Do fundo do oceano Amândio Sobral A loja era mesmo um

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Do fundo do oceano1
Amândio Sobral
A loja era mesmo um autêntico museu de antiguidades indianas.
Ídolos de fisionomias selvagens erguiam como em leque centenas de mãos em
torno do corpo. Kali, a terrível deusa da Morte e da destruição, toda em granito negro,
polido, num consolo ao fundo da sala parecia fitar-nos, lábios franzidos num ricto feroz,
sedenta de sangue das vítimas cujas cabeças tinham rolado sabreadas a seus pés, nos
longínquos tempos de outrora.
O deus Ganesa, corpo de atleta equilibrando a cabeçorra de elefante, esculpido em
mármore róseo, lembrava a força gigantesca dos zoantropos portentosos que encheram
com suas façanhas épicas e hecatombes sem fim os fastos do Ramaiana e do Maabarata
divinos, epopéias sublimes de deuses rudes e primevos.
Ídolos de todos os tamanhos e formas, talhados em rochas de cores variadas,
desde o basalto pardo do Ceilão, do mármore canescente do Nerbuda, da serpentina
azulada do Dekan, até ao jade precioso dos aluviões do Ganges ou do Kaveri.
Compreende-se que estávamos ali apenas para esclarecer fatos e não para agir
com precipitação ou prendê-lo...
Diante da nossa asseveração reiterada de que não lhe queríamos fazer mal, mas
apenas saber a verdade dos fatos, o velhote, já mais confiante, devolveu-nos os
documentos que comprovavam a nossa qualidade de agentes policiais do governo,
empurrou para o lado os alfarrábios escritos em Sânscrito que consultava à nossa
chegada, fitou-nos longamente como procurando ler as intenções através dos nossos
rostos e, por fim, esfregando as mãos sujas de poeira, convidou-nos a sentar.
O nosso entrevistado era mesmo um legítimo fanático pela velha civilização
bramânica.
Mas seria verdade que o amor à arqueologia peninsular fosse capaz de levar
aquele homem quase valetudinário até aos crimes para se apossar de objetos e estátuas
da Índia antiga?
Que tinha ele a responder diante das lendas que corriam a costa sobre o
desaparecimento misterioso de seus criados de confiança, ou desastres que sucediam a
todo aquele que o ajudava na descoberta de túmulos, templos ou preciosidades
enterradas?
Qual fora o fim do velho Kaurá que um dia se fizera ao mar com ele e nunca mais
voltara?
-Já que não se trata de arqueólogos nem indianistas e como prometeram guardar
absoluto segredo, eu conto, garantindo ser inteira verdade o que lhes vou narrar, porque,
afinal, sempre é melhor saberem a realidade do que acreditar nessas lendas que os
pescadores de pérolas e esponjas fazem correr a meu respeito:
...
"O dia estava bem claro. Nosso barco cingalês, muito esguio, balançava agora
sobre as ondas de retorno, que se entrechocavam naquele corredor de penhascos
altíssimos, polidos pelo ataque milenário do oceano e donde os alcatrazes ganharam o
vôo numa algazarra estridente, muito zangados, entre as nuvens de pombos marinhos
que escureceram o céu, tatalando, ruidosos, as asas brancas.
1
SOBRAL, Amândio. Do fundo do oceano. In:___. Contos Exóticos. Rio de Janeiro: Editora
Moderna, 1934. (P. 223-230)
"Assustados, rugindo roucos, de tromba agressiva no ar, pesados otarios de peliças
mosqueadas de pardo e negro atiravam-se num fragor às ondas espumosas, perturbados
na modorra de ceva, mexendo os corpos disformes que pareciam penedos aflorando ao
cimo das águas.
"Nos altos e largos pórticos, nas colossais bocas das grutas escuras, revoavam os
corvos do oceano e os bandos pipilantes das gaivotas aflitas, assustadas dessa invasão
insólita do homem em seus exclusivos domínios.
"Albatrozes solenes, perscrutadores, montavam guarda nos degraus dos escadões
de basalto, em que o mar batia sonoro, ecoando como um trovão longínquo nas grutas!
já meio submersas pela maré alta.
"Ao largo, aquém da linha difusa do horizonte, as procelárias grasnadoras, de bico
aberto e asas espalmadas, corriam velozes sobre as ondas. As colunas monstruosas,
alinhadas em estreitos corredores, lembravam um cemitério de titãs afogados nessas
águas que mugiam tristemente, desertas sob o céu embaciado e flocoso.
"Com voz medrosa o velho pescador de esponjas gaguejou no seu cingalês
tartamudo; - "Foi... aqui... a cidade... maldita...
"-Outrora estes rochedos eram ilhas habitadas e férteis. Seus reis poderosos
governavam a grande Ceilão cobrando tributos pesados, investindo e depondo rajás,
Hoje possuem-nos os gênios do mar e os peixes desovam nas cúpulas dos templos;
entocam-se as arraias e tubarões nas salas de ônix e de granito rosa dos palácios
imensos, entulhados agora de florestas de algas e musgos do oceano, porque a sua era
passou para sempre; os elefantes marinhos nadam sobre os pátios em que se alinhavam
os grandes elefantes de terra de que nem os ossos pétreos restam mais. Assim é a
grandeza dos reinos e a segurança das terras, ó Saib! Menos que a metade de um zero
diante de Brama sempre eterno, criador, inefável e infinito!...
"Uma ânsia alegre apoderou-se do meu coração apaixonado pela arqueologia.
Existiriam mesmo lá no fundo essas ruínas a que tanto se referem os velhíssimos livros
sagrados da religião indiana? Não eram apenas lendas douradas, embaladoras e falsas,
as asseverações dos antigos brâmanes?
"Deitado de bruços na proa da embarcação o pescador murmurava uma prece
fervorosa aos "deuses malévolos que vogam nos abismos", solicitando medrosa, “com a
alma de rastos”, permissão para a sua descida a essas ruínas ocultas sob as camadas de
água profunda e traidora:
- ..."estrela viva de oito raios roxos... Também a ti, ó não menos poderoso tigre
dos mares, ó esqualo de mil e ·mil presas afiadas... O teu servo e adorador, Kaurá, o
mais velho dos pescadores de esponjas...
"Eu, esperançoso, alvoroçado, impacientava-me não só diante de tanta superstição
tola, como pela melancolia enervante da longa melopéia do fanático. Oh! Que
curiosidade eu tinha dos restos dessa cidade que talvez só existia nos olhos alucinados
dos velhos pescadores cingaleses.
- ..."algas verdes como as plantas das florestas, vermelhas qual fogo sagrado de
Agni, azuis como as estrelas de Brama, verdes como os olhos maravilhosos de Sitâ, Oh,
cabelos das Gênias dos mares!... O teu servo eterno Kaurá, o pescador de esponjas...
"Acabada por fim a oração o velhote apressou-se a dizer-me, fustigado pelo terror
desses lugares malditos: "Saib, entremos pelo corredor da esquerda, que vai dar direito
ao semi-círculo em que jaz no pélago a portentosa Lankâ, pátria dos valentes
"rakchasa", a paradisíaca cidade de esmeraldas e coral citada nos Vedas santos e
cânticos do Ramaiana como o esplendor das terras, pouso predileto dos gênios, dos titãs
e dos deuses.
"Atingido o local em que deviam existir os restos da morada dos monstruosos
rivais do deus Râma, o Invencíve1, o indígena mergulhou nas ondas, trazendo dentro
em pouco um pedaço de lápide de jaspe finamente lavrada, que me pareceu assim, à
primeira vista, um ex-voto tâmul.
"Do alto do espaço luzente como pérola vinha a grande grita das fragatas fugindo
em escalões para o norte, em direção à terra firme quase invisível, voando para a verde
Ceilão, cujos picos bem longínquos pareciam apenas cúmulos pardacentos sobre nuvens
carregadas.
"Um fretonte, no seu vermelho soberbo de cardial, descreveu no ar largos círculos
concêntricos, até vir empoleirar-se, majestoso, semelhando uma língua rubra de chama,
no rebordo de um alto rochedo.
"O hindu, já sem cor, empalideceu ainda mais diante do agouro da "ave de
sangue" e choramingou que, se as ruínas estavam livres das feras do mar, o que nos
permitia a descida, não convinha, entretanto, demorar muito naquele lugar mal
assombrado, pois o aviso dos gênios já baixara dos céus.
"Despi-me prontamente e, sem me preocupar com esses maus prognósticos, atireime ao mar com ímpeto, mas – Oh! Falta de sorte – pouco depois subia atordoado por
uma pancada forte contra os rochedos, impossibilitado, assim, de continuar a
ambicionada verificação do fundo, que lobriguei juncado de grandes colunas e enormes
blocos de cantaria.
"As ruínas existiam!
"Eram uma realidade!...
"O vosso ferimento quer dizer que os "rakchasa" se opõem a que um branco,
incrédulo, pagão, desvende os seus segredos, afirmava muito convicto o velho
esque1ético, já em crise de terror pânico, empunhando os remos e disposto a fugir do
meio daquelas rochas negras, eternas, que apontavam o céu, e em cujos cimos os
albatrozes soltavam longos gritos lancinantes de moribundo.
- "Não temas os maus deuses, Kaurá, pois eu tenho um talismã infalível contra
eles. Desce pela última vez, até o fundo, ordenei eu ao pescador.
"Nos olhos do hindu brilhou essa dúvida ansiosa do selvagem que se sente inerme
diante do imenso poder dos gênios, mas que julga também o homem branco um
semideus possuidor de recursos maravilhosos, inacreditáveis, e por isso deposita nele
uma confiança absoluta, principalmente nas situações difíceis e aflitivas.
"Um outro faetonte veio pousar airoso ao lado do primeiro, sem um grito, um
rumor sequer, e ficou a olhar-me numa expressão quase humana de reprovação, talvez
por violar um cemitério de dez mil anos.
"Então, com esse pavor sereno das fatalidades inevitáveis, contra as quais nada
adianta lutar, o velho, todo trêmulo, murmurou numa resignação de fazer pena antes de
atirar-se às águas:
- "Kaurá é teu servo, ó Saib! Kaurá é velho e fraco, mas cai, ó Saib! Kaurá sente
medo!" e mergulhou, sumindo-se lá em baixo.
"De súbito, não sei explicar bem o que se passou. Os faetontes visivelmente
perturbados ganharam o vôo, grasnando aflitos. O bote jogou com fúria como se todo o
oceano raivoso e revolto se remexesse no seu profundo leito. Caído de joelhos no bojo
da embarcação, de olhos esbugalhados, abraçado ao pequeno mastro, num
desvairamento, como um acesso de loucura, preso de um pavor horrendo, eu vi as águas
espumejarem
cobrindo-se de lodo roxo e negro do abismo, e surgir medonha uma cabeçorra
pavorosa. Os olhos pareciam faróis verdes, desprendendo um estranho luar de fósforo.
Abaixo deles, de dois buracos negros enormes, escorria um muco amarelado – Oh, que
visão horrível paralisante! ... Um focinhão chato, de cobra, avançou entreaberto,
roncando surdo como uma caldeira de navio. Dele pendiam em profusão barbelas
carnudas, cinéreas, e centenas de dentões recurvos como garras de tigre armavam aquela
face hiante, em cujo meio uma língua bífida e asquerosa enroscava-se ou serpeava
chicoteando o espaço. No ar havia um bafo mortífero de peixe putrefato. Era o monstro
mais irreal, fantástico e quimérico que pode imaginar um cérebro doido, ou gerar um
pesadelo de meningite, muito mais estupidificante que as bestas feras do Apocalipse.
"Ele mexeu-se e o barco jogou como num temporal, fazendo-me cair e perder a
consciência.
"Quatro dias após o cargueiro japonês de carreira entre Yokoama, Sidney e Cape
Town, da "Marú Casha", encontrou-me estonteado, vogando em pleno âmago do
Oceano Ìndigo, a muitas e muitas léguas para o sul de Ceilão.
"Como pude escapar às tempestades furiosas, que durante aqueles dias
encapelaram os mares, afundando dezenas de navios, não o sei. Creio que Deus teve
pena de mim, que afinal sou um pobre velho maníaco, pacífico rebuscador de
antiguidades, bom cristão que nunca fez mal a ninguém, nem mesmo a esses sujos
pescadores chingalêses, cujo único ato louvável é, talvez, pescarem esponjas e pérolas
lindas, lindas de encantar a vista, de apaixonar os olhos.
"Dessa inacreditável aventura terei toda a minha vida um remorso cruciante: o
velho Kaurú nunca mais voltou das ruínas malditas, que talvez sejam mesmo dessa
Lankâ maravilhosa, tão citada nos sonoros versos sagrados do Ramaiana milenário
que canta as façanhas dos terríveis animais-deuses do panteão hindu.
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