida e quem quem
tivé cum a asma im casa fica bom ... ABOMBASTA!...
(H39-03-031-IQ2-38-522 e 523)
(42)
H84-06: apois é, véi, meu nome é munto deferente... tem o subrinome, que cê sabe, é preciso o subrinome pra
diferenciá um dôtu, né? Mas aqui, bombasta! Ficô pu Manéu Calixto mermo... agora pra fora, não! Pra fora
é preciso os documento, né? Pra o camarada cũincê, pricisa do nome todo, né?
(H84-06-143-IQ4- 067-850)
Em (41) e (42), podemos observar (a)bombasta! com a função pragmáticodiscursiva de marcador em que o falante faz uma avaliação e utiliza a construção para
determinar o término de um argumento de contraexpectativa. Os elementos “Ah” e “Bom”
têm seu significado alterado e figuram, na construção, na mesma posição que geralmente
ocupam como iniciadores de resposta e, como tais, funcionam como uma forma atenuadora
na interação.
Essa atenuação parece não ser a intenção do sexto informante, ao usar apenas o
marcador discursivo Basta! em (43) e (44).
(43)
H84-06: pois bem... pois bem... é seu Joãzim, basta! Eu cũinci demais e seu Vardete, adepois quele tumô de
conta do sinicato, véi/ passei munto tempo pagano o sinicato e nunca me atrasei... ((EM TOM DE
SÚPLICA)) ô, véi, eu vim me atrasá agora a pôco num sei o qui foi qui hove/ nunca atrase [o meu
sinicato.../]
(H84-06-143-IQ4-061-494)
(44)
H84-06: não... tem?... basta! Tem demais, véi... mar graças a Deus se atemo bem cum ela... morreu... Finado,
meu pai faleceu, ele faleceu, e nós num tivemo o qui dizê dela... se atô cum nós quais cumo mãe, acredita?
Quais cumo mãe, GRAÇAS A DEUS... mar desse jeito, véi, é muito pocas, né? E DESSE jeito, véi, É
MUITO POCA, acredita? Poca...
(H84-06-143-IQ4-068-878)
Nas duas outras situações, em (43) e (44), o mesmo falante que usou “bombasta!
em (42) se mostra mais incisivo com o ouvinte, utilizando a forma simples basta!, no final
da sua avaliação mental, demonstrando estar convicto de sua opinião.
91
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
4.2.10 Peraí
A construção coalescente peraí tem, em sua forma original, dois elementos:
ESPERA (verbo esperar) + AÍ (advérbio/dêitico). Em (45), essa forma se apresenta com
um uso ambíguo (TRAUGOTT: DASHER, 2005), que parece cumprir a função nova, em
posição de marcador inicial, mas também mostra o sentido original se observarmos a
continuidade do discurso em que o falante usa a forma e os sentidos originais do verbo
“esperar”: “Peraí queu vô já acumpanhá ele..., inspere pu eu, gente boa, inspere pu eu”,
porém a aglutinação com o aí mostra-nos um estágio mais avançado de gramaticalização.
(45)
H58-08: (...) É seu João Gaiana? Peraí queu vô já acumpanhá ele... ei, meu cumpade, inspere pu eu, gente
boa, inspere pu eu queu vô mais o siô, qué pá quano eu saí lá fora, os caba dizê “Dó, ocê vei mais quem?” eu
dizê “Nam rapais, ar Maria mais o rapais de seu João Gaiana”.
(H58-08-307- IQ6-091-626)
Já em (46), é um marcador discursivo que tem a função de monitorar o ouvinte,
sinalizando uma atitude de cautela, é um marcador de contra-expectativa, que indica
contraste.
(46)
M56-01: Peraí, mas ela num sabe, ela num sabe contá, olhe, aquela bichinha, Margarida, ela tem umas
históras também boa, ela tá aqui no ingẽi...
(M56-01- 010-IQ1- 016-275)
Por meio da construção peraí , o falante de (46) toma o turno e inicia sua avaliação
de contraste ao discurso do ouvinte.
4.2.11 Daqui praculá
A construção coalescente Daqui praculá ocorre apenas duas vezes no corpus
analisado, o que, por sua vez, corresponde a 0,6% de todas as coalescências selecionadas
para análise.
A construção coalescente Daqui praculá surge de duas construções que já vêm de
um processo coalescente. Assim, dividindo-as, a primeira coalescência é o Daqui, que se
origina da aglutinação entre a preposição de origem de e o advérbio locativo aqui. Com a
92
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do fonema final /e/ da preposição De
com o fonema inicial /a/ do locativo aqui.
A segunda construção coalescente é o Praculá, a qual se forma a partir da
aglutinação das palavras Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), já
comentada em 4.2.4.
Em certos contextos, as duas construções coalescentes Daqui + Praculá são usadas
lado a lado, surgindo a terceira coalescência. Desse modo, a forma fonte da nova
construção é: De (preposição origem) + aqui (advérbio locativo) + Para (preposição
direção) + acolá (advérbio locativo).
Assim, a construção coalescente Daqui, que tem a função de indicar um lugar
preciso e próximo ao falante, e a construção coalescente Praculá, que desempenha a
função de indentificador de direção, perdem essas funções e adquirem uma nova função no
contexto, passa a funcionar como indicador de espaço delimitado, entre o falante e o local
de limite. Podemos constatar a construção Daqui Praculá com essa função na amostra
(47).
(47)
E: casa véia, mal-assombrada, aqui tem?
M63-05: tem não... essas queu digo... é três casa num aliamento é essa do finado ((incomp.)) tudo numa linha
só mar eu nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui praculá... que num vô minti...
(M63-05- 457-IQ5-73-140)
Na amostra (47), a informante confirma a existência de casa mal-assombrada na
região, porém desconhece o relato de quem tenha se assombrado no local indicado por ela
mesma. E é justamente quando afirma: “nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui
praculá...” que percebemos que a falante, ao usar a construção Daqui Praculá, tem apenas
a intenção de delimitar o espaço e não mais a ideia de deslocamento espacial. Com isso,
podemos dizer que a construção coalescente Daqui Praculá mudou por pressão de
informatividade, pois a construção em análise assumiu novo valor, graças à
convencionalização de implicaturas conversacionais, por meio de pressões do contexto de
uso.
4.2.12 Xeu vê / Destá
As construções Xeu vê e Destá tem em comum o fato de um dos elementos
originais, antes do processo de desenvolvimento construcional, ser o verbo “deixar”.
93
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
Temos, na primeira construção, as formas deixar + eu + ver e, na segunda, as formas
deixar + estar. Segundo os dicionários etimológicos (CUNHA, 1982; MACHADO, 2003),
a origem do verbo “deixar” é duvidosa e apresenta como forma do português medieval
“leixar”, proveniente do latim laxāre, cujo significado era estender, alargar, diminuir,
atenuar; prolongar o tempo; distender, relaxar; dar repouso. No português atual, a
entrada do dicionário Aurélio apresenta 38 acepções e 11 locuções, constantes do Quadro
7:
Quadro 7 – Significados do verbo Deixar
1. Sair de; afastar-se, retirar-se; 2. Separar-se, apartar-se de; 3. Ausentar-se; 4. Sair de; desviar-se de; 5. Não
continuar a reter; não conservar mais; largar, soltar; 6. Abandonar, desprezar; 7. Desistir de; renunciar a; 8.
Pôr de parte; não considerar; esquecer, abstrair; 9. Afastar, arredar, desviar, repelir; 10. Não obstar; permitir,
consentir; 11. Adiar, delongar; 12. Dar (como lucro ou proveito); render; 13. Largar, abandonar; exonerar-se,
demitir-se; 14. Não referir; omitir; 15. Desabituar-se de; 16. Ser despojado de; perder; 17. Desertar de;
abandonar, abjurar; 18. Transmitir, comunicar; imprimir, infundir; 19. Causar, ou transmitir, ao ausentar-se
ou morrer; 20. Transmitir como legado, ou (caso não haja testamento) como natural consequência da morte,
automaticamente; 21. Transmitir como legado; 22. Tornar possível; facultar; 23. Ser a causa ou motivo de;
causar, provocar; 24. Adiar, pospor; 25. Suspender, parar; 26. Pôr, colocar; 27. Fazer que fique (em certo
lugar); 28. Fazer que fique (em certo estado ou condição); tornar; 29. Instituir, constituir, nomear; 30. Deixar
só, abandonar, desamparar; 31. Cessar, desistir; 32. Fugir a; evitar; 33. Transferir, legar; 34. Por à disposição;
ceder; 35. Não privar, não despojar (de alguém ou de algo); 36. Cessar, desistir; abster-se; 37. Separar-se,
apartar-se; 38. Não obstar ou resistir; consentir, permitir. E as locuções: 1. Deixar a desejar (Não
corresponder ao que se esperava, ou ao que seria de esperar); 2. Deixar atrás. (1. Não mencionar, omitir. 2.
Exceder, superar, suplantar.); 3. Deixar cair.( Bras. V. deixar correr.); 4. Deixar correr. (1. Deixar que
aconteça. 2. Não fazer caso de. [Sin. ger.: deixar cair, deixar ir, deixar rolar.] ); 5. Deixar de fora. (Não dar
oportunidade de participar; excluir.); 6. Deixar ir.(V. deixar correr); 7. Deixar para lá. (Não fazer caso de;
não se incomodar com); 8. Deixar passar. (1. Não impedir que passe. 2. Admitir, tolerar); 9. Deixar
perceber. (Dar a entender); 10. Deixar rolar. (V. deixar correr.); 11. Deixar ver. (Mostrar, apresentar;
demonstrar).
Fonte: (FERREIRA, 2010)
Diante da riqueza polissêmica do verbo “deixar”, podemos inferir quão diversas
devem ser as possibilidades de dessemantização do sentido pleno até chegar ao uso de
“deixar” como auxiliar como nas construções deixar ver (locução 11, em FERREIRA,
2010), que assumiu, no corpus em estudo, a forma xeu vê, e a construção deixa estar (não
registrada no referido dicionário) usada como destá.
Cesário; Gomes; Pinto (1996) fizeram um estudo do verbo “deixar” para verificar a
gramaticalização de verbos emotivos e efetivos em locuções resultantes da integração
semântico-sintática entre orações. Entendem verbos emotivos como os que exprimem um
julgamento de ordem pessoal ou cujos sujeitos exercem (ou tentam exercer) uma
manipulação sobre o sujeito da oração subordinada, como querer, deixar e desejar; e
94
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
verbos efetivos como os que, concretamente, efetuam os processos contidos no verbo
principal, sendo conhecido como auxiliares lato sensu, como estar, ficar e poder.
Segundo os autores, o verbo “deixar” é um verbo duplo que tem usos como
emotivos-efetivos e sua trajetória de gramaticalização começa como um verbo emotivo,
presente em: i) “Minha mãe não deixa eu namorar...”(p.108) e (ii) e “Olha colega, ...
deixe-nos ir.” (p.108), que passam a efetivos (ver p 79) e depois continuam o processo
cristalizando o seu uso ao lado de determinados verbos, como em: iii) “Entrevistador –
qual o prato que você mais gosta de fazer? ... Informante – Eh, deixa ver, macarrão ... não
arroz. (p.108). Assim, em iii, o verbo “deixar” é um auxiliar e seu emprego se cristalizou
ao lado do verbo ver, descrito na subseção “a” como xeu vê, e ao lado do verbo estar, que
derivou a forma destá, descrita na subseção “b”.
a) Xeu vê
No corpus, flagramos uma ocorrência da construção coalescente xeu vê em (48)
(48)
H84-06: pois bem... im quarenta e dois nós tava aqui... qué dizê im quarenta e dois eu era casado já im trinta
e dois não, eu era sortero ainda fui mais papai, agora im quarenta e dois eu já era casado... cheguei aqui eu
num tava aqui munto aperriado demais não, mar chegô aquela rodage qui hoje é de frente pá Pau do Serro...
Antõi... é Antõi Filipe, meu Deus? É... xeu vê... chamavam Antõi Suare...
(H84-06-126 -IQ4-063-641)
Como anunciamos, a construção xeu vê, nesse caso, resulta da forma original:
DEIXAR (verbo emotivo) + EU (pronome) + VER (verbo perceptivo), mas, em (48), o
“deixar” tem outro uso, passando a funcionar como verbo efetivo, auxiliar. E como tal,
cristalizou-se ao lado de “ver”, em que o falante não está pedindo permissão ao ouvinte,
mas usa a construção xeu vê para preencher o tempo em que está pensando, o que é
reforçado pelo fato de vir entre pausas, que também marca o momento de reflexão em
busca (= saber) do nome da “rodagem”, no sentido de dar maior clareza ao discurso.
Segundo Martelotta; Votre; Cezario (1996), verbos de percepção como “ver” e “perceber”,
entre outros, tendem a ser usados metaforicamente com o sentido de saber, como
percebeu?, você vê ou deixar ver.
Na
amostra,
portanto,
o
xeu
vê
funciona
como
um
marcador
de
hesitação/reformulação. Há a coalescência do “deixar”, em que há a braquissemia (por
desgaste fonético) dexa > xa e a junção com sujeito da oração subordinada eu, que resulta
no xeu. Como podemos ver, a construção deixar ver já não tem o sentido da locução que,
95
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
segundo Ferreira (2010), seria “11. mostrar, apresentar; demonstrar”, como mostramos no
Quadro 7.
Enfim, a trajetória da construção seria: DEIXAR (verbo emotivo > efetivo) + EU
(pronome) + VER (verbo perceptivo) > XEU VÊ (Marcador de esclarecimento).
Parece que a forma xeu ainda assume outra forma, pois, conforme Cesário; Gomes;
Pinto (1996, p.109), o desgaste fonético pode ser constatado na piada:
“- Deixa eu ver (= xô vê [‟ ]).
– Se chover vai molhar,”
Esse desgaste parece ser mais forte na forma destá, presente na subseção “b”.
b) Destá
Também flagramos uma ocorrência da construção coalescente destá em (49)
(49)
H58-08: (...) se uma pessoa dissé, rapais aquele mininu de Joãozim Gaiana aquilo num presta aquilo é um
amaidiciado aquilo num sei o que... destá tem probrema não.. qué dizê qui aquela pessoa tá dizeno aquilo
dali puique ele num tá se lembrando qui tem o furo da aguia, ele já tá perdido, ele já tá perdido ele num tá
sabeno ele tanto faz jogá cumo perder, ele tanto faz jogá cumo perdê a vida dele já tá já tá certa aí vai o siô,
um home de bem, home de bem cumo é, aí chega o siô diz assim “sabe duma coisa, ((incomp.))”
(H58-08-305 -IQ7-91-614)
Apesar de o percurso de gramaticalização de “deixar‟ ser quase o mesmo descrito
na subseção “a”, o desgaste fonético, na construção como um todo, deu-se diferente: ou
houve a fusão dos sons semelhantes na coalescência [„de] (= deixe) + [e‟ta] (=está) ou a
junção de [„de] + tá, que é a forma bastante usual na linguagem informal de estar.
Em destá, o verbo “estar” não tem a função de auxiliar lato sensu como afirmamos
em “a”, mas sim como um verbo de conteúdo pleno. O verbo “estar” com o sentido pleno
vem do latim stare, que significava, entre outros sentidos, o de „estar de pé‟, „conservar-se
do lado de‟, „estar imóvel‟ e „manter-se parado‟. Tinha, portanto, um sentido de
permanência, de continuidade física num local. (CESÁRIO; GOMES; PINTO,1996)
Assim, em (49), a construção coalescente destá interrompe a linha de pensamento,
marcado também pelas pausas antes e depois, para funcionar como um elemento de
aviso/chamamento para ele e/ou para o ouvinte sobre sua tomada de posição ou avaliação
quanto ao assunto, como uma promessa velada.
A trajetória de gramaticalização de destá seria:
96
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
DEIXAR (verbo emotivo) + ESTAR (verbo estativo) > DESTÁ (Marcador de avaliação)
Concluída a análise das vinte construções coalescentes, que as dispomos em 12
grupos, passemos a reagrupá-las em tendências de trajetórias de gramaticalização na seção
4.3.
4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de
remanescentes quilombolas de Portalegre/RN
A partir da análise da gramaticalização das construções coalescentes em 4.2,
resumimos, nesta seção, as tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, todas
são unidirecionais e seguem a tendência translinguística de gramaticalização bem como a
escala de abstratização:
ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO
Destacamos, para representar essa escala metafórica, o desenvolvimento das
construções coalescentes Praculá; Praqui praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí;
Puraculá; Puraqui, expostas na seção 4.2, que partem da formação original Preposição +
advérbio locativo, portanto indicam a noção espacial, especialmente, pela presença de
advérbios acolá, aqui e aí. Depois, as referidas construções vão, a partir de contextos mais
amplos e abstratos, que se realizam no discurso, ou seja, numa dada situação real de uso,
atingindo um estágio mais avançado de gramaticalização. Nas construções analisadas,
somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, porém em um
uso pragmático-discursivo.
Partindo dessa noção mais geral, apresentamos as tendências de gramaticalização
por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual acreditamos que as demais
construções coalescentes tenham evoluído:
significado referencial > significado textual-discursivo > significado pragmáticodiscursivo
Conforme o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os
pontos focais de início e do estágio registrado na amostra.
97
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
a) Significado referencial > Significado pragmático-discursivo
Incluímos nessa escala as construções coalescentes:
Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora
b) Significado semântico-sintático > significado textual-discursivo
Destacamos, nesse trajeto, o desenvolvimento do uso da construção
Quiném.
c) Significado textual-discursivo > Significado pragmático- discursivo
Com base, em Heine (1991), dividimos essa tendência em dois blocos:
c.1 Marcador discursivo orientado para a avaliação do falante: refere-se ao que o falante
tem sua mente: suas atitudes, julgamentos, crenças, etc., como as construções coalescentes:
Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...?
c.2 Marcador discursivo orientado para o ouvinte: refere-se à adequação do uso aos
propósitos tanto do falante quanto do ouvinte. As construções que funcionam como
requisitos de apoio discursivo são:
Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê
Apesar da forma concisa e objetiva, cremos que esse é o resultado das construções
gramaticalizadas presentes no corpus estudado, porém não podemos assegurar que são
formas específicas de parte do grupo, posto não termos estudos do resto da comunidade
(escolarizada, por exemplo) ou de regiões vizinhas para efeito de comparação. Entretanto,
essas construções coalescentes representam as maiores frequências de uso, portanto
indícios tanto de início como de final do processo de gramaticalização.
98
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
5 CONCLUSÃO
Esta pesquisa teve como objetivo principal descrever os mecanismos e propriedades
formais e funcionais que caracterizam o processo da coalescência correlacionado aos
estudos de gramaticalização, a partir de construções linguísticas garimpadas na modalidade
oral de analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN. Esse
objetivo se relaciona a perguntas específicas, às quais, por meio de uma análise sincrônica,
procuramos responder: que funções/significados as formas resultantes da coalescência
linguística desempenham no uso linguístico? Que processos/mecanismos podem explicar o
surgimento das formas coalescentes? Quais são os indícios/tendências de mudança
linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes quilombolas de
Portalegre/RN?
Para respondermos a essas perguntas, realizamos o levantamento de todas as
construções coalescentes existentes no corpus: “A fala de remanescentes quilombolas de
Portalegre do Brasil”, no qual detectamos a presença de 58 (cinquenta e oito) tipos de
formas coalescentes com 721 (setecentos e vinte uma) ocorrências. Desse total, extraímos
20 (vinte) construções coalescentes para análise, as quais se encontram em processo de
gramaticalização. As demais formas coalescentes se caracterizam como construções
coalescentes fonético-fonológicas, formas essas que, por enquanto, não apresentam
qualquer mudança relacionada à gramaticalização.
Nossa análise se baseou na noção de construção para verificarmos o processo de
vinculação de sentido e forma que dá origem a novas expressões, no caso, da fala de parte
da comunidade de remanescentes quilombolas, interpretando, assim, suas motivações
discursivo-pragmáticas, assim como também as tendências de trajetória de mudança dos
fenômenos de coalescência mais frequentes na fala dos quilombolas, como resultantes do
processo de gramaticalização.
Destacamos, a seguir, os principais tópicos que respondem às perguntas, bem como
os achados que têm a contribuir com o estudo da gramaticalização e o fenômeno da
coalescência associada à gramática das construções.
Julgamos estas serem as contribuições de maior relevância deste trabalho:
a) processos/mecanismos relacionados ao surgimento de construções coalescentes
Quanto aos processos e mecanismos envolvidos na coalescência, cremos que a
metonímia atua na reanálise, ou seja, na reinterpretação de vocábulos contíguos.
99
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
b) tendências de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos
remanescentes quilombolas de Portalegre/RN.
As tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, são todas
unidirecionais e seguem a via translinguística de gramaticalização, seguindo a escala de
abstratização: ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO. Destacamos, para representar essa
escala metafórica, o desenvolvimento das construções coalescentes Praculá; Praqui
praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí; Puraculá; Puraqui. Nas construções analisadas,
somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, em um uso
pragmático-discursivo.
Partindo
dessa
tendência
mais
geral,
apresentamos
as
tendências
de
gramaticalização por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual
acreditamos que as demais construções coalescentes tenham evoluído: significado
referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Conforme
o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os pontos focais de
início e do estágio registrado na amostra: a) significado referencial > significado
pragmático-discursivo: Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora; b) Significado semânticosintático > significado textual-discursivo; Quiném; e c) Significado textual-discursivo >
Significado pragmático- discursivo: dividimos essa tendência em dois blocos: Marcador
discursivo orientado para a avaliação do falante: Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...?; e
Marcador discursivo orientado para o ouvinte: Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê.
Então, seguindo o critério da frequência de uso mencionado por Bybee (2003) e
nessas características constatadas, percebemos que as construções coalescentes analisadas
são processos linguísticos bastante frequentes na fala dos remanescentes de quilombolas,
sendo mais frequentes as formas: Né? Nera? e Quiném.
Atentamos ainda para o fato de que as construções coalescentes, em sua grande
maioria, apresentaram perda fonética no momento em que as palavras estreitam suas
fronteiras. Assim, concordamos com a colocação de Bybee (2003) e Bybee & Hopper
(2001) quando afirmam que a “erosão” fonética liga-se também a frequência relativa de
uso, uma vez que quanto mais presente no discurso, maior a possibilidade de desgaste de
um item, devido sua previsibilidade em contextos discursivos apropriados.
Desse modo, partimos do pressuposto de que as coalescências no corpus surgiram a
partir de uma repetição frequente das formas contíguas, as quais foram tendo seus limites
100
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
cada vez mais aproximados. De foma que as construções coalescentes se unem por
justaposição e, por fim, aglutinam-se, formando uma só palavra, com forma e sentido
novos.
No percurso desta investigação, há alguns pontos que abrem perspectivas de
explorações complementares em trabalhos futuros. Dentre outros, mostramos como mais
saliente o estudo das demais formas coalescentes (as fonético-fonológicas) que, como
ainda não se gramaticalizaram, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial
de mudança, que pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser
constatada em momentos futuros.
Aproveitamos o ensejo para ressalvar que muitas das construções coalescentes
encontradas na fala dos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN podem ser
detectadas na fala de outras comunidades. Assim sendo, esperamos que esta pesquisa sirva
como um instrumento reflexivo para que outros pesquisadores reflitam sobre o fenômeno
da coalescência e possam, assim, desbravar novos horizontes sobre o assunto, gerando
novas produções, uma vez que, conforme já mencionado, são escassos trabalhos sobre este
aspecto linguístico.
É nosso desejo também que esta pesquisa traga contribuições para a área do
Funcionalismo Linguístico, bem como para o trabalho pedagógico. Esperamos que a
pesquisa contribua na luta contra o preconceito linguístico, uma vez que, por se tratar de
uma comunidade de negros, analfabetos e descendentes de escravos, muitos usam tais
características para propagar o preconceito. Ao contrário disso, a pesquisa pode ser usada
para apresentar outra variedade linguística do português aos discentes, expondo
explicações reais do funcionamento linguístico, bem como o processo de gramaticalização.
É nosso dever enquanto linguistas e professores refletirmos sobre os usos linguísticos e
propagarmos o fato de que a língua está susceptível à mudanças, ela não é estática e
imutável. Ela é viva como os seres humanos que a falam.
101
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
REFERÊNCIAS
ABRAHAM, W. The grammaticization of the German modal particles. In: TRAUGOTT,
E.C. & HEINE, B. (eds.) Approaches to grammaticalization. Vol. II. Focus on theoretical
and methodological issues. Amsterdam: Benjamins, 1991.
BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.
BARRETO, T. M. M. Gramaticalização das conjunções na história do português. Tese de
doutorado, UFBa, Salvador (Bahia),1999.
BYBEE, J. Cognitive processes in grammaticalization. In: TOMASELLO, M. (Ed.). The
new psychology of language. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2003. p. 145167.
_____. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
BYBEE, J.; HOPPER, P. (orgs.) Frequency and the Emergence of Linguistic Structure.
Amsterdam: John Benjamins, 2001.
CAETANO, M. M. Gramaticalização – de Meillet aos dias contemporâneos: parâmetros
para uma pesquisa pancrônica. Dissertação de Mestrado- PUC. Rio de Janeiro, 2011.
CÂMARA JR, J. M. História e estrutura da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro:
Padrão, 1976.
CAMPBEL, L. Ed, Grammaticalization: a critical assessment. Language Sciences 23,
Numbers 2-3, 2001.
CARDOSO, S. O estudo da palavra na gramática portuguesa do séc. XVI. In: BRITO, A.
M.; FIGUEIREDO, O.; BARROS, C. (Orgs.). Linguística Histórica da Língua
Portuguesa: actas do encontro de homenagem a Maria Helena Paiva. Porto: Universidade
do Porto. Faculdade de Letras, 2004.
CARVALHO, D. G.; NASCIMENTO, M. Gramática Histórica. 9.ed. São Paulo: Editora
Ática, 1972.
102
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
CASTILHO, A. T. (org.) Português culto falado no Brasil.Campinas: Editora da
UNICAMP, 1989. 321p.
_____. Representações das categorias cognitivas e sua diacronia: interface linguística
cognitiva – linguística histórica. Filologia e Linguística Portuguesa. Universidade de São
Paulo: USP. n.13(1), p. 63-87, 2011.
CESÁRIO, M. M.; GOMES, R. L. R.; PINTO, D. C. M. Integração entre cláusulas e
gramaticalização. In: Martelotta, M. E.: VOTRE, S. J.; CEZARIO, M. M.
Gramaticalização no português do Brasil: uma abordagem funcional. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, UFRJ, Departamento de Linguística e Filologia, 1996.
COUTINHO, I. L. Pontos de Gramática Histórica: linguística e filologia. 7.ed. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.
CORDEIRO, A. A. S. Gramática emergente: a gramaticalização do “aí”, “só que”e “que
nem”. Brasília- DF: UNB, 2012.
CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective.
Oxford: Oxford University Press, 2001.
_____. Typology and Universals. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
CUNHA, A. G. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro:
Lexicon, 2010.
_____. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. 2.ed. Rio de janeiro:
Nova Fronteira, 2000.
_____. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
DU BOIS, J. W. Competing Motivations. In: HAIMAN, J. (ed.). Iconicity in syntax.
Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, [1985] 1987. p. 343-65.
FAVERO, L. L. Heranças:a educação do Brasil colônia. Revista da ANPOLL. São Paulo.
V.8, p. 87-102, 2000.
103
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
FELÍCIO, C. P. A gramaticalização da concessiva embora. Dissertação de Mestrado Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. São
José do Rio Preto, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Minidicionário. 8.ed.
Curitiba: Positiva, 2010.
FIGUEIREDO-GOMES, J. B. O percurso de gramaticalização de “É que”: um estudo
pancrônico. Tese de Doutorado – UFC. Ceará, 2008.
FREITAG, R. M. Ko. Emergência e inovação na língua:explorando o paradigma
funcional da gramaticalização. Revista de Letras. Vitória da Conquista, v.2, n.1, p. 143161, jan./jun. 2010.
FURTADO DA CUNHA, M. A.; COSTA, M. A.; CEZÁRIO, M. M. Pressupostos teóricos
fundamentais. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M. A.; MARTELOTTA,
M. E. Línguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro. DP&A, 2003.
GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam: Benjamins, 1995.
_____. Syntax. A functional-typological introduction, Vol. II. Amsterdam: Benjamins,
1990.
GOLDBERG,
A.
CASENHISER,
D.
English
Constructions.
Disponível
em:
http://www.princeton.edu/~adele/English%20Constructions.rtf. Acesso em maio/2010
_____. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago
and London: The University of Chicago Press,1995.
GOLDBERG, A. JACKENDOFF, R. The English resultative as a family of constructions.
Language 80. (2004): 532-567.
GOMES FILHO, A. (Org.) Um tratado de cozinha portuguesa do século XV. 2ªed. Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Dep. Nacional do Livro, 1994.
GONÇALVES, S. C. L.; LIMA, HERNANDES, M. C.; CASSEB-GALVÃO, V. C.
Introdução à gramaticalização: princípios teóricos & aplicação. São Paulo: Parábola
Editora, 2007.
104
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
GORSKI, E. M.; GIBBON, A. O.; VALLE, C. R. M.; DALMAGO, D.; TAVARES, M. A.
Fenômenos discursivos: resultados de análises variacionistas como indícios de
gramaticalização. In: RONCARATI, C. N.; ABRAÇADO, J. Português brasileiro: contato
linguístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
HAIMAN, J. Iconicity in Syntax. Amsterdam: Jonh Benjamins, 1985.
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar.Baoltimore: Edward
Arnold, 1985.
HEINE, B & REH. Grammatical categories in African languages. Hamburgo: Helmut
Burke, 1984.
HEINE, B. Grammaticalization as na Explanatory Parameter. In: PAGLIUCA, W (org.).
Perpective on grammaticalization current issues in linguistic theory, n. 109. Amsterdam:
Jonh Benjamins, 1994, p. 255-287.
HEINE, B; CLAUDI, U. & HUNNEMEYER, F. Gramaticalization: a conceptual
framework. Chicago Press, 1991.
HEINE, B; KUTEVA, T. The genesis of grammar – a reconstruction. Oxford: Oxford
University Press, 2007.
HOPPER, P. J. Emergent grammar. BLS 13:139-157, 1987.
_____. On some principles of grammaticalization. In: TRAUGOTT, E. C. & HEINE, B.
(eds.). Approaches to grammaticalization. Vol. I. Amsterdam: Benjamins, 1991.
HOPPER, P. J.; TRAUGOTT, E, C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
JOHSON, M. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination and reason.
Chigaco: The University of Chicago Press, 1987.
JOSEPH, B. D. 2001. Is there such a thing as “grammaticalization”? In: CAMPBEL, L.
(ed.). Grammaticalization: a critical assessment. Language Sciences 23, Numbers 2-3,
2001. p. 163-186.
105
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
KIPARSKY, P. Linguistics universals and linguistics change, 1968. In: TRAUGOTT, E.
C. & HOPPER, P. J. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
KURYLOWICZ. J. The inflectional categories of Indo-European. Heidelberg: Winter,
1964.
LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about mind.
Chicago: The University of Chicago Press. [1980], 1987.
LAKOFF, G.; JOHUNSON, M. Metaphors we live by. Chicago. University of Chicago
Press, 1980.
LANGACKER, R. Foundations of cognitive linguistics. v.1. Theoretical Prerequisites.
Stanford: Stanford University Press,1987.
_____. Syntatic Reanalysis. In: LI, C. (org.). Mechanisms of syntactic Change. Austin:
University of Texas press, 1977, p. 53-139.
LEHMANN, C. Thought on Grammaticalization. Munich: LINCOM EUROPA
(originalmente publicado como: Thought on Grammaticalization: a Programatic Sketch.
Köln: Albeiten des Kölner Universalien 49 – Projects, v. 1.), 1995 [1982].
LOPES, C. R. S. “A persistência e a decategorização nos processos de gramaticalização”,
in: VITRAL, L. e COELHO, S. (orgs.). Estudos de Processos de Gramaticalização em
Português – Metodologias e aplicações. Campinas: Mercado de Letras, pp. 275-314, 2010.
MACEDO, A. T.; SILVA, G. M. O. Análise sociolingüística de alguns marcadores
conversacionais. In: MACEDO, A. Tavares; RONCARATI, C. N.; MOLLICA, M. C.
Variação e discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 8ª ed. Lisboa: Livros
Horizonte, 2003.
_____. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte Ltda.,
1997.
MAGNE, A. (Org.) Boosco deleitoso: edição do texto de 1515 com introdução, anotações
e glossário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1950
106
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986.
MARTELOTTA, M. E. Advérbios qualitativos em cartas familiares do século XIX. In
LOPES, R. S. (Org.) A norma brasileira em construção: fatos linguísticos em cartas
pessoais do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2005.
_____. Mudança Linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011.
_____. Operadores argumentativos e marcadores discursivos. In: VOTRE, S. J.;
CEZARIO, M. M.; MARTELOTTA, M. E. Gramaticalização. Rio de Janeiro, Faculdade
de Letras/UFRJ, 2004.
_____. Os circunstanciadores temporais e sua ordenação: uma visão funcional. Tese de
Doutorado – UFRJ. Rio de Janeiro, 1994.
_____. Trajetórias verbo > marcador discursivo. In: VOTRE, S. J.; MARTELOTTA, M. E.
Trajetórias de gramaticalização e discursivização. Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras/UFRJ 1998.
_____. Uso do marcador discursivo tá? In: Veredas, v.1, n.1, 1997.
MARTELOTTA, M. E.; VOTRE, S. J. & CEZARIO, M. M. (0rgs.). Gramaticalização no
português: uma abordagem funcional. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ,
Departamento de Linguística e Filologia, 1996.
_____. O paradigma da gramaticalização. In: Martelotta, M. E.: VOTRE, S. J.; CEZARIO,
M. M. Gramaticalização no português do Brasil: uma abordagem funcional. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, UFRJ, Departamento de Linguística e Filologia, 1996.
MATTOS e SILVA, R. V. O português arcaico: fonologia. 3.ed. São Paulo: Contexto,
1991.
_____. [1994] O português arcaico: morfologia e sintaxe. 2. ed.São Paulo: Contexto,
2001.
_____. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004.
107
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
MEILLET, A. L‟ evolution des formes grammaticales. In: Linguistique historique
genérale. Paris: Champion [1912], 1948.
MODESTO, A. T. T. Abordagens funcionalistas. Revista Eletrônica de Divulgação
Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura Letra Magna, Ano 03, n. 04, 1º
Semestre de 2006. [www.letramagna.com].
NEVES, M. H. M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
NEWMEYER, F. J. Iconicity and generative Grammar. Language, v. 68, n.4, Baltimore:
Linguistic Society of America at the Waverly Press Inc., 1992, pp.756-766.
NIE N. H.; HULL, C. and BENT, D. H. SPSS Inc. <http://www.spss.com> [1968] 2007.
NUNES, R. P. Evolução clítica do futuro do presente do latim ao português. Dissertação
de Mestrado – Universidade Católica de Pelotas. Rio Grande do Sul, 2003.
PEIRCE, C. S. Collected papers. In: HARTSHORNE & WEISS, P. (eds.) Cambridge,
MA: Havard University Press, Belknap, 1965 [1931].
RIO-TORTO, G. M. Operações e paradigmas genolexicais do português. Filologia e
Linguística Portuguesa. Universidade de São Paulo: USP. n. 02, p. 39-60, 1998.
RISSO, M. S.; SILVA, G. M. O. Aspectos textuais-interativos dos marcadores discursivos
de abertura Bom, Bem, Olha, Ah, no português culto falado. In: NEVES, M. H. M. (Org.).
Gramática do português falado. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999. v.VII. p.
256-296.
RISSO, M. S.;URBANO, H. Marcadores discursivos: traços definidores. In: KOCH, I. G.
V. (Org.). Gramática do português falado, 1996.v.IV, p. 21-61.
ROCHA, A. P. A. Gramaticalização de conjunções adversativas em português: em busca
da motivação conceptual do processo. Tese de Doutorado – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. 8. ed. São Paulo: Companhia
Melhoramentos: Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2001.
108
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
SOUZA, M. M.; MENDES, W. V.; FONSECA, C. M. V. A fala de remanescentes
quilombolas de Portalegre do Brasil. Mossoró: Edições UERN, 2011.
SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Metaphorical and cultural aspect of
semantic structure. CUP Studies in Linguistics 54, 1990.
TAVARES, M. A. A gramaticalização de e, aí, e então: estratificação/variação e
mudança no domínio funcional da seqüenciação retroativa-propulsa – um estudo
sociolinguísta.Tese de Doutorado- UFSC. Florianópolis, 2003.
_____. Um estudo variacionista de e, aí, daí, então e e como conectores seqüenciadores
retroativo-propulsores na fala de Florianópolis. Dissertação de Mestrado- UFSC.
Florianópolis, 1999.
TOMASELLO, M. Constructing a language: a usage-based theory of language
acquisition. Cambridge/London: Harvard University Press, 2005.
TRAUGOTT, E. C. Legitimate counter examples to unidirecionality. Paper Presented at
Freiburg University Octuber 17 2001.
_____. The role of the development of discourse markers in a theory of
grammaticalization. Manchester: Stanford University, 1995.
_____. „All he endeavoured to prove was...‟: constructional emergence from the
perspective of grammaticalization. 2008. (Texto digitado).
TRAUGOTT, E. C; DASHER, R. Regularity in semantic change. Cambridge: Cambridge
University Press, 2005.
TRAUGOTT, E. C; HEINE, B. (eds.). Approaches to grammaticalization Vol. I. Focus on
theoretical and methodological issues. Amsterdam: Benjamins, 1991.
TRAUGOTT, E. C; HOPPER, P. J. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge
University press, 1993.
TRAUGOTT, E. C; KÖNING, E. The semantics-pragmatics of grammaticalization
revisited. In: TRAUGOTT, ELIZABETH C. & HEINE, Bernd. (eds.) Approaches to
109
ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE
REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL
grammaticalization. Vol. I. Focus on theoretical and methodological issues. Amsterdam:
Benjamins, 1991.
TRAVAGLIA, L. C. O relevo no português falado: tipos e estratégias, processos e
recursos. In: NEVES, M. H. M. Gramática do português falado. Vol. VII. Campinas: Ed.
da UNICAMP/FAPESP, 1999.
TROUSDALE, G. Constructions in grammaticalization and lexicalization: evidence from
the history of a composite predicate construction in English. 2008a.
VALLE, C. R. M. SABE? ~ NÃO TEM? ~ ENTENDE?: itens de origem verbal em
variação como requisitos de apoio discursivos. 2001. Dissertação (Mestrado em
Linguística). Curso de Pós-Graduação em Linguística. Universidade Federal de Santa
Catarina.
VINCENT, D.; VOTRE, S. J.; LAFORST, M. Grammaticalization et postgrammaticalization.Langues et Linguistique. Quebec: Université Laval, nº. 19, 1993.
VITRAL, L.; RAMOS, J. Gramaticalização: uma abordagem formal. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2006.
VOTRE, S. J. A base cognitiva da interação. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
117: 27/44, abr-jun, 1994.
VOTRE, S. J.; MARTELOTTA, M. E.; CUNHA, M. A. F.; RIBEIRO, A., CEZÁRIO, M.
M. C.; BERNARDO, S. P.;WILSON, V.; OLIVEIRA, M. R. Marcação e iconicidade na
gramaticalização de construções complexas. Gragoatá (UFF), Niterói, v. 5, p. 41-58, 1998.
ZIEGELER, D. Redefining unidirecionality: is there life after modality? In: FISCHER, O.;
NORDE, M.; PERRIDON, H. (orgs.). Up and down the cline: the nature of
grammaticalization. Amsterdam: Jonh Benjamins, 2004, p. 115-135.
110
Download