UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN CAMPUS AVANÇADO PROF.ª MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS PAULA REGINA DA SILVA TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL PAU DOS FERROS 2013 PAULA REGINA DA SILVA TENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito exigido para a obtenção do grau de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo- Gomes PAU DOS FERROS 2013 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Silva, Paula Regina da Tendências do processo da coalescência em construções da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil. / Paula Regina da Silva . Mossoró, RN, 2013. 111 f. Orientação: Prof. Dr. João Bosco Figueiredo Gomes Monografia (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia. Programa de Pósgraduação em Letras. 1. Linguística Funcional Centrada no Uso. 2. Gramaticalização. 3. Coalescência. 4. Fala - Remanescentes Quilombolas. I. Gomes, João Bosco Figueiredo. II.Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 418 Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319 A dissertação ‘‘Tendências do processo da coalescência em construções da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil’’, autoria de Paula Regina da Silva, foi submetida à Banca Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras, outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Dissertação defendida e aprovada em 29 de maio de 2013. BANCA EXAMINADORA Dedico ao meu Deus todo poderoso, pois durante todo meu trajeto de vida, tenho plena convicção de que Ele sempre esteve comigo. E cada vitória conquistada foi concedida não por outro, mas segundo a Sua vontade e consentimento. Portanto, toda honra e toda glória sejam dadas somente ao Senhor. AGRADEÇO Primeiramente a Deus, sem auxílio de quem, eu, certamente, não teria escalado mais esse degrau de minha vida intelectual e profissional; Ao meu esposo, Dariosmar de Souza Duarte, pela compreensão, apoio e amor durante essa etapa da minha vida; Ao meu filho, Ângelus Christian, a quem amo incondicionalmente, tendo sido gerado nesse período meio atribulado de pesquisa e estudo intenso e suportou junto a mim as difíceis provações; À minha família, em especial, a minha MÃE, símbolo de força, dedicação e amor; À minha família de fé, que orou por mim e pelo desenvolvimento desse trabalho; À minha estimada amiga de mestrado, de fé e de viagens, Márcia Moraes, pelo amor, carinho, atenção e, sobretudo, pelas palavras de encorajamento e afeto proferidas na hora certa; Às irmãs, Secleide e Ciclene Alves, que me incentivaram a participar do processo seletivo do PPGL no Campus de Pau dos Ferros, e me acolheram em seu lar durante parte do período em que me mantive nessa cidade; À diretora e colegas de trabalho da Escola Estadual Dom João Costa, onde trabalho, por terem me apoiado e colaborado significativamente para que eu pudesse realizar esta pesquisa; Ao prof. Dr. João Bosco Figueiredo-Gomes, por ter aberto um novo horizonte de conhecimento em minha vida intelectual e profissional, pela dedicação, compreensão e relevante orientação; À profª. Drª. Maria Alice Tavares (UFRN), que tive o prazer de conhecer, e que me proporcinou orientações importantes para a escrita desta dissertação; Ao prof. Luciano Pontes, que sabiamente também contribuiu para a construção desse trabalho; Ao professor Wellington Mendes, pessoa extremamente generosa que, mesmo sem ter uma relação tão próxima, sempre esteve disponível para atender meus pedidos; À professora Socorro Maia, um exemplo de dedicação e compromisso para com a docência e para com os discentes; Ao professor Gilton Sampaio, pelo incentivo e pelos argumentos precisos, na hora precisa; Ao professor Guilherme, por proporcionar discussões relevantes que engrandeceram minha compreensão, especialmente, no campo metodológico; A todos aqueles que de forma direta ou indiretamente torceram e torcem pelo meu êxito. RESUMO Estudos mais recentes sobre gramaticalização têm-se preocupado com o desenvolvimento não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais. Esta pesquisa objetiva analisar construções gramaticais cujo processo de vinculação de sentido e forma se dá, via gramaticalização, por meio do processo da coalescência. A fundamentação teórica deste trabalho tem como suporte a abordagem da Linguística Funcional Centrada no Uso, que reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas e que abriga, sobretudo, o estudo da gramaticalização desse modo, a pesquisa se fundamenta nos estudos de Givón (1995), Heine et al. (1991), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010) Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005), Martelotta (2005) dentre outros. A noção de coalescência se baseia, principalmente, em Lehmann ([1982] 2002). A pesquisa analisa, sincronicamente, dados amostrais do Corpus A fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, organizado por Sousa; Mendes e Fonseca (2011), e caracteriza-se como descritiva qualitativa, baseada em dados quantitativos, uma vez que a frequência é um dos fortes indícios impulsionadores de gramaticalização. Para tanto, utiliza o pacote estatístico do programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Os resultados empíricos da pesquisa mostram uma certa regularidade no uso de coalescências fonético-fonológicas pelos informantes estudados, porém apenas 43% dessas unidades se configuram como construções gramaticais. Por motivações discursivo-pragmáticas, há uma forte tendência de gramaticalização das formas coalescentes, demonstrada pela trajetória ESPAÇO > DISCURSO. O processo de vinculação de sentido e forma que dá origem às novas construções da comunidade estudada tende a desenvolver-se no continuum: significado referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Concluise que o processo de gramaticalização das construções coalescentes do grupo de indivíduos estudados segue a regularidade das mudanças da língua portuguesa e, como não há ainda um estudo das construções encontradas com as de outros grupos de fala similares (mas não remanescentes dos quilombolas), não se pode afirmar que há construções coalescentes características ou peculiares da fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. Palavras-Chaves: Linguística Funcional Centrada no Uso. Gramaticalização. Coalescência. Fala. Remanescentes Quilombolas. RESUMEN Estudios recientes sobre gramaticalización están preocupados con el desarrollo no sólo de los elementos lexicales, sino también con construcciones gramaticales. Esta pesquisa objetiva analizar construcciones gramaticales cuyo proceso de vinculación de sentido y forma se da, vía gramaticalización, por medio del proceso de la coalescencia. La fundamentación teórica de este trabajo tiene como soporte el abordaje de la Lingüística Funcional Centrada en el Uso, que reúne tanto presupuestos funcionalistas como construccionistas y que abarca, sobretodo, el estudio de la gramaticalización de modo que la pesquisa se funda en los estudios de Givón (1995), Heine et al. (1991), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010) Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005), Martelotta (2005) dentre outros. La noción de coalescencia se basa, principalmente, en Lehmann ([1982] 2002). La pesquisa analiza, sincrónicamente, datos de muestras de Corpus “A fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil”, organizado por Sousa; Mendes y Fonseca (2011), y se caracteriza como descriptiva cualitativa, basada en datos cuantitativos, una vez que la frecuencia es uno de los fuertes indicios impulsores de gramaticalización. Para tanto, utiliza el dato estatístico del programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Los resultados empíricos de la pesquisa muestran una cierta regularidad en el uso de coalescencias fonético fonológicas por los informantes estudiados, pero sólo 43% de esas unidades se configuran como construcciones gramaticales. Por motivaciones discursivo pragmáticas, hay una fuerte tendencia de gramaticalización de las formas coalescentes, demostrada por la trayectoria ESPACIO > DISCURSO. El proceso de vinculación de sentido y forma que da origen a las nuevas construcciones de la comunidad estudiada tiende a desarrollarse en continuum: significado referencial > significado textual discursivo > significado pragmático discursivo. Se concluye que el proceso de gramaticalización de las construcciones coalescentes del grupo de individuos estudiados sigue la regularidad de los cambios de la lengua portuguesa y, como no hay aún un estudio de las construcciones encontradas con las de otros grupos de habla similares (pero no remanecientes de los “quilombolas”), no se puede afirmar que hay construcciones coalescentes características o peculiares del habla de los remanecientes “quilombolas” de Portalegre/RN. Palabras Claves: Lingüística Funcional Centrada en el Uso. Gramaticalización. Coalescencia. Habla. Remanecientes “Quilombolas”. LISTA DE FIGURA E ESQUEMA Figura 1 – Motivações em competição ................................................................................23 Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção .....................................40 LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização .................................................46 Quadro 2 – Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático ........................................47 Quadro 3 – Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático ...........................................47 Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente .......................................................................58 Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente ........................... 58 Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN .............................................................................................................................................65 Quadro 7 – Significados do verbo Deixar (FERREIRA, 2010) ..........................................94 Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN .............................................................................................. 66 Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN ..........................................................................67 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO .....................................................................................11 1.1 O objeto de pesquisa ......................................................................................................11 1.2 Background ....................................................................................................................12 1.3 Fundamentação teórica ..................................................................................................13 1.4 Objetivos........................................................................................................................ 14 1.5 Metodologia ...................................................................................................................14 1.5.1 Corpus......................................................................................................................... 15 1.5.2 Etapas da pesquisa ......................................................................................................16 1.5.3 Tratamento dos dados .................................................................................................17 1.6 Relevância acadêmica e social ......................................................................................17 1.7 Organização da Dissertação........................................................................................... 18 CAPÍTULO 2 – A GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO .............20 2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso .............................................22 2.2 Gramaticalização ...........................................................................................................25 2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade .......................................................................30 2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização .....................................................33 2.3 Construção gramatical numa perspectiva centrada no uso ............................................38 CAPÍTULO 3 – COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E ESTUDOS .......................................................................................................................... 42 3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995) .......................... 45 3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa ......................................................... 50 3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no Português Brasileiro ............................................................................................................57 CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN ....................... 64 4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN ...........64 4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN ...............................................................................................................66 4.2.1 Né? / Nera? ................................................................................................................69 4.2.2 Quiném ......................................................................................................................72 4.2.3 Cumé qui / Qué qui ....................................................................................................74 4.2.4 Praculá / Praqui praculá ............................................................................................. 77 4.2.5Puraí / Puraqui / Puraculá ............................................................................................ 80 4.2.6 Cumé? ......................................................................................................................... 86 4.2.7 Daculá ........................................................................................................................ 87 4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora ..........................................................................89 4.2.9 (a)bombasta ................................................................................................................91 4.2.10 Peraí ......................................................................................................................... 92 4.2.11 Daqui praculá............................................................................................................92 4.2.12 Xeu vê / Destá .........................................................................................................93 4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN .....................................................................................97 CAPÍTULO 5 – CONCLUSÃO......................................................................................99 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 102 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos, os estudos sobre gramaticalização têm-se preocupado com o desenvolvimento não só de itens lexicais, mas também com construções gramaticais. Martelotta (2011) afirma que alguns autores vêm incorporando aspectos da teoria cognitivista aos estudos do desenvolvimento de mudanças nas línguas, relacionando-os ao surgimento das construções gramaticais. Nessa concepção, elas constituem a unidade preliminar da gramática, que pode ser caracterizada por qualquer elemento formal diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma estrutura informacional. Assim, a noção de construção cobre desde morfemas simples, palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado composicional, até padrões sintáticos abstratos. 1.1 O objeto de pesquisa Considerando que a gramaticalização vem estudando também construções gramaticais e dado o objeto desta pesquisa que é: as construções coalescentes presentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, desenvolvemos esta pesquisa seguindo a perspectiva da gramaticalização das construções gramaticais. Assim, a pesquisa tem como interesse estudar a gramaticalização das construções coalescentes utilizadas na modalidade oral de analfabetos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN. Aliado ao interesse de estudar o processo de gramaticalização das construções gramaticais na língua portuguesa, reside também a preocupação de verificar o processo da coalescência que pode surgir no movimento de mudança dessas construções. Esse interesse pelo estudo das construções, envolvendo o processo da coalescência, surgiu a partir do contato com o Corpus A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, organizado por Souza; Mendes; Fonseca (2011), e a constatação da abundante recorrência de construções coalescentes utilizadas na fala de indivíduos descendentes quilombolas analfabetos, conforme os negritos de (1). (1) (...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/ eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é 11 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-depuêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma. (H61-05-036-IQ3-69-44)1 Na amostra (1), classificamos as formas pras, pros e quisso, como exemplos de coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e não + é = né? marcador discursivo). Com base nessa constatação, optamos por investigar esse fenômeno na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, devido a alguns questionamentos que nos instigaram a refletir, quais sejam: que funções/significados as formas resultantes da coalescência linguística desempenham no uso da língua? Que processos/mecanismos podem explicar o surgimento da coalescência na língua? Quais são os indícios/tendências de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN? 1.2 Background Assim como são recentes os estudos sobre gramaticalização de construções gramaticais realizados por pesquisadores brasileiros, também são escassos os estudos recentes que investiguem especificamente o processo de coalescência e, ainda mais, se atentarmos para a associação dessas duas temáticas. Diante dessa incipiência, encontramos estudos, que têm se desenvolvido no Brasil, cujos objetos de análise tratam-se do desenvolvimento da gramaticalização em certos itens ao longo do tempo, contudo, notamos que esses itens ao se modoficarem fizeram uso do processo de coalescência na gramaticalização das palavras analisadas. Entre esses trabalhos, destacamos o de Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008). Nunes (2003) realiza um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente, reconstruindo o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português contemporâneo. Analisa o grau de variação na fala oral entre formas sintética e perifrástica 1 As amostras estão codificadas na sequência: número da ocorrência, sexo(M/F), idade, número do informante, identificação do inquérito, linha e página. 12 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL na cidade de Pelotas e faz o confronto das formas encontradas ao longo do trajeto do futuro do presente, identificando as mudanças e os elementos desencadeadores do processo que determinam a sobrevivência de uma forma em detrimento de outra. Em linhas gerais, trata das formas verbais formadas pelo futuro do presente, verbos estes que, proferidos na forma sintética atual, passaram pelo processo de coalescência, havendo uma fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal, tornando-se uma única palavra. É por isso que enquadramos esse estudo como referente à coalescência mesmo sem a autora tê-lo produzido com esse enfoque. Rocha (2006) investiga a motivação conceptual que levou os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto a apresentarem traços de oposição que justifiquem o fato de serem tradicionalmente classificados em português como conjunções adversativas. A autora investiga a gramaticalização desses itens que, com exceção do mas, se formaram pelo processo de coalescência. Embora a pesquisa de Rocha (2006) não trabalhe especificamente com o fenômeno da coalescência, finda por analisar itens oriundos do processo de união construcional. Felício (2008) também trabalha com a gramaticalização da conjunção concessiva embora. O item embora é formado pelo processo de coalescência das formas: em + boa + hora que, em latim, corresponde à in bona hora e, no português, ao advérbio em boa hora. Baseia-se, portanto, em dados sincrônicos e diacrônicos, investigando o processo de mudança responsável pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de significado) da já conjunção concessiva embora. Essas pesquisas, embora não destaquem especificamente o processo da coalescência tendem a tocar nesse processo para explicar o desenvolvimento de seus objetos de estudo. Desse modo, as referidas pesquisas servem como aparato para refletirmos sobre o estudo de construções que, normalmente, o falante comum não tem consciência que se originaram da coalescência entre palavras diferentes, formando um único vocábulo, como, por exemplo, as construções amarei, porém e embora, investigados nos estudos citados. 1.3 Fundamentação teórica A presente pesquisa toma como suporte teórico a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), que reúne tanto pressupostos funcionalistas quanto construcionistas, pois 13 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL essa abordagem considera haver uma estreita relação entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas em contextos reais de comunicação. Reflete, portanto, as pesquisas que abrigam, sobretudo, o estudo da gramaticalização, praticado por Givón (1995), Hopper (1987), Heine et al. (1991), Traugott (1993;2003), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010), entre outros, destacando a noção de coalescência baseada, sobretudo, em Lehmann ([1982] 1995); e os estudos de representantes da Linguística Cognitiva que abrigam, principalmente, a gramática das construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005), Martelotta (2005). 1.4 Objetivos A pesquisa tem como objetivo geral analisar construções gramaticais cuja relação de sentido e forma se dá por meio do processo da coalescência, como relativo aos estudos de gramaticalização, a partir do uso oral de analfabetos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. Mais especificamente, objetiva: a) levantar os usos das construções coalescentes na fala dos descendentes quilombolas de Portalegre/RN; b) analisar as construções coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e à dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva); c) verificar os processos/mecanismos que podem descrever o modo como se dá o surgimento desse processo linguístico; e d) buscar indícios de mudança linguística, aferidos qualitativa e quantitativamente, que evidenciem o possível processo de gramaticalização dos diferentes usos das construções coalescentes. 1.5 Metodologia Nossa pesquisa caracteriza-se como descritiva/explicativa, de cunho qualitativo, mas com base em dados quantitativos, já que a frequência é um forte indício de gramaticalização. A pesquisa é descritiva/explicativa porque descrevemos as construções coalescentes detectadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN e explicamos suas funções nos contextos em que foram utilizadas. Embora esta pesquisa seja de cunho 14 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL qualitativo fez-se necessário utilizarmos o pacote estatístico do programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Com base nos resultados obtidos, nos foi possível descrever as construções coalescentes em seu contexto de uso e então, detectar o funcionamento das construções coalescentes nas situações comunicativas em que ocorreram. 1.5.1 Corpus A pesquisa tem como corpus A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, obra resultante de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e Literários de Pau dos Ferros/NELLP, do Departamento de Letras, do Campus Avançado “Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia”/CAMEAM, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Essa obra constitui um banco de dados que contém eventos de fala real dos moradores das comunidades Pêga, Arrojado e Engenho Novo do município de Portalegre, no Estado do Rio Grande do Norte. Essas comunidades estão localizadas a oeste da zona rural do município de Portalegre, possuem uma extensão de aproximadamente dois mil metros quadrados e abrigam moradores predominantemente negros e/ou pardos, cuja mestiçagem se deu através de brancos e índios. Os informantes foram escolhidos de modo que o Banco de Dados possuísse representantes de ambos os sexos e de faixa-etária mais velha, objetivando, em tempo aparente, resgatar estágios mais antigos do desenvolvimento da língua dessas comunidades. Foram, então, realizadas trinta horas de entrevistas, do tipo Diálogos entre Informantes e Documentador – DID, versando sobre experiências pessoais, religião e política local. Na transcrição, aparecem apenas os dados relativos ao sexo e idade, na tentativa de manter o anonimato, embora, no diário de pesquisa, encontram-se o nome completo do informante, a idade, o sexo, a cor, o grau de instrução, a ocupação, o tempo de residência na comunidade, data e hora da coleta. A transcrição do corpus é fiel à fala de indivíduos de parte da referida comunidade, mas mantém, tanto quanto possível, as convenções da ortografia padrão. A fala do entrevistador é transcrita conforme a variedade padrão, embora tenham sido conservadas as inadequações gramaticais. O corpus é constituído por seis inquéritos, cujos informantes estão aqui codificados: 15 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL IQ1 – Inquérito 01: Documentador e duas mulheres: Informante 2:M50-02. 2 Informante 3: M56-01 IQ2 – Inquérito 02: Documentador e quatro homens: Informante 7: H37-04 Informante 8:H39-03 Informante 9: H49-01 Informante 10:H55-02 IQ3 – Inquérito 03: Documentador e um homem: Informante 12: H61-05 IQ4 – Inquérito 04: Documentador, um homem e duas mulheres: Informante 14: H84-06 Informante 1: M(NS)-04 Informante 6: M81-03 IQ5 – Inquérito 05: Documentador e um homem e uma mulher: Informante 4: M63-05 Informante 13: H64-07 IQ6 – Inquérito 06: Documentador e um homem e uma mulher: Informante 11: H58-08 Informante 5: M63-06 Embora o corpus contemple variados fenômenos linguísticos passíveis de análise, esta pesquisa se limitará à investigação especificamente das construções que envolvem a coalescência, registradas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, como relativas ao processo de gramaticalização. 1.5.2 Etapas da pesquisa Subdividimos o nosso trabalho investigativo em duas etapas: na primeira, realizamos o levantamento dos usos das construções coalescentes na fala dos descendentes quilombolas de Portalegre/RN. Em seguida, passamos a analisar as construções 2 M= Mulher; H = Homem números idade-identificação. A ordem dos informantes está organizada segundo sexo e idade constante da Tabela 2, do capítulo 4. 16 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL coalescentes no tocante à dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e à dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva), constatadas em cada contexto de uso comunicativo, observando as: a) propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos elementos linguísticos no contexto de uso; b) propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos elementos linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu enunciado e sua preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte; c) propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso dos elementos linguísticos. Enfim, analisamos as construções, observando a relação estreita entre a estrutura e o uso que os falantes fazem delas no contexto real de comunicação, posto que sua habilidade linguística seja vista como constituída das regularidades no processamento mental da linguagem em situações de uso. 1.5.3 Tratamento dos dados A análise dos dados se deu a partir de uma abordagem quantitativa e, com base nela, fizemos uma análise qualitativa. Para a análise quantitativa, fizemos o cálculo da frequência das coalescências fonético-fonológicas e das coalescências gramaticais. Ressalvamos que as coalescências fonético-fonológicas são construções que não implicam mudança de função, são apenas palavras colididas, enquanto que, as coalescências gramaticais formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens envolvidos. Depois, analisamos o cruzamentos dos dados. Para essa análise, utilizamos o pacote estatístico do programa "Statistical Package for the Social Sciences" – SPSS (NIE et al. [1968] 2007). Salientamos que partimos da análise da frequência, por ser um dado indicador do processo de gramaticalização para, assim, descrever as construções coalescentes em seus contextos de uso. 1.6 Relevância acadêmica e social Trabalhar com a fala de remanescentes quilombolas culmina na relevância histórica e social que esse povo representa no país, posto que comungamos com o ponto de vista de 17 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Mattos e Silva (2004) de que os africanos e afro-descentes foram e são agentes principais da difusão do português no território brasileiro, na sua face majoritária, a popular ou vernácula. Por esse motivo, cremos que trabalhos dessa natureza proporcionam um diálogo com temáticas ainda pouco valorizadas e exploradas no meio acadêmico e social. Assim, acreditamos que os frutos deste estudo contribuirão tanto para a compreensão dos fenômenos linguísticos na perspectiva funcionalista e construcionista, quanto para as questões relativas às diferenças numa visão social/histórica não discriminatória dos usos linguísticos. Além disso, a pesquisa pode trazer contribuições no tocante ao plano pedagógico, visando à melhor orientação dos alunos na compreensão do funcionamento e na conscientização docente e discente sobre a existência de outras variedades linguísticas, assim como o acesso ao conhecimento do processo de mudança linguística. 1.7 Organização da Dissertação A dissertação está organizada em cinco capítulos. O primeiro capítulo traz a introdução, que apresenta uma visão panorâmica a cerca dos procedimentos e desenvolvimento da pesquisa. No segundo capítulo, expusemos o fundamento teórico em que esta pesquisa se sustenta, ou seja, a Linguística Funcional Centrada no Uso, cuja abordagem une a perspectiva funcionalista e cognitiva. No capítulo três, caracterizamos e conceituamos a coalescência. Expusemos, nele, os parâmetros e os processos de Lehmann ([1982] 1995), dentre os processos exibidos pelo autor destacamos o processo de coalescência. Além disso, apresentamos a coalescência segundo a história da Língua Portuguesa e estudos recentes sobre a gramaticalização de alguns itens do português brasileiro que ao longo de seu desenvolvimento utilizaram o processo de coalescência. No quarto capítulo, partindo da frequência de usos das coalescências encontradas no corpus, analisamos os aspectos formais e funcionais característicos de cada construção coalescente. Realizada a análise dos agrupamentos das construções coalescentes, apresentamos tendências de trajetórias de gramaticalização das construções coalescentes em uso na fala dos remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN. 18 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Por fim, vem a conclusão como quinto capítulo, apresentando a síntese dos achados da pesquisa, bem como sugestão de estudos futuros. 19 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 2 A GRAMATICALIZAÇÃO DAS CONSTRUÇÕES NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO Este capítulo apresenta a fundamentação teórica em que esta pesquisa se insere, ou seja, os pressupostos da Linguística Funcional Centrada no Uso. Nessa perspectiva, apresentamos as concepções sobre gramaticalização, mostrando que ela não se dá de modo aleatório, mas sim apresenta regularidade, pois os eventos de uso dirigem a formação e o funcionamento do sistema linguístico interno do falante, cuja estrutura não se separa do processamento mental que ocorre no uso que faz da língua. Assim, a regularidade do sisitema se desenvolve a partir da repetição ou ritualização desses eventos. Além disso, mostraremos que subjaz à gramaticalização a hipótese de unidirecionalidade, segundo o qual os elementos envolvidos tendem a desenvolver, com o uso, valores mais subjetivos e abstratos, e, no caso das construções, os itens tornam-se internamente menos composicionais, formando uma unidade mais integral. A Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), a qual é uma tradução do termo usage-based model utilizado inicialmente por Langacker (1987) e aqui, no Brasil, para designar essa tendência alguns autores como Tomassello (2005) e Martelotta (2008) preferem o termo Linguística Cognitivo-Funcional. Embora haja variação quanto ao termo, aclaramos que em nossa pesquisa adotamos o termo Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) devido à objetividade do termo, o qual (como os demais termos apresentados) privilegia o uso da língua. Esses pesquisadores utilizam o termo para abalizar as análises que refletem a junção das tradições das pesquisas funcionalistas que abrigam, especialmente, o estudo da gramaticalização, praticadas por Givón (1995), Hopper (1987), Heine et al. (1991), Traugott (1993), Traugott e Dasher (2005), Heine e Kuteva (2007), Bybee (2010), Furtado da Cunha (2003), Gonçalves et al. (2007), Martelotta (2011), entre outros; e os estudos de representantes da Linguística Cognitiva que abrigam, principalmente, a gramática das construções, como Langacker (1987), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001), Tomasello (2005) e Martelotta (2008). De modo sintético, a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) é um tipo de abordagem: a) resultante dos estudos que analisam as línguas, observando a relação estreita entre a estrutura e o uso que os falantes fazem delas nos contextos reais de comunicação; b) que, em sua análise, abrange tanto a observação de aspectos formais como dados relativos ao contexto comunicativo, ou seja, os semânticos, pragmáticos e discursivos. 20 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Assim, há o interesse pela dimensão formal (fonético-fonológica e morfossintática) e a dimensão significativa (semântica, pragmática e discursiva); b.1 propriedades semânticas: designativas dos significados veiculados pelos elementos linguísticos no contexto de uso. b.2 propriedades pragmáticas: relativas aos aspectos interativos do uso dos elementos linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao produzir seu enunciado e sua preocupação com a recepção desse enunciado pelo ouvinte. b.3 propriedades discursivas: referentes aos aspectos textuais que interferem no uso dos elementos linguísticos. Ex.: o fato de a informação já ter sido mencionada anteriormente (dada) ou não (nova) no enunciado produzido pelo falante. c) que, em sua análise, leva em conta aspectos relacionados a restrições cognitivas que incluem a percepção de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na memória. d) que, em sua análise, leva em conta aspectos associados à capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão coerente dos dados da experiência. Nessa perspectiva, a habilidade linguística do falante é vista como constituída das regularidades no processamento mental da linguagem em situações de uso. É no contexto interativo que os eventos de uso são cruciais para o desenvolvimento da estruturação do sistema linguístico do falante, pois fornecem o input para os sistemas de outros falantes, através, por exemplo, de reanálises, analogias e outros processos que implicam alterações e extensões no emprego das expressões linguísticas. Os novos usos resultantes desses processos, caso se tornem habituais ou rotineiros, podem transcender o contexto comunicativo em que são empregados e incorporarem-se ao sistema. Resumindo, a partir da repetição ou ritualização desses eventos, o sistema linguístico, por ser dinâmico e emergente, desenvolve-se, adaptando certos contextos comunicativos a eventos de comunicação específicos. Então, essa abordagem teórica visa explicar a língua por meio do uso que se faz dela. Isso significa atribuir ao falante, ao ouvinte, a seus papéis adquiridos socioculturalmente e ao contexto situacional uma integração tamanha que a ausência de um desses componentes pode comprometer todo o funcionamento linguístico. A linguagem é vista, pois, como um instrumento de interação social, ou seja, é por meio das relações sociais e pela necessidade comunicativa do ser humano que a linguagem aflora e se desenvolve. 21 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Assim, essa perspectiva se preocupa em refletir a relação entre as estruturas gramaticais das línguas e os diferentes contextos comunicativos nos quais essas estruturas estão sendo utilizadas. Ultrapassa a mera preocupação em estudar apenas a forma ou estrutura gramatical e passa a se preocupar com o uso dessas estruturas inseridas em situações comunicativas reais, levando em conta os interlocutores, seus propósitos comunicativos e o contexto em que ocorre a interação. Assim, a abordagem centrada no uso busca, para seu objeto de estudo, dados reais de fala ou escrita captados em verdadeiras situações sociocomunicativas para, desse modo, explicar as funções que os enunciados e textos desempenham nas situações interativas reais. 2.1 Concepções de gramática na abordagem centrada no uso O termo gramática, atualmente, pode nos levar a diversas concepções, pois os estudos linguísticos vêm expondo vários tipos de gramáticas (normativa, descritiva, gerativista, funcionalista...) e trabalhar com uma delas significa se posicionar a favor de uma dada concepção teórica. Por exemplo, o uso da gramática normativa remete a uma concepção estruturalista, pois nessa concepção de gramática são prescritas as normas, regras de uma língua, não admitindo, portanto, as variações linguísticas nem o uso real cotidiano, ou seja, nesse modelo, todos os falantes devem usar a língua de forma homogênea. A abordagem centrada no uso se distingue dessa proposta no sentido de que adota uma concepção de gramática que admite a diversidade linguística, a mudança linguística, os sujeitos que fazem uso dela e o contexto em que estão inseridos. Tem-se com esse modelo uma proximidade mais ampla do real funcionamento linguístico. Assim, a gramática é constituída de regularidades da língua, levando em conta a situação comunicativa como um todo, ou seja, o locutor, sua intenção comunicativa, o interlocutor, e o contexto em que se dá a comunicação, a interação sociocultural. Du Bois (1985, 1987) descreve a gramática como um sistema adaptativo em que forças motivadoras dos fenômenos externos interagem com o sistema interno da língua, confrontando, e harmonizando-se sistematicamente entre si. A Figura 1 representa essas motivações em competição: 22 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Figura 1 – Motivações em competição Fenômenos externos Forças internas Fonte: (DU BOIS, 1985, p. 361) Sendo a gramática susceptível às pressões do uso, ela se resolve no equilíbrio entre forças internas e forças externas ao sistema. Esse modelo dá conta do fenômeno da gramaticalização, que reconhece a presença de construções relativamente livres no discurso que, devido às necessidades comunicativas, passam por um processo de evolução e se tornam construções relativamente fixas na gramática. Segundo Du Bois (1993, p.11), a gramática molda o discurso e o discurso molda a gramática. Nesse sentido, Langacker (1987) afirma que a gramática de uma língua constitui um conjunto de princípios dinâmicos que se associam a rotinas cognitivas que são moldadas, mantidas e modificadas pelo uso. Desse modo, não há uma gramática inteiramente pronta. Essa concepção também é vista em Hopper (1987), quando defende que a gramática das línguas é compreendida como constituída de partes cujo estatuto vai sendo constantemente negociado durante o processo da fala, não podendo ser separado das estratégias de construção do discurso. Desse modo, a língua é entendida como atividade em tempo real, o que por sua vez o leva a crer que não existe gramática como produto acabado, mas sim numa contínua gramaticalização. 23 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 24 Para Givón (1995), é impossível compreender e descrever a língua a partir de um sistema autônomo. Segundo o autor, a gramática só pode ser entendida se relacionada à cognição e comunicação, ao processamento mental, à interação social e cultural, à mudança e variação, à aquisição e evolução. Assim, o autor defende a não autonomia do sistema linguístico e que a gramática faz parte de um processo emergente, que surge de necessidades comunicativas. Em outras palavras, a gramática deve ser entendida como instruções de processamento mental do falante para o ouvinte, o conjunto de estratégias empregadas para se produzir uma comunicação coerente no contexto discursivo. No mesmo texto, Givón acrescenta que a contribuição mais relevante da gramática está no fato de o processamento da informação ocorrer por meio das funções básicas da linguagem humana, que residem na representação e na comunicação do conhecimento. O sistema de representação cognitivo, nesse caso, envolve três níveis: o nível léxicoconceptual (mapa cognitivo de nossas experiências físicas, sócio-culturais e mentais – em que atua a memória semântica permanente); o nível da informação proposicional (conceitos, palavras, orações – em que atua a memória episódica); e o discurso multiproposicional (combinações de orações num discurso coerente – em que atua a memória episódica). Já o sistema de codificação comunicativo envolve o código sensóriomotor periférico (compete à fonética, à fonologia e à neurologia) e o código gramatical que desempenha simultaneamente funções dos níveis oracionais e discursivos. A concepção givoniana de gramática se apoia em princípios como: i) a linguagem é uma atividade sociocultural, ou seja, é o uso da língua na comunicação; portanto, a estrutura é maleável, não rígida, modelada por pressões externas (do contexto extralinguístico – sociocultural, situacional e discursivo) e por pressões internas (do contexto, sistema propriamente linguístico); ii) é não-arbitrária, motivada, icônica e serve a uma função cognitiva (processamento mental) ou comunicativa (interação) – há uma relação de dupla via, forma e função; iii) as categorias não são discretas, há um continuum que sugere uma perspectiva escalar; iv) a mudança e a variação estão sempre presentes, portanto, as gramáticas são emergentes (GIVÓN, 1995). Logo, percebemos que Givón (1995) reconhece a relação entre a sintaxe e as propriedades semânticas e discursivo-pragmáticas, inclusive concorda com o posicionamento, defendido por Du Bois (1987), de que o discurso molda a gramática e de que a gramática molda o discurso. ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Traugott (1995; 1997) também defende que, além de a gramática considerar os aspectos fonológicos, morfossintáticos e semânticos, há que se levar em conta também as inferências que surgem fora da forma linguística (discursivo-pragmáticas). Sobre a noção de gramaticalização, enfatiza principalmente os aspectos semântico-pragmáticos da mudança. A autora analisa o componente pragmático nos estágios iniciais da gramaticalização, que pode ser fortalecido no momento em que há acréscimo do envolvimento e da expressividade subjetiva do falante no tocante a atitudes e crenças. Martelotta et al. (1994) defendem a gramática como um sistema construído a partir das regularidades resultantes das pressões de uso que estão relacionadas a interesses e necessidades discursivas/pragmáticas. Para eles, a concepção de gramática se associa a uma estrutura que pode ser definida como maleável e emergente, reconhecem também a validade da gramaticalização em seus estudos, ou seja, os processos especiais de mudança linguística. Embora cada autor apresente sua concepção a respeito da gramática, podemos encontrar pontos comuns entre os conceitos de gramática apresentados. Nessa perspectiva, é notório o consenso entre esses autores sobre a não autonomia da sintaxe e sobre a defesa de uma gramática maleável e emergente. Por fim, acrescentamos que atrelada/sobreposta a essas concepções de gramática, apresentadas pelos teóricos, estão inclusos os pontos de vista e definições sobre a gramaticalização, pauta de discussão a seguir. 2.2 Gramaticalização A gramaticalização se refere a processos especiais de mudanças linguísticas, o processo de gramaticalização se instaura no momento em que uma unidade linguística começa a adquirir propriedades de formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical, tem sua gramaticalidade alterada. Superficialmente a gramaticalização parece ser um processo recente, porém, levando em conta sua trajetória, notamos que nem o interesse por este processo nem sua ocorrência são recentes. Assim sendo, os primeiros estudos sobre gramaticalização datam do século X na China e, posteriormente, passam a se desenvolver no século XVII, com Condillac e Rosseau, na França e Tooke, na Inglaterra. No século seguinte, é a vez de Bopp, Schlegel, Humboldt, Gabelentz, na Alemanha, e Whitney nos Estados Unidos. Porém, é somente no 25 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL século XX (especificamente em 1912) que a gramaticalização é nomeada como tal, sendo Meillet (na França) considerado o fundador dos estudos modernos de gramaticalização, inclusive, o primeiro a utilizar o termo gramaticalização. Contudo, antes de adentrarmos na complexidade da definição acerca da gramaticalização, salientamos que, assim como acontece com a concepção de gramática anteriormente descrita, a gramaticalização também não apresenta uma definição uniforme entre os estudiosos desse assunto, por isso muitas são as discussões em torno desse termo. Para uns, a gramaticalização é vista como processo, outros a veem como paradigma, e há aqueles que a concebem como fenômeno diacrônico ou sincrônico. Segundo Gonçalves et al. (2007, p. 16), a gramaticalização é um paradigma quando é observada num estudo da língua que se preocupe em focalizar a maneira como formas gramaticais e construções surgem e como são usadas. É considerada processo quando há a preocupação com a identificação e análise de itens que se tornam mais gramaticais. Conforme os autores, a gramaticalização pode ser estudada sob duas perspectivas: a) diacrônica, quando a preocupação do estudo se voltar para a explicação de como as formas gramaticais surgem e desenvolvem-se na língua; b) ou sincrônica, quando a preocupação se voltar para a identificação de graus de gramaticalidade que uma forma linguística desenvolve conforme os deslizamentos funcionais a ela conferidos pelos padrões fluidos de uso da língua num dado recorte de tempo. Embora haja controvérsias em torno do caráter metodológico do estudo da gramaticalização como, por exemplo, a relação diacronia/sincronia que, numa visão mais tradicional, representam perspectivas divergentes, Traugott & Heine (1991) rompem esse paradigma, quando afirmam que o termo gramaticalização remete a um processo linguístico tanto diacrônico quanto sincrônico, ainda que, numa época remota, tenha sido visto apenas por uma perspectiva diacrônica. Assim sendo, esclarecemos que o presente trabalho segue por um enfoque sincrônico (recorte de um dado momento da língua), pois tomamos como corpus de análise o livro: A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil, que contém dados coletados da fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN, no ano de 2001. Conforme já afirmamos, muitas são as reflexões em torno da definição sobre a gramaticalização, por isso expomos, a seguir, algumas definições sobre esse termo. Começamos com a definição de Meillet (1912), fundador dos estudos modernos da gramaticalização. Para ele, a gramaticalização é definida como “(...) passagem de uma 26 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL palavra autônoma à função de elemento gramatical” (MEILLET, 1912, p. 131). Nesse sentido, o conceito de gramaticalização, proposto por Meillet pode ser simplificado pela trajetória: [item lexical] > [item gramatical] (item sintático > item morfológico). O autor trabalha inicialmente com a gramaticalização numa perspectiva histórica, visando compreender a origem e as mudanças típicas envolvendo morfemas gramaticais, o que complementava o campo da etimologia e da evolução histórica das palavras. Porém, através da distinção de três classes de palavras: as principais, as acessórias e as gramaticais, as quais remetem gradualidade, Meilet passa a adquirir uma percepção de gramaticalização como um processo sincrônico. Kurilowicz (1964) amplia o conceito de gramaticalização proposto por Meillet, corroborando que a gramaticalização, além de considerar a mudança de um item lexical a um item gramatical, considera também itens/construções que partem do menos para o mais gramatical. Já para Heine et al. (1991, p. 21), “Gramaticalização é um processo que pode ser encontrado e pode envolver qualquer tipo de função gramatical; ocorre quando uma unidade gramatical assume uma função mais gramatical ainda”. Entendamos, então, como compreendemos as noções item lexical e item gramatical. O primeiro refere-se a palavras de uma categoria lexical plena como: nomes, sentimentos, ações, qualidades... (substantivos, adjetivos e verbos), cujas propriedades fazem referência a dados do universo bio-psíquico-social; já o item gramatical são as palavras que apresentam funções tradicionalmente definidas como gramaticais, funcionais ou interacionais (preposições, advérbios, auxiliares...), cujas propriedades cuidam de organizar, no discurso, os elementos de conteúdo, por ligarem palavras, orações e partes do texto, marcando estratégias interativas na codificação de noções como tempo, aspecto, modo, modalidade etc. Uma vez esclarecidas essas noções, passemos à definição de gramaticalização segundo Traugott (2001). Para ela, gramaticalização pode ser definida como a mudança pela qual itens e construções lexicais vêm em certos contextos linguísticos servir a funções gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções. Ainda conforme a autora, as mudanças não têm que ocorrer. Elas também não têm que chegar ao término; em outras palavras, elas não têm que fazer todo o percurso ao longo do aclive [=cadeia], ou mesmo prosseguir, uma vez que já tenha começado. 27 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Martelotta (2011) amplia a definição de Traugott (2001), afirmando que gramaticalização é um processo de mudança linguística unidirecional em que itens lexicais e construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Como podemos ver, a trajetória de gramaticalização do item logo3 que Martelotta (2011, p.97-8) ilustra nas amostras apresentadas em (2): (2) a. A primeira natureza da poonba he que en logo de cantar geme. (Livro das Aves, 1965) b. A Serra estava totalmente deserta, e os pingos de chuva que começavam a cair, logo se se transformaram em um verdadeiro temporal. (Corpus D&G) c. ... e sentei-me na cama afim de vesti-la, mas acontece que havia um ferro de passar roupa usado a poucos instantes e logo quente ainda, sente-me sobre ele e foi uma dor enorme. (Corpus D&G) d. Falar do quarto! Logo do meu quarto! bem o meu quarto é uma verdadeira bagunça. É roupa pra lá e roupa pra cá. Você sabe como é quarto de menino. (Corpus D&G) O uso do item logo em (2a), um uso do português antigo, demonstra a origem espacial dos usos atuais presente na locução em lugar de, com origem latina loco, locu(abl.), que significa no lugar, no momento, logo (MACHADO, 1997). A amostra (2b) apresenta o valor temporal do item logo e a (2c) demonstra o valor textual como conjunção conclusiva. Por último, a amostra (2d) ilustra um uso enfático de logo, indicando a atitude do falante em relação ao que fala. Dessa maneira, temos a trajetória advérbio > conjunção, que segue, como veremos adiante, um processo metafórico ESPAÇO > (TEMPO) > TEXTO (HEINE et al.1991), caracterizando uma tendência translinguística que leva elementos de valor espacial a assumirem funções típicas das conjunções. Baseado nas funções da linguagem (cf. HALLIDAY, 1985), Martelotta (2011) acrescenta também que o processo de gramaticalização ocorre no momento em que um elemento deixa de atuar no nível representacional, quando os itens ou expressões que fazem referência a dados do universo biossocial (objetos, entidades, sentimentos, ações e qualidades), para atuar no nível interpessoal, que abrange as expressões de valor processual, como ocorre no uso do item logo em (2d), isto é, expressões “cujas funções se relacionam aos processos através dos quais o falante elabora seu enunciado para um determinado ouvinte em um contexto específico de uso. (MARTELOTTA, 2011, p.92) 3 Mais adiante, ilustramos, bem como analisamos a trajetória de construções, nosso objeto de estudo. 28 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Bybee (2010) também apresenta um relevante conceito sobre gramaticalização, segundo a autora funções pragmático-discursivas são entendidas como integrantes da trajetória de gramatialização, como pontos mais avançados de uma escala. Desse modo, as mudanças linguísticas decorrentes de monitoramento textual e interacional são vistas como fenômenos de gramaticalização, situadas em ponto mais avançado de uma dada trajetória. Salientamos que, embora muitos concordem que a gramaticalização se caracteriza como processo, autores como Campbell (2001), Joseph (2001), Newmeyer (1992) criticam fortemente a concepção de gramaticalização concebida como processo. É seguindo por este viés que Newmeyer (1992) afirma que a gramaticalização, para ser tratada como processo, necessitaria de um conjunto próprio de leis, o que, de fato, não é perceptível em gramaticalização. Assim, sugere que ao invés de processo a gramaticalização deveria ser caracterizada como um “fenômeno a ser explicado”. Traugott (2001), empenhada em definir gramaticalização, abstém-se da palavra processo, embora defenda que o termo processo não deva ser abandonado tão facilmente e explica que o termo tem sido mal compreendido, pois a linguagem é uma capacidade humana e social, e não há uma maneira única pela qual se possa guiar. Comungamos com os estudiosos da abordagem centrada no uso que consideram a gramaticalização como processo, pois partimos do pressuposto de que o termo processo possibilita levar em conta o dinamismo do sistema linguístico, seu caráter evolutivo e as regularidades constatadas nas mudanças que colocam a língua e a gramática em estágios de algum modo diferenciado. Assim, entendemos que, no processo de gramaticalização, os padrões gramaticais já instituídos servem de modelo para os novos usos comunicativos e, à medida que esses usos passam a circular com constância no meio social, tornam-se fortes candidatos a se gramaticalizarem. Aliado à concepção da gramaticalização como processo, está a noção de unidirecionalidade (continuum na mudança), a qual consideramos como hipótese. Isso porque se consideramos a unidirecinalidade como um princípio da gramaticalização, poderiam surgir deduções de que defendemos a gramaticalização como uma teoria em si. Assim, na próxima seção, exploramos, de modo mais amplo, a relação entre gramaticalização e unidirecionalidade. 29 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 2.2.1 Gramaticalização e unidirecionalidade A unidirecionalidade tem sido associada à gramaticalização há muito tempo, tanto é que tem sido usada como teste para validar se determinadas mudanças são ou não um caso de gramaticalização. No entanto, considerar a unidirecionalidade como princípio da gramaticalização parece querer rotulá-la como teoria, questão essa, conforme discutido anteriormente, não é consensual. Sendo assim, é mais coerente considerar a unidirecionalidade como uma hipótese associada ao processo de gramaticalização. Essa posição de considerar o princípio de unidirecionalidade como hipótese se dá também pelo fato de a unidirecionalidade ser alvo de críticas quanto a sua eficiência metodológica, o que gera contradições e falta de consenso entre os estudiosos que se dedicam à gramaticalização. Desse modo, mencionamos alguns pontos de vista sobre a unidirecionalidade propostos por pesquisadores como Hopper & Traugott (1993), por exemplo, que veem a unidirecionalidade como uma hipótese passível de verificação empírica. Já Heine et al. (1991) defendem a unidirecionalidade como propriedade definidora do processo. Ziegeler (2004), por sua vez, propõe que a unidirecionalidade é um fenômeno colateral da gramaticalidade, uma entidade manifestada independente do viés analítico. Além disso, alguns autores utilizam o rótulo continuum (unidirecionalidade) para se referir às transformações entre classes de palavras; outros usam continuum para mostrar os deslizamentos empreendidos por categorias semânticas. Embora haja diversas discussões em meio à eficácia da unidirecionalidade, o presente trabalho faz uso dessa hipótese devido a dois motivos: primeiro por ser uma hipótese amplamente utilizada, de modo empírico em diversas línguas e segundo, porque o número de contra exemplos é consideravelmente mínimo e alguns deles conforme menciona Figueiredo-Gomes (2008), são casos de estabilidade. Considerando a relação entre unidirecionalidade e gramaticalização, levamos em conta que a gramaticalização remete a um processo tanto diacrônico como sincrônico. Traugott & Heine (1991) observam que, embora num determinado momento se encontre uma estrutura substituindo completamente outra, as duas formas coexistiram durante um momento no tempo, ou seja, a forma nova e a forma velha passaram a entrar num processo de variação. Como observa Neves (1997, p. 118), “essa variação encontrada nada mais é do que o reflexo do caráter gradual da mudança linguística”. Enfatizando o aspecto 30 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL gradativo da mudança linguística, Heine & Heh (1984, p. 15) corroboram que “a gramaticalização é um continuum evolutivo e que qualquer tentativa de segmentação de unidades discretas é arbitrária”. Desse modo, podemos compreender a unidirecionalidade como uma trajetória que acaba por evidenciar o percurso pelo qual um elemento lexical passa para a condição de item gramatical ou um elemento gramatical torna-se um elemento ainda mais gramatical. Em outras palavras, as mudanças que se caracterizam como gramaticalização se implementam sempre de maneira gradual, numa escala unidirecional e contínua de aumento de gramaticalização/abstratização. O próprio Meillet (1912), considerado o fundador dos estudos modernos de gramaticalização, ao propor a existência de três classes de palavras: as palavras principais, as palavras acessórias e as palavras gramaticais, indica que há entre elas uma transição gradual. Ou seja, essa relação gradual remete a uma cadeia evolutiva pela qual certos itens e construções linguísticas passam ao longo do tempo. Portanto, ao reconhecer o caráter gradativo da língua, Meillet parece reconhecer também o caráter gradual da unidirecionalidade. Seguindo a hipótese da unidirecionalidade, percebemos que, ao longo do desenvolvimento e exploração desse raciocínio por parte de diversos pesquisadores que investigam o processo de gramaticalização, tem-se notado o surgimento de diversas trajetórias contínuas. Essa diversidade pode ser explicada pelo fato de que os pesquisadores, por um interesse próprio de estudar um dado objeto, findam por formular trajetos que melhor explicam seus objetos. Como exemplo disso, podemos mencionar trajetórias como: Local > temporal > lógico > ilocutivo > discursivo (ABRAHAM, 1991); Proposicional/ideacional > textual > interpessoal/expressivo (TRAUGOTT; KÖNIG, 1991); Pessoa > objeto > espaço > tempo > qualidade (HEINE et al., 1991). Além dessas trajetórias, há outras que lidam com objetos mais específicos. Contudo, o surgimento de tantas trajetórias não implica fragilidade a noção da unidirecionalidade. Ao contrário, desde que apresentem regularidades capazes de explicar a passagem de um dado elemento lexical à categoria gramatical ou um elemento gramatical a uma elevação de mais gramatical ainda, isso apenas comprova que a unidirecionalidade vem sendo constatada em diversos fatos empíricos analisados e explicados sob o prisma dessa hipótese. 31 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Nessa perspectiva, Heine & Reh (1984) mostram que os três níveis da estrutura afetados pela gramaticalização – o funcional, o morfossintático e o fonético – em geral se arranjam, na gramaticalização, nessa mesma ordem: os processos funcionais (como dessemantização, expansão, simplificação) precedem os morfossintáticos (como permutação, composição, cliticização, afixação), que precedem os fonéticos (como adaptação, fusão, perda). Dessa maneira, caracterizam a gramaticalização como, inicialmente, havendo uma perda na complexidade semântica, na significação funcional, no valor expressivo; perda pragmática com ganho na significação sintática; diminuição de membros num mesmo paradigma sintático; diminuição na variabilidade sintática, com maior fixidez na ordem; obrigatoriedade de uso em determinados contextos, com exceção de uso em outros; coalescência semântica, morfossintática e fonética com outra(s) unidade(s), (é o caso do nosso objeto de investigação) e a perda de substância fonética. Já Heine et al. (1991) enumeram como características gerais da unidirecionalidade: i) a precedência do desvio funcional (conceptual ou semântico), sobre o formal (morfossintático e fonológico); ii) a descategorização de categorias lexicais prototípicas; iii) a possibilidade de recategorização, com restabelecimento da iconicidade entre forma e significado; iv) a perda de autonomia de um elemento (uma palavra autônoma passa a clítica, um clítico passa a afixo); e v) a erosão ou enfraquecimento formal. Embora a unidirecionalidade seja representada por meio de escalas para melhor refletir os estágios de mudanças linguísticas via gramaticalização, lembramos que a mudança pode ser esgotada seguindo todo um percurso, mas também pode ser interrompida em um dado ponto do seu trajeto, tendo em conta que as mudanças não têm que ocorrer, nem têm que chegar ao término (TRAUGOTT, 2001). Pelo fato de a linguagem ser uma capacidade humana e social, não existe uma maneira exata pela qual se pode predizer precisamente como se darão as mudanças ao longo do tempo. Portanto, partindo do pressuposto de que a unidirecionalidade indica o trajeto pelo qual a mudança linguística percorre, seguindo o rastro contínuo da evolução é possível entender que toda gramaticalização, necessariamente, pressupõe estágios de mudanças, mas nem toda mudança pode ser identificada como gramaticalização. Essa máxima pode ser exemplificada com a diferença encontrada no nosso corpus entre coalescência fonéticofonológica e coalescência gramatical. Assim, as formas pras, pros e quisso, são exemplos de coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens 32 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e não + é = né? marcador discursivo). Ressalvamos que a unidirecionalidade por si mesma não dá conta de explicar o processo de gramaticalização, por isso, atrelada a hipótese de unidirecionalidade, seguem os mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização dentre os quais destacamos: a metáfora e a metonímia; e a analogia e a reanálise – tema sobre o que versa a próxima seção. 2.2.2 Os mecanismos motivadores da gramaticalização Os mecanismos motivadores da gramaticalização nos auxiliam a compreender de forma mais ampla as mudanças que ocorrem no uso linguístico, entre os diversos mecanismos considerados atuantes num processo de gramaticalização como, por exemplo, a reanálise, a analogia, a erosão fonética, a metáfora, a metonímia, dentre outros. Destacamos especificamente para essa discussão, quatro desses mecanismos: metáfora e analogia; metonímia e reanálise. Heine (1994) corrobora que, para se chegar à gênese e ao desenvolvimento de categorias gramaticais, é necessário considerar a análise de manipulação cognitiva e pragmática, de modo que a transferência conceptual e os contextos que favorecem uma reinterpretação devem ser observados. O autor destaca que o processo de mudanças gramaticais envolve dois mecanismos: a) a transferência conceptual (metáfora), que aproxima domínios cognitivos diferentes; b) a motivação pragmática, que envolve a reinterpretação induzida pelo contexto (metonímia). Partindo para uma compreensão mais vasta sobre a metáfora na perspectiva da gramaticalização, a presente pesquisa se apoia no modelo cognitivo do realismo experiencialista, defendido por Lakoff (1987) e Sweetser (1990). O primeiro acredita que os sistemas de conceitos da língua surgem a partir do contato físico-social dos falantes com o mundo real. Assim, para traduzir esse mundo, o falante fez e faz uso de metáforas fundantes. O falante passa a significar o mundo a partir de suas experiências no mundo do qual faz parte. Johnson (1987) relata que o pensamento trabalha com conceitos apreendidos por 33 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL meio do contato com o mundo concreto e, através dessas experiências, o indivíduo passa a construir uma realidade mais abstrata que se revela como o mundo das idéias. Portanto é a metáfora que permite que as pessoas compreendam o mundo das ideias a partir do mundo concreto. Daí a noção de que as línguas possuem um sistema cognitivo real experiencialista. Podemos compreender, então, que a metáfora em gramaticalização envolve a abstratização de significados, de forma que os domínios lexicais e menos gramaticais sofrem uma extensão metafórica, elevando-se a domínios gramaticais ou mais gramaticais, ou seja, há uma transferência do domínio do mundo real para domínios do mundo mais abstrato, seguindo, portanto, o percurso concreto > abstrato. Segundo Sweetser (1990), a transferência de domínios mediada pela metáfora ocorre de maneira estável, regular e motivada. Segue uma trajetória unidirecional por meio das seguintes etapas: a fase concreta (realidade físico-social), depois a fase abstrata (experiência) e, por fim, a fase discursiva. Assim, o significado mais abstrato deriva-se sempre de um significado mais concreto. É por meio da transferência metafórica que os conceitos ancorados na concretude passam a conceitos mais abstratos. Então os conceitos que estão mais próximos da experiência humana são utilizados para expressar outros que são mais abstratos, de modo que a experiência não-fisica é entendida em termos da experiência física. Dessa maneira, as metáforas não formam novas expressões, porém predicações preexistentes são introduzidas a novos contextos ou aplicadas a novas situações por meio da extensão de significados, propiciando a gramaticalização. Nesse sentido, o desenvolvimento das estruturas gramaticais pode ser descrito em termos de certas categorias cognitivas, partindo sempre, unidirecionalmente, do elemento mais concreto rumo a um mais abstrato. Nessa perspectiva, vejamos a escala proposta por Heine et al. (1991): Pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade Nessa escala, cada categoria refere-se a uma variedade de conceitos, ou seja, transformações pelas quais uma dada forma passou e tais processos de mudanças compõem um domínio de conceptualização importante da experiência humana. Associado ao processo de metáfora está um mecanismo conhecido como analogia. A analogia pode ser definida como um mecanismo que atrai formas preexistentes por 34 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL outras construções já existentes no sistema, envolvendo assim, inovações ao longo do eixo paradigmático, ou seja, a analogia é um mecanismo que não causa exatamente a mudança linguística, mas a expansão da língua. Sobre a analogia Bybee (2010, p. 57) a define como: “the process by which a speaker comes to use a novel item in a construction”. A analogia atua a partir da comparação de um item novo com membros mais antigos, já armazenados no sistema mental do falante. De modo que, os itens mais frequentes ou as frases mais convecionalizadas servem como base para a formação analógica. Já Kiparsky (1968) na tentativa de redefinir a analogia na mudança fonológica como extensão de regra, conseguiu dar conta formalmente do fato de que a analogia não se trata de uma mudança linguística, mas sim, trata-se especificamente de uma generalização ou otimização de uma regra, de um domínio relativamente limitado para um domínio mais amplo. Desse modo, a analogia visa, por meio de regras existentes, igualar itens similares a essas regras. Trata-se, portanto, da extensão de um uso mais geral para substituir usos menos gerais. A analogia em sua atuação é representada por uma fórmula do tipo: A : B :: C : D, em que D equivale a forma surgida por analogia. Assim sendo, a analogia pode ser considerada sob duas dimensões, segundo Hopper & Traugott (1993): (i) da generalização dos tipos de estruturas linguísticas, e (ii) da generalização por meio do padrão, que, por sua vez, é baseada na frequência com que as estruturas em questão podem ocorrer no tempo. Expostos os mecanismos de metáfora e analogia, destacamos também no processo de gramaticalização, numa discussão mais profunda, os mecanismos de metonímia e de reanálise. Conforme Traugott e König (1991), a metonímia refere-se à especificação de um significado em termos de outro que se apresenta no contexto, ou seja, representa uma transferência semântica. Para esses autores, a metonímia está intrinsecamente ligada a um mecanismo denominado de inferência por pressão de informatividade, o qual considera que um item linguístico passa a assumir um valor novo, pressuposto do original, graças à convencionalização de implicaturas conversacionais por meio de pressões do contexto de uso. Assim, quando uma implicação naturalmente surge como forma linguística, pode ser tomada como parte do significado desta, podendo até mesmo chegar a substituí-la. 35 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Para Lakoff & Johnson (1980), a metonímia possui uma função referencial a qual permite usar uma forma em substituição da outra. Assim como a metáfora se associa à analogia, o mesmo acontece entre a metonímia e a renálise, porém, ao contrário da analogia, que representa uma expansão de mudança linguística e, portanto, não causa propriamente a mudança na língua, a reanálise é capaz de criar novas estruturas gramaticais. Langacker (1977, p. 58) define a reanálise como “mudança na estrutura de uma expressão ou classe de expressões que não envolve qualquer modificação imediata ou intrínseca em sua manifestação de superfície”. Em outras palavras, a reanálise pode ser compreendida como reestruturação de itens ou construções, que, por sua vez, resulta em uma reinterpretação das relações entre eles. O mecanismo de reanálise envolve a reorganização e mudança nesses itens ou construções situados no eixo sintagmático, porém essas mudanças não ocorrem necessariamente de forma imediata na superfície da construção reanalisada. A reanálise, portanto, compreende fatos linguísticos em que os falantes mudam a construção de determinadas formas de sua língua, por meio da abdução, a qual tem a propriedade de apagar os limites entre certas formas, estabelecendo, assim, novos “cortes”. Um dos principais tipos de reanálise presentes na gramaticalização é a eliminação das fronteiras entre duas ou mais formas morfológicas no processo de desenvolvimento de novas categorias gramaticais. Por isso, embora a reanálise não altere imediatamente a unidade sobre a qual se está operando, certamente apresentará consequências futuras mesmo no eixo sintagmático, visto que uma nova categoria está prestes a surgir. Para finalizar o capítulo, traçamos um paralelo entre os mecanismos abordados; primeiramente entre metáfora e metonímia e, em seguida, entre analogia e reanálise, visto que esses mecanismos têm sido válidos, no tocante a compreensão das mudanças linguísticas em geral, especialmente nas mudanças morfossintáticas. Assim, sobre a metáfora e a metonímia, Gonçalves et al. (2007) comentam que as inferências metafóricas e metonímicas podem ser percebidas como processos complementares. A respeito desses dois mecanismos, Martelotta et al. (1996, p. 54) expõem que: A metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo qual conceitos que estão próximos da experiência humana são utilizados para expressar aquilo que é mais abstrato e, consequentemente, mais difícil de ser 36 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança ou mudanças por contiguidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático. Entretanto, existem conflitos entre os teóricos no tocante ao modo como veem os mecanismos de metáfora e metonímia em relação ao processo de gramaticalização, pois há aqueles que defendem tanto a transferência metafórica quanto a transferência metonímica como atuantes do processo de gramaticalização, enquanto outros teóricos aceitam um mecanismo e excluem o outro. Apesar dos diferentes posicionamentos, todos concordam num ponto em relação aos resultados da atuação desses mecanismos: a previsão de um percurso de abstração crescente. Quanto ao paralelo entre analogia e reanálise, Hopper e Traugott (1993) afirmam que a reanálise modifica as propriedades gramaticais – morfológicas e sintáticas – e as propriedades semânticas, que se referem às mudanças na reinterpretação, na classificação sintática e no significado e, portanto, implica mudança de regra; embora o efeito da regra estenda-se no próprio sistema linguístico ou na comunidade linguística em que o dado uso linguístico se realiza. Contudo, taxam a reanálise como o mecanismo mais importante para a gramaticalização, posto que somente ela pode criar novas estruturas gramaticais. Já Figueiredo-Gomes (2008) defende uma postura complementar entre os dois mecanismos. Essa complementaridade ocorre no processo de gramaticalização, pelo fato de a analogia provocar a mudança por reanálise ou, em muitos casos, pelo fato de a analogia ser a primeira evidência de que os falantes de uma língua detectam que a mudança ocorreu. Considerando o que a reanálise representa para o processo de gramaticalização, acrescentamos que, embora a reanálise pareça ter uma relação intrinsecamente dependente com a gramaticalização, temos que levar em conta a advertência realizada por Heine et al. (1991), quando afirmam que há motivos para manter a reanálise e a gramaticalização estritamente separadas e duas evidências podem justificar tais alegações: a) a gramaticalização é essencialmente um processo unidirecional, a reanálise não o é; b) a gramaticalização não precisa de ser acompanha pela reanálise. Mesmo não havendo uma dependência total entre a gramaticalização e os mecanismos abordados, tanto a reanálise quanto a analogia são relevantes abordagens no tocante a uma compreensão mais ampla sobre certos casos de gramaticalização. A reanálise implica a reorganização linear, sintagmática, local e uma mudança de regra, que não é diretamente observável. Por outro lado, a analogia essencialmente implica a 37 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL organização paradigmática, mudanças nas colocações de superfície e nos padrões de uso. Logo, a analogia faz as mudanças inobserváveis da reanálise observável. Em suma, os mecanismos metonímicos e metafóricos findam por se completarem. Enquanto o primeiro resulta da contiguidade de significações, devido à proximidade de formas linguísticas, havendo, por isso, uma associação entre processo cognitivo de metonímia e o mecanismo de reanálise, o segundo possibilita a transferência de um domínio a outro, ocorrendo também uma associação entre o processo cognitivo de metáfora e o mecanismo da analogia. Sintetizando, podemos afirmar que a abordagem centrada no uso considera que, na gramaticalização, o elemento ou expressão que originalmente apresenta sentido representacional, fazendo referência ao nosso mundo biossocial, passa a ser utilizado para expressar noções gramaticais e veicular estratégias comunicativas e atitudes subjetivas dos usuários. Assim, na mudança por gramaticalização, os elementos envolvidos tendem a se tornar mais idiomáticos, perdendo o valor literal e, em termos morfossintáticos, tornandose mais fundidos entre si, como acontece com as construções. Hopper e Traugott (1993) enfatizam a especificidade dos contextos discursivos que propiciam a gramaticalização e afirmam que a passagem de [lexical] > [gramatical] não é direta. Esse processo se dá de modo gradual, em que os elementos vão mudando de sentido, perdendo características morfossintáticas, na medida em que seu uso vai sendo estendido para novos contextos. Do ponto de vista semântico e discursivo-pragmático, podemos compreender que essa tendência de gramaticalização parte de valores mais concretos para mais abstratos, ocorrendo uma mudança em direção a uma subjetivação (com o aumento da expressividade consequente da perspectiva do emissor) e/ou a uma intersubjetivação (em função de essa expressividade estar voltada para as expectativas do receptor). 2.3 Construção gramatical numa perspectica centrada no uso A gramática das construções é uma linha de investigação teórica em franca ascensão, no sentido de que diversos estudiosos têm se debruçado sobre ela. Segundo esta proposta, a unidade preliminar da gramática é a construção gramatical. Conforme Goldberg (1995, p. 1), as sentenças básicas da língua são exemplos de construções – “correspondências de forma-significado”, que passam a funcionar, nessa 38 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL teoria, como unidades básicas e centrais da língua, ou, nos termos de Trousdale (2008, p. 6), como unidades simbólicas convencionais, visto que operam em diferentes níveis da gramática. Assim, a construção pode ser caracterizada por qualquer elemento formal diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou, mesmo, a uma estrutura informacional. Logo, a noção de construção cobre desde morfemas simples, palavras multimorfêmicas, expressões idiomáticas, sintagmas fixos com significado composicional, até padrões sintáticos abstratos. Traugott (2008, p. 5) e Goldberg e Jackendoff (2004, p. 532-3) caracterizam a Gramática das Construções como uma abordagem sincrônica em que: a) forma e sentido são pareados como iguais; b) a gramática é concebida de forma holística, ou seja, nenhum nível é central; c) a gramática é baseada no uso, isto é, está baseada nos falantes e nas expressões; d) construções individuais são independentes, mas relacionadas em um sistema hierárquico com vários níveis de esquematicidade que podem interseccionar; e) existe um cline de fenômenos gramaticais, desde o totalmente geral ao totalmente idiossincrático. Estas características são corroboradas por Croft (2001, p.18), para quem a construção consiste em um pareamento de forma e sentido, cujo significado não se restringe à soma dos sentidos dos membros da construção. Nesse sentido, a forma compreende as propriedades sintáticas, morfológicas e fonológicas; e na dimensão do sentido, situam-se as propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcionais, numa correspondência simbólica interna à construção. Croft (2001, p.18) propõe um modelo de estrutura simbólica para uma construção, como podemos visualizar no Esquema 1: 39 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Esquema 1 – Modelo de estrutura simbólica para uma construção _____________________________________________________________________ Propriedades sintáticas Propriedades morfológicas FORMA Propriedades fonológicas ← ELO DE CORRESPONDÊNCIA SIMBÓLICA Propriedades semânticas Propriedades pragmáticas SENTIDO Propriedades discursivo-funcionais _____________________________________________________________________ Fonte: (CROFT, 2001, p. 18, adaptado) Conforme o Esquema 1, o termo sentido está ligado a todos os aspectos funcionais da construção. O sentido pode incluir não somente propriedades específicas da situação descrita pelo enunciado, como também propriedades da situação pragmática dos interlocutores e do âmbito discursivo maior de articulação. Martelotta (2011) exemplifica essa relação entre gramaticalização e construção gramatical por meio da análise do processo de mudança que envolve o uso da construção um bocado de. Segundo Cunha (2010, p. 93), o uso da palavra bocado data no português do séc. XIII. Originalmente, o termo bocado significa uma porção que cabe na boca, formado da união boca + o sufixo –ado. Vejamos, a seguir, as amostras (3), (4), (5) e (6) que ilustram o desenvolvimento da construção um bocado de. (3) E nunca o rei come huu bocado seguramente, com temor de peçonha...(Boosco deleitos – séc.XIV, de MAGNE, 1950) (4) Ca nom he dace nenhuũa cousa aaqueles que esperam em engolir mui grave bocado que nom pode ser escusado ...(Boosco deleitoso - séc.XIV, de MAGNE, 1950) (5) Levem 7 litros de mel ao fogo, e assim que levantar fervura ponham no tacho 15 gramas de pimenta-doreino. Deixem ferver um pouco mais, e comecem a pôr no mel fervente bocados de farinha dos biscoitos, alternados com 450 gramas de erva-doce, também lançada aos bocados. (Um tratado da cozinha portuguesa do século XV, de GOMES FILHO, 1994) (6) Em todos este trinta anos nao pôs pé no chao e tao pouco em muitos deles nao comeu coisa alguma tirando um bocado de pao molhado ou parte de uma maça assada ou tâmara... (corpus do Português. Disponível em:http://www.corpusdoportugues.org/) 40 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Podemos observar, em (3) e (4), o sentido original que predomina no séc. XIV. Em (5), o item bocado já vem empregado como uma medida de quantidade “bocados da farinha”. Em (6), a expressão “um bocado de pao” já parece indicar a construção um bocado de N, que, segundo Martelotta (2011), começa a ser empregada no séc. XVI, mas com o sentido aproximado do original, relativo à boca. Conforme o autor, somente a partir do século XVIII é que se encontram a expressões um bocado de terra, um bocado de paciência, em que bocado na construção quantifica algo que não se relaciona a alimentos. Assim, o item bocado passa a instanciar uma construção mais ampla e mais generalizada na língua, por meio da estrutura (forma): Det (determinante) + N1 (nome) + de (preposição) + N2 (nome), que semanticamente indica quantidade, como podemos ver nas construções “um monte de gente”,“ um pouco de açúcar”,“ uma pitada de sal”, entre outras, cujo elemento N1 passa a expressar a noção de quantidade como termos designativos de coisas que podem funcionar como recipientes: um punhado de, um bocado de; termos designativos de parte ou fração de um todo: uma porção de, uma gama de; termos designativos de quantidade coletiva: um bando de, uma cambada de; termos designativos de grandeza: um monte de, um montão de; e termos designativos do ato de bater: uma paulada de, uma cacetada de. Observando o desenvolvimento dessa construção, podemos desenhar a trajetória gradual que caracteriza as alterações no uso de item bocado que passa a funcionar na construção Det + N1 + de + N2. Na mudança gradual, o item começa a dessemantizar e passa a ter características semânticas compatíveis com a construção como um todo. Além disso, podemos observar que essa estrutura funciona como padrão para novas formações que designem o sentido de quantidade da construção. Cremos que essas informações básicas nos permitam analisar construções coalescentes praqui praculá, vô mimbora, xeu vê, destá, em uso por parte da comunidade dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. 41 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 3 COALESCÊNCIA: CONCEITO, CONTEXTUALIZAÇÃO E ESTUDOS Neste capítulo, conceituamos o fenômeno da coalescência, salientando desde já, que é um processo linguístico ainda pouco explorado em nossa literatura. Além disso, expomos e discutimos os parâmetros do Lehmann ([1982] 1995), que direciona um olhar mais focado sobre o processo da coalescência, ao incluí-la como um processo da gramaticalização. E discorremos também sobre gramaticalização de determinados itens (logo mais expostos) que envolvem o processo de coalescências no português brasileiro. Desse modo, introduzimos o capítulo estabelecendo a noção de coalescência, qual seja: palavra de origem latina proveniente da forma coalecere, junção do prefixo co(junto) com o verbo alecere (crescer), significando, assim, o crescimento de duas partes em uma única por mútua assimilação. O termo coalescência possui acepções diferentes a depender das várias áreas de conhecimento em que pode ser utilizado. A título de informação, esse termo pode ser encontrado em áreas como a Linguística, a Psicologia, a Botânica, a Genética, a Medicina, a Astronomia, a Meteorologia, a Física, a Química etc. Para este trabalho, portanto, atemonos ao termo com seu uso corrente na área da Linguística. Nessa perspectiva, como sua própria origem latina expressa, a coalescência consiste na junção (crescimento ou acréscimo) de duas, e até mais palavras, formando uma única construção. Martelotta (2011) chama esse mecanismo de univerbação. Na Língua Portuguesa, há casos de junções de verbos bem como a junção de palavras pertencentes a classes gramaticais diferentes e, até mesmo, sentenças inteiras que se transformaram em palavras, quando não se reduziram a locuções gramaticais. Como exemplos, podemos citar o caso das formas atuais: embora, amarei, portanto, entretanto, todavia, você, entre outras. Mais adiante, discorreremos de modo mais específico sobre algumas dessas e de outras formações coalescentes na história da nossa língua. A formação coalescente é um fenômeno linguístico que ocorre há muito tempo em nossa língua, como é o caso da contração da preposição de que perde fonema /i/ ao se unir com artigos, pronomes e advérbios, como em do, dele e daqui. Neste ponto, é importante registrar que a coalescência não é um fenômeno específico da Língua Portuguesa usada no Brasil, mas ocorre em diversas outras línguas, conforme atesta Bagno (2011, p. 184-5): 42 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Em francês os pronomes indefinidos n‟importe quoi, n‟importe qui, n‟importe où, n‟importe comment etc. se formaram com base no verbo importer e devem ser traduzidos por „qualquer coisa‟, „qualquer um‟, „qualquer lugar‟, de „qualquer forma‟ etc. (...) O francês peut-être, literalmente „pode ser‟, mas com o sentido do nosso „talvez‟, é em tudo semelhante ao inglês maybe (de may „poder‟, e be, „ser‟) e ao catalão potser, „talvez‟. Em inglês também são muitas as palavras gramaticais provenientes de aglutinação: whenever, whoever, wherever, forever, whatsoever, notwinthstanding, tonight, today, together, everyday, nowadays, afternoon, however, anyhow, none, someone, sometimes, somewhere, alone (de all, „todo‟ e one, „um‟: sozinho, que em francês se traduz exatamente por tout Seul, literalmente „todo só‟) etc. A palavra „coisa‟ também aparece com frequência em palavras gramaticais: quelque chose, em francês, com sentido de „algo‟; cosa, em italiano, como interrogativo com o sentido de „o quê?‟; qualcosa, também em italiano, „algo‟; anything, everything, nothing, something em inglês, todos formados com base em thing, coisa‟ etc. (grifos do autor) Apesar de a fusão entre palavras ser um processo que acontece no desenvolvimento de diversas línguas, o termo coalescência empregado na perspectiva da gramaticalização tornou-se mais usual a partir da proposta do funcionalista alemão Winfred P. Lehmann ([1982] 1995). Ele, com atenção ao processo gradual de mudança linguística e considerando os diferentes níveis que um item pode atingir no processo de gramaticalização, propôs parâmetros e processos que permitem aferir o estatuto gramatical de uma forma linguística em níveis mais ou menos avançados de gramaticalização, a saber: integridade, paradigmaticidade, variabilidade paradigmática, escopo, conexidade e variabilidade sintagmática. Dentre esses parâmetros, a conexidade corresponde ao grau de coesão de um item com outros no sintagma. Segundo o autor, o aumento de coesão é chamado de coalescência, e vai da justaposição à fusão (aglutinação), que é quando o item se torna, por exemplo, afixo. Assim, quanto maior a coesão, mais gramaticalizado está o item. Destacamos que o processo de coalescência não se dá de forma abrupta, mas passa por fases. Inicialmente, há a aproximação de certos itens no uso linguístico de uma dada comunidade, a justaposição, ou seja, não há perda ou acréscimo na junção entre as formas, e só com o decorrer da alta frequência de uso dessas formas, ocorre a fusão ou aglutinação, que consiste na junção das duas ou mais formas aproximadas. Nesses casos, porém, já ocorre a perda de material fonológico, atingindo, portanto, o processo de coalescência. Lembramos que esse fenômeno, assim como a maior parte das mudanças linguísticas, ocorre num trajeto evolutivo ao longo de muito tempo. Além disso, para que um termo se torne gramaticalizado, é preciso que faça parte do uso linguístico de pelo menos um grupo (não apenas de um único falante) e, a partir de 43 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL sua alta frequência pela comunidade de falantes, o termo passa a integrar o sistema linguístico. Na tentativa de compreendermos as razões que levam determinados itens a se fundirem ou coalidirem, acreditamos que a concepção de gramaticalização proposta por Bybee (2003) pode contribuir para um entendimento mais amplo de como ocorre o processo de coalescência. Para ela, a repetição tem um relevante papel no processo de gramaticalização, porque uma sequência de morfemas ou palavras frequentemente usadas se torna automatizada como uma única unidade no processamento linguístico do falante. Por essa proposição, inferimos que o mesmo se dá com a formação e o uso dos itens coalescentes. Bybee (2003) enumera cinco propriedades que explicitam as consequências causadas pela repetição: (i) a frequência de uso leva ao enfraquecimento semântico por habituação – processo pelo qual um organismo cessa de responder no mesmo nível a um estímulo repetido; (ii) mudanças fonológicas – redução e fusão de construções – que estão passando por gramaticalização são condicionadas pela sua frequência alta; (iii) o aumento da frequência condicionada, um aumento da autonomia da construção, ou seja, os elementos que compõem a construção enfraquecem semanticamente ou perdem a sua associação com outros exemplos do mesmo item; (iv) a perda da transferência semântica de construções em gramaticalização leva a ampliação do contexto de uso, estendendo a possibilidade de novas associações pragmáticas; e (v) a autonomia de uma expressão frequentemente cristalizada na língua condiciona a preservação de características morfossintáticas obsoletas. Tais propriedades parecem relacionar-se com a trajetória que o processo de coalescência segue. Partindo do pressuposto de que o processo de coalescência pode se fazer presente no decorrer da gramaticalização de determinados itens, Freitag (2010, p. 150) faz um comentário que justifica como se dá a relação gramaticalização e coalescência. As mudanças fonológicas que ocorrem em construções que estão passando por gramaticalização, como a fusão e a redução, são impulsionadas pela sua alta frequência de uso. Morfemas ou construções com alta frequência de uso sofrem mudança de som a uma velocidade mais rápida do que palavras ou construções com baixa frequência de uso. (...) A perda da clareza semântica das construções que estão passando por gramaticalização leva à ampliação do seu contexto de uso. Um dos mecanismos mais atuantes no processo de gramaticalização é o esbranqueamento semântico ou generalização, por meio do qual características específicas do sentido vão sendo perdidas. 44 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Nas proposições de Bybee (2003) e Freitag (2010), fica evidente o ponto de vista aproximado sobre as mudanças que um item que está em processo de gramaticalização pode comportar. Na seção que segue, apresentamos mais detalhadamente os parâmetros de Lehmann ([1982] 1995), o que deve possibilitar ao leitor uma melhor compreensão do processo de coalescência. 3.1 Os parâmetros de gramaticalização segundo Lehmann ([1982]1995) Para definir a gramaticalização, Lehmann ([1982] 1995) apoia-se em Meillet ([1912] 1948) e Kurylowicz ([1965] 1975), afirmando que a gramaticalização é um processo que transforma lexemas em formativos gramaticais, e formativos gramaticais em mais gramaticais ainda. Visando aferir o grau de autonomia de um item e, consequentemente, o grau de gramaticalidade, pois a autonomia de um signo é inversamente contrária ao seu estatuto gramatical, Lehmann ([1982] 1995) propõe parâmetros, apoiando-se, em parte, numa das dicotomias saussureanas: o sintagma e o paradigma. Dessa forma, Lehmann ([1982] 1995) une a visão saussureana de sistema interno da língua (formalista) ao usar a dicotomia paradigma/sintagma e as forças externas (funcionalistas) ao usar critérios como: o peso, a coesão e a variabilidade. O autor visa, com esse modelo de parâmetros, à identificação não do fenômeno da gramaticalização, mas da autonomia de um signo. Contudo, o critério de autonomia implica a gramaticalização, uma vez que quanto mais autônomo um item, menos gramaticalizado é, e quanto mais dependente, mais gramaticalizado. Gonçalves et al. (2007, p. 70-1), esclarecendo a questão da autonomia e da gramaticalização a partir dos parâmetros de Lehmann, propõe que: Paradigmática e sintagmaticamente, essa autonomia diminui à medida que o item contrai certas relações de coesão (paradigmaticidade vs escopo) com outros signos, e aumenta quanto maior sua variabilidade, mobilidade ou alternabilidade com outros itens (variabilidade paradigmática vs variabilidade sintagmática). Com o propósito de facilitar a compreensão acerca do que está sendo exposto, apresentamos, a seguir, o quadro que contempla os seis parâmetros de Lehmann: 45 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 46 Quadro 1 - Correlação de parâmetros da gramaticalização Parâmetros Integridade (peso) Paradigmaticidade (coesão) Variabilidade Paradigmática (variabilidade) Escopo (peso) Conexidade (coesão) Variabilidade Sintagmática (variabilidade) GR4 incipiente Item possivelmente polissilábico com muitos traços semânticos Participação “frouxa” do item em um campo semântico Escolha livre dos itens, segundo as intenções comunicativas Relações do item com constituintes de complexidade arbitrária Justaposição do item independentemente Liberdade de movimento do item Processo Atrição Paradigmatização Obrigatoriedade Condensação Coalescência (união) Fixação GR avançada Item geralmente monossilábico, com poucos traços semânticos Item integra paradigma pequeno, altamente integrado Escolhas sistematicamente restritas, uso obrigatório Item modifica a palavra ou a raiz Item é afixo ou traço fonológico O item ocupa uma posição fixa Fonte: (LEHMANN, [1982] 1995, p. 164, adaptado) Segundo Lehmann ([1982] 1995), esses seis parâmetros podem ser estudados de forma isolada quanto às funções envolvidas no processo de gramaticalização. Porém, quanto à sua correlação, o autor indica que eles são teoricamente dependentes um do outro, devido a sua base constitutiva. Conforme já comentado, o autor divide seus parâmetros em dois eixos: o paradigmático e o sintagmático, pretendendo, com isso, mostrar que, no eixo paradigmático (integridade, paradigmaticidade e variabilidade paradigmática), observa-se a integração dos traços semânticos do item, o grau de participação no domínio funcional das formas de expressão do quadro de que ele faz parte e a possibilidade de sua escolha, considerando outros itens de mesmo valor semântico-pragmático. Já no eixo sintagmático (escopo, conexidade e variabilidade sintagmática), observam-se as relações que o item estabelece com outros constituintes das diferentes construções de que ele participa, sua colocação e seu grau de mobilidade na construção. Caetano (2011) reproduz o quadro da obra original de Lehmann, porém o apresenta em dois momentos distintos, isto é, divide-os de acordo com os eixos propostos por este, com adaptações realizadas de sua parte, conforme podemos verificar nos Quadros 2 e 3. _____________________________ 4 A sigla GR utilizada no quadro 1 refere-se ao termo gramaticalização. ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL A fim de didatizar um pouco mais os parâmetros de Lehmann, apresentamos também a proposta de Caetano (2011, p. 72): Quadro 2 - Peso, coesão e variabilidade no eixo paradigmático Parâmetros (aspectos) PESO (Integridade) GRAMATICALIZAÇÃO (Gr) iniciante Item provavelmente polissilábico, com proeminência de traços semânticos Processo ou curso de gramaticalização Atrição fonológica ou erosão fonética por causa da dessemantização ou bleaching semântico Paradigmatização GRAMATICALIZAÇÃO (Gr) avançada Item provavelmente dissilábico > monossilábico, com raros traços semânticos ou extralinguísticos COESÃO Correlação e participação Item integra paradigma (Paradigmaticidade) “frouxa” do item em dado pouco vasto e muito intercampo semântico relacionado a outros do mesmo paradigma VARIABILIDADE Liberdade de escolha dos Obrigatorização ou Escolhas cada vez mais (Variabilidade itens, segundo as intenções Obrigatoriedade sistematicamente restritas Paradigmática) pragmáticas de > uso cada vez mais comunicação obrigatório Fonte: (CAETANO, 2011, p. 72 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164) Caetano (2011, p. 73) destaca, no Quadro 2, que, no eixo paradigmático, os três aspectos centrais da teoria de Lehmann apontam para baixa gramaticalização, uma vez que esse eixo remete ao eixo das possibilidades, os usos linguísticos têm maior liberdade. Ao passo que, inversamente, quanto ao eixo sintagmático, os parâmetros do mesmo autor revelam graus mais elevados de gramaticalização, pois no eixo sintagmático os itens estabelecem um posicionamento mais definido nas situações comunicativas de uso, conforme podemos notar no Quadro 3 a seguir. Quadro 3 - Peso, coesão e variabilidade no eixo sintagmático Parâmetros GRAMATICALIZAÇÃO Processo ou curso de GRAMATICALIZAÇÃO (aspectos (Gr) iniciante gramaticalização (Gr) avançada PESO Relações do item com Condensação Item modifica a palavra > (Escopo, objetivo ou constituintes de o radical > a raiz meta) complexidade arbitrária COESÃO Independência de União ou coalescência Item é afixo ou morfema (Conexão ou Justaposição do item redundante (geralmente conexidade) traço fonológico) VARIABILIDADE Liberdade de movimento Fixação O item passa a ocupar (Variabilidade do item posições cada vez mais Sintagmática) fixas Fonte: (CAETANO, 2011, p.73 adaptado de Lehmann, [1982] 1995, p. 164) 47 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL De modo sintético, a apresentação de cada parâmetro pode ser assim descrita: (I) Integridade – refere-se ao tamanho substancial de um signo considerando seu caráter semântico e fonológico. Segundo o autor, esse parâmetro diferencia um signo dos demais membros de sua classe e dá-lhe certa proeminência no contraste com outros signos. (II) Paradigmaticidade – diz respeito ao grau de coesão de um item com outros em um paradigma, ou seja, relaciona-se a “classes abertas”, as das formas nocionais, e “classes fechadas”, as das formas gramaticais. Desse modo, para aferir esse parâmetro, há que se levar em conta a integração formal e semântica do item em análise dentro desse paradigma. (III) Variabilidade paradigmática – possibilidade de escolha de um signo dentro de um paradigma, sendo possível até a escolha pelo “zero”. É nesse momento que uma forma pode passar a competir com outra, tornando-se a preferida em um dado contexto. Em outras palavras, esse parâmetro refere-se à liberdade com a qual o indivíduo escolhe um signo dentre aqueles pertencentes a um mesmo paradigma (ou não escolhe nenhum deles), deixando que essa seleção ocorra pelo contexto de uso. Devido a essa possibilidade de escolha, tanto a Sociolinguística quanto a Estilística podem servir como aparatos explicativos relevantes. (IV) Escopo – refere-se à extensão da construção de um item. Assim, quanto mais gramaticalizado um item, menor é seu escopo. Um item gramaticalizado passa a relacionar-se com uma palavra ou com um radical (sua extensão é limitada). (V) Conexidade – trata-se da coesão de um item com outro, ou seja, trata-se do grau com que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Esse critério aplica-se mais em casos de morfologização, porém sua aplicação também é possível em outros casos. (VI) Variabilidade sintagmática – esse critério tem tendência à ordem fixa dos constituintes. A posição fixa do item dentro do sintagma é indício de aumento de gramaticalidade como, por exemplo, quando um item lexical atinge um alto grau de morfologização. Para compreendermos a transição entre gramaticalização incipiente ou inicial e a gramaticalização avançada, temos que compreender os parâmetros propostos por Lehmann ([1982] 1995) e os processos responsáveis por essa transição. Conforme os Quadros 1, 2 e 3, apresentamos, a seguir, os seis processos indicados por ele: atrição, paradigmatização, obrigatoriedade, condensação, coalescência e fixação. Passemos, portanto, a cada um deles: 48 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 1º) Atrição – esse processo está diretamente relacionado ao desgaste fônico e inclusive à perda semântica. Daí a afirmação de que esse processo pode ser analisado sob duas perspectivas: a da atrição fonológica (ou erosão fonética, nos termos de Heine et al., 1991) e a da dessemantização ou bleaching semântico. Esse processo ocorre devido à alta frequência de uso. 2º) Paradigmatização – nesse processo, verifica-se o tamanho e a homogeneidade do paradigma, ou seja, a quantidade de similaridades entre seus membros integrantes e a regularidade nas diferenças entre eles. Embora seja complexo precisar o tamanho do paradigma que o item em gramaticalização passa a integrar, Lehmann alerta para o fato de que paradigmas altamente gramaticalizados tendem a ser menores do que os menos gramaticalizados. 3º) Obrigatoriedade – esse processo representa mais uma tendência de a forma opcional tornar-se obrigatória, porque nesse processo está contida a liberdade com a qual o sujeito escolhe ou não um signo para um dado contexto de uso. Contudo, a obrigatoriedade se impõe quando há de fato escolhas sistematicamente restritas. 4º) Condensação – refere-se à redução das formas e isso ocorre quando, na transferência (por meio da condensação) de um estado da língua para outro, o item passa da relação com constituintes de complexidade arbitrária para a relação com palavra ou com radical. 5º) Coalescência – trata-se da coesão de um item com outro, isto é, refere-se ao grau com que se liga a outros signos ou ao grau com que deles dependa. Assim, a coalescência é compreendida como uma união ou fusão entre itens ou tendência de aglutinação de formas adjacentes. 6º) Fixação – diz respeito à posição fixa do item dentro de um sintagma (indício de seu aumento de gramaticalidade), como ocorre quando um item lexical atinge um grau alto de morfologização. Em outras palavras, por esse processo, pode-se entender que a ordem, antes livre, torna-se fixa. Apresentado cada processo contido nos parâmetros de Lehmann ([1982] 1995), observamos, portanto, que, de fato, há uma correlação entre eles. Um item pode ser analisado sob a perspectiva dos seis processos, como se um processo condicionasse diretamente o outro. Isso ocorre pelo fato de eles serem teoricamente dependentes um do outro, tendo em conta a base dedutiva comum da sua constituição. Depois dessa exposição, que serve ao propósito de aferir o grau de autonomia de um item e, consequentemente, o grau de gramaticalidade, na seção seguinte passamos a 49 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL refletir sobre formas linguísticas utilizadas na Língua Portuguesa atual que, no entanto, são originadas pelo processo coalescente. Ressalvamos que, devido ao uso atual e às novas funções atribuídas a essas palavras, o falante comum finda por não saber ou não perceber o enlace de palavras que deu origem à forma coalescente, que utilizamos comumente sem a consciência de tal processo formador. 3.2 A coalescência na história da Língua Portuguesa Nesta seção, expomos alguns casos em que palavras hoje consideradas gramaticalizadas são provenientes de um longo percurso histórico que envolve o processo de coalescência. Uma vez gramaticalizadas, essas palavras passaram por diversas etapas, como: o enfraquecimento semântico atenuado; fixação em lugares precisos na morfossintaxe e a perda de material sonoro ou erosão fonética. Contudo, muitas delas, cristalizaram-se de tal maneira que sua forma original não é reconhecida pelos usuários comuns da língua. Conforme mencionamos anteriormente, a coalescência não é um processo surgido recentemente. Ao contrário, diversas gramáticas históricas trazem registros desse processo, por isso apresentamos também algumas formas do latim (origens etimológicas) que se fundiram, visto que a Língua Portuguesa é originária do latim. A título de ilustração de formas provenientes de uma junção de palavras e que sofreram gramaticalização, podemos mencionar a palavra embora, que provém da locução adverbial em boa hora (in + bona + hora). Conforme Coutinho (1976), os advérbios portugueses derivam-se do latim, especialmente do latim vulgar e nessa modalidade era comum e mais frequente o uso de locuções com valor adverbial. O latim clássico tinha várias terminações para formar os advérbios de modo. Eram elas: -im, -ter, -tus, -e, -o,-um: sensim, firmiter, radicitus, romanice, certo, multum. Tais advérbios de modo não passaram ao latim vulgar. Dos terminados em –e, entretanto, podem ser citados: tarde > tarde, bene > bem, male > mal. Para compensar esta perda, usou longamente o latim vulgar duma locução que consistia em se ajuntar a um adjetivo qualquer no feminino a palavra mens, tis (espírito) no caso ablativo (...) Desta locução surgiu o novo processo de formação de advérbios de modo que se radicou nas línguas românicas. (COUTINHO, 1976, p. 264, grifos do autor) 50 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Além do embora, o mesmo autor apresenta uma lista de outros advérbios portugueses que têm sua origem no latim e, assim como aconteceu com a palavra embora, que se formou a partir da aglutinação de palavras diferentes, o mesmo aconteceu com outros advérbios: avante < ab+ ante, atrás < ad +trans, após < ad + post, jamais < Jam + magis, quiçá < quid + sapit entre muitos outros. Bagno (2011, p. 184) também expõe alguns advérbios que foram criados a partir de locuções adverbiais latinas: “Nosso advérbio hoje provém de hodie, que já era uma gramaticalização em latim de hoc die „este dia‟, enquanto ontem provém de ad noctem, „ à noite‟.” No caso da palavra embora, Said Ali (2001) menciona que a locução em boa hora, presente em frases optativas/ imperativas, era usada para expressar sinceridade ou por mera cortesia, tal expressão começou a ser proferida em razão da crença de que o êxito dos atos humanos dependia da hora em que eram empreendidos. Com o uso frequente, o autor relata que as três palavras fundiram-se em uma só. Contudo, a palavra aglutinada embora continuou a ser usada nos contextos como advérbio temporal, mas, com o passar do tempo, essa forma passou a figurar em certos contextos como concessão, como possibilidade de um fato. A partir disso, o uso de embora veio a transformar-se em conjunção concessiva. Coutinho (1976) registra a mudança de função do embora, de advérbio para conjunção concessiva, ou seja, o processo de gramaticalização na palavra embora já apresentava o seguinte trajeto: ADVÉRBIO > CONJUNÇÃO. Assim sendo, durante um período do tempo, a forma embora admitia dois usos funcionais diferentes, ou seja, o item tanto era usado para desejar boa sorte no momento de determinada ação, como era usado para indicar concessão, isto é, funcionava tanto como advérbio temporal como conjunção concessiva, e o contexto se encarregava de indicar tal diferença. Além do embora, outras conjunções, como porém e contudo, são casos típicos de formações coalescentes. Para evidenciarmos o caráter coalescente dessas formas, recorreremos também as suas origens etimológicas. Sobre as conjunções, Coutinho (1976, p. 269) relata que: Ao contrário das preposições, poucas foram as conjunções que o português herdou do latim. Para suprir tal deficiência, recorreu a língua às outras classes de palavras, sobretudo aos advérbios e às preposições, dando-lhes função conjuncional: todavia, também, para que, depois que, etc. (grifos do autor) 51 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Pelas observações do autor, já podemos identificar o processo de gramaticalização comum a muitas palavras que são empregadas na sincronia atual como conjunções. Em consonância com Coutinho (1976), Mattos e Silva (2001) relata que, entre as coordenativas, apenas e, ou e nem já se encontravam entre as conjunções coordenativas latinas; as demais se originam do português arcaico. Ainda segundo Mattos e Silva (1996), o período correspondente ao português arcaico começa no século XIII e vai até o século XV (momento histórico que ficou conhecido também por período ou fase medieval). Ainda sobre o período medieval, o português, assim como as demais línguas românicas em geral, passou por grandes mudanças, entre as quais as conjunções ganham destaque. Meillet ([1912] 1948), ao observar a formação das conjunções em geral, conclui que elas são elementos susceptíveis à renovação constante, processo esse comum às línguas em geral. Embora as conjunções, até aqui mencionadas, não remontem ao latim com tal função (até porque poucas foram as conjunções herdadas do latim), é relevante termos em mente que as línguas românicas surgem do latim popular (língua amplamente usada pelo povo daquela época), de modo que a origem epistemológica no que se refere à formação dessas palavras ─ porém e contudo ─ traz à tona referências do latim, bem como marcas do latim popular como, por exemplo, a preferência por formas analíticas em detrimento do sintetismo peculiar do latim clássico. Daí porque, a priori, as formas porém e contudo se originaram, respectivamente, das formas por ende, co tudo. Ainda sobre essas conjunções, Barreto (1999) apresenta, em glossário, as origens etimológicas das duas conjunções adversativas. Em seu glossário, porém se origina da preposição latina per + em, forma que sofreu apócope do advérbio latino ende, que funcionava como pronome. Cunha (2000, p. 623) também descreve as origens etimológicas do porém da seguinte forma: “porém conj. „contudo, todavia‟ǀ XIV, porende XIII, poren XIV etcǀ De por + ende (<lat. Ǐnde), frequente no port. Med., desde o séc. XIII”. Já o contudo formou-se da preposição com (do latim cum) + indefinido tudo (do latim totu-). Como já afirmamos com Coutinho (1976), foi necessário usar outras classes de palavras como advérbios e preposições para originar novas conjunções. Por isso, acreditamos que, para a formação dessas novas conjunções, fez necessário o uso do processo de aglutinação, ocorrendo também a gramaticalização desses termos. 52 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Segundo Meillet ([1912] 1948), as conjunções adversativas se enquadram em suas propostas, já que, de uma classe acessória (a dos advérbios, elementos sem autonomia plena), chegou-se a uma classe gramatical, a das conjunções. Salientamos que, nessa fase de transição entre as categorias, ocorre o que Meillet denomina de “esvaziamento de sentido”. Tanto o é que a função adverbial é determinada por suas propriedades pronominais. Logo, para o autor referido, o desaparecimento das formas latinas e a formação de conjunções empreendidas no português medieval nada mais são do que a gramaticalização em plena atividade. Sobre as conjunções adversativas de um modo geral, é mister mencionarmos a existência de um conflito entre estudiosos no que se refere à classificação desses itens, de modo que há aqueles que defendem esses itens como pertencentes à categoria dos advérbios e há os que os definem como conjunções adversativas. A esse respeito, Bagno (2011, p. 891) afirma que: Embora a TGP continue a dizer que entre as conjunções adversativas se incluem as formas porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto, os estudiosos contemporâneos rejeitam essa classificação e incluem esse itens, como fizemos, na classe dos advérbios. Assim procedem, por exemplo, Perini (1996:45), Bechara (1999:322), Neves (2001:241), Azeredo (2008:306) e Castilho (2010:354). Ao contrário de mas esses itens, por serem advérbios , admitem uma ampla mobilidade no interior da sentença (...). Outra característica dos advérbios, além da mobilidade dentro da sentença, é poderem vir antecedidos da conjunção aditiva e, como no exemplo acima ─ e no entanto o homem está sujeito ─ , o que é impossível para a conjunção adversativa: e mas eu sei que a Bernadete.. (grifos do autor) Em contrapartida, trabalhos recentes (cf. ROCHA, 2006) defendem a ideia de que palavras como mas, porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto podem ser classificadas como conjunções adversativas. Lembramos que o interesse pelos termos porém e contudo, nesta pesquisa, está no fato de sua formação provir do processo de coalescência, entendendo este como um processo que faz parte do trajeto histórico de nossa língua. Ainda para exemplificar as formas coalescentes presentes na história da Língua Portuguesa, não poderíamos deixar de citar a gramaticalização ocorrida com o pronome você que, ao longo do tempo, passou pelo processo de coalescência. 53 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Etimologicamente, o pronome você provém da expressão Vossa Mercê, formada por pronome possessivo (Vossa) mais um nome abstrato (Mercê). Através do processo de mudança linguística, essa forma composta sofreu erosão fonética do seguinte tipo: Vossa Mercê > Vossemecê > Vosmecê > Vosmicê > Você. Atualmente, podemos notar que a palavra você tem sofrido outras reduções como: ocê > cê. Desse modo, por meio da evolução em evidência, percebemos que uma construção usada a priori como pronome possessivo + um nome abstrato se colidiu e, no momento presente, é usada como uma única palavra. Sobre essas transformações, Coutinho (1976, p.133) faz o seguinte comentário: “Os tratamentos Vossa excelência e Vossa Mercê deram, respectivamente, vossência e você. Variantes populares desta última forma, no Brasil, são vossemecê, vosmicê, vomecê, vamencê, vamincê, vancê, mecê, ocê”. (grifos do autor) Além do desgaste fonético, o pronome de tratamento Vossa Mercê também sofreu enfraquecimento ou “desbotamento” semântico e extensão pragmática, generalizando-se como pronome pessoal recorrente da segunda pessoa do singular. Assim, podemos ressaltar que a alta frequência de uso desgastou o propósito comunicativo inicial de cortesia, respeito, distanciamento, indiretividade, características dos pronomes de tratamento. Estudos diacrônicos, segundo Lopes (2010), têm mostrado que a expressão de tratamento “Vossa Mercê” e suas variantes como: vosmecê, mecêa, vosse... já chegaram ao Brasil sem a força cortês dos primeiros tempos ─ século XIII a XIV ─ quando era empregada para se dirigir ao rei com deferência. Mas foi por volta da metade do século XVIII que o emprego de Vossa Mercê e você tornaram-se funcional e discursivamente divergentes. A partir daí, a forma popular você tornou-se produtiva nas relações assimétricas de superior para inferior, isso porque a forma Vossa Mercê ainda se fazia presente nas relações assimétricas de prestígio, ao passo que o uso da forma você expandia seu contexto de uso. É justamente devido a essa expansão pragmática do termo você que, no século XIX, aqui no Brasil, a forma você passou a concorrer com o pronome pessoal tu em relações solidárias mais íntimas e de confiança. Acerca disso, Lopes (2010, p. 13) relata que: (...) a implantação de você não ocorreu da mesma forma em todos os subtipos de pronomes (pessoais, possessivos, demonstrativos, oblíquos, etc.), gerando um 54 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL paradigma pronominal que reflete um sincretismo entre a segunda e a terceira pessoa do singular. Você e tu coexistem no singular e vocês é praticamente categórico no plural na posição de sujeito, nas demais posições, contudo, nem o pronome complemento o/a/os/as nem o possessivo vosso se mantiveram produtivos, em seu lugar se empregam com maior freqüência te variando com você, lhe e objeto nulo; teu/tua variando com seu/sua, de você(s) e o uso do imperativo formado a partir do presente do indicativo (imperativo de 2ª pessoa) variando com o de subjuntivo (imperativo de 3ªpessoa). (grifos do autor) Diante de todo esse processo de mudança linguística, que ocorreu e que ainda vem ocorrendo com a forma você, podemos dizer que o que, de fato, inseriu a forma você no quadro de pronome pessoal de segunda pessoa do singular, substituindo diversas vezes o pronome tu, foi a posição de sujeito pleno que a forma pronominal você adquiriu. A forma você apresenta reduções como ocê e cê no uso linguístico de algumas comunidades de falantes do Brasil. Sobre isso, Vitral e Ramos (2006) constataram que a redução fonética cê só ocorre na posição de sujeito, enquanto ocê se combina a formas preposicionadas (e.g. isso é procê). Nesse último caso, podemos observar que a forma reduzida do pronome você vem apresentando, no momento presente, novas coalescências (a união do pronome ocê com preposições), especialmente, nas variedades populares, como, por exemplo, nocê, procê, docê. Bagno (2011, p. 184) também faz menção ao processo de gramaticalização do pronome você: No PB, esse pronome já alcançou o estágio da cliticização: quando exerce a função de sujeito, e somente nessa função, se reduziu a cê, que ocorre exclusivamente em próclise ao verbo: cê viu, cê sabe, cê quer? Em algumas variedades, com destaque para Minas Gerais, é muito corrente a forma ocê, que contrai com as preposições formando docê, nocê, concê, procê. Na função de sujeito, ocê concorre com cê. Tendo se tornado um verdadeiro clítico-sujeito, não tem nenhuma justificativa a persistência da gramática normativa em classificar você como “pronome de tratamento”, já que ele é, de fato, o índice de segunda pessoa mais empregado em todo Brasil. (grifos do autor) É na posição de sujeito que a gramaticalização do pronome você está mais avançada, pois esse pronome passou a funcionar como clítico. No caso em questão, o pronome de tratamento Vossa Mercê sofreu enfraquecimento semântico, extensão pragmática, erosão fonética e fixação pragmática até se transformar na forma que usamos atualmente, você. 55 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Mesmo tendo passado por todas essas etapas de mudanças, o pronome você continua a trazer marcas que lembram sua forma original como a indiretividade, o que, por sua vez, estaria relacionado a um processo de abstratização do sema de cortesia. Além disso, outra evidência que relembra a origem do termo você provindo de um pronome de tratamento se encontra no fato de que, mesmo substituindo a segunda pessoa do singular tu, a concordância verbal mantém a especificação formal de terceira pessoa, característica típica de sua forma inicial. Essas marcas da forma origem vão ao encontro do princípio de persistência, proposto por Hopper (1991), segundo o qual certos itens e construções findam por deixar vestígios de sua história evidenciados em sua forma e/ou em seu significado, em qualquer momento temporal. Por esse princípio, é possível investigar a linha evolutiva de um determinado item ou construção para melhor compreender o modo pelo qual essa forma é utilizada no tempo contemporaneamente. Diante dos casos até aqui apresentados, percebemos que o processo de mudança linguística tem uma motivação pragmático-discursiva. Em outras palavras, os casos de construções coalescentes seriam utilizadas a priori casualmente no discurso com uma função comunicativa e, embora tivessem funções gramaticais, seus usos não eram necessariamente sistemáticos e fixos. Somente com o aumento da frequência desses usos é que essas formas se enrijeceram e tornaram-se totalmente gramaticais. Portanto, de modo geral, a coadunação entre palavras é um processo de longa data que se dá no discurso, no uso não necessariamente sistemático, mas com o aumento da frequência, essas palavras aglutinadas findam por tornarem convenções, ou seja, gramaticalizam-se. O trajeto histórico da língua apenas reforça o fato de que a coalescência não é um processo linguístico novo na história da Língua Portuguesa. Na seção que segue, discorremos sobre os estudos recentemente desenvolvidos no Brasil sobre a gramaticalização, cujos objetos de estudo são palavras formadas por processo de coalescência. 56 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 3.3 Estudos recentes sobre gramaticalização envolvendo o processo de coalescência no Português Brasileiro Muitos são os estudos que têm se desenvolvido no Brasil com o objetivo de compreender e explicar a ocorrência da gramaticalização, entre os quais destacamos os de Nunes (2003), Rocha (2006) e Felício (2008) e, embora haja outros, daremos ênfase a esses, pelo fato de apresentarem, em seus objetos de análise, o processo de coalescência. Nunes (2003) apresenta um estudo sobre a evolução cíclica do futuro do presente, com o objetivo de reconstruir o trajeto do futuro do presente do latim clássico ao português contemporâneo, analisando o grau de variação na fala oral entre formas sintética e perifrástica na cidade de Pelotas/RS, a fim de confrontar as formas encontradas ao longo do trajeto do futuro do presente para identificar as mudanças e apontar os elementos desencadeadores do processo que determinam a sobrevivência de uma forma em detrimento de outra. Para dar conta do primeiro objetivo da pesquisa, Nunes aponta a heterogeneidade existente na língua latina bem como o sistema verbal empregado na época. Assim, observa que o latim clássico empregava a forma sintética, no tocante ao uso verbal (imperabo; legam). Já o latim popular (chamado de vulgar pela autora) optava pelo uso de perífrase verbal (imperare habeo; legere habeo). Nunes (2003) explica que o povo passou a usar a perífrase verbal devido ao futuro do presente apresentar formas semelhantes em algumas das pessoas da conjugação do pretérito perfeito (educavit), do presente do indicativo (legis) e do presente do subjuntivo (legam). Essas formas “parecidas” incitaram o uso de uma forma simples constituída de Infinitivo do verbo principal + presente do indicativo do verbo auxiliar. Para a construção de sua trajetória, a autora observa que o processo evolutivo da perífrase do futuro do presente continuou. Tanto é que, no período arcaico da Língua Portuguesa, o verbo auxiliar apresentou uma forma sincopada, evoluída do verbo auxiliar (habeo > hei), que constituiu uma nova expressão de futuro “estudar hei”. Em pouco tempo, o verbo “hei” tornou-se uma desinência verbal para o verbo no infinitivo (estudarei), completando temporariamente o processo de gramaticalização. Diacronicamente, Nunes (2003) remontou à seguinte trajetória do futuro do presente: 57 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Quadro 4 – Trajetória do futuro do presente Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei Forma analítica Forma sintética do passado do presente Fonte: (NUNES, 2003, p. 18) Como no processo evolutivo da língua não é obrigatória a paralisação, podendo apenas ocorrer a estabilização temporária, a pesquisa de Nunes (2003) apresenta a evolução do futuro do presente, até o português contemporâneo. Para isso, a autora analisou amostras que permitiram avaliar o grau de variação entre a forma sintética e a perifrástica, na cidade de Pelotas/RS. Conforme vai construindo sua análise, a autora reconstitui o trajeto do futuro do presente, incluindo uma nova forma recorrente, sobretudo na linguagem oral dos pelotenses: Quadro 5 – Trajetória do futuro do presente incluindo forma recorrente Amabo ~ amare habeo > amar‟aio > amareio > amarei ~ vou amar Forma analítica do passado Forma sintética Forma analítica do presente inovadora Fonte: (NUNES, 2003, p. 89) Desse modo, a autora aponta o processo de gramaticalização como sendo responsável pelas mudanças formais no verbo, que são tidas como variantes, mas que depois constituíram mudanças na língua e foram incorporadas às normas gramaticais, indicando que o processo de aceitação das novas formas linguísticas é lento e gradativo. A pesquisa de Nunes (2003), em linhas gerais, trata das formas verbais formadas pelo futuro do presente e que, na forma sintética atual, passaram por processo de coalescência, já que houve uma fusão entre o verbo auxiliar e o verbo principal tornandose uma única palavra. 58 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Nessa mesma perspectiva, o trabalho de Rocha (2006) tem como objetivo investigar a motivação conceptual que levou os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto a apresentarem traços comuns capazes de justificar o fato de serem tradicionalmente englobados sob o mesmo rótulo em português: o das conjunções adversativas. Inicialmente, Rocha (2006) apresenta uma lista de autores (BECHARA, 1999; NEVES, 2001; ROCHA LIMA, 1994, dentre outros) que classificam os itens referidos não como conjunções adversativas, mas como pertencentes à categoria dos advérbios, com exceção de mas, que é por eles considerada uma conjunção adversativa. De encontro ao ponto de vista desses autores, Rocha (2006) indica que os que discordam de que os itens porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto sejam classificados como conjunções adversativas, o fazem por acreditar que a falta de fixação das conjunções está no fato de funcionarem, no português medieval, como advérbio. Além disso, apegam-se à ordem sintática e acabam por excluir a relação semântica presente nos contextos em que esses itens são usados. Por meio de sua análise, Rocha (2006) defende a motivação metafórica como condição possível para que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto apresentem traços comuns capazes de justificar o fato de serem englobados sob o mesmo rótulo em português: o de conjunções adversativas. A autora justifica a motivação metafórica pelo fato de a palavra mas, por exemplo, ter guardado, em sua origem etimológica o sentido de comparação (herança do sentido de inclusão). Assim, ao longo do tempo, vem se especializando em contextos contrajuntivos, opacificando os seus sentidos originais, ou seja, gramaticalizando-se e passando a ligar-se, para o falante, à própria ideia de contrajunção. Rocha (2006) conclui que os itens mas, porém, contudo, todavia, entretanto, no entanto servem para sinalizar relações contrajuntivas existentes entre unidades do texto que devem também ser analisadas segundo o sentido global do texto em que se inserem. Por mais polissêmica que seja a relação contrajuntiva, ela se assenta sobre o sentido básico da diferença, do choque existente não entre dois segmentos, mas entre duas ideias que, quando não expressas linguisticamente, podem ser apreendidas por uma análise que compreenda os domínios epistêmicos e conversacional da língua e considere o subentendido que permeia a linguagem como um todo. 59 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL A presença da coalescência é também observada em estudo realizado por Barreto (1999), que apresenta um glossário para explicar a formação dessas mesmas conjunções. Segundo a autora, o porém origina-se da preposição latina per + em, forma apocopada do advérbio latino ende; contudo forma-se da preposição com (do latim cum) + indefinido tudo (do latim totu-); todavia constitui-se de toda (do latim tuta-) + via (do latim via); entretanto forma-se da preposição entre (do latim inter) + tanto (do latim tantu); entanto forma-se da preposição em + indefinido tanto (do indefinido latim tantu). Assim, embora a pesquisa de Rocha (2006) não trabalhe o processo da coalescência propriamente dito, finda por analisar itens que se formaram por meio do processo coalescente. Felício (2008) é outra autora que também trabalha a gramaticalização de um item formado pelo processo de coalescência. Nesse caso, a autora trabalha com a gramaticalização de embora, que, conforme já mencionado, forma-se a partir do processo coalescente entre as formas: em + boa + hora que, em latim, correspondia a in bona hora. O trabalho de Felício (2008) se baseia em dados sincrônicos e diacrônicos do português e tem como principal objetivo investigar o processo de mudança responsável pelas alterações sintáticas e semânticas (pragmatização de significado) da conjunção concessiva embora. Para isso, a autora segue o trajeto da forma embora do século XV ao XIX, indicando que, no século XV, usava-se a expressão em boa hora e, conforme descrito por Said Ali (2001), a expressão era usada para desejar boa sorte no momento de determinada ação (a expressão funcionava como locução adverbial temporal), como é exemplificada por Felício (2008, p.10): (07) Vaamos em boa hora nosso caminho. (Zurara, Guiné 337) Pelo trajeto histórico, Felício (2008) relata que é a partir do século XVI que começam a surgir os primeiros indícios da aglutinação da expressão em boa hora com a perda do /a/ do adjetivo boa, passando a ser usada assim: em bo‟ hora. Contudo, nesse mesmo século, era possível notar o uso das seguintes formas: em boa hora, em bo‟ hora e embora. Nesse período, as três formas citadas exerciam a função de advérbio, podendo indicar circunstâncias como tempo, espaço ou ainda tempo/concessão. 60 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL As formas em boa hora, em bo‟hora e embora eram compreendidas como advérbio temporal quando denotavam um bom momento. Além disso, o acompanhamento de verbos como: nascer, ficar e ser, usados no pretérito do indicativo, no imperativo e/ou no subjuntivo eram evidências que as caracterizavam como locução/ advérbio temporal. Assim, Felício (2008, p.139) evidencia o uso do embora com essa conotação no exemplo (08): (08) Eu quero-o ir avisar Ca lhe cumpre de rezar, E tornar-se a seu serviço. Por sua cruz, manas minhas, Qu‟ella está dele assanhada Oh virgem nossa avogada Que os gados encaminhas! Quem m‟a vira! Quem lá fora! Tu, prima, nasceste embora Se viras o cachopinho, Tão formoso e sesudinho, Filho de nossa Senhora! Tudo eu hei de dizer Ao nosso cura tá ó cabo, E o prol (16 APP,36) Porém, se essas formas viessem precedidas junto a um verbo de movimento, como “vir” ou “ir”, com ou sem a presença de vocativo, as mesmas passavam a ser caracterizadas como advérbio espacial. Felício (2008, p.141) exemplifica esse uso com o exemplo (09): (09) Venhas embora, Fernando! Eu t‟esperarei á portella. Parece cá MAdanella? (16APP,30) Com a alta frequência de uso, o embora passou a refletir, em certos contextos, um uso ambíguo, possibilitando duas leituras: uma referente ao tempo outra referente a concessão. A leitura concessiva era possível devido à presença de contextos adversativos e negativos, o que não impedia que o significado temporal também fosse recuperado. Sobre esse momento de ambiguidade da forma embora num mesmo contexto, Felício (2008, p. 144) relata que: 61 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL (...) no século XVI, esse contexto ambíguo pode ser chamado de contexto bridging. Vale lembrar que conforme Heine (2002) esse contexto é aquele que possibilita uma interpretação concessiva, uma vez que o contraste entre as partes do enunciado implica essa nova leitura, mas, por outro lado, a leitura temporal não é totalmente excluída. O contexto bridging também foi verificado nos dados do século XVII. No século XVII, o uso da forma aglutinada embora se tornou predominante e passou a exercer a função de advérbio espacial ou advérbio temporal/concessivo em contextos há pouco mencionados. Contudo, no mesmo período em que o embora ainda era usado com essa função, no decorrer do tempo, o uso começou a ser organizado e reanalisado para ser interpretado como conjunção. Felício (2008) destaca ser possível encontrar o embora funcionando como preposição com valor concessivo. Isso ocorre porque o embora aparece unindo termos dentro das orações, estabelecendo um valor concessivo entre esses termos. Tais características, portanto, remetem ao conceito clássico das preposições. Para demostrar o embora funcionando como preposição Felício (2008, p.148) expõe o exemplo (10): (10) Mas faça ifto embóra o Mundo cego, venho a Deos no prefebio, que alfim o pagará com o não vêr o Ceo: nos, quem ele por fua Bondade abrio os olhos, que faremos?(17SN, 68). Quanto ao século XVIII, o uso do embora seguiu sem grandes variações em relação ao século anterior. No século XIX, o embora já totalmente aglutinado apresenta uma variedade grande de funções a depender do contexto: advérbio espacial, advérbio concessivo, conjunção concessiva e ainda preposição concessiva. Segundo Felício (2008), nesse período o sentido concessivo tornou-se habitual entre os falantes do português em contexto apropriados. Ademais, o item passou por vários mecanismos de gramaticalização, como automatização, redução fonética, generalização de significado por metáfora e pragmatização de significado por metonímia. Pela descrição sincrônica, foi possível verificar que devido à alta frequência do advérbio embora acompanhado do verbo ir, o item ganhou um significado mais abstrato do que o espacial, a saber, de avanço/rapidez, que talvez tenha se especializado em textos de relato de procedimento. 62 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Já os dados diacrônicos permitiram sinalizar a evolução de seus usos ao longo dos séculos, apurar as frequências token e type, apontar contextos que favorecem as leituras de tempo, concessão e de ambiguidade, o que permitiu visualizar trajetória de mudança responsável pelo surgimento da concessiva embora e, sobretudo seu ganho de expressividade. Quanto à implicação do novo significado, a investigação histórica permitiu verificar que, no século XVI, diferentemente do que afirmam as gramáticas históricas, embora já implica concessão, em contextos de negação. O período de transição, entre o valor temporal e o concessivo, provavelmente, se deu no século XVII, em que o item começa a ser utilizado em contextos não só de adversidade e negação, mas também de condição, possibilidade e desejo. Diante das pesquisas expostas, observamos que, o falante comum não tem consciência que certas construções como embora, porém, amarei, entre outas, originaramse da coalescência entre palavras gramaticalmente diferentes, formando um único vocábulo. Com isso, percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações em sua estrutura, sofrem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se a gramaticalização, via processo de coalescência. As pesquisas expostas, embora não tratem do processo de coalescência em si, tratam da gramaticalização de itens, que durante seu processo de construção até adquirir a forma e função atual, fizeram uso da coalescência ao longo de seu desenvolvimento. Lembramos que esses mesmos itens continuam sujeitos a gramaticalização e ao uso do processo coalescente, posto que a gramaticalização não necessita ser finita. Em outras palavras, as pesquisas expostas subsidiam nosso trabalho no sentido de que percebemos que à medida que as palavras vão sofrendo modificações em sua estrutura, tendem a sofrerem mudanças funcionais, podendo sujeitar-se à gramaticalização, via processo de coalescência. 63 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 4 ANÁLISE DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE/RN Neste capítulo, descrevemos os mecanismos e propriedades formais e funcionais que caracterizam o processo da coalescência como relativos aos estudos de gramaticalização, a partir de construções linguísticas utilizadas na modalidade oral de analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN. Primeiramente, apresentamos o levantamento dos usos da coalescência, tanto fonético-fonológica quanto gramaticais, presentes na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN e sua frequência. Depois, delimitamos, para análise, apenas as coalescências que resultaram em construções gramaticais. A seguir, com base na análise, apresentamos as tendências de gramaticalização das construções coalescentes na fala dos quilombolas. 4.1 Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN Numa primeira etapa da nossa pesquisa, fizemos o levantamento das ocorrências de coalescência, extraindo-as do corpus e conservando o seu contexto de uso em um excerto significativo de fala, como mostramos em (1) e retomamos em (11). (11) (...) pois bem, quano carrega qui leva pras pras pra pro ingêin aí as nêga véias vão rapá e rapa e tira aquelas casca todiam bem tiradinha que pra goma saí limpinha, né? Bem alvinha/ eu num aceito de jeito nenhum qui fique resto de casca quisso afeta a goma/ quanto mais limpa saí a batata das rapadêra mais limpa sai a goma/ eu fico vigiano mermo, mar num tem jeito... minha goma num sai quiném a de seu pai, eu num sei o qui é isso, véi... ((RI)) ((PAUSA)) aí aí quano tira toda a cascas vai cevá... cevá é passá na maquina qui dêxa a mandioca assim cumo um mingau, né? Aí a rente pega esse mingau e mistura cum água pra tirá a mã-depuêra qui é o veneno qui tem na mandioca e o qui assenta no fundo do coxo é a goma.(H61036-IQ3-69-44) Na amostra (11), em que o informante mostra como se faz a farinha, classificamos as formas pras, pros e quisso, como exemplos de coalescência fonético-fonológica, cuja junção não implica mudança de função dos itens envolvidos (preposição e artigo, conjunção e pronome anafórico), formando apenas uma unidade fonológica; já as formas quiném e né? formam uma unidade integral de forma e sentido diferentes dos itens envolvidos (que + nem = que nem conjunção comparativa e não + é = né? marcador discursivo). 64 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Esse levantamento resultou em 58 (cinquenta e oito) formas, que apresentamos, no Quadro 6, segundo a ordem alfabética das ocorrências. Quadro 6 – Usos da coalescência na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN Coalescências 1. Abombasta (ah, bom, basta!) 30 . Presse (Para esse) 2. Armaria (Ave Maria!) 31. Preu (Para eu) 3. Cumé? (Como é?) 32. Pros (Para os) 4. Cumé qui...? (Como é que...?) 33. Prum (Para um) 5. Daculá (De + acolá) 34. Pruma (Para uma) 6. Daqui praculá (De + aqui para acolá) 35. Pu (Para o) 7. Decá (Dê cá) 36. Puraculá (Por acolá) 8. Destá (Deixe estar) 37. Puraí (Por aí) 9. Deu (De + eu) 38. Puraqui (Por aqui) 10. Dôtu (De outro) 39. Pureu (Por eu) 11. Eraqui (Era aqui) 40. Purisso (Por isso) 12. Ir mimbora (Ir me em boa hora) 41. Qué qui ...? ((O) Que é que ...?) 13. Ir simbora (Ir se em boa hora 42. Quela (Que ela) 14. Marréra (Mas era) 43. Quelas (Que elas) 15. Né? ( Não é?) 44. Quele (Quele) 16. Nera? ( Não era?) 45. Queles (Queles) 17. Neu (Em + eu) 46. Quenum (Que num) 18. Nôtu (Em + outro) 47. Quera (Que era) 19. Nouto (Em + outro) 48. Quessa (Que essa) 20. Peraí (Espera aí) 49. Quesse (Que esse) 21. Peu (Para eu) 50. Quesses(Quesses) 22. Praculá (Para acolá) 51. Queu (Que eu) 23. Praqueles (Para aqueles) 52. Quiném (Que nem) 24. Praqui Praculá (Para aqui para acolá) 53.Quisso (Que isso) 25. Pras (Para as) 54.Sela ( Se ela) 26. Precê (Para você) 55. Seu (Se eu) 27. Prela (Para ela) 56.Umeno (Ao menos) 28. Prele (Para ele) 57.Vir simbora (Vir se em boa hora) 29. Pressas (Para essas) 58. Xêu Vê (Deixe eu ver) Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011) Separamos as formas coalescentes flexionadas em número e em gênero para verificarmos a frequência de uso, constante da Tabela 1, mas selecionamos apenas as construções para a análise de suas propriedades formais e significativas, como veremos na seção 4.2. Vejamos, então, a Tabela 1 que demonstra as construções coalescentes detectadas no corpus, seguidas de sua frequência individual de cada uso e a frequência geral das ocorrências. 65 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Tabela 1 – Frequência de uso das coalescências faladas pelos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN Frequência Individual Coalescências Né Queu Quele Quera Pro Deu Qué Quela Purisso Nera, Quiném Preu Praculá, Cumé qui...? Puraí, Quesse Cumé?, Peu, Puraculá, Puraqui, Qué qui...? Pras Armaria, Daculá, Dôtu, Presse, Quessa, Vir simbora Abombasta, Pros, Prum, Pureu, Queles Daqui Praculá, Ir simbora, Neu, Peraí, Praqueles, Praqui Praculá, Prele, Quesses, Sela, Umeno Decá, Destá, Dum, Eraqui, Marréra, Nôtu, Nouto, Precê, Prela, Pressas, Pruma, Pu, Quelas, Quenum, Quisso, Seu, Xêu vê Total Geral de Ocorrências Absoluta Relativa 213 146 51 32 26 25 24 19 16 14 9 7 6 5 4 28,9% 19,8% 6,9% 4,3% 3,5% 3,4% 3,3% 2,6% 2,2% 1,9% 1,2% 1% 0,8% 0,6% 0,5% 213 146 51 32 26 25 24 19 16 28* 9 28 30 5 24 3 2 0,4% 0,3% 15 20 1 0,1% 17 Total Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011) 721 *soma dos tipos de coalescência presentes na primeira coluna. Da Tabela 1, extraímos as 20 (vinte) construções coalescentes para análise. As demais formas coalescentes, como ainda não se gramaticalizaram, pois não identificamos qualquer alteração em suas propriedades significativas nos diferentes contextos em que se apresentam, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial de mudança, que pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser constatada em momentos futuros. Passemos, então, à análise das construções coalescentes na seção 4.2. 4.2 Os usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN Nesta seção, a análise parte do processo de vinculação de sentido e forma que dá origem a novas expressões, no caso, da fala de parte da comunidade de remanescentes 66 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL quilombolas, interpretando, assim, as suas motivações discursivo-pragmáticas como também as tendências de trajetória de mudança do processo de coalescência mais frequentes na fala dos quilombolas. Vejamos, na Tabela 2, a frequência e uso das 20 (vinte) formas coalescentes, presentes no corpus em estudo, conforme a faixa etária e sexo. Tabela 2 – Frequência dos usos das construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN Informante Coalescência Total Mulher Homem Faixa etária Faixa etária I II III I II III F % 1 2 3 4 6 8 9 10 11 12 13 14 Né? 6 2 3 15 - - 2 2 73 53 5 52 213 68,1% Quiném - - - 2 - - 2 - 1 8 - 1 14 4,5% Nera? - 2 2 1 - - 1 - - 2 1 5 14 4,5% Praculá - - 4 1 - - - - 1 - - 1 7 2,2% Puraí - - 3 - 2 - - - 1 - - 1 7 2,2% Cumé qui - - 1 - - - - - 1 2 1 2 7 2,2% Cumé? - - - 1 - - - - 1 4 - - 6 1,9% Puraculá - - - - - - - - 6 - - - 6 1,9% Puraqui - - - - 1 - - - 3 - 1 1 6 1,9% Qué qui - - 2 - - - - - 4 - - - 6 1,9% Praqui praculá - - 2 1 - - - - 1 - - 1 5 1,6% Daculá - - - - 2 - 1 - 1 - - - 4 1,3% Vir simbora - - - - - - - - - - - 4 4 1,3% (a)bombasta - - - - - 2 - - - - - 1 3 1% Ir mimbora - - - - - - 1 - - 2 - - 3 1% Peraí - - 1 - - - - - 1 - - - 2 0,6% Daqui praculá - - - 1 - - - - - - - 1 2 0,6% Ir simbora - - - 1 1 - - - - - - - 2 0,6% Destá - - - - - - - - 1 - - - 1 0,3% 67 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Xeu vê Total - - - - - - - - - - - 1 6 4 18 23 6 2 7 2 95 71 8 71 10 41 57 (18,2%) 6 9 176 71 1 0,3% 313 100% 256 (81,8%) Fonte: (SOUZA; MENDES E FONSECA, 2011) Frequência individual de cada construção coalescente exposta. Segundo os dados da Tabela 2, os informantes usam 20 diferentes construções coalescentes, distribuídas em 313 ocorrências. Dentre elas, registramos as maiores ocorrências da construção Né?, com o total de 213 (68,1%), seguidas de 14 (4,5%) ocorrências tanto da construção Nera como da construção Quiném?. Quanto aos informantes e aos respectivos usos, os dados mostram também que o Né? e o Nera? são as construções mais usadas por diferentes falantes. Seguem-se os usos das construções Quiném e Cumé qui ...? com cinco usuários diferentes e das construções Praculá, Puraí, Puraqui, Praqui praculá, com quatro falantes diferentes. Se juntarmos as ocorrências das construções com “Vir simbora , Ir simbora e Ir mimbora”, resultaria no total de cinco falantes que se valem dessa construção de deslocamento5. Acreditamos que as construções usadas por diversos informantes possam caracterizar a fala dos remanescentes quilombolas analfabetos de Portalegre/RN, porém não podemos afirmar que sejam específicas, posto não termos feito ainda um estudo comparativo com comunidades de fala vizinhas ou regionais. Ainda sobre os informantes, os quais ao todo consta a participação de 14 (catorze) para composição do corpus, ressaltamos que não houve registro de nenhuma das 20 construções coalescentes, constantes da Tabela 2, na fala dos informantes 5(M6Q63) e 7(H2Q37). Além disso, a diferença de usos entre homem (81,8%) e mulher (18,2%) não foi levada em conta para efeito de comparação, devido à assimetria dos volumes textuais do corpus. Justificamos que o referido corpus não teve o controle dessas variáveis, mas que nos foi útil para a consecução dos demais objetivos propostos nesta investigação. _______________________ 5 As contruções estão ilustradas e comentadas nas subseções 4.2.1 a 4.2.12 68 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Com base nas frequências observadas na Tabela 2, passamos, a seguir, na ordem decrescente, à análise das construções, em cuja formação ocorre o processo da coalescência, presentes no corpus da comunidade de fala em estudo. 4.2.1 Né? / Nera? Conforme podemos notar na Tabela 2, Né? foi a construção mais usada. Das 313 (trezentas e treze) ocorrências de coalescências gramaticalizadas que foram coletadas no corpus, 210 (68,1%) foram apenas ocorrências da construção Né?, seguidas da alta frequência de uso da sua construção variante, ainda em desenvolvimento, Nera?, com 14 (4,5%) ocorrências. Salientamos que a construção coalescente Né? se manifesta na fala de 10 (dez) informantes dos 14 (catorze) que participaram do corpus, o que representa um uso significativo. Acreditamos que isso ocorra pelo fato de essa já ser uma construção coalescente cristalizada e de uso comum, não só em parte dessa comunidade como também no português do Brasil como um todo, que pode ser evidenciado, em diversos estudos sobre o Né?. As construções coalescentes Né? e Nera? apresentam como formas originais: não (advérbio de negação) + é, era (verbo ser). Com a alta frequência de uso, essas construções foram sendo formadas a partir da perda de massa fônica da negação, bem como seu significado inicial foi sendo gradativamente alterado, desempenhando atualmente a função de Marcador discursivo. Sobre Marcador discursivo, Lyra (2007) relata que os marcadores discursivos frequentemente aparecem na fala quando os falantes precisam reformular suas ideias, processar mentalmente informações, atuar no monitoramento da conversação e reorganizar o discurso. O Né? como marcador discursivo, desempenha três funções: é um elemento de contato que solicita a aquiescência e a atenção do ouvinte, mantém o fluxo da conversa; além disso atua como marcador rítmico e perde sua modulação interrogativa. Sobre a perda da modulação interrogativa sofrida pelo Né?, Martlotta; Votre; Cezario (1996) apontam uma trajetória que evidencia o percurso realizado por marcadores discursivos dessa natureza, o qual pode ser apresentado da seguinte forma: Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica 69 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Seguindo esse trajeto, uma pergunta plena é aquela que o falante espera e deseja uma resposta do ouvinte. Assim, falante e ouvinte devem compartilhar de conhecimentos afins no contexto de interação. Já a pergunta semirretórica é aquela que o falante faz e ele próprio responde, esta é uma estratégia que visa focar alguma parte do texto e, ao mesmo tempo, manter a atenção do ouvinte. Por fim, a pergunta retórica é aquela que é realizada pelo falante, mas não requer uma resposta. Fávero (2000, p.95) diz que a “pergunta retórica ocorre quando o falante elabora a pergunta, mas já conhece a resposta; usada como recurso para manter o turno ou para estabelecer contato (função fática)”. Marcuschi (1986) considera que o uso de palavras, como o Né? presente na oralidade, orienta o turno, preenche pausas, organiza o pensamento e monitora o ouvinte. A forma Né? tem como funções especialmente em contextos orais: chamar a atenção do ouvinte como forma de interação e inclusão do mesmo na conversa; chamar a atenção para determinado trecho como objetivo pragmático de ativar a informação na memória do interlocutor, checar a compreensão do que foi dito, destacar certas informações em relação a outras e inclusive desempenham funções textuais, pois organizam o texto e ordenam segmentos textuais. Podemos observar todas essas característica da construção coalescente Né? bem como flagrarmos, sincronicamente, os diferentes estágios por que passou a construção Né?, na amostra (12): (12) H61-05: Era bem diferente, né? ((RISOS)) E: Porquê? Qual é a diferença? H61-05: Porque o povo farrea muito, é direto, né? Agora nesse nesse São João e nesse são Pedo/ faiz uma festa só/ direto sem pará aqui im Portalegre passô ...forum oito dia... parece, num foi? de festa só de uma festa pra ôta e quando se acabava num canto era nouto, né? O povo de hoje só qué vive o tempo todo de brincadera, num é não? ((PAUSA)) no meu tempo... no meu tempo... tinha, vô dizê qui num tinha não... mas era um bailezim aqui ôtu aculá... DEMORAVA... num era desse jeito qui é hoje não/ mas também no meu tempo as coisa era mais difici... assim num tinha/ eu num já disse? Num tinha as facilidade de hoje, né não? (H61-05- 194/195/196-IQ3-46 -140a149) A amostra (12) apresenta três usos da construção já cristalizada. Entretanto, encontramos, na linha 144 (cento e quarenta e quatro), a forma num foi? , que ainda se encontra em desenvolvimento igual a Nera?, que apresenta as formas de tempo passado, além do flagrante enfraquecimento do “não”, que passa para num antes da coalescência com a forma fixa do verbo ser no presente é e o apagamento do não tônico que intenta 70 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL intensificar, ao lado de né, a negação da oração, em “né não”?, na última linha. Dessa maneira, os dados sincrônicos indiciam o desenvolvimento do cline: NUM FOI [ERA] > NUM É NÃO > NÉ NÃO > NÉ. Analisemos, então, a função dos usos das construções coalescentes Né? e Nera? presentes nas amostras (13) e (14) (13) H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muito nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere í tudo pra rua também, né?! O síto/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente tem, mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem futuro aqui qui indo simbora fica inté milhó, né? (H61-05-52/53/54 -IQ3-46-131/132/133) (14) H49-01: ele só quer branca, rapais... só qué canara branca... H39-03: uma canara pra pra pra pintassilga só tira um canaro bunito é uma canara é é é se fô é salsa, rapais... uma salsazinha se for... um dia eu arrumei uma aparei o rabo dela um poquim aquele pintassilgo lá cruzava cum ela direto lá im casa, rapais, inda chegô inté a pô... aí discasô... num sei se era ele qui num tava incheno qui num tava forte, nera? Ou era ela... (H36-03- 117-IQ2-35-356) Na amostra (13), o informante expõe, nesse contexto, sua opinião sobre a realidade do sítio onde mora. Percebemos que o informante faz uso três vezes da construção coalescente Né? e, embora essa construção venha seguida de uma interrogação, em ambas as situações em que foram usadas, o emissor não requer uma resposta de seu ouvinte, mas apenas sua atenção, o apoio discursivo, e, assim, mantém o fluxo da conversa. Assim, a construção Né? desempenha em contextos dessa natureza a função de marcador discursivo ou conforme Figueiredo-Gomes (2008) Requisito de Apoio Discursivo - RAD. Desse modo, o Né? não se confunde com “não é”, negação do verbo ser, não só pela pronúncia sem a nasalidade e abreviada, bem como pelo contorno menos interrogativo e ainda por seu posicionamento em final de enunciado. A mesma função é desempenhada por Nera?, em (14), que apresenta como formas originais: não (advérbio de negação) + era (verbo ser), em que a forma era carrega ainda restrições gramaticais da categoria verbal tempo (pretérito imperfeito). Na amostra (14), o informante relata sua experiência com pássaros, especialmente com um canário (fêmea). O falante usa a coalescência Nera? em busca de apoio discursivo, pois ele, mal “interroga”, já insere outra fala, o que nos evidencia que a interrogação apenas monitora a interação, em que o falante quer saber se está sendo compreendido. Dessa maneira, perde a modulação interrogativa. E mantém o fluxo da conversa. 71 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Reconhecemos nessa pesquisa que as construções coalescentes Né? e Nera? desempenham a função de marcadores discursivos, e que desse modo, essas formas se distanciaram de seu significado inicial, contudo reconhecemos também que o processo de coalescência contribuiu para que essa nova função surgisse. Como já anunciamos, existem vários trabalhos sobre a gramaticalização da construção coalescente Né?”, embora não sob o enfoque da coalescência, conforme objetivo nesta pesquisa, mas sim, sob o enfoque dos marcadores discursivos. A título de informação entre os autores que apontam o Né? como marcador discursivo, podemos mencionar: Castilho (1989), Marcuschi (1989), Martelotta (1996, 1997, 1998, 2004), Risso; Silva, Urbano (1996), Votre; Martelotta (1998), Risso (1999), Freitag (2010), dentre outros. 4.2.2 Quiném A forma coalescente quiném aparece 14 (catorze) vezes na fala dos informantes descendentes de quilombolas. Esse número corresponde a (1,9%) das construções coalescentes encontradas no corpus. A forma quiném é aqui compreendida como uma construção coalescente, visto que, no próprio corpus, ela se apresenta conectada, inclusive, há estudos que refletem sobre a expressão “que nem” sob a ótica de perífrase, considerando, assim, a construção “que nem” como uma única palavra, especialmente no tocante à pronúncia. Em nossa análise, constatamos que a coalescência quiném surge da junção entre a conjunção “que” e a conjunção “nem”. Como não há ganho nem perda fonética na junção entre essas duas palavras, a coalescência quiném se forma por justaposição. Apesar disso, ocorre uma transformação no fonema /e/ da conjunção “que” o qual passa a ser pronunciado como fonema /i/, mudança essa caracterizada como transformação por assimilação parcial. Sobre o termo “que”, é importante mencionar que se trata de um termo multifuncional e pode indicar diversas funções a depender do contexto: pronome relativo, conjunção coordenativa, conjunção subordinativa, pronome interrogativo, pronome indefinido, substantivo, advérbio e até preposição. 72 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL O “nem” já não apresenta tantas multifuncionalidades e, geralmente, é classificado como uma conjunção coordenativa aditiva, podendo em alguns contextos funcionar como advérbio de negação. Quanto ao aspecto sintático, o quiném se correlaciona à função de conectivo comparativo ou introdutor de exemplificação. Em todas as ocorrências, a construção quiném esteve presente em frases declarativas, com oscilação entre a posição inicial e medial. Vejamos nas amostras (15) e (16) situações em que a forma coalescente quiném é usada pelos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. O primeiro contexto apresenta uma conversa informal sobre pássaros entre o entrevistador e três informantes, e, no segundo contexto, o informante de 58 anos relata a vivência de uma experiência espiritual: sua confissão com Frei Damião: (15) H39-03: ela pôs im quê? E: pôs na niêra... H39-03: dos canaru? E: não! Na niêra grande dela... H39-03: ah! Na niêra grande... H49-01: naquele tempo elas tinha quebrado os ovos, num fui? E: foi... rapais, ela pôs mais eu ainda num tive condições de olha quantos ovos foi purque quando ela sai do nim o macho entra... H55-02: é danado... E: é... quano ela num tá chocando/ sai pra cume... pra bebê água... pra discançá... aí o macho vai pra cima dos ovos... H49-01: sim é quiném pombo. (H49-01-118-IQ2-35-373) (16) H58-08:confessô logo foi duas palavra a confissão quele fez cumigo só fez assim, butô a mão na minha cabeça, incaicô, chore... precisa chora não, meu fii tá perduado, aí eu peguei uma pratazinha butei no ((incomp.)) agora quano eu saí dela, eu ia manero, num sabe? Quiném assim um capucho de aigudão, bem manerim, cum aquela alegria e cum aquela ainimação e me arrpendendo de tudo queu fiz, acredita? (H58-08- 597-IQ6-85-302) Analisando as ocorrências, acreditamos que a união dos itens “que” e “nem” configura um caso de gramaticalização, a estrutura passa a codificar uma circunstância linguística mais abstrata e gramatical, em relação às multifunções que esses itens, utilizados de forma independente podem desempenhar em diversos contextos já cristalizados. Ressalvamos que o “que” e o “nem”, tendo suas fronteiras estreitadas perdem a variedade de funções e passam a funcionar como uma palavra única quiném, que 73 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL desempenha novas funções, como a de conectivo comparativo e introdutor de exemplificação. Assim, constatamos que, em quase todas as amostras em que o quiném se fez presente, ele funciona como conector de dois componentes informacionais e estabelece entre eles um vínculo comparativo. Essa compreensão está também evidente na amostra (15), em que o informante compara um pássaro chamado Salsa com um pombo, e, em (16), em que o informante de 58 anos compara seu estado de espírito (leve) com uma lã (capucho) de algodão, após confessar-se ao Frei Damião. Além da função de conectivo comparativo, que idenitifcamos que, em dois casos, o quiném pode funcionar como introdutor de exemplificação, função esta destacada por Cordeiro (2012), segundo a qual, em certos contextos a construção “que nem” (quiném) passa a integrar uma estrutura discursiva de exemplificação. Vejamos essa função nas amostras (17) e (18): (17) H58-08:Eu vô dizê uma coisa, graças a Deus e a Nossa Siôra eu sô uma pessoa/ cê veja as pessoa chama inté eu, os negui da minha qualidade, intendeu? Chama eu de aduladô, mar eu num sô adulado não siô, eu sô é respeitadô... se uma pessoa chegá aqui na minha casa eu trato ele quiném uma pessoa bem tratadozim qui um dia eu tô lá na casa dele, né meu cumpade? (H58-08-523-IQ6-80-19) (18) H58-08:Quano ocê vê um quiném esse daí pobe dos pobe esses daí(...) (H58-08-702-IQ6-90-559) Nas amostras (17) e (18) o quiném não exerce função comparativa, mas o falante deseja expressar uma exemplificação. No primeiro caso, o informante exemplifica o modo como trata as pessoas que chegam a sua casa; já no segundo, o informante usa o exemplo de uma pessoa pobre, a fim de tornar claro o assunto sobre o qual fala para o seu interlocutor. Embora haja outras funções para o que nem ou quiném, é importante deixar claro que a função mais comum do que nem ou quiném é de conector comparativo, conforme atesta a maior parte das ocorrências registradas no corpus analisado. 4.2.3 Cumé qui / Qué qui Registramos a coalescência, embora fonético-fonológica, nas construções Cumé qui...? / Qué qui...? que parecem sinalizar uma tendência de desenvolvimento do modalizador epistêmico enfático interrogativo “é que”, que também acumula a função de modalizador epistêmico de asseveração, em construções oracionais interrogativas 74 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL (FIGUEIREDO-GOMES, 2008). O “é que”, que o autor denomina como marcador enfático-interrogativo (MEI), consiste de uma construção já cristalizada, que funciona, segundo ele, como um operador que enfatiza a busca da certeza epistêmica do argumento como resposta à informação desconhecida, como podemos ver nas amostras (19) e (20), nas seções a e b, que seguem. a) Cumé qui...? O uso da construção “Cumé qui ...?” ocorre na fala de cinco informantes diferentes, que ilustramos na amostra (19), em que um homem de 61 anos utiliza a forma coalescente “cumé”. (19) Que de premero a rente trabaiava e via um resultado muito grande, num sabe? Né? e hoje a rente trabaia que nem nesse ano eu butei ali um roçado ali pra baxu trabaei e num tirá nada de futuro/ a rente fica pensando: cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente? Cumé qui vai se astrevê a brocá pra quando dá-se fé num havê inverno de novo aí perto? Cumé inconstá im dois ano sem sem sem/ ficá ruim pro lado da rente, né?! Quanto tempo, né? E só assim mesmo essas coisas assim, cumo se diz, da natureza de Deus qui num tá mais cumo era intigamente, né? E: E o que qui tinha antigamente que hoje num tem? (H61-05-039/040- IQ3-46-109) Na amostra (19), o trabalhador, refletindo acerca dos prejuízos da falta de inverno, questiona um problema coletivo dos trabalhadores quanto ao futuro, que se incluindo com o sintagma “a rente”, busca, por meio da forma “é que” uma certeza para um futuro incerto/desconhecido, marcando a atitude do falante em querer buscar uma solução, em: “cumé qui vai fazê no ano qui enta novamente?” “Cumé qui vai se astrevê a brocá pra quando dá-se fé num havê inverno de novo aí perto?. A forma “cumé” posiciona-se no início das construções: COMO (Advérbio interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV ...?, em que une “como” + o “é” da construção modalizadora. Além de ter uma explicação fonético-fonológica, uma sinalefa das vogais (inicial e final) de vocábulos vizinhos, parece ser ser rotineiro e específico com o uso do é”(verbo ser), pois mais adiante isso não acontece com as formas sublinhadas “Cumé incostá” e “cumo se diz”. Assim, podemos pôr em evidência, através dos dados sincrônicos do próprio corpus o desenvolvimento do cline: COMO É QUE > CUMÉ QUI > CUMÉ. Se isso é uma tendência de gramaticalização, parece continuar esse processo, quando nos deparamos com (20), que traz a construção “é que” na oração: “cumé qui vai 75 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL meu corené?”, em que a construção não tem a mesma função de modalizador epistêmico e figura como uma pergunta meramente retórica: (20) E: diga aí, meu chefe... H58-08: cumé qui vai meu coroné? Venho chegano quais agora da cidadade... 6 E: tá fazeno? Tá ocupado? (H58-sd-IQ6- 80-007) Na amostra (20), a pergunta já se cristalizou como “como é que vai” e tornou-se retórica como apenas um cumprimento inicial de pessoas no contato de chegada, não exigindo, pois, uma certeza de resposta à uma informação desconhecida. Cumpre apenas a função fática. b) Qué qui ...? A construção “Qué qui ...?” é utilizada por apenas um homem e uma mulher da faixa 2, em que o modalizador epistêmico se realiza na macroconstrução: (O)QUE (Pronome interrogativo) + “É QUE” + (SN) SV...?, cujos elementos iniciais apresentam a forma “Qué qui”, resultante da aglutinação de “que” + “é” , como podemos ver em (21): (21) M56-01: purque o finado Juaquim de Paiva ele era desse homi carrasco, se ele dixesse qui pau era pau ERA PAU, ele era homi quele, quele era mũto... MALINO... “Aí, é Juaquim de Paiva, tanto qui nóis gostava de Juaquim de Paiva, o home morreu? Vamu levá ele” quano chegô na subida, eles procuraro “vamo todo mundo um dum lado ôtu dôtu, vamo” quano chegô nũa subida quera mêi imprensado “não, rapaz, dêxi nóis dois aqui levá... qui o canto é mũto ruim um pega num canto e ôtu nôtu”... aí os homr desce e sobe, desce e sobe e toca o povo corrê atrais e nada e toca o povo e cadê o homi, cadê o home?... Quano chegô mũto adiante só incontraro a rede... cadê Juaquim de Paiva? Aí “vala, mĩa nossa siôra, um home rico cumo é ele, qué qui a gente vai fazê? Fazê pra interrá no cimitéro, qué qui nóis vamo fazê?” aí teve um home quera chéi das idéia, aí disse assim “sabe qué qui nóis vamo fazê? Nóis vamu passá lá naquela baxa qui tem mũta banenêra, nóis procura um tronco de bananêra bem grosso, bota dento da rede” e assim fizêro, assim fez. Chegô na bananêra, tirô, inrolô bem inrolado “quem é? Quem é? Quem morreu?” “foi Juaquim de Paiva” “abra aí preu vê...” “Não rapaz, o home já tá mũto ruim, nũa situação ruim, qui num dá pra gente vê não, PUXA! LEVA! (M56-01-011/012/013-IQ1-343-017) Em (21), temos a ocorrência de três construções “qué qui”, em que a contadora do sumiço do morto busca uma resposta certa dos demais para solução do problema. Formalmente, ocorre com essa construção o mesmo fenômeno da construção “cumé qui”, cuja função de modalizador se repete, porém na forma coalescente “qué”. Flagramos também um outro desenvolvimento do MEI, que parece ter uma tendência de apagamento 76 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL do “é” da forma coalescente passando a “que”, descrita na possível trajetória É QUE > QUE, apresentada na forma sublinhada em (22). (22) (...) Que qui nós vamo jantá agora? Nada, puique nós num truxemo nada... é purai... rapais, quanto é essas quatro párea de pêxe? Seu Dó é dois mirréis... munto bem, tome o dĩero... minha cumade, essas tainha ... essas ... me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse cumê aí pá esse povo todim aí, (H58- sd-IQ6- 85-286) Na pergunta do falante aos interlocutores, o “povo todim”: “Que qui nós vamo jantá agora?”, há o fechamento do [] na forma coalescente [k] > [k], persistindo apenas o “que” da outrora forma “é que”. É uma tendência que deve ser constatada em um estudo específico. Em suma, como desenvolvimento da construção coalescente “qué qui...?” destacamos o seguinte cline: O QUE É QUE > O QUE QUI > QUÉ QUI (> QUE QUI). 4.2.4 Praculá / Praqui praculá As construções Praculá e Praqui praculá tem em comum na forma original os elementos para e acolá. A preposição para provém da aglutinação das formas latinas per e ad e que, inicialmente, para/pera marcava “um percurso em direção definida”. Entretanto, segundo Câmara Jr. (1976, p. 177), a indicação de direção se torna mais complexa, que pode também indicar “chegada” e “permanência”. Originalmente, o elemento Acolá, conforme Cunha (2010, p.9), vem do latim eccum illac (= eis ali), e seu registro data do séc. XIII na língua portuguesa como advérbio significando lá, mais além. Vejamos, nos dados do corpus, que sentidos apresentam as construções coalescentes Praculá e Praqui praculá. a) Praculá A construção coalescente Praculá aparece sete vezes no corpus, o que equivale a 2,2% de todas as construções coalescentes em análise. A construção coalescente Praculá se forma a partir da aglutinação das palavras Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), ou seja, PREP + LOC. No uso em 77 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL que há a junção desses dois elementos, ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas. A preposição para isoladamente pode indicar diversos sentidos a depender do contexto de uso em que esteja inserida como, por exemplo: “Olhe para frente!” nesse contexto a preposição indica direção, já no contexto: “Trabalho para viver”, a preposição para indica finalidade, a preposição para pode indicar também destino, como em: “Vou para universidade”. Já o advérbio acolá é originalmente locativo, ou seja, indica lugar. Como, por exemplo: “Minha casa fica acolá”. Ele, como advérbio, pode, inclusive, ser substituído pelo advérbio Ali. Porém, em nossa análise, notamos que, com a coalescência das palavras Para + Acolá = Praculá, há uma nova forma e um novo sentido e, como construção coalescente Praculá continua com a noção de sentido locativo, mas, diferentemente dos sentidos originais, passam a significar um indicador de direção indefinida, marcadamente, na amostra (23), por se tratar de uma história do mundo fantástico. (23) M56-01: Antõim de Anania, é Antõim do Rêgo num tem um sítu praculá pra baxo num tĩa? E eu acho qui ainda tẽim e num sei quem é qui hoje im dia toma conta que a gente toda a vida ia lavá rôpa, lá tĩa uma pedra incantada. Quano a gente tava assim/ é, é, a merma pedra e o povo tava acustumado a í pra lá porque os galo cantava, os guiné... (M56-01-003-IQ1-13-151) Na amostra (23), a informante comenta sobre um lugar onde supostamente há uma pedra encantada (fantástica). Percebemos que, para indicar o local do sítio, a informante faz uso da construção coalescente Praculá, de modo a não indicar o local preciso, desviando a atenção do ouvinte quanto não só à direção do sítio como à existência dele nesse mundo fantasioso da história. Isso pode ser uma forma de preservação de face da falante para que a “mentira” seja contada como verdadeira, uma história de vida, para o entrevistador (ouvinte), e não mera ficção. Vejamos a confirmação desse uso, na amostra (24), em que o falante se compromete com a confirmação da verdade, mesmo mentindo. (24) E: e quem disincanta fica rico? M56-01: fica! Rico! E é, fica rico! E dêxa que uma... uma vai contá, uma históra qui lá no Sêi de Abrão... no Sêi de Abrão aqui no sertão aqui ((APONTANDO)) praculá pra lá. (...) (M56-01-008-IQ1-15-223) 78 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Percebemos, assim, que a construção coalescente Praculá apresenta uma mudança semântica-pragmática-discursiva, em relação à indefinição locativa, portanto, da perda de sentido de direção da construção para acolá que é geralmente usada em outros contextos que, por exemplo, exigem clareza e objetividade. b) Praqui praculá A construção coalescente Praqui praculá ocorre cinco vezes no corpus analisado, de modo que representa 1,6% de todas as construções coalescentes analisadas. A construção em análise surge de duas construções coalescentes. A primeira é Praqui, que se origina da aglutinação entre a preposição para e o advérbio locativo aqui. Com a aglutinação entre esses vocábulos ocorre, no primeiro, a síncope do fonema /a/ da sílaba inicial e a crase dos fonemas /a/ do final e início das palavras contíguas, do mesmo modo como se passou com a segunda construção coalescente, Praculá, a qual descrevemos na subseção “a” e que gradativamente passou a desempenhar a função de indicador de direção indefinida para o que, originalmente, indicava direção para locais definidos, certos. Assim, em contextos quando as construções coalescentes são usadas, lado a lado, notamos que a nova construção coalescente Praqui praculá perde seus significados primeiros de direção e lugares definidos e fixos (praqui seria perto do falante e praculá seria distante do falante e ouvinte), passando a representar a noção de deslocamento no espaço (delimitado). Essa nova função pode ser identificada na amostra (25): (25) M50-01: tem! Tem! Aí, bem! Carlim, ôtu dia... aconteceu... qui o minino tomô uma cachaça, aí toda vida qui tomava essa cachaça tĩa aquele sentido de í pra esse canto, aí desceu, quano desceu presse canto aí a criatura ia buscá ele. E: era como se fosse uma coisa qui chamasse, num era? M56-01: pra buscá ele e levô, levô inté lá e intão o povo procurô, procurô, e cadê Vaval? Cadê Vaval?, praqui, praculá, praqui praculá e nada, e nada, e nada de incontrá. Aí, quano foi mũto, mũto, mũto tarde/ aí sei qui a criatura vẽi dêxá ele até no terreiro de casa. (M50-02-01/04 /05- IQ1-14-202) Na amostra (25), a falante narra fatos lendários, em que uma suposta criatura teria raptado Vaval, um conhecido da informante. No decorrer desse acontecimento, várias pessoas se mobilizam à procura de Vaval e, nesse momento, a informante faz uso repetidamente da construção praqui praculá, praqui praculá, indicando, dessa forma, o deslocamento das pessoas num espaço não preciso, que, certamente, deixa a inferência que 79 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL seria aos arredores onde Vaval teria sido visto num último momento, mesmo sem a exatidão do local. Além de a construção coalescente praqui praculá, indicar deslocamento de espaço inexato, detectamos outro contexto que essa construção pode indicar também duração no tempo, como mostra (26) (26) E: e o racionamento chegô puraqui? M63-05: de luz? E: sim... M63-05: chegô... sim qui aqui num tem nem o qui cunumiza puiqué cumu o siô pode vê só tem essa televisão... mar im da véi muntu puique no mês passado veio doze e agora nesse mês agora vei seis num vei munto ainda? Puiqué só dos mininu ficá praqui praculá assisitino televisão vei... E: a sinhora a sinhora tem direito a gastar quanto? M63-05: é quatro Toim? Direito de gastar? E: aí faz o pavi de algodão... M63-05: aí faz o pavi do aigudão ((incomp.)) nam eu sô uma pessoa queu num gosto munto de pidi não... (M63-05-185- IQ5-75-223) Na amostra (26), a informante conversa sobre o racionamento e o seu baixo consumo de sua energia elétrica. Nessa amostra, o uso da construção Praqui praculá, não indica, nesse contexto, um deslocamento de espaço, pois é difícil imaginarmos a informante afirmar que os meninos assistiam à televisão saindo de um lugar para outro. Desse modo, podemos inferir que o contexto indica que os meninos ficavam quase o tempo todo, com intervalos de tempo, assistindo à televisão, o que caracteriza o gasto maior de energia elétrica. Assim sendo, percebemos que a construção Praqui praculá, seguindo o princípio da unidirecionalidade, vem gradativamente apresentando modificações estruturais e novos significados, tanto de suas partes como do todo, desde sua forma fonte até a construção coalescente dupla. Nesse sentido, podemos apontar o seguinte cline para a construção Praqui praculá por meio da metáfora: ESPAÇO > TEMPO, partindo da noção de espaço concreto para a noção mais abstrata de tempo. 4.2.5 Puraí / Puraqui / Puraculá Embora as construções Puraí, Puraqui e Puraculá, fora do corpus, ainda não tenham sofrido a coalescência morfológica (junção de palavras já cristalizada, dicionarizada), têm tido, como há no corpus, a coalescência fonético-fonológica (junção de 80 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL palavras que ocorre apenas na oralidade) e mudanças semântico-pragmático-discursivas. As três construções têm em comum o fato de possuírem, no primeiro elemento das formas fontes, a preposição locativa Por, que significa lugar por onde, e o fato de terem um advérbio (aí, aqui e acolá) como segundo elemento da forma original. a) Puraí A construção coalescente Puraí é usada sete vezes em todo o corpus e corresponde a 2,2% das construções em análise. A forma Puraí apresenta como forma fonte por + aí, ou seja, por (preposição locativa lugar por onde) + aí (advérbio locativo). Essa união de palavras se deu por justaposição, já que não houve ganho nem perda fonética, embora houvesse a alteração do fonema /o/ da preposição “por” em /u/, resultando a forma “pur”. Destacamos que, embora, no corpus, a construção por + aí se apresente de forma justaposta, a coalescência entre esses termos, no uso geral da língua portuguesa, é apenas fonético-fonológica, ou seja, ocorre na própria pronúncia. Como flagramos mais de uma função do Puraí no corpus, passamos a analisá-lo a partir da função que desempenha em cada contexto exposto nas amostras. Em primeiro lugar, apresentamos a função da construção Puraí, como locativo, ou seja, a construção refere-se a um lugar específico. Essa função está em consonância com a forma fonte que compõe a construção Por + aí, visto que tanto a preposição quanto o advérbio indicam inicialmente uma ideia de lugar. Vejamos essa função na amostra (27): (27) M81-03: mar meus neto ainda bem qui intendero... adoraro... um dia chegaro aqui “vovó...” eu digo “pronto” “viemo pra duimi, dá certo?” eu digo dá pode incostá o cavalo puraí, arrebolaro as bicicreta aí, incostaro puraí, quano acabaro foro ((incomp.)) eu sei qui, quano foi de mãianzinha, se levantaro, tumaro café... foro simbora... quano eu cuidei qui não, fui lavá ropa no Riacho da Areia, quano eu cuidei qui não... cheguei aqui, tava um bucado... vêi logo a tropa, logo quatro, ((incomp.)) chegaro aqui bebero logo um bucado de leite qui tinha aí ((incomp.)) aí no dia queu fui casá/ (M81-03-154 e 155-IQ-68-891 e 892) Na amostra (27), a informante narra sobre o dia em que seus netos chegaram a sua casa, de surpresa. Notamos que, nessa amostra, o Por aí (puraí) foi usado desempenhando a função de locativo, pois, em sua fala, o Puraí, indica o local onde os netos deveriam guardar as bicicletas, inclusive, a falante reforça essa função, quando usa apenas o 81 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL advérbio de lugar aí, evidenciado no trecho: “arrebolaro as bicicreta aí”, um local próximo ao ouvinte. A segunda função que identificamos no uso da construção Puraí foi a de dêitico, pois, nesse caso, a construção Puraí só é compreendida segundo a situação comunicativa, ou seja, o uso da construção Puraí ganha um significado mais amplo e o contexto é primordial para a construção e compreensão desse significado. Vejamos essa função na amostra (28): (28) M56-01: era bom mermo, mas como cê sabe tudo acaba, meno a graça de Deus, né? Qui vĩa mũta gente de fora... esse povo aqui de Portalegre ... esses maiore puraí, esses mais ô meno, vĩa tudim... M50-02: num tĩa Dudu Germano? M56-01: quano tĩa assim um lelão no dia de santo Antõim, uma galĩa, uma galĩa assada, nesse, nessa época... ERA MIL/ qui nem hoje, mil era mil real, era mil real, nera? Nessa época, na época qui nóis tamo é o qui é qui é, valia isso, num é? Ave Maria qui todo mundo arrematava, ave Maria, era só lelão, desses lelão mesmo de inganchá mermos. (M56-01-018 -IQ1-19-476) Na amostra (28), a informante relata as comemorações típicas de Portalegre/RN. Notamos que a informante, ao usar a construção Puraí, não a utiliza com a intenção de indicar um local, mas sim a intenção de indicar as pessoas de fora que tinham dinheiro “esses maiores puraí, esses mais ô memo...” que vêm participar dos leilões que a cidade oferece. Compreendemos, assim, a construção Puraí com a função identificadora, embora ambígua. A construção, nesse contexto, ganha novo sentido, que é só compreendido se se considerar a situação discursiva. Detectamos também que a construção Puraí desempenha ainda a função de marcador discursivo. Entendemos marcadores discursivos como elementos presentes, no caso, no discurso oral, que têm a função de participar da organização textual das informações ao longo da fala e dar pista ao interlocutor do assunto a que o falante se refere, além de orientar o turno, preencher pausas, organizar o pensamento e monitorar o ouvinte. A amostra (29) exemplifica mais essa função da construção Puraí: (29) E: era de pés? H58-08: de PÉS, rapais, meu fii dos ôtu, era pá saí daqui im pinitença, im missão lá pá Frei Damião, aí, cumu o ditado, dá um pernoite no Riacho da Cruz pá no ôtu dia balançá pu pa pa pa pu pu pa cidadizinha, né? Meu cumpade quane eu cheguei na fila, quano eu cheguei no camim mermo, eu já fui já me arrependeno daguma coisa. Aí quano eu cheguei já fui dizeno “minino, vocês têm algum dĩero no bolso aí?” Não tem não tem alguma a a a um inxemplo... cês num vão jantá? Que qui nós vamo jantá agora? Nada puique nós num truxemo nada... é puraí... rapais, quanto é essas quatro parêa de pexe? - Seu Dó, é dois mirréis... - munto 82 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL bem, tome o diero... minha cumade, essas painha essas me dê aí quato quilo de farinha, minha cumade, eu vô butá aqui minha muié aqui pá cuidá desse cumê aí pá esse povo todim aí, (H58-08-250-IQ6-85-286) Em (29), o informante relata as longas viagens que, quando mais jovem fazia, em busca de emprego. Observamos que a construção Puraí, nesse contexto, não funciona como locativo, e vai além da função dêitica, pois serve para orientar o interlocutor sobre o assunto e, ao mesmo tempo, é uma forma de organizar o pensamento resumidamente do locutor; sendo, portanto, caracterizado como marcador discursivo orientado para o ouvinte. Assim, percebemos, pelas amostras, que a construção Puraí segue a tendência de uma trajetória gradual que desempenha as seguintes funções: Por aí (locativo) > Por aí (dêitico) > Por aí (marcador discursivo). Por meio dessa trajetória, notamos que a construção Puraí (por + aí), em um primeiro momento, apresenta um sentido mais referencial e vai sofrendo mudanças até chegar a um sentido mais abstrato. Essa construção é, portanto, uma forma já gramaticalizada. b) Puraqui A forma coalescente Puraqui aparece na fala dos informantes seis vezes e corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise. A construção Puraqui se constitui a partir da forma fonte Por (preposição locativa lugar por onde) + aqui (advérbio locativo). Essa união de palavras se dá por justaposição, já que não há ganho nem perda fonética, como já comentamos na subseção “a”. Observamos que a construção Puraqui é indicativa das cercanias do lugar próximo ao falante. Vejamos, então, esse uso na amostra (30). (30) H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele não... chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonia ((incomp.)) entrô de cabeça a dento, arrastô um tamburete se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só no coração, num sabe? “Meu amigo, o siô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei o que. - sô daculá. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? - Quero sim siô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o siô vai pra onde?” “vô pá Tabulêro... uma hora dessa, meu cumpade?” “É... vamo Paulo, vá dexá o rapais lá aculá no camim, quele num sabe do camim, é puraqui pu perto”. Aí fumo lá e fumo cá ... fumo lá e fumo cá... aí fui insiná o camim a ele. Os caba dissero “homi, ninguém cũiece aquele home, não, cê é doido? (H58-08-223-IQ6-80-041) 83 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL No contexto de (30), o informante conta sobre o dia em que um estranho apareceu na sua casa e, ao invés de se afastar do desconhecido, ele o tratou bem e o acolheu. Nesse contexto, o sentido do Puraqui é usado como indicador de arredores de um dado lugar, inclusive, o informante ao usar o advérbio locativo “perto” no trecho “(...) é puraqui pu perto”, reforça o sentido apontado. Contudo, percebemos que a construção Puraqui apresenta uma mudança em seu significado, passando a desempenhar uma função textual-discursiva, como podemos ver na amostra (31). (31) H58-08: rapais, o problema de de de de de da confusão o problema da cunfunsão eu num dô tempo nem vê... puque quano eu vejo um trisquim , pá tiro o time, fora da brincadera, oxe! Quero não! Eu num espero não, fora da brincadeira. Os caba manga é munto deu, mar eu tô inscapano EU INSTOU INSCAPANO, né? Num inspero não... ah, aconteceu isso assim assim, aconteceu, cadê Dó? Eu digo “Já tá im casa! Já tá im casa é... eu tô dançano e tô cum oi nas nas... eu tô cum oi ... tô cum oi... quano eu vejo um cumeço pá é puraqui, agora sim, vamo ciscá pra casa... (H58-08-242-IQ6-84-024) Na amostra (31), o informante expõe o receio que sente quando está próximo de uma confusão, preferindo se resguardar de situações como essas. Tanto é que ele profere o seguinte: “(...) quano eu vejo um cumeço pá é puraqui agora sim, vamo ciscá pra casa...”. Observamos que, nesse caso, a construção Puraqui tem função textual discursiva, que significa a direção de uma escolha, uma saída, ainda que seja ambígua, por parte do locutor. Há, portanto, uma mudança de sentido que segue a escala CONCRETO > ABSTRATO. c) Puraculá A forma coalescente Puraculá também aparece na fala dos informantes seis vezes e corresponde a 1,9% de todas as construções coalescentes em análise. Essa construção também equivale a uma coalescência do tipo fonético-fonólógica no corpus, as palavras contíguas se juntam com uma função pragmática. O processo de acomodação fonética se dá igual às construções Puraí e Puraculá. A construção coalescente Puraculá se forma a partir da forma fonte Por (preposição locativa lugar por onde) + acolá (advérbio locativo). Assim, como já comentamos sobre os dois componentes da construção, a forma Puraculá também originalmente aponta um lugar 84 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL ou lugares distantes do falante e do ouvinte. Contudo, em nossas amostras, coletamos a construção Puraculá com um sentido ambíguo na amostra (32): (32) H58-08: o primero gole é o qui distrói, aí eu invito... essa daqui, eu me juntei cum ela. Ela bibia mais o marido dela... Era de vez im quano ...Era um buneco puraculá, tá veno? Aí eu cunvidei ela “vamo, mia fia, ocê vivia sofreno, judiada, apanhada. ele açoitano mia fia, butava você pá bebê à força, ocê bibia à força, ocê qué vim pá minha companhia? Agora eu vô dizê uma coisa, batê im você não... agora eu li dô carinho, mas batimento, não... (H58-08-252-IQ6-85-317) Na amostra (32), o falante relata sua aventura amorosa, cuja mulher vivia mal com o marido devido a problemas com bebida alcoólica. Nesse contexto, a forma Praculá apresenta um sentido ambíguo, pois tanto parece apontar um lugar longínquo dos dois interlocutores, embora a vista pudesse alcançá-lo, intensificado por “tá veno?”, quanto também parece indicar a proporção, a intensidade do “buneco” (=a briga do casal embriagado), e a expressão “tá veno?” poderia indicar a pergunta: está imaginando? está percebendo?, posto que o verbo ver, no caso, pode estar funcionando como um estágio mais avançado do verbo perceptivo. Já na amostra (33), a construção Puraculá apresenta função textual-discursiva sem ambiguidade. Vejamos esse uso em (33) (33) H58-08: Não, seu Dó... num tenha veigõia, é sua mulé... veigõia de quê? Veigõia é você dexá ela e pegá ôta aculá... mas sua mulé? O quê? Você vai mais eu... eu já vino lá da mulé... não, Dó chegue aqui me acuda, não deixe cumigo... queu vô dexá ele... chego lá, cumpade, dexo ele lá, é cumu diz o ditado, Dó e os agradicimento, não só é isso... Repare, Chico Preto, meu irmão... ele num é home pá juntá um casal, quele chega gritano... mais véi, Chico preto né assim não... é, rapais... não é não, é devagazim, cunveisano, ajeitano, tudo bem puraculá e é assim... é... apois é... rapais, mais foi uma cunvessa amarrada num foi? Mar mininu! ((RINDO)) (H58-08-734 -IQ6-92-655) Na amostra (33), o informante exalta a sua capacidade de reconciliar casais. Percebemos que o uso da construção Puraculá, no referido contexto, desempenha a função de marcador discursivo resumidor, pois, usando a construção Puraculá, o falante resume a cena ou encobre os detalhes, fazendo com que o ouvinte a infira. Assim, a construção coalescente Puraculá também apresenta nuanças de mudança de sentido e função, ou seja, a motivação pragmática gera mais uma tendência de construção gramaticalizada. 85 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 4.2.6 Cumé? A construção coalescente Cumé? se faz presente 06 (seis) vezes na fala de alguns informantes que compuseram o corpus. Essa quantidade equivale a 1,9% das coalescências analisadas. A construção coalescente Cumé? apresenta como forma original a aglutinação entre o Como (advérbio interrogativo) + É (verbo ser estativo identificador). Na aglutinação entre os dois termos, ocorre a sinalefa do fonema átono final /u/ de Como com o fonema tônico // da forma verbal é. Ao juntar-se, a construção Cumé? já perde suas características originais, pois o advérbio interrogativo já não desempenha mais uma indagação propriamente dita e o verbo estativo já não desempenha a função de identificador de um estado. A forma Cumé? desempenha a função de marcador discursivo. Podemos observar o uso dessa construção na amostra (34): (34) E: você teve vinte e quatro filho com a primeira mulher? H58-08: vinte e quatro filho... pode acreditá... vinte e quatro fii, agora nós dava uma farriada mêa grande. Eu mais a véia dava uma farriada mêa grande queu adimito teve uma vez/ eu vô contá uma historinha aqui... o sĩô aceita eu contá uma históra? Qué? Munto bem, tá certo! Eu vô contá uma históra do pilão... intendeu? A históra do pilão... o o o aquele minino do do da cigarrera, cumé?... aquele minino, cumu é? Filó, ele tem uma fita lá gravada lá no pilão... é... eu me casei novim... o o o cum cum uns cinco ano de casado, né? Eu num tinha só Mocinha de Dó na relação de se vivê, era duas... três, né? (H58-08-232-IQ6- 82-139) Na amostra (34), o informante fala sobre família e relacionamentos amorosos pessoais. Nessa amostra, percebemos que, ao usar a forma Cumé?, o informante pausa para refazer o lapso de memória, um esquecimento temporário, por esse motivo a construção coalescente Cumé? funciona como um marcador discursivo de hesitação/reformulação do pensamento. É nesse sentido que Lyra (2007) afirma que os marcadores discursivos comumente aparecem na fala, quando os falantes precisam reformular suas ideias, processar mentalmente informações e reorganizar o discurso. Como foi dito e também é perceptível na amostra (34), a construção coalescente Cumé? vem, assim como as construções Né? e Nera?, perdendo sua modulação interrogativa. Retomemos, pois, a trajetória exposta por Martlotta; Votre; Cezário (1996) que indica essa perda gradual. 86 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Pergunta plena > Pergunta semirretórica > Pergunta retórica Assim, esse trajeto parece descrever o percurso pelo qual a forma Cumé? surgiu e foi-se desenvolvendo até se tornar essa construção coalescente. Curiosamente, encontramos na fala dos próprios remanescentes quilombolas pistas sincrônicas dos estágios por que passou a construção Cumé?, tanto da construção sublinhada “cumu é”? em (34), quanto na amostra (35), a seguir: (35) E: E farinha boa. H61-05: BOA! E essa de fora qui tá vino ela é é é, cumo é qui se diz?, mais doce mais fina, parece qué feita de ôta coisa e parece queles faze dum jeito diferente qui faz mais barato. Seu pai inda num aprendeu a fazê dela não? Sim, causo qui do jeito quele é, daqui uns dia vai aprendê pra fazê do mermo jeito... ((RI)) (H61-05-sd-IQ-47-197) Na amostra (35), o informante fala com o entrevistador sobre a qualidade de uma certa farinha comprada fora da região. Nessa amostra, o informante usa a forma analítica Cumo é que se diz?, que cremos ser a origem da construção coalescente em análise. Desse modo, é possível sugerir o seguinte cline: cumo é qui se diz? > cumu é? > cumé? Com isso, notamos que a expressão primeira foi se reduzindo, isto é, perdendo material fonético até tornar-se uma construção coalescente, apresentando um único formato. Além disso, a forma analítica parece corresponder a uma pergunta plena, ao passo que a forma Cumu é? já apresenta perda da modulação interrogativa (pergunta semirretórica), até se tornar uma pergunta retórica representada pela construção Cumé? Todos esses fatores tendem a evidenciar a gramaticalização do Cumé? como uma construção. 4.2.7 Daculá A Construção Daculá se faz presente quatro vezes no corpus analisado, de modo que equivale a 1,3% de todas as coalescências sob análise. A forma Daculá se origina da aglutinação entre a preposição de origem De e o advérbio locativo Acolá. Com a aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do fonema final /e/ da preposição De com o fonema inicial /a/ do locativo Acolá. Lembramos que a forma Daculá já constitui uma coalescência dicionarizada em Ferreira (2010) como uma forma de contração da preposição de com o advérbio acolá, 87 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL porém no dicionário etimológico de Cunha (2010) só há o verbete Acolá, que informa a sua origem latina eccum illac (= eis ali), que data do séc. XIII como advérbio significando lá, mais além. Contudo, percebemos que, no corpus, a construção Daculá vem apresentando um significado mais amplo, em relação ao sentido de lugar distante e certo, vejamos as amostras (36) e (37): (36) M81-03: o queu sei dizê dessa dança de São Gonçalo... é qui os negro inscravo... os mais véi... a festejá a libeidade qui arrumaru... uns daculá de Mossoró... quano acharu uns puraqui pur dentu inventaru/ aí o São Gonçalo, meu fi, São Gonçalo era um homi farrista ele era munto farrista, num sabe? (H81-03-137-IQ5-66-764) (37) H58-08: é, ave Maria... fora da brincadera... um dia desses chegô um companheiro aqui queu num cũincia ele não... Chegô, tudo bem, nós tava aqui tocano uma safonĩa ((incomp.)) ... entrô de cabeça a dento, arrastô um tamburete, se sentô... e eu num cũieço ele não, EU NUM CŨIEÇO ELE... “Neidinha, o qui será de nós?” só no coração, num sabe? “Meu amigo, o sĩô é da onde, num é da minha conta” ele fez uma rapapé que num sei o que “sô daculá”. Eu digo “Neidinha, traga um café aqui pu homi” Qué um café, meu cumpade? “Quero sim, sĩô sim... Tumô o café. Eu digo “meu cumpade, o sĩô vai pra onde?” Vô pá Tabulêro... (H58-08-222-IQ6-80-039) Na amostra (36), a informante relata sobre o surgimento da dança de São Gonçalo, dança tradicional de Portalegre e de valor histórico/cultural. E na amostra (37) o informante H58-08 rememora a chegada de um estranho em sua residência. Em ambas as amostras, a construção Daculá deixa de indicar um lugar distante e certo e passa a funcionar em contextos dessa natureza como locativo indefinido, ou seja, expressa um significado mais pragmático de lugar afastado ou desconhecido dos interlocutores. Desse modo, notamos que a construção Daculá tem seu sentido metaforicamente expandido. Sendo assim, a construção coalescente Daculá, que já é gramaticalizada, constante do dicionário Aurélio, de Ferreira (2010), que sinaliza a tendência de a forma Acolá desenvolver-se em construção, como também registramos os usos em 4.2.4, 4.2.5c e 4.2.11. 4.2.8 Vir simbora Ir simbora /Ir mimbora Nessa subseção, analisamos três construções coalescentes que envolvem a forma embora em Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora. A primeira forma foi usada quatro vezes no corpus, o que equivale a 1,3% das coalescências sob análise; a segunda construção se 88 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL fez presente duas vezes, equivalendo a 0,6% das coalescências gerais e a última construção foi usada três vezes, o que corresponde a 1% das coalescências selecionadas para análise. Embora representa uma já forma gramaticalizada que, ao longo do tempo, sofreu reanálise na passagem em boa hora > embora. A reanálise é um mecanismo de mudança em que o falante reorganiza a estrutura do enunciado, reinterpretando os elementos que o compõem, devido à pressão de informatividade. Desse modo, podemos dizer que a palavra embora é, por si só, uma construção coalescente. Além da forma embora, temos as formas ir e vir que, nas construções em estudo, carregam ainda o seu sentido pleno de movimento físico. Os clíticos se e me, pela própria natureza de serem átonos e de incorporarem-se ao vocábulo tônico vizinho, tendem à coalescência. Assim, a construção Vir simbora apresenta como forma fonte Vir (verbo de movimento) + Se (clítico) +Em boa hora (locução advérbial). Já a construção Ir simbora apresenta como forma fonte Ir (verbo de movimento) + Se (clítico) + Em boa hora ( locução advérbial). E a construção Ir mimbora apresenta como forma fonte Ir (verbo de movimento) + Me (clítico) + Em boa hora (locução advérbial). Assim, percebemos que as construções Vir simbora e Ir simbora desempenham, no contexto das amostras do corpus da pesquisa, a função de deslocamento espacial incerto. Vejamos tais constatações nas amostras (38) e (39): (38) H58-08: (...) Aí quano cuida Mane dizia assim/ aí vai o velho caiu duente lá... num teve nem um irmã, nium filo qui chegasse perto do véio, a véa pegô, arrastô tudo quele tinha, pegô foi simbora, intendeu? (H58-08-253-IQ6-86-363) (39) H61-05: É o que o povo, pu inxemplo, morava muitu nus sítio, e hoje tão quereno mais, né? quere i tudo pra rua também, né?! O sítu/ vamo dizer? tinha muita gente e hoje tá sem sem ninguém, como bem, poquĩa gente tem mas tá quase tudo fechano, tá tudo se findano, sim queu acho inté milhó! Tinha um bucado de cabra sem futuro aqui qui indo simbora. Fica inté milhó, né? (H61-05- 185-IQ3-46-135) Na amostra (38), o falante relata a frieza com que sua mãe tratou seu pai no momento que este caiu doente. Já na amostra (39), o falante faz uma comparação entre o sítio de antigamente e o sítio atual, concluindo que as pessoas estão preferindo a cidade ao sítio. Em ambas as amostras, notamos que os informantes, quando usam as construções foi simbora, indo simbora, ao usarem o clítico se, parecem não definir com precisão o destino 89 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL das pessoas as quais se referem, por isso essas construções ganham, nesse contexto, a função de deslocamento espacial incerto ou ignorado. Já a construção Ir mimbora, diferentemente das construções de (38) e (39), desempenha a função de deslocamento espacial preciso, porque o pronome clítico me, se refere a primeira do singular. Assim, quando essa construção coalescente é utilizada pelo próprio emissor do discurso este parece usá-la com consciência sobre o lugar aonde pretende ir (chegar). Vejamos esse uso na amostra (40): (40) H61-07: rapais, eu cumecei uma bebedera mais Césa aqui no Pega ali e cumecemo as seis da manhã e fuma as seis dôtu dia e bebeno e fumano e joganu e fazeno tudo em sem cumê e qui cume qui nada... só bebeno... passemo o dia cum a noite bebeno, (...)daí quano ele isbarrô eu dixe “tô sintino nada cumpade Antõi” aí ele dixe “Cumade Teresa, o homi tá milhó e tá dizeno qui num tá sintinu nada, eu vô mimbora pra casa se precisá de mim, mande mim buscá que eu levo ele pá rua” daí amainceu o dia era choro pu todo canto e a muié chorano e eu digo “ô Teresa puiqui é qui você tá chorano” aí ela contô a históra, né? Aí eu digo “nam num vi nada disso, num vi nada disso... (H61-07-115-IQ5-78-413) Na amostra (40), o falante relembra o momento de sua vida em que abusou do álcool sendo preciso o auxílio de amigos. Então, um dos participantes da história, Compadre Antônio, depois de prestar auxílio ao informante diz: “eu vô mimbora pra casa”. Percebemos obviamente que, nessa situação, o emissor usa a construção com a função de deslocamento espacial preciso, inclusive explicita o local para o qual para onde intenciona se dirigir. Com isso, constatamos que as formas fontes utilizadas de forma individual têm um sentido, porém quando aglutinadas findam multiplicando outros sentidos em contextos como os expostos nesta subseção. Assim, essas construções vêm se gramaticalizando, por meio da reanálise, processo que envolve a organização e mudança em itens ou construções situados no eixo sintagmático. 4.2.9 (a)bombasta A construção em epígrafe apresenta duas formas: Abombasta, produzida duas vezes pelo informante da faixa I, cuja forma original é AH (Interjeição) + BOM (adjetivo) + BASTA (verbo bastar), e bombasta, produzida pelo informante da Faixa III, que, sem a interjeição fica: BOM (adjetivo) + BASTA (verbo bastar), como podemos ver em (41) e (42). 90 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL (41) E: que cunversa é essa de passá asma pra cancão? H55-02: não! Agora aí é certeza... H39-03: cê num sabia não véi? E: nam... cumo é? H39-03: Abombasta! O caba qui tivé asmaito pode criá um cancão. O cancão fica seco im vida e quem quem tivé cum a asma im casa fica bom ... ABOMBASTA!... (H39-03-031-IQ2-38-522 e 523) (42) H84-06: apois é, véi, meu nome é munto deferente... tem o subrinome, que cê sabe, é preciso o subrinome pra diferenciá um dôtu, né? Mas aqui, bombasta! Ficô pu Manéu Calixto mermo... agora pra fora, não! Pra fora é preciso os documento, né? Pra o camarada cũincê, pricisa do nome todo, né? (H84-06-143-IQ4- 067-850) Em (41) e (42), podemos observar (a)bombasta! com a função pragmáticodiscursiva de marcador em que o falante faz uma avaliação e utiliza a construção para determinar o término de um argumento de contraexpectativa. Os elementos “Ah” e “Bom” têm seu significado alterado e figuram, na construção, na mesma posição que geralmente ocupam como iniciadores de resposta e, como tais, funcionam como uma forma atenuadora na interação. Essa atenuação parece não ser a intenção do sexto informante, ao usar apenas o marcador discursivo Basta! em (43) e (44). (43) H84-06: pois bem... pois bem... é seu Joãzim, basta! Eu cũinci demais e seu Vardete, adepois quele tumô de conta do sinicato, véi/ passei munto tempo pagano o sinicato e nunca me atrasei... ((EM TOM DE SÚPLICA)) ô, véi, eu vim me atrasá agora a pôco num sei o qui foi qui hove/ nunca atrase [o meu sinicato.../] (H84-06-143-IQ4-061-494) (44) H84-06: não... tem?... basta! Tem demais, véi... mar graças a Deus se atemo bem cum ela... morreu... Finado, meu pai faleceu, ele faleceu, e nós num tivemo o qui dizê dela... se atô cum nós quais cumo mãe, acredita? Quais cumo mãe, GRAÇAS A DEUS... mar desse jeito, véi, é muito pocas, né? E DESSE jeito, véi, É MUITO POCA, acredita? Poca... (H84-06-143-IQ4-068-878) Nas duas outras situações, em (43) e (44), o mesmo falante que usou “bombasta! em (42) se mostra mais incisivo com o ouvinte, utilizando a forma simples basta!, no final da sua avaliação mental, demonstrando estar convicto de sua opinião. 91 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 4.2.10 Peraí A construção coalescente peraí tem, em sua forma original, dois elementos: ESPERA (verbo esperar) + AÍ (advérbio/dêitico). Em (45), essa forma se apresenta com um uso ambíguo (TRAUGOTT: DASHER, 2005), que parece cumprir a função nova, em posição de marcador inicial, mas também mostra o sentido original se observarmos a continuidade do discurso em que o falante usa a forma e os sentidos originais do verbo “esperar”: “Peraí queu vô já acumpanhá ele..., inspere pu eu, gente boa, inspere pu eu”, porém a aglutinação com o aí mostra-nos um estágio mais avançado de gramaticalização. (45) H58-08: (...) É seu João Gaiana? Peraí queu vô já acumpanhá ele... ei, meu cumpade, inspere pu eu, gente boa, inspere pu eu queu vô mais o siô, qué pá quano eu saí lá fora, os caba dizê “Dó, ocê vei mais quem?” eu dizê “Nam rapais, ar Maria mais o rapais de seu João Gaiana”. (H58-08-307- IQ6-091-626) Já em (46), é um marcador discursivo que tem a função de monitorar o ouvinte, sinalizando uma atitude de cautela, é um marcador de contra-expectativa, que indica contraste. (46) M56-01: Peraí, mas ela num sabe, ela num sabe contá, olhe, aquela bichinha, Margarida, ela tem umas históras também boa, ela tá aqui no ingẽi... (M56-01- 010-IQ1- 016-275) Por meio da construção peraí , o falante de (46) toma o turno e inicia sua avaliação de contraste ao discurso do ouvinte. 4.2.11 Daqui praculá A construção coalescente Daqui praculá ocorre apenas duas vezes no corpus analisado, o que, por sua vez, corresponde a 0,6% de todas as coalescências selecionadas para análise. A construção coalescente Daqui praculá surge de duas construções que já vêm de um processo coalescente. Assim, dividindo-as, a primeira coalescência é o Daqui, que se origina da aglutinação entre a preposição de origem de e o advérbio locativo aqui. Com a 92 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL aglutinação entre esses vocábulos, ocorre sinalefa do fonema final /e/ da preposição De com o fonema inicial /a/ do locativo aqui. A segunda construção coalescente é o Praculá, a qual se forma a partir da aglutinação das palavras Para (preposição direção) + Acolá (advérbio locativo), já comentada em 4.2.4. Em certos contextos, as duas construções coalescentes Daqui + Praculá são usadas lado a lado, surgindo a terceira coalescência. Desse modo, a forma fonte da nova construção é: De (preposição origem) + aqui (advérbio locativo) + Para (preposição direção) + acolá (advérbio locativo). Assim, a construção coalescente Daqui, que tem a função de indicar um lugar preciso e próximo ao falante, e a construção coalescente Praculá, que desempenha a função de indentificador de direção, perdem essas funções e adquirem uma nova função no contexto, passa a funcionar como indicador de espaço delimitado, entre o falante e o local de limite. Podemos constatar a construção Daqui Praculá com essa função na amostra (47). (47) E: casa véia, mal-assombrada, aqui tem? M63-05: tem não... essas queu digo... é três casa num aliamento é essa do finado ((incomp.)) tudo numa linha só mar eu nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui praculá... que num vô minti... (M63-05- 457-IQ5-73-140) Na amostra (47), a informante confirma a existência de casa mal-assombrada na região, porém desconhece o relato de quem tenha se assombrado no local indicado por ela mesma. E é justamente quando afirma: “nunca uvi dizê qui aiguém se assombrasse daqui praculá...” que percebemos que a falante, ao usar a construção Daqui Praculá, tem apenas a intenção de delimitar o espaço e não mais a ideia de deslocamento espacial. Com isso, podemos dizer que a construção coalescente Daqui Praculá mudou por pressão de informatividade, pois a construção em análise assumiu novo valor, graças à convencionalização de implicaturas conversacionais, por meio de pressões do contexto de uso. 4.2.12 Xeu vê / Destá As construções Xeu vê e Destá tem em comum o fato de um dos elementos originais, antes do processo de desenvolvimento construcional, ser o verbo “deixar”. 93 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL Temos, na primeira construção, as formas deixar + eu + ver e, na segunda, as formas deixar + estar. Segundo os dicionários etimológicos (CUNHA, 1982; MACHADO, 2003), a origem do verbo “deixar” é duvidosa e apresenta como forma do português medieval “leixar”, proveniente do latim laxāre, cujo significado era estender, alargar, diminuir, atenuar; prolongar o tempo; distender, relaxar; dar repouso. No português atual, a entrada do dicionário Aurélio apresenta 38 acepções e 11 locuções, constantes do Quadro 7: Quadro 7 – Significados do verbo Deixar 1. Sair de; afastar-se, retirar-se; 2. Separar-se, apartar-se de; 3. Ausentar-se; 4. Sair de; desviar-se de; 5. Não continuar a reter; não conservar mais; largar, soltar; 6. Abandonar, desprezar; 7. Desistir de; renunciar a; 8. Pôr de parte; não considerar; esquecer, abstrair; 9. Afastar, arredar, desviar, repelir; 10. Não obstar; permitir, consentir; 11. Adiar, delongar; 12. Dar (como lucro ou proveito); render; 13. Largar, abandonar; exonerar-se, demitir-se; 14. Não referir; omitir; 15. Desabituar-se de; 16. Ser despojado de; perder; 17. Desertar de; abandonar, abjurar; 18. Transmitir, comunicar; imprimir, infundir; 19. Causar, ou transmitir, ao ausentar-se ou morrer; 20. Transmitir como legado, ou (caso não haja testamento) como natural consequência da morte, automaticamente; 21. Transmitir como legado; 22. Tornar possível; facultar; 23. Ser a causa ou motivo de; causar, provocar; 24. Adiar, pospor; 25. Suspender, parar; 26. Pôr, colocar; 27. Fazer que fique (em certo lugar); 28. Fazer que fique (em certo estado ou condição); tornar; 29. Instituir, constituir, nomear; 30. Deixar só, abandonar, desamparar; 31. Cessar, desistir; 32. Fugir a; evitar; 33. Transferir, legar; 34. Por à disposição; ceder; 35. Não privar, não despojar (de alguém ou de algo); 36. Cessar, desistir; abster-se; 37. Separar-se, apartar-se; 38. Não obstar ou resistir; consentir, permitir. E as locuções: 1. Deixar a desejar (Não corresponder ao que se esperava, ou ao que seria de esperar); 2. Deixar atrás. (1. Não mencionar, omitir. 2. Exceder, superar, suplantar.); 3. Deixar cair.( Bras. V. deixar correr.); 4. Deixar correr. (1. Deixar que aconteça. 2. Não fazer caso de. [Sin. ger.: deixar cair, deixar ir, deixar rolar.] ); 5. Deixar de fora. (Não dar oportunidade de participar; excluir.); 6. Deixar ir.(V. deixar correr); 7. Deixar para lá. (Não fazer caso de; não se incomodar com); 8. Deixar passar. (1. Não impedir que passe. 2. Admitir, tolerar); 9. Deixar perceber. (Dar a entender); 10. Deixar rolar. (V. deixar correr.); 11. Deixar ver. (Mostrar, apresentar; demonstrar). Fonte: (FERREIRA, 2010) Diante da riqueza polissêmica do verbo “deixar”, podemos inferir quão diversas devem ser as possibilidades de dessemantização do sentido pleno até chegar ao uso de “deixar” como auxiliar como nas construções deixar ver (locução 11, em FERREIRA, 2010), que assumiu, no corpus em estudo, a forma xeu vê, e a construção deixa estar (não registrada no referido dicionário) usada como destá. Cesário; Gomes; Pinto (1996) fizeram um estudo do verbo “deixar” para verificar a gramaticalização de verbos emotivos e efetivos em locuções resultantes da integração semântico-sintática entre orações. Entendem verbos emotivos como os que exprimem um julgamento de ordem pessoal ou cujos sujeitos exercem (ou tentam exercer) uma manipulação sobre o sujeito da oração subordinada, como querer, deixar e desejar; e 94 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL verbos efetivos como os que, concretamente, efetuam os processos contidos no verbo principal, sendo conhecido como auxiliares lato sensu, como estar, ficar e poder. Segundo os autores, o verbo “deixar” é um verbo duplo que tem usos como emotivos-efetivos e sua trajetória de gramaticalização começa como um verbo emotivo, presente em: i) “Minha mãe não deixa eu namorar...”(p.108) e (ii) e “Olha colega, ... deixe-nos ir.” (p.108), que passam a efetivos (ver p 79) e depois continuam o processo cristalizando o seu uso ao lado de determinados verbos, como em: iii) “Entrevistador – qual o prato que você mais gosta de fazer? ... Informante – Eh, deixa ver, macarrão ... não arroz. (p.108). Assim, em iii, o verbo “deixar” é um auxiliar e seu emprego se cristalizou ao lado do verbo ver, descrito na subseção “a” como xeu vê, e ao lado do verbo estar, que derivou a forma destá, descrita na subseção “b”. a) Xeu vê No corpus, flagramos uma ocorrência da construção coalescente xeu vê em (48) (48) H84-06: pois bem... im quarenta e dois nós tava aqui... qué dizê im quarenta e dois eu era casado já im trinta e dois não, eu era sortero ainda fui mais papai, agora im quarenta e dois eu já era casado... cheguei aqui eu num tava aqui munto aperriado demais não, mar chegô aquela rodage qui hoje é de frente pá Pau do Serro... Antõi... é Antõi Filipe, meu Deus? É... xeu vê... chamavam Antõi Suare... (H84-06-126 -IQ4-063-641) Como anunciamos, a construção xeu vê, nesse caso, resulta da forma original: DEIXAR (verbo emotivo) + EU (pronome) + VER (verbo perceptivo), mas, em (48), o “deixar” tem outro uso, passando a funcionar como verbo efetivo, auxiliar. E como tal, cristalizou-se ao lado de “ver”, em que o falante não está pedindo permissão ao ouvinte, mas usa a construção xeu vê para preencher o tempo em que está pensando, o que é reforçado pelo fato de vir entre pausas, que também marca o momento de reflexão em busca (= saber) do nome da “rodagem”, no sentido de dar maior clareza ao discurso. Segundo Martelotta; Votre; Cezario (1996), verbos de percepção como “ver” e “perceber”, entre outros, tendem a ser usados metaforicamente com o sentido de saber, como percebeu?, você vê ou deixar ver. Na amostra, portanto, o xeu vê funciona como um marcador de hesitação/reformulação. Há a coalescência do “deixar”, em que há a braquissemia (por desgaste fonético) dexa > xa e a junção com sujeito da oração subordinada eu, que resulta no xeu. Como podemos ver, a construção deixar ver já não tem o sentido da locução que, 95 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL segundo Ferreira (2010), seria “11. mostrar, apresentar; demonstrar”, como mostramos no Quadro 7. Enfim, a trajetória da construção seria: DEIXAR (verbo emotivo > efetivo) + EU (pronome) + VER (verbo perceptivo) > XEU VÊ (Marcador de esclarecimento). Parece que a forma xeu ainda assume outra forma, pois, conforme Cesário; Gomes; Pinto (1996, p.109), o desgaste fonético pode ser constatado na piada: “- Deixa eu ver (= xô vê [‟ ]). – Se chover vai molhar,” Esse desgaste parece ser mais forte na forma destá, presente na subseção “b”. b) Destá Também flagramos uma ocorrência da construção coalescente destá em (49) (49) H58-08: (...) se uma pessoa dissé, rapais aquele mininu de Joãozim Gaiana aquilo num presta aquilo é um amaidiciado aquilo num sei o que... destá tem probrema não.. qué dizê qui aquela pessoa tá dizeno aquilo dali puique ele num tá se lembrando qui tem o furo da aguia, ele já tá perdido, ele já tá perdido ele num tá sabeno ele tanto faz jogá cumo perder, ele tanto faz jogá cumo perdê a vida dele já tá já tá certa aí vai o siô, um home de bem, home de bem cumo é, aí chega o siô diz assim “sabe duma coisa, ((incomp.))” (H58-08-305 -IQ7-91-614) Apesar de o percurso de gramaticalização de “deixar‟ ser quase o mesmo descrito na subseção “a”, o desgaste fonético, na construção como um todo, deu-se diferente: ou houve a fusão dos sons semelhantes na coalescência [„de] (= deixe) + [e‟ta] (=está) ou a junção de [„de] + tá, que é a forma bastante usual na linguagem informal de estar. Em destá, o verbo “estar” não tem a função de auxiliar lato sensu como afirmamos em “a”, mas sim como um verbo de conteúdo pleno. O verbo “estar” com o sentido pleno vem do latim stare, que significava, entre outros sentidos, o de „estar de pé‟, „conservar-se do lado de‟, „estar imóvel‟ e „manter-se parado‟. Tinha, portanto, um sentido de permanência, de continuidade física num local. (CESÁRIO; GOMES; PINTO,1996) Assim, em (49), a construção coalescente destá interrompe a linha de pensamento, marcado também pelas pausas antes e depois, para funcionar como um elemento de aviso/chamamento para ele e/ou para o ouvinte sobre sua tomada de posição ou avaliação quanto ao assunto, como uma promessa velada. A trajetória de gramaticalização de destá seria: 96 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL DEIXAR (verbo emotivo) + ESTAR (verbo estativo) > DESTÁ (Marcador de avaliação) Concluída a análise das vinte construções coalescentes, que as dispomos em 12 grupos, passemos a reagrupá-las em tendências de trajetórias de gramaticalização na seção 4.3. 4.3 Tendências de gramaticalização de construções coalescentes na fala de remanescentes quilombolas de Portalegre/RN A partir da análise da gramaticalização das construções coalescentes em 4.2, resumimos, nesta seção, as tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, todas são unidirecionais e seguem a tendência translinguística de gramaticalização bem como a escala de abstratização: ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO Destacamos, para representar essa escala metafórica, o desenvolvimento das construções coalescentes Praculá; Praqui praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí; Puraculá; Puraqui, expostas na seção 4.2, que partem da formação original Preposição + advérbio locativo, portanto indicam a noção espacial, especialmente, pela presença de advérbios acolá, aqui e aí. Depois, as referidas construções vão, a partir de contextos mais amplos e abstratos, que se realizam no discurso, ou seja, numa dada situação real de uso, atingindo um estágio mais avançado de gramaticalização. Nas construções analisadas, somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, porém em um uso pragmático-discursivo. Partindo dessa noção mais geral, apresentamos as tendências de gramaticalização por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual acreditamos que as demais construções coalescentes tenham evoluído: significado referencial > significado textual-discursivo > significado pragmáticodiscursivo Conforme o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os pontos focais de início e do estágio registrado na amostra. 97 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL a) Significado referencial > Significado pragmático-discursivo Incluímos nessa escala as construções coalescentes: Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora b) Significado semântico-sintático > significado textual-discursivo Destacamos, nesse trajeto, o desenvolvimento do uso da construção Quiném. c) Significado textual-discursivo > Significado pragmático- discursivo Com base, em Heine (1991), dividimos essa tendência em dois blocos: c.1 Marcador discursivo orientado para a avaliação do falante: refere-se ao que o falante tem sua mente: suas atitudes, julgamentos, crenças, etc., como as construções coalescentes: Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...? c.2 Marcador discursivo orientado para o ouvinte: refere-se à adequação do uso aos propósitos tanto do falante quanto do ouvinte. As construções que funcionam como requisitos de apoio discursivo são: Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê Apesar da forma concisa e objetiva, cremos que esse é o resultado das construções gramaticalizadas presentes no corpus estudado, porém não podemos assegurar que são formas específicas de parte do grupo, posto não termos estudos do resto da comunidade (escolarizada, por exemplo) ou de regiões vizinhas para efeito de comparação. Entretanto, essas construções coalescentes representam as maiores frequências de uso, portanto indícios tanto de início como de final do processo de gramaticalização. 98 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL 5 CONCLUSÃO Esta pesquisa teve como objetivo principal descrever os mecanismos e propriedades formais e funcionais que caracterizam o processo da coalescência correlacionado aos estudos de gramaticalização, a partir de construções linguísticas garimpadas na modalidade oral de analfabetos remanescentes de comunidades quilombolas de Portalegre/RN. Esse objetivo se relaciona a perguntas específicas, às quais, por meio de uma análise sincrônica, procuramos responder: que funções/significados as formas resultantes da coalescência linguística desempenham no uso linguístico? Que processos/mecanismos podem explicar o surgimento das formas coalescentes? Quais são os indícios/tendências de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN? Para respondermos a essas perguntas, realizamos o levantamento de todas as construções coalescentes existentes no corpus: “A fala de remanescentes quilombolas de Portalegre do Brasil”, no qual detectamos a presença de 58 (cinquenta e oito) tipos de formas coalescentes com 721 (setecentos e vinte uma) ocorrências. Desse total, extraímos 20 (vinte) construções coalescentes para análise, as quais se encontram em processo de gramaticalização. As demais formas coalescentes se caracterizam como construções coalescentes fonético-fonológicas, formas essas que, por enquanto, não apresentam qualquer mudança relacionada à gramaticalização. Nossa análise se baseou na noção de construção para verificarmos o processo de vinculação de sentido e forma que dá origem a novas expressões, no caso, da fala de parte da comunidade de remanescentes quilombolas, interpretando, assim, suas motivações discursivo-pragmáticas, assim como também as tendências de trajetória de mudança dos fenômenos de coalescência mais frequentes na fala dos quilombolas, como resultantes do processo de gramaticalização. Destacamos, a seguir, os principais tópicos que respondem às perguntas, bem como os achados que têm a contribuir com o estudo da gramaticalização e o fenômeno da coalescência associada à gramática das construções. Julgamos estas serem as contribuições de maior relevância deste trabalho: a) processos/mecanismos relacionados ao surgimento de construções coalescentes Quanto aos processos e mecanismos envolvidos na coalescência, cremos que a metonímia atua na reanálise, ou seja, na reinterpretação de vocábulos contíguos. 99 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL b) tendências de mudança linguística a partir das coalescências utilizadas na fala dos remanescentes quilombolas de Portalegre/RN. As tendências de trajetórias, que, como podemos evidenciar, são todas unidirecionais e seguem a via translinguística de gramaticalização, seguindo a escala de abstratização: ESPAÇO > (TEMPO) > DISCURSO. Destacamos, para representar essa escala metafórica, o desenvolvimento das construções coalescentes Praculá; Praqui praculá; Daqui praculá; Daculá; Puraí; Puraculá; Puraqui. Nas construções analisadas, somente Praqui praculá tem, na sua trajetória, a função indicando tempo, em um uso pragmático-discursivo. Partindo dessa tendência mais geral, apresentamos as tendências de gramaticalização por meio da seguinte trajetória de mudança semântica, pela qual acreditamos que as demais construções coalescentes tenham evoluído: significado referencial > significado textual-discursivo > significado pragmático-discursivo. Conforme o desenvolvimento das construções coalescentes, dividimos em três os pontos focais de início e do estágio registrado na amostra: a) significado referencial > significado pragmático-discursivo: Vir simbora, Ir simbora e Ir mimbora; b) Significado semânticosintático > significado textual-discursivo; Quiném; e c) Significado textual-discursivo > Significado pragmático- discursivo: dividimos essa tendência em dois blocos: Marcador discursivo orientado para a avaliação do falante: Bombasta; Cumé qui...?; Qué qui...?; e Marcador discursivo orientado para o ouvinte: Né? Nera? Cumé? Peraí! Destá! Xeu vê. Então, seguindo o critério da frequência de uso mencionado por Bybee (2003) e nessas características constatadas, percebemos que as construções coalescentes analisadas são processos linguísticos bastante frequentes na fala dos remanescentes de quilombolas, sendo mais frequentes as formas: Né? Nera? e Quiném. Atentamos ainda para o fato de que as construções coalescentes, em sua grande maioria, apresentaram perda fonética no momento em que as palavras estreitam suas fronteiras. Assim, concordamos com a colocação de Bybee (2003) e Bybee & Hopper (2001) quando afirmam que a “erosão” fonética liga-se também a frequência relativa de uso, uma vez que quanto mais presente no discurso, maior a possibilidade de desgaste de um item, devido sua previsibilidade em contextos discursivos apropriados. Desse modo, partimos do pressuposto de que as coalescências no corpus surgiram a partir de uma repetição frequente das formas contíguas, as quais foram tendo seus limites 100 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL cada vez mais aproximados. De foma que as construções coalescentes se unem por justaposição e, por fim, aglutinam-se, formando uma só palavra, com forma e sentido novos. No percurso desta investigação, há alguns pontos que abrem perspectivas de explorações complementares em trabalhos futuros. Dentre outros, mostramos como mais saliente o estudo das demais formas coalescentes (as fonético-fonológicas) que, como ainda não se gramaticalizaram, ficam como registro de um mapeamento do processo inicial de mudança, que pode ou não ocorrer. Isso dependerá da rotina de uso que poderá ser constatada em momentos futuros. Aproveitamos o ensejo para ressalvar que muitas das construções coalescentes encontradas na fala dos remanescentes de quilombolas de Portalegre/RN podem ser detectadas na fala de outras comunidades. Assim sendo, esperamos que esta pesquisa sirva como um instrumento reflexivo para que outros pesquisadores reflitam sobre o fenômeno da coalescência e possam, assim, desbravar novos horizontes sobre o assunto, gerando novas produções, uma vez que, conforme já mencionado, são escassos trabalhos sobre este aspecto linguístico. É nosso desejo também que esta pesquisa traga contribuições para a área do Funcionalismo Linguístico, bem como para o trabalho pedagógico. Esperamos que a pesquisa contribua na luta contra o preconceito linguístico, uma vez que, por se tratar de uma comunidade de negros, analfabetos e descendentes de escravos, muitos usam tais características para propagar o preconceito. Ao contrário disso, a pesquisa pode ser usada para apresentar outra variedade linguística do português aos discentes, expondo explicações reais do funcionamento linguístico, bem como o processo de gramaticalização. É nosso dever enquanto linguistas e professores refletirmos sobre os usos linguísticos e propagarmos o fato de que a língua está susceptível à mudanças, ela não é estática e imutável. Ela é viva como os seres humanos que a falam. 101 ENDÊNCIAS DO PROCESSO DA COALESCÊNCIA EM CONSTRUÇÕES DA FALA DE REMANESCENTES QUILOMBOLAS DE PORTALEGRE DO BRASIL REFERÊNCIAS ABRAHAM, W. 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