o caso da Sanbone Pagode

Propaganda
1
TRÂNSITOS ENTRE A CRÍTICA E A PRODUÇÃO MUSICAL NO PAGODE
BAIANO1
O caso da Sanbone Pagode Orquestra
Helen Campos Barbosa2
Resumo: Este artigo trata das práticas de fãs da Sanbone Pagode Orquestra a partir das
alternativas de produção de conteúdo criadas pelo acesso as novas tecnologias midiáticas
estudadas por nós enquanto dispositivos agambianos. Buscamos problematizar como o
engendramento da complexa rede de interatividade promovida pelos novos aparatos
tecnológicos fomentam o uso criativo das mídias emergentes desencadeando transformações
de mercado e do ambiente cultural constituindo novas formas de construção de juízo
valorativo sobre música. A nossa questão central aqui que é pensar a partir da produção da
Sanbone Pagode Orquestra sobre alguns elementos na partilha de preferências musicais: 1Produção; 2 - Legitimação; 3 - Atualizações musicais num gênero, suas representações x
naturalizações. Desse modo, o presente artigo objetiva compreender a música como um
dispositivo agambiano, onde o gênero musical será pensado então como construtor de
sensibilidades equivalentes na "partilha do sensível".
Palavras-chave: Sanbone Pagode Orquestra 1; dispositivo 2; YouTube 3; fãs 4; crítica
musical 5.
Introdução
Buscando problematizar a música também como um campo discursivo estudei no
mestrado a construção de narrativas de fãs do pagode baiano no Youtube pensando o pagode
enquanto uma produção feita essencialmente por jovens das camadas populares, sujeitos não
autorizados à fala da crítica musical profissional e que estabelecem uma ruptura no silêncio
quanto ao pagode a partir de práticas discursivas no ambiente virtual. Entendendo essas
construções discursivas de fãs e também de artistas no ambiente virtual como uma nova
1
Trabalho apresentado no GT Comunicação, Sensibilidades e Performance do I RECOM – Comunicação e Processos
Históricos, realizado de 29 de setembro a 01 de outubro de 2015, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Cachoeira, BA.
2
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas-UFBA. Membro do Grupo de
Pesquisa Analítica - FACOM/UFBA. E-mail: [email protected].
2
curadoria3 feita por amadores observei como elas se inseriam no tecido social provocando
tensões nos sistemas de valoração musical. Naquele momento me interessava prioritariamente
questionar se existia nessa prática de fãs o estabelecimento de uma dialética que tencionava a
relação de uma fala ordinária, da ordem do senso comum, com a fala autorizada do crítico
musical. Uma espécie de profanação no sentido agambiano quanto aos dispositivos: 1- crítica
musical, perpassando aí a construção de juízo de valor, 2- equipamentos de gravação
audiovisual e 3 - os ambientes virtuais gratuitos de postagem de vídeos com suas ferramentas
de avaliação sendo o comentário entendido por nós como o mais relevante deles. No
momento atual me instiga pensar mais profundamente na música enquanto um dispositivo
determinante de uma modo específico de estar no mundo. Nesse artigo retomo algumas
análises e problematizações feitas em minha dissertação direcionando agora meu estudo para
a compreensão da música como um dispositivo agambiano. Nesse sentido, gênero musical
seria pensado então como construtor de sensibilidades equivalentes na “partilha do sensível".
A estética desse modo pode ser entendida enquanto uma experiência que engendra
“novos modos do sentir e induzem novas formas da subjetividade política” (RANCIERE,
2005, p.11). Ranciere (2005) destaca uma mútua constituição entre o estético e o político em
sua noção de “partilha do sensível”. A estética para Ranciere (2005) seria definida pelo modo
como ocorre a “distribuição do sensível”, pois esse processo determinaria os modos de
articulação entre formas de ação, produção, percepção e pensamento. Ele concebe os modos de
“partilha do sensível”, sob duas perspectivas conflitantes, mas que ocorrem
concomitantemente: 1) o de compartilhamento de algo comum; 2) separação deste em partes
exclusivas. Para ele, participação e separação são noções que significam união e divisão “de
espaços, tempos e tipos de atividades que determina(m) propriamente a maneira como um
„comum‟ se presta à participação e como uns e outros tomam parte nesta partilha”
(RANCIERE, 2005, p.15). É no terreno “comum” que o autor afirma que é possível perceber a
distribuição e disposição de lugares de quem pode e quem não pode participar deste „comum‟.
Esta articulação de formas atuaria ainda em mais dois âmbitos: 1) no sentido (palavra); e 2) do
sem-sentido (ruído). O dizível e não dizível dão forma à comunidade, definindo competências
e, ao mesmo tempo, quem pode as desfrutar e as operar. Tomar a dimensão do comum
associado à ideia de partilha do sensível significa pensá-lo como um modo de repartição
desigual entre iguais, o que responde pela dimensão política imediatamente aí presente. Para
Ranciere (2005), o “comum” não seria o simples entrelaçamento entre do pensar, do falar, do
perceber, ou do produzir. Esses aspectos estariam em relações de desigualdade. A partilha do
sensível seria justamente a redefinição da ideia de comunidade e do comum.
Não é que qualquer reconfiguração estética necessariamente corresponda a uma
mudança política. Essa relação é entendida pelo autor como contínua e passível da paradoxal
situação em que a igualdade de qualquer um com qualquer um está na base de toda
estruturação social, e ainda assim reinam hierarquias e desigualdades. Entretanto, quando ele
pensa numa reconfiguração do estético/político ele trata da inserção, no “comum” de sujeitos
novos e objetos inéditos. O que até então não era visível ganha visibilidade, aqueles antes
3
Uso o termo curadoria musical como categoria analítica, pois parto do pressuposto que a crítica musical em alguma medida
foi construída, estando ainda sob influência dos parâmetros de seleção e juízo de valor da curadoria artística.
3
silenciados passam a se fazer perceber como seres falantes, os que eram tidos como “animais
ruidosos”4: Essa inserção, parte da reconfiguração tratada por Ranciere (2005), não é feita de
modo definitivo.
Ao afirmar que ao terreno do “comum” a desigualdade é um ingrediente sempre
presente, Ranciere (2005) nos chama a nossa questão central aqui que é pensar a partir da
produção da Sanbone Pagode Orquestra sobre alguns elementos na partilha do comum: 1Produção; 2 - Legitimação; 3 - Atualizações musicais num gênero, suas representações x
naturalizações; Para tanto, cabe uma preliminar explicitação do gênero musical no qual o
grupo musical estudado está inserido, o pagode baiano. Não há um consenso ou um conceito
exato sobre o que seria o pagode. Alves (2003) em sua tese “A Experiência do Samba na
Bahia Práticas Corporais, Raça e Masculinidade” afirma que o pagode seria uma configuração
atual do samba na Bahia. Distanciando-se de uma explicação que privilegia um etapismo na
construção do samba, onde o gênero5 teria começado na Bahia tradicional e prosseguido no
Rio de Janeiro moderno e mestiço, a partir do final do século XIX, Alves (2003) afirma que
esse tipo de argumento impede a emergência de outras possibilidades de sambas, com
diferenças a partir do contexto urbano ou rural, por exemplo, sem um cunho evolucionista. O
autor, analisando os estudos já realizados sobre o samba destaca que a bibliografia sobre
samba pode ser dividida em três grupos:
1. Títulos que versam sobre a biografia de antigos sambistas, compositores cariocas
ou radicados no Rio de Janeiro desde o início do século XX; 2. Títulos que elaboram
análises socioantropológicas sobre o samba carioca urbano; 3. Títulos que analisam
o samba como folclore e/ou discutem aspectos formais do samba (ALVES, 2003,
p.92).
Esses grupos demonstram primeiro, a centralização dos estudos relacionados ao
samba dentro do estado do Rio de Janeiro e segundo, que o consumo de gêneros musicais
oriundos do samba ainda pode ser um campo rico para o estudo das mediações exercidas entre
a música, sua produção e formas de legitimação. No caso específico desse artigo, no ambiente
virtual, buscando entender aí algumas transformações nas negociações entre matrizes
rítmicas, suas atualizações e modos de legitimação. Para isso proponho a análise da Sanbone
Pagode Orquestra, a partir de postagens no YouTube e os usos das ferramentas estatísticas
disponibilizadas pelo canal.
Sanbone Pagode Orquestra
4
Expressão empregada pelo filósofo para demonstrar a incisiva redução prescrita aos que, numa partilha em vigor, são
rebaixados à condição daqueles cuja fala é sempre decodificada como mero barulho, sem significação e interesse para o
campo do comum.
5
Segundo Gomes (2014, online) Gênero enquanto categoria cultural é um protocolo de análise que possibilita a pesquisa ir
além das análises textuais, mas sem negá-las, sem recusá-las... “O que demanda um conceito de gênero em que este não
apareça como uma entidade fixa, em que ele não seja apenas classificação ou tipologia da programação televisiva, mas que
seja considerado como uma prática de produção de sentido que se realiza na “inter-relação entre uma variedade de práticas
criativas, econômicas, sociais, tecnológicas, institucionais, industriais e interpretativas”” (EDGERTON; ROSE, 2008, p. 7).
4
Comandado pelo maestro Hugo Sanbone que já atuou em bandas como Psirico e
GuigGueto a Orquestra é nomeada a partir da união das habilidades de Hugo com a sanfona e
o trombone. Autodidata, o sergipano começou a tocar aos nove anos na orquestra infantojuvenil Lourival Batista de Aracaju. O encontro com o pagode, inclusive, se deu na capital
sergipana, mas foi em Salvador – para onde se mudou em 2000 – que a sua habilidade com a
sanfona e com o trombone foi aperfeiçoada devido às diversas passagens por grupos de forró
e pagode. Habilidade esta que originou o sobrenome Sanbone [san(fona) + (trom)bone]. Por
isso o “nê” antes do “b”. A Sanbone Pagode Orquestra surge em 2009 com 25 músicos e com
a proposta de adaptar música regional baiana, o pagode e suas variações, à música erudita.
Quase todos seus integrantes tocam em outras bandas de música popular e grande parte deles
começaram a aprender música de forma autônoma e hoje grande parte deles cursam nível
superior em música.
Com composições e arranjos do maestro Hugo, as obras possuem duração que
variam entre a sinfonia, com execuções mais extensas, e a música feita para tocar em rádios,
com durações mais curtas. Assim, as músicas têm duração que vão de seis a dez minutos e
todas levam o nome de sinfonia, como a Sinfonia Primeira de Pagode (música instrumental
vencedora do VII Festival de Música da Educadora FM de Salvador e do Festival Nacional
das Rádios Públicas em 2009). Na página oficial do grupo no facebook, destacamos o
seguinte trecho, “O maestro Sanbone sempre sonhou tanto com a popularização da música
erudita, quanto com a erudição da música popular, especificamente o ritmo homenageado no
trabalho tão estigmatizado por grande parcela da população.” Ainda nessa página na categoria
gênero eles assim definem-se: “Erudito | Popular | Pagode | Contemporâneo”.
O maestro em entrevista a jornalista Marília Moreira para o site do Bahia Notícias
<http://www.bahianoticias.com.br/>, afirma que os inspiradores do grupo são os russos
Stravinsky e Tchaikovsky e o austríaco Mozart e também o trabalho de bandas como
Harmonia do Samba e Psirico – da banda liderada por Márcio Victor, classificada por Hugo
como “responsável por um dos trabalhos rítmicos mais ricos que o pagode da Bahia já teve”.
Na mesma entrevista Hugo destaca o projeto “Psirico Experimental”, no qual ele participa na
confecção dos arranjos e nos metais.
A primeira postagem da Sanbone Pagode Orquestra que vamos analisar é um
vídeo (V1) que tem o título: SanbonePagodeOrquestra, data de upload de 2010 e link:
<http://www.youtube.com/watch?v=cHt2wiTV0BU>. O vídeo foi selecionado a partir de uma
postagem de fã, mas pesquisando um pouco mais verifiquei que a produção originariamente
era do próprio grupo, postada pelo maestro, e recompartilhado pelo fã. Resolvi não usar o link
do recompartilhamento e sim do originalmente postado, pois é nele que possui comentários,
ferramenta importante para nossa análise. Postado por hugosan11, com 57.173 visualizações,
66 comentários, 159 gostei e 01 não gostei o vídeo nos apresenta uma inicial problemática.
O mesmo vídeo postado pelo fã não possui nenhum comentário. Constato que a
interação entre público x usuários do YouTube com uma mesma produção postada pelo
próprio grupo ou postada por fãs ocorre de modo diferenciado. Por outro lado, os comentários
5
escritos, reafirmam ou tentam negar aquilo que já foi exposto pelas imagens postadas e para
nós está aí o movimento de disputa discursiva.
A postagem feita pelo próprio artista configura-se como um comentário sobre si
mesmo e as falas sobre o vídeo a partir de fãs, anti-fãs, entre outros usuários do canal,
repercutem afirmando ou negando a musicalidade em questão. Os comentários escritos
reafirmam ou tentam negar aquilo que já foi “dito” pelas imagens postadas. A hierarquia da
fala, onde o expert em música (na figura do crítico) é o primeiro a elencar critérios e
estabelecer um juízo de valor a ser posteriormente lido/repercutido, é profanada pela
possibilidade de subversão da ordem de fala. No canal estudado o comentário inicial
(considerada aqui como a postagem do vídeo) a respeito de uma musicalidade pode ser tanto
por parte dos fãs como também do próprio artista.
Essa profanação seria assim potencializada pelos aparatos tecnológicos como
câmeras digitais e internet, que atuam enquanto dispositivos, conceito definido como
“qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos
seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p.40).
Esses aparatos enquanto dispositivos estabelecem profanações na crítica musical,
por permitirem a apropriação de linguagens antes especializadas, que são a 1- construção de
juízo de valor musical, a partir do 2 - código audiovisual/digital. E esses dispositivos vão
assim configurando um modo de produção de imagens relacionadas ao pagode baiano – bem
como se tornando o próprio código linguístico desses fãs que fazem uso do YouTube. A seguir
tabela com os números referentes ao vídeo (V1):
Tabela 1: Comentários referentes ao vídeo V1 da Sanbone Pagode Orquestra.
Comentários referentes
aos aspectos
musicas/performance
33
Comentários de
Anti-fã
Outros
Comentários
Totais
12
00
45
Os comentários estão separados a partir das temáticas com alguma relevância para
esta discussão e que foram recorrentes nos comentários. Alguns comentários poderiam ser
classificados concomitantemente em mais de uma das temáticas que propus, mas filtro a partir
do tema que mais se destaca. Assim, os comentários estão separados pelos assuntos: 1)
Referência ao maestro; 2) Defesa do gênero pagode; 3)Referência às letras do pagode; 4) Uso
do argumento “bom gosto” e/ou referência às características distintivas da Orquestra; 5)
Referência a críticos;
Tratando-se de uma Orquestra, onde diferentemente dos demais grupos de pagode
baiano, não possui um cantor, uma figura que mantém o contato com a platéia de modo mais
6
direto, observo que o público mantém essa conexão na imagem do maestro. Abaixo os
comentários que fazem algum tipo de referência ao maestro Hugo:
a) NOssssaaaaaaaa que coisa mais linda.. fiquei arrepiada, orgulhosa... sem palavras... Esse é o meu maestro que
tanto amo... Negão!!!!!!!!!eu já sabia o quanto tu bom .. agora que só deu o xeque -mate.. bjus parabéns Te amo
amigo- irmão.. bjus Carla Maia (2318caroline); b) É o que se pode chamar de "true" Groove arrastado. O
maestro foi entre dois extremos e a inovação ficou massa! (Murillo Elias); c) Hugo, Lulu Santos ja dizia: O
pagode eh chique! Parabens maestro! Belo trabalho! (Sandro Andrade); d) O maestro dança! Kkkk (Emanuel
Prado); e) GRANDE HUGO,ORGULHO DA MUSICA BAIANA E SERGIPANA,ABRAÇO MEU
AMIGO,CONTINUE COM ESSE TRABALHO DIFERECIADO,TORÇO MUITO POR VOCE
IRMÃO,ABRAÇO (Bruno Reyner); f) Show de SOM!!! Parabéns pela belíssima interpretação!!! Grande
HUGO, humildade em pessoa!!! Erbert de Cuiabá MT (Erbert Sax Cuiabá); g) Hugo tem anos que ñ te vejo mais
rpz vc é foda. Parabens e sucesso. Ideia do caralho. Abraços Rominho. Depois me manda um material p/ver eu
mostrar a uns parceiros investidores. Fui! (ineditusproducoes); h) Hugo parabens mais uma vez e o end. p/enviar
o material é : Rua André Rebouças nº64(antiga rua do Fogo) Bairro Ribeira-Itapagipe Cep 40.420-210 Salvador
Bahia Ineditu's producões e eventos Esse seu trabalho tem que ser divulgado, pois ritimo e musicalidade que o
povo dança, curte e ñ prostitue a mente. Parabens..... (ineditusproducoes);
Entre elogios pelo trabalho, são destacadas também algumas características que o
público acredita ter afinidade com a sonoridade da orquestra como: o “groove arrastado” e a
inovação nos arranjos. Há também felicitações pela iniciativa de montar a orquestra que é
afirmada como elemento de orgulho para a música baiana e sergipana, cidades onde Hugo
Sanbone já atuou musicalmente. Um dos fãs chega a sugerir que a atuação da Sanbone faz
com que o pagode seja “chique”. É perceptível que não é somente a adaptação das células
rítmicas do pagode para a formatação orquestral que impressiona, mas, também toda a
composição mais pomposa que a apresentação possui com músicos vestidos formalmente de
blusa e calça social e gravata, vestuário elegante que se distingue do modo mais informal
como os músicos dos grupos populares aparecem no palco. Termos como elegância,
diferenciado e sofisticação são frequentes nas falas dos fãs que relacionam essas
características a fatores como uso de partituras, presença de um maestro, estudo dos músicos,
entre outros.
Constatamos então que a Sanbone a partir de sua intencionalidade de
popularização da música erudita bem como erudição da música popular pode causar certos
paradoxos no que se refere ao modo como a proposta é entendida pelos seus apreciadores. Ao
passo que incorpora a musicalidade do pagode em seu repertório, faz com que o estilo ganhe
notoriedade e status de música de qualidade tanto por pagodeiros como também fãs de outros
estilos musicais, acaba por distanciá-lo de seu contexto característico que é:
É um mundo de afetações e maneirismos, descontínuo e assimilacionista, por
excelência erotizado e corpóreo, do qual se faz necessário falar das palavras, mas
também dos corpos, sobre o caráter posicionado, mas também performático da
identidade, sobre a “baixaria” que os próprios pagodeiros atribuem ao pagode
(ALVES, 2003, p.212).
Assim, a hibridez da Sanbone Pagode Orquestra gera surpresas como a de um dos
comentadores que exclama: “O maestro dança! Kkkk”.
Tradicionalmente a figura do
7
maestro é percebida com mais sobriedade, na postagem que estamos estudando, o maestro
Hugo arrisca um gingado com o corpo quando inicia a regência da composição (sinfonia 4 –
Veemencia) fato ressaltado nesse comentário. Sobre isso, Hugo em entrevista ao portal Bahia
Notícias<http://www.bahianoticias.com.br/2011/imprime.php?tabela=entretenimento_resenha
s&cod=38> afirma que: “É muito tranquilo, porque a nossa proposta é fazer uma música de
qualidade, com qualidade, respeito e seriedade. Mas isso não quer dizer ser rabugento, nem
sisudo, nem arrogante. A gente sabe que o universo da música popular é mais leve, a gente
toca se divertindo. Na orquestra é um pouco diferente. Mas brincar não quer dizer que não
seja uma coisa séria”, explica.
Ressalto ainda, entre os comentários acima expostos, a participação da
“ineditusproducoes” que aproveita o espaço para solicitar material da orquestra para buscar
investidores. Prática que comprova que as bandas/grupos de pagode utilizam os novos
aparatos tecnológicos como câmeras digitais e a internet para chamarem atenção de
investidores, pois para atingirem maior notoriedade precisam de investimento. Num outro
comentário a “ineditusproducoes” posta ainda o endereço para que o material seja enviado e
acrescenta: “Esse seu trabalho tem que ser divulgado, pois ritimo e musicalidade que o povo
dança, curte e ñ prostitue a mente. Parabens.....(ineditusproducoes)”. Observamos a partir
daqui que em alguns momentos as mesmas características usadas para distinguir o trabalho da
Sanbone serviam ao mesmo tempo para “inferiorizar” a apresentação de pagode das bandas
baianas que normalmente possuem músicas de duplo sentido e performances sensuais de
dançarinas/os ou cantores.
Separamos então os comentários que falavam das características distintivas do
grupo ressaltando aspectos que afirmavam o “bom gosto” da proposta:
A) muito bom música realmente não tem fronteira quando bem trablhada não importa o estilo (vini arnaut); B)
RPZ EU TENHO CERTEZA QUE VOU VER ESSA GALERA AI EM JÓ SOARES PQ ISSO É UM
GRANDE PASSO PRO PAGODE BAIANO E SO DE VER ESSA GALERA DE ALTO NIVEL APOSTA
NESSE SEGUIMENTO FORTALECE E DA ANIMO A TODA GALERA DO MEIO A ESTUDA E FAZER
UMA BOA CARREIRA COMEÇANDO COM ELE AFINAL MUSICA NÃO TEM FRONTEIRAS É SO SER
CURIOSO E ESTUDA Q VAI.. PARABENS A TODOS... (Zay BONDE DO ZAY); C) Meu Deus do céu é a
mesma coisa que pegar coisa que não tem um fundamento ,não tem alicece, mais que já foi construída e alicerçar
e fundamental isar em algos mais firme o pagode baiano ou melhor a música baiana com uma sofisticação
gigantesca, coisa de outro nível com direito a partituras e a regência de um maestro (denis dos santos barros). D)
magnifico, para nós musicos amantes da musica bahiana, e amantes da musica classica, é um prazer (Cibele
Felix); E) Nem tudo está perdido nessa Bahia. Essa é uma prova de que, com bom gosto, tudo se resolve. Prova
também o nível de sofisticação musical que possuem os músicos do axé e do pagode baiano. Prova, ainda, que
esses artistas têm a necessidade de produzir uma música que pode estar fora dos padrões comerciais, mas que
lhes proporciona maior prazer estético. Parabéns pelo excelente trabalho! Sucesso!!! (João Maurício Ramos); F)
Essa é a melhor.....nada igual em salvador.... (Sou Com Estilo Salvador-Ba); G) Maravilhoso o som de vocês. A
um tempo atrás seria dificil acreditar que seria possivel ver o pagode baiano num nivel de orquestra. Hoje já
começo a acreditar em concertos de pagode. Maravilhoso isso!! (Renato Dhias); H) Demorouuuuuuuu !!
HeHeEH Muito Balaaaaaaaaaaa !! uhuuuuuuu É o Pagodãooo !!! Parabéns a galera aêee (Junior Mendes); I) Isso
pra min e axé nao pagodee (banana7626); J) Muito massa brother ...tem q começar a fazer shows por aii muitoo
massa (Lidi Bitencourt); L) DO CARALHO ERIC, GRANDE SAXOFONISTAb (renivalbn); M) Phodãao...
PAGODÃOOOAÊE(DouglasCruz); N) “RPZ EU TENHOCERTEZA QUE VOU VER ESSA GALERA AI EM
JÓ SOARES [2] (Ronaldo Lab); O) A BAIA É FODA... PARABÉNS A TODOS OS MÚSICOS DA
8
BAIA(Samuel Guilherme); P) quero baixar esse video ta muito show brothers!!! só faltou meu brother sandro
lima no sax pra completar rs abração e parabéns!!! (Maicley vierráhd); Q) Muito bom!! ... da pra ve, que no
brasil existem grandes musicos :D (Cadu Butrago); R) Boa noite. Gostaria de um email e nome para contato.
Temos novidades. Obrigada e aguardamos(anadio03 (em resposta a ineditusproducoes)).
A primeira fala demonstra o que assinalei acima quanto a distinção do pagode na
Sanbone x pagode dos outros grupos baianos. O fã afirma que a música não tem fronteira
quando “bem trabalhada” e acrescenta ainda que assim não “importa o estilo”. Chama atenção
a expressão “bem trabalhada”. É notório que o comentário não estabelece critérios musicais
que justifiquem ou esclareça o que quer dizer a expressão, para mim seu uso denota um “bom
gosto” ou ainda uma superioridade musical. O comentário seguinte ajuda a elucubrar sobre
isso quando em caixa alta chama os músicos da Sanbone de “galera de alto nível” e os coloca
como exemplo para que os demais músicos que fazem pagode também estudem. A partir
desses comentários penso que os parâmetros utilizados por esses usuários do YouTube estão
atrelados às práticas de escuta previamente estabelecidas e que educa nossa audição segundo
configurações sociais e mediáticas (CARDOSO, 2010, p.11).
Nesse caso é possível inferir que a proposta da Sanbone Pagode Orquestra
provoca determinadas “surpresas” pelo fato de não se enquadrar completamente nem no
formato tradicional dos grupos de pagode baiano e nem como uma Orquestra nos moldes aos
quais nos acostumamos a ver. Desse modo, escutar música é uma prática cultural permeada
pelo constrangimento que o próprio estilo musical estabelece, pelos modos de interação entre
produção e o público como também pelo repertório musical do ouvinte. Trotta (2011) reflete
sobre isso e afirma que a valoração de uma música é uma ação social e ocorre em um
território de conflitos e critérios repercutindo a hierarquia social mobilizada pelas práticas
culturais. Ao se aprofundar quanto aos elementos que instauram a legitimidade de um gosto
musical, Trotta (2011) fala sobre o status adquirido pela música clássica (a música de
concerto de tradição clássico-romântica europeia). “A legitimidade da música clássica deriva
de um tipo de experiência estética cuja eficácia depende de seu processo de aprendizagem”
(TROTTA, 2011, p.119). E questiona: “Mas quais seriam essas características que
determinam esse conjunto de critérios “legítimos” para o “bom gosto” musical?”
Para responder a questão, o autor pontua algumas questões e usaremos aqui
apenas duas delas: “Em primeiro lugar, trata-se de uma prática cujo aprendizado está
direcionado para o controle, ou seja, para um tipo de escuta musical silenciosa, atenta e
descorporificada, compondo o necessário quadro de civilidade que se opunha às práticas
culturais profanas e bárbaras dos “selvagens”. (TROTTA, 2011, p.119). Assim, temos
atitudes/circunstâncias que moldam o comportamento desse público. As salas de concerto
possuem suas “regras de conduta” que vão desde o modo de se vestir, postura estática dos
músicos como também hora correta de aplaudir. Trotta (2011) continua: “Mas há um segundo
aspecto importante na construção de valor na música erudita. Trata-se, precisamente, do tipo
de música que envolve toda essa experiência social. Evidentemente, sua estruturação formal
sonora favorece essa relação “racional” com a música, estabelecendo uma forte ênfase em
alguns parâmetros sonoros e recalcando outros” (TROTTA, 2011, p.120). O autor ressalta que
a sonoridade orquestral (mesmo nos grupos de câmara e nos solos) suprimem uma
9
regularidade rítmica e de percussão privilegiando harmonia e melodia, um contexto que
“adormeceria” o corpo e realçaria uma racionalidade da música.
Nesse sentido, a Sanbone Pagode Orquestra evidencia em sua proposta musical
contravenções tanto ao contexto musical do pagode como a essa cena da música erudita, o
maestro que dança, a presença massiva de percussão, são exemplos dessa fuga aos parâmetros
tradicionais da música orquestral. Ao passo que a roupa social, composições no formato de
sinfonias, algumas com longa duração, contrariam o formato dos grupos de pagode baiano.
Ainda assim, o fato do pagode ser tocado nesse formato historicamente entendido como de
“bom gosto” que é a música erudita, para muitos dos comentadores da postagem, colocou o
pagode num status de música de qualidade e inclusive serviu para argumentar em defesa do
estilo musical pagode, como veremos nesses comentários:
A) Pra quem acha que pagode não é cultura (Marcos Vaz); B) e quem disse que música baiana não tem
fundamento ou alicerce? o.O hai ai, cada uma (Emanuel Prado (em resposta a denis dos santos barros)); C) Pra
aqueles que dizem que pagode não é música...; !!Márcio Montanha; D) BANDA HARIGATOU DE
SALVADOR VOC. ARAME LISO....agradeço por volarizar a cultura da bahia o pagode é uma das melhores
musica criada no mundo.....existe a musica de duplo sentindo mais é pra combater a desingualdade(harigatou
mago); E) ainda dizem q pagode não é música, muiinto bom msm, concerteza o pagode da q pra frente vai ser
mais falorizado! (Rennan Santos); F) Maravilha de orquestra. Mostra cada vez mais que o pagode não é apenas
formado por quatro acordes. Um belo trabalho no qual merece todo apoio de nós baianos para levar esse
excelente grupo ao patamar internacional. Parabéns Hugo, forte abraço do filho do SGT Rocha.(Douglipe1); G)
Vcs Tocam muuuito isso que é Pagode!!! Isso que é musica!!!(gbbatera1); H) RAPAZZZZZ ISSSO E O
VERDADEIRO PAGODAUMMMMMMM VCS TEMQ UE GRAVAR E BOTAR NA NET QUERO PODER
BAIXAR VCS SAO D+ MEUS PARABENS (Lucas Takamoto); I) sinto orgulho da minha bahia, mesmo longe
dela , olha que lindo quem sabe daqui a um tempo possamos ver essa orquestra no mundo todo levando o nome
da bahia e mostrando mas uma vez porque os bahianos são diferentes!! (Gledson Macedo); J) Muito Bom...
Pagodão da High Society... kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Os caras tocam muito... Parabéns(Rodrigo Santos);
L) Uma orquestra DI-FE-REN-TE!!! Adoreiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!! Parabéns a todos os músicos! Vcs
tocam muitoooooo! Sucesso (feijaoefarinha); M) Parceiros Musicos saum musicos - tanta qualidade em Pain
show de bola curtii pra carayyy (Junnior satann'a).
O trabalho da Sanbone de propor arranjos para o pagode com uma roupagem de
música clássica estabelece para alguns fãs um “fundamento ou alicerce” para essa
musicalidade, no entanto essa perspectiva também é contestada. Podemos observar isso no
diálogo abaixo:
- “Meu Deus do céu é a mesma coisa que pegar coisa que não tem um fundamento, não tem alicece, mais que já
foi construída e alicerçar e fundamental isar em algos mais firme o pagode baiano ou melhor a música baiana
com uma sofisticação gigantesca, coisa de outro nível com direito a partituras e a regência de um maestro” (denis
dos santos barros).
- “e quem disse que música baiana não tem fundamento ou alicerce? o.O hai ai, cada uma”.(Emanuel Prado (em
resposta a denis dos santos barros)).
O primeiro comentário permite refletir que quando a arte se distancia mais da vida
cotidiana é gerado um modo de experiência estética que algumas vezes exige a presença de
um especialista que traduza a obra para os indivíduos comuns que podem adquirir a partir daí
10
o que Bourdieu (2001) denomina de capital cultural, ela adquire socialmente o status de bom
gosto cultural, no entanto esse processo de legitimidade cultural não passa incólume. O
comentário de Emanuel Prado demonstra isso quando ele questiona a afirmação da música
baiana não ter alicerce. Seguindo essa linha, parece-me interessante destacar um outro
comentário que afirma que a proposta da Sanbone “Mostra cada vez mais que o pagode não é
apenas formado por quatro acordes”. Importante ressaltar que as canções do pagode,
acusadas, muitas vezes, de fácil assimilação, tem sua célula rítmica mantida na Sanbone
Pagode Orquestra, o que não aparece são as letras, que geralmente ganham um destaque que
chegam a se sobrepor a sonoridade.
As letras do pagode ganham destaque nos comentários que exponho abaixo:
A) Se deixar assim está otimo, por favor não deixem vim um sacana qualquer e colocar uma letra chula kkkk
(blogdobinda); B) tirando os palavroes e a baixaria o pagode baiano nao deve nada a ninguém; !! (Negro Lindo);
@marciomerces91 com aquelas letras do tipo "bota a boceta no pau"? Não tem como chamar de música. Foi
necessário brincar de orquestra para que não olhassem com tão mal gosto. Apóio a iniciativa, mas não dá para
incentivar o pagode com letras que desrespeitam a mulher, dentre outras coisas. (paulopomponet (em resposta a
Márcio Montanha)); C) @marciomerces91 com letras como "bota a b*c*t* no pau"? não tem como chamar de
música! foi necessário que alguém brincasse de orquestra para que outras pessoas, que não os próprios baianos,
respeitassem o trabalho. Apóio a iniciativa, acho importante! Só não acho que devemos continuar incentivando
músicos de tão bom potencial a tocar 'músicas' que desrespeitam a mulher, dentre outras coisas. Que isto sirva
como
um
novo
caminho
(paulopomponet
(em
resposta
a
Márcio
Montanha));D)
Muitolindo!Emfim....Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Ira
do,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irad
o,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado,Irado Assim ´ realmente é muito melhor sem as
letras.... ISSO É PAGODÃO, SWINGUEIRA, SIM, AXÉ É DIFERENTE(yanjambeiro).
A ausência de letras em suas composições é mais um fator de distinção quanto ao
trabalho dos demais grupos que fazem pagode na Bahia. Mas ressaltando que os gêneros
musicais constituem conveniências próprias e específicas organizando suas maneiras de tocar,
ouvir e vender (TROTTA, 2011) assinalo que a dança e o canto compõem características
marcantes em determinados gêneros musicais e o pagode insere-se nessa conjuntura. A
Orquestra ao adaptar o pagode a música orquestral, omite o canto e mesmo se propondo a
uma menor formalidade na apresentação, como afirmou o maestro, a maior parte de suas
apresentações são em salas de teatro que convidam o corpo a uma postura inerte, pelos
próprios ritos do local.
Esses elementos que discorremos acima nos impõe pensar na singularidade do
sistema valorativo da prática musical da Sanbone Pagode Orquestra, pois há em sua
conjuntura elementos distintos para a definição de critérios de qualidade dentro do contexto
do pagode baiano. Apesar da parca literatura a respeito do pagode, alguns autores afirmam
inerência entre essa música, a letra e a dança: “Negar a importância das letras nesse produto
cultural, em favor do ritmo contagiante e envolvente é negar a sua própria complexidade
enquanto evento que agrega letra, música e dança (corpos em performances, corpos
construídos baseados sob parâmetros hegemônicos)” (NASCIMENTO, 2012, p.111, 2012).
11
Diante dessa afirmação urge a necessidade de complexificar a construção de um
julgamento valorativo de uma prática musical que negocia tanto com elementos do pagode
como também da música clássica. Se no pagode a dança e as letras são marcantes,
estabelecendo muitas vezes um parâmetro para o tipo de experiência que causou, a ausência
deles não justificaria uma afirmação de ilegitimidade na sonoridade proposta pela Sanbone.
Os critérios/juízos valorativos perpassam negociações morais demarcam por sua vez o lugar
social de quem julga e além disso, contradição e complexidade são ingredientes utilizados
desde o estabelecimento de hierarquias na música brasileira (TROTTA, 2011).
De forma resumida, é possível pensar que os critérios legítimos, quando aplicados à
música popular, sofrem uma espécie de tensionamento vindo de sua confrontação
com outros critérios que negociam legitimidade. A questão da modernidade
relacionada à tecnologia ou os apelos à dança e à participação corporal nos
momentos de experiência musical funcionam como critérios que se chocam com
aqueles que apontam para a complexidade harmônico-melódica ou a fruição
sublimada e autoria mitificada. No entanto, tais critérios permanecem quase sempre
secundários em boa parte das práticas musicais, que acionam os referenciais da
tradição erudita para desqualificar outras práticas musicais com as quais disputam
mercado. É possível identificar ainda que alguns grupos sociais admiradores de
certas músicas elaboram critérios híbridos, fundindo noções de tradição,
participação corporal e autoria destacada, como no caso do samba. (TROTTA, 2011,
p.134).
A Sanbone Pagode Orquestra amplia o perfil de seus apreciadores justamente
pela hibridez que apresenta em sua proposta musical, conseguindo agregar o ritmo regional
característico da Bahia que é o pagode à cultura da música clássica. Sendo música
instrumental não inclui em suas composições um dos ingredientes mais polêmicos do pagode
que são suas letras. Reafirmo que os critérios de qualidade negociam de modo conflitante
entre o ético e o estético e ganham em alguns momentos contornos moralistas e a ausência de
letras nesse caso significou argumento de reforço à qualidade sonora do grupo.
Todas essas características elencadas acima constituíram para os fãs do pagode
argumentos tanto para sua defesa enquanto gênero musical bem como para o questionamento
da fala negativa quanto aos elementos estéticos presentes na crítica musical profissional e
reverberada no senso ordinário. Os fãs demonstram com seus discursos uma consciência do
desnível de legitimidade que existe com uma musicalidade proveniente do samba, uma prática
musical negro-africana que desde sua origem pleiteia um espaço de legitimidade na música
popular brasileira. O pagode que agencia a “experiência de homens urbanos, negros e
periféricos” (ALVES, 2003) encontra no discurso dos apreciadores da Sanbone Pagode
Orquestra algumas referências à crítica. Não fica claro se a referência é aos críticos musicais
profissionais ou à fala ordinária sobre o pagode:
A) E ISSO AE GALERA MOSTREM AOS CRITICOS E AOS INVEJOSOS QUE A BAHIA TEM A
MELHOR MISTURA DE RITMOS E SWINGS DO BRASIL..... QUEM PODE PODE QUEM NAO PODE EU
SO LEMENTO..(Simoes Marcus); B) Parabéns! Ficou claro pra quem não quer ver que a música nascida do
12
povo pode ser interpretada e tocada com qualidade de Big Band... Com direito a partituras e elegância de um
Maestro. Colocando por terra aquela máxima que a música da Bahia não tem qualidade... E agora Srs criticos vai
dizer o que? Salve os músicos da boa terra. Salve a qualidade (Juaneravena).
A referência aos “críticos” como aqueles que precisariam perceber a música
“nascida do povo”, como afirma um dos comentários acima, como passível de qualidade pode
ser entendida ainda como um recado aos “fiadores da ordem pública e guardiões da cultura
nacional” como denomina Simone Sá aos jornalistas que se portam como defensores de uma
música/cultura autênticos. Essa reinvindicação de “guardiões” ocorreria segundo ela em duas
situações: primeiro ocorreria em casos extremos, de crises, onde as instituições pareçam estar
ameaçadas, por forças externas ou não. “Já a reivindicação do segundo papel se realiza em
bases mais próximas do cotidiano, mas ganha força em eventos e cerimônias nas quais a
identidade nacional é posta em questão” (SÀ, 2014). Diante desse cenário a autora ressalta
que quanto ao pagode e sua relação com a crítica profissional o que acontece é uma batalha
simbólica contextualizada no cenário complexo da cultura brasileira que tradicionalmente
acolhe o carnaval carioca e suas escolas de samba como possuidores do samba “autêntico”, as
coreografias sensuais já seriam assim reconhecidas como parte da tradição. Já o pagode
baiano que conquista cada vez mais o interesse dos jovens brasileiros, não seriam
reconhecidos pela crítica musical por representar certo risco às práticas tradicionais tão
guardadas pelos “zelosos guardiões culturais”.
Acrescento ainda que os zelosos guardiões culturais reverberam suas opiniões por
distintos grupos que buscam proteção a moral, bons costumes e a uma musicalidade dita de
qualidade. Essas questões retornam quando nos debruçamos sob a segunda postagem da
Sanbone Pagode Orquestra a ser analisada. Trata-se do vídeo (V2) que tem o título Sanbone
Pagode Orquestra e o link: <http://www.youtube.com/watch?v=lq9Quj0-Yv0>. Com data de
upload de 2013, postado por Junior Bido, o vídeo tinha 1.417 visualizações (até a data de
nosso acesso), 02 comentários, 11 curtidas em gostei e 0 não gostei.
Tabela 2: Comentários referentes ao vídeo V2 da Sanbone Pagode Orquestra.
Comentários referentes
aos aspectos
musicas/performance
02
Comentários de
Anti-fã
Outros
Comentários
Totais
00
00
02
A descrição das imagens disponibilizada pelo seu autor é o que inicialmente chama atenção:
“Apresentação especial da Sanbone Pagode Orquestra na Amostra Vila Verão do Teatro Vila Velha, dia
06/01/2013, quem compareceu aproveitou a oportunidade de iniciar o ano entendendo que ainda existe uma
forma de ouvir o pagode sem precisar de palavras agressivas e nem estimular a sexualidade. Salve Maestro Hugo
e família Sanbone Pagode Orquestra!”
13
Mais uma vez aparece o apelo ao “bom gosto” reforçando ainda a ausência de
letras que o usuário qualifica como agressivas e estimulantes para a sexualidade. A postagem
apresenta apenas dois comentários, sendo que o primeiro aborda a proposta musical do grupo
como vinculado a música erudita da Bahia e o segundo apenas elogia a Orquestra:
A) Esse é o som erudito da nossa terra. Sou fã do Sanbone e da Rumpilezz. Parabéns Sanbone. (Ricel leite); B)
Muitíssimo bom!!! Fantástico!!!. (Kekedie Lucie).
O canal do autor da postagem (Junior Bido) não possui comentários, mas
observo que ele postou outros vídeos da Sanbone. Assim, o segundo vídeo com sua descrição,
comentários e estatísticas ratificam e corroboram para a análise crítica das temáticas que
discuto na primeira postagem referente à Sanbone Pagode Orquestra. A hibridação da
proposta do grupo mostrou-se ingrediente fundamental para a construção de um sistema
valorativo que agenciou temas como erudição x música popular, o papel da crítica na música
brasileira assim como a reflexão sobre a linha tênue, móvel e tendenciosa que existe entre o
bom e o mau gosto. As reportagens que tivemos acesso não fogem a regra de tocar nesses
temas que também aparecem na fala dos comentadores das postagens. Observo assim que o
pagode ampliou seu território de acesso a partir do trabalho desse grupo, não somente no que
diz respeito ao público, mas também por acessar ambientes que normalmente não fariam parte
de seu “território”. A formalização de alguns elementos musicais do pagode como os grooves,
convenções e instrumentação correspondeu a uma expectativa elitista de uma estruturação da
música baiana a partir da educação formal que assegura para determinados segmentos sociais
uma qualidade sonora.
Pouco se sabe sobre esse produto cultural senão através do discurso dominante,
carregado de juízos de valor veiculado pela mídia ou pelas elites de viés estético
ocidental e pelos formadores de opinião (intelectuais, jornalistas, críticos de música,
pessoas letradas etc.), um discurso que é passado para as classes médias como
legítimo e autorizado. De modo geral, esse é um debate acerca do que é e do que não
é “boa” música e sobre aquilo que se considera a “legítima” música brasileira. Nesse
aspecto, chama a atenção, na mídia, especialmente na mídia impressa, a inexistência
de um olhar investigativo e a permanência de julgamentos de valor sobre
determinando os discursos que constroem as representações dos grupos de pagode
no universo da produção de música popular-comercial na Bahia (NASCIMENTO,
2012, p.29, 2012).
A profanação nesses exemplos ocorre primeiro, por prescindir que a obra seja
transformada num produto comercial para obter uma crítica. Além do show, que acaba por ser
o único e principal produto, a Sanbone Pagode Orquestra não possui, até o momento,
nenhum material comercializável fruto de seu trabalho artístico, prática sistemática da
indústria cultural. O canal YouTube além de servir como um disseminador da obra de modo
acessível e barato funciona também como um registro das atuações do grupo. Cabe ressaltar
que por suas características distintivas do pagode dos outros grupos baianos, já elencadas e
14
discutidas amplamente em nosso texto, a Orquestra conquistou algum espaço na mídia
tradicional regional tanto em veículos impressos/virtuais como em TV aberta e pública (com
show gravado incluído na grade de programação do sinal digital da TVE Bahia).
Em segundo lugar, podemos pensar que a Sanbone Pagode Orquestra engendra
uma profanação no que diz respeito ao próprio gênero musical pagode. Sendo a proposta
musical do grupo híbrida, como dissemos acima, não se encaixando completamente nem no
contexto de performances, letras, indumentárias etc. do pagode baiano nem totalmente no
contexto da música erudita com suas formalidades, ela sugere assim pelo menos mais três
tipos de profanação: 1- Descaracterização do formato hegemônico do pagode baiano; 2Profanação dos espaços destinados a uma música “de bom gosto”; 3-Desestabilização do
sistema valorativo normalmente relacionado ao pagode;
Para afirmar a descaracterização do formato hegemônico do pagode baiano na
proposta da Sanbone acrescento aos ingredientes destoantes já citados (uso de partituras,
escrita musical de suas composições, ausência de letras e dança, indumentárias formais) o
desencadeamento de uma ambiguidade na identidade musical do gênero. O segundo vídeo
aqui estudado, gravação feita por um fã de um show completo, demonstra repertório autoral
(todas as músicas compostas por Hugo), composições com duração entre seis e dez minutos, a
improvisação dos músicos uma prática advinda do jazz, a ênfase no ritmo com presença
percussiva marcante, utilização de sintetizadores (como na maior parte das bandas de
pagode), bem como dos instrumentos harmônicos como teclado, baixo e guitarra e também
instrumentos de sopro como saxofones, trombones e trompetes.
Ressalto esses ingredientes para afirmar que a Sanbone, assim como os demais
grupos, preocupa-se com a recepção, buscando composições com durações mais curtas que as
sinfonias habituais, e afirmando slogans como “novo som com swing da velha guarda”
(informação obtida na página oficial do grupo no facebook), por exemplo, mas ao mesmo
tempo destaca as características que a distinguem das outras propostas musicais de pagode, no
site oficial da Orquestra encontramos a exposição do método de composição, que alegam ser
clássico, uma vez que Hugo escreve toda a música antes de ouvi-la e é destacada também a
elegância da indumentária de seus músicos.
Assim, observamos a profanação da Sanbone ao fomentar uma ambiguidade na
identidade musical do pagode apresentando elementos que ora busca aproximação com o
contexto da música regional de “raíz”, como falam no trecho abaixo, com a manutenção das
combinações rítmicas basilares dessa musicalidade, usando inclusive efeitos sonoros como o
dos sintetizadores, fundamentais para os resultados da sonoridade do pagode baiano atual e
ora recorrem à música clássica para respaldar seu trabalho, podemos exemplificar isso com a
exposição no texto inicial do site do grupo, que tratam do uso da lógica de divisão da música
clássica e a ausência de letras eróticas.
Se a preocupação com a recepção é moderna, o método de composição é clássico:
assim como os grandes maestros da história (como Mozart e Bethoven, por
exemplo), Hugo não ouve a composição antes de completá-la. Ele escreve no papel
toda a música, que chega a ter 20 páginas, para somente depois ouvir o resultado
final. "Tenho músicas que nunca ouvi", revela. Todas as músicas têm nome de
15
sinfonia (como por exemplo, a Sinfonia Primeira de Pagode, com a qual o grupo
venceu o VII Festival de Música da Educadora FM de Salvador e o I Festival
Nacional das Rádios Públicas) e – pela própria natureza – passam longe da
erotização e depreciação da mulher. A Sanbone foi criada em dezembro de 2009,
pelo músicos Hugo Sanbone . "A ideia veio do gosto pelo pagode e pelo contato
com a música sinfônica. Não queríamos fugir da nossa raiz, então, pensamos em
recontextualizar o pagode na música erudita", conta Gilberto (trompetista). Daí a
presença de percussão, guitarra, baixo e teclado (com sintetizadores, como se usa no
pagode) numa orquestra. Os músicos da Sanbone – que tem naipes de trompete,
trombone, saxofone, percussão e harmonia – já passaram por bandas de grandes
nomes da música baiana, como Ivete Sangalo, Harmonia do Samba, Netinho,
Pagodart, Jau, Timbalada, Neojibá, Cheiro de Amor, Oz Bambaz, Jammil, Araketu,
Via Circular, Patrulha do Samba, Dignow, Saiddy Bamba, Nossa Juventude, Beto
Jamaica, e outros (acesso em junho de 2014, disponível em
http://www.sanbone.com.br/index.html).
Percebo então uma relação múltipla e flexível entre identificações do grupo como
“pagode verdadeiro”, portanto com o respaldo da tradição ou da “velha guarda” e ao mesmo
tempo com o pagode contemporâneo, a citação das bandas populares pelas quais os músicos
já atuaram é recorrente em todos os textos que encontramos disponíveis na internet. Mas, a
relação mostra-se flexível também por dialogar com a música erudita, a nomeação de suas
composições a partir de sinfonias pode servir como um dos itens diferenciais quanto a isso.
Incluímos a relativização da noção de identidade do pagode baiano como uma ação
profanadora pelo fato de entendermos que as estratégias discursivas dos fãs são também fruto
de uma reverberação das características e slogans engendrados pela proposta estética de cada
grupo musical. Podemos pensar numa profanação reversa por fim, onde o próprio pagode
baiano tem novos elementos sendo negociados e reelaborados do seu formato tradicional.
Em segundo lugar ressalto a profanação dos espaços artísticos. O local onde a
música da Sanbone é executada normalmente é em teatros. Em Salvador, fiz um mapeamento
a partir de reportagens e notícias da Sanbone (disponíveis na internet) e verifiquei que suas
atuações, além das apresentações em espaços abertos e bares da cidade de Salvador, até o
momento ocorreram nos seguintes teatros: 1) Teatro Castro Alves (sala principal e Sala do
Coro); 2) Teatro Vila Velha; 3) Teatro Solar Boa Vista. Além da participação em eventos
como o Encounters, evento do Brasil Music Exchange que tem como objetivo promover a
carreira de músicos brasileiros no exterior. Apenas dezessete artistas e bandas participaram:
Baiana System, Brasil Brasil, Carla Visi, Dão, Percussivo Mundo Novo, Gepetto, Luiz Brasil,
Luís Naturesa, Naurea, O Quadro, Os Nélsons, Braunatiom, Samba Tchula, Sanbone Pagode
Orquestra, Sertanília, Soraia Drummond e Tiganá.
Destaco os espaços de teatro por serem usualmente entendidos como lugar de arte,
no sentido de uma produção que para ser apreciada exige uma educação, aquisição de capital
simbólico (BOURDIEU, 2009). Segundo pesquisas anteriores sobre o pagode em Salvador,
constatei que grande parte desses eventos ocorre em casas de show, principalmente em bairros
da periferia da cidade, diferentemente da Sanbone Pagode Orquestra:
16
Em todo caso, a despeito de seu maior ou menor comprometimento com as tradições
ou do grau de seu valor artístico, o pagode baiano é uma música resultado de ações
humanas intencionais, observáveis, performadas, passíveis de inscrição textual e
musicológica e, muito importante, existe como experiência musical cujos
sentidos são particulares e compartilhados entre sujeitos determinados... O
pagode baiano, portanto, como o conheci em vários ensaios de bairros periféricos da
cidade de Salvador, é um território expressivo, configura um sistema musical e
institui um “soundgroup”, cuja experiência da música associada à dança requisita a
performance do corpo negro, da raça e da sexualidade negras mergulhados na
incerta atmosfera de estereótipos coloniais. (ALVES, 2003, p.147)
Essas características que destaco acima desencadeiam a desestabilização do
sistema valorativo normalmente relacionado ao pagode, pois a experiência que a obra provoca
no público está de acordo com a compreensão e identificação das estratégias estéticas de cada
grupo. E cada sonoridade, mesmo pertencente a um mesmo gênero musical, provoca
diferentes (res)significações. Demonstram por fim que a escuta dos fãs está atrelada ao
conhecimento sobre o gênero musical, a construção de preferências estéticas e juízos de valor
em relação a elas.
Considerações finais
Tanto a construção de cânones da música como seus efeitos estéticos estão
perpassados por símbolos partilhados socialmente. A dinâmica dos gêneros musicais na
cultura de massa envolve a construção de fronteiras ora rígidas e ora flexíveis que são
reforçadas ou expandidas segundo critérios simbólicos que envolvem tanto as expectativas em
relação ao gênero, engendradas a partir da construção de discursos institucionalizados pela
crítica especializada, pelos músicos, quanto a segmentação estabelecida pela indústria
fonográfica ao longo da história da música popular massiva e a relação de reconhecimento e
identificação dos fãs/consumidores. Essas negociações sócio - musicais como pudemos
observar na produção da Sanbone Pagode Orquestra nos remete a reflexão quanto as
peculiaridades do próprio estilo musical onde o grupo de insere, visivelmente marcado desde
sua origem por “processos e diálogos com outras expressões musicais geradores de produtos
híbridos” (NASCIMENTO, 2012, p.35).
Novas formas de produção cultural negra mesclam identidades baseadas na
etnicidade com identidades baseadas na diferença entre gerações, e como, em
muitas oportunidades, elas se relacionam intimamente com outro fator
fundamental: os estilos e a economia da música popular (SANSONE, 2003,
p.167).
O autor ressalta além do diálogo com outras culturas e estilos musicais a demanda
mercadológica que no contexto da indústria cultural, impõe uma constante adaptação do
produto a expectativas de consumo. A proposta da Sanbone pagode Orquestra, dentro do
17
contexto do pagode produzido na Bahia, pode assim ser interpretada pelo seu aspecto de
desejo de inovação, com aspectos distintivos tanto no seu aspecto artístico como também no
comercial. É possível interpretar a partir das falas acima que o pagode enquanto gênero
musical funciona por si só como catalizador/construtor de juízos valorativos. Isso ocorre a
partir do estabelecimento de identificação entre o público e a obra num processo que inclui as
preferências estéticas individuais (TROTA, 2007, p.115).
O canal YouTube possibilita também que as opções estéticas individuais possam
ser compartilhadas compondo um entrelaçamento das narrativas dos fãs que resulta numa
curadoria feita a partir de identificações e valores construídos a partir da experiência que a
música proporcionou. A música popular mais uma vez aparece como uma fonte de
experiências identitárias. Percebemos assim a potencialização de alternativas de disseminação
de falas ordinárias sobre música por rotas que extrapolam as regras mercadológicas. Além
disso, a representatividade do pagode é que fomenta a transgressão das clássicas fronteiras
entre a arte e o público – artistas e não artistas, até então delimitadas apenas pelo próprio
mercado. As tecnologias da comunicação assim como as palavras definem também o que
dizer e como dizer constituindo seus próprios códigos e conveniências potencializando a
prática amadora a tal ponto que a performatividade dos fãs provoca outros modos de
agenciamento discursivos que tencionam o sistema de valoração da crítica musical. As falas
dos fãs nos comentários acima explicitados envolvem o modo como cada um foi afetado pela
musicalidade. A construção de produtos culturais a partir dessa perspectiva, poderíamos dizer
que está permeada pelos aspectos econômicos, por uma prática de afirmação de identidades e
autenticidades num processo onde os produtos tornam-se extensão dos indivíduos que os
usam. Os produtos estariam dessa forma sendo indiciadores simbólicos de categorias como
status social, valoração, rotulação entre outras. Os elementos mercadológicos e musicais se
retroalimentam e configuram um objeto artístico para um público específico que detém o
poder de reconhecimento de suas referências e preferências.
A música afirmando-se como um campo discursivo reforça, a partir dos
comentários acima, sua não intencionalidade educadora ou de preocupação com a língua
portuguesa formal, característica própria de espaços de interação na internet, mas ao mesmo
tempo com características que nos levam a pensar em disputas discursivas. Com relações de
poder distribuídas de modo não convencional não há eliminação de uma busca por afirmação
de uma verdade (FOUCAULT, 2011). Retomando o pensamento de Jacques Ranciere (2005)
acrescento ainda que quando fãs, consumidores de música sem nenhum compromisso
institucionalizado tem a possibilidade de fazer circular suas opiniões e produções a partir de
espaços virtuais como é o caso do YouTube, os processos que envolvem criação e fruição de
arte bem como construção de conhecimento sobre ela são alterados. As transformações
estéticas repercutem assim em possíveis novas formas de subjetividades políticas.
18
Referências
ALVES, Arivaldo de Lima. A experiência do samba na Bahia: Práticas corporais, raça e
masculinidade. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Brasília: Universidade de Brasília,
UNB, Brasil, 2003.
AGANBEM, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo? e outros
ensaios; tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARDOSO FILHO, Jorge. Práticas de escuta do rock: experiência estética, mediações e
materialidades da Comunicação. Tese (Doutorado em Comunicação Social). FAFICH. 2010.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970; tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio.
Campinas: Loyola, 2011.
NASCIMENTO, Clebemilton. Pagodes baianos: entrelaçando sons, corpos e letras.
(Dissertação) Salvador: EDUFBA. 2012.
RANCIERE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. Trad. Mônica Costa Netto.
São Paulo: Editora 34, EXO experimental.org, 2005.
SÁ, Simone Pereira de. Quem media a cultura do shuffle? Cibercultura, mídias e cenas
musicais.. Disponível:
<http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n52/21Pereira.pdf> Acesso em: <junho, 2014>
TROTTA, Felipe. Juízos de valor e o valor dos juízos: estratégias de valoração na prática do
samba. In: Revista Galáxia, São Paulo, n. 13, p. 115-127, jun. 2007.
_______, Felipe. Critérios de qualidade na música popular: o caso do samba brasileiro. In:
Dez anos a mil: Mídia e música popular massiva em tempos de internet. Porto Alegre:
Simplíssimo. 2011. Disponível em:< http://www.dezanosamil.com.br/LivroCompleto.pdf>.
SANSONE, Livio. O Funk “Glocal” na Bahia e no Rio de Janeiro. Interpretações Locais da
Globalização Negra. In: Negritude sem etnicidade. Salvador. 2003.
Download