produção de textos:autoria na escola

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PRODUÇÃO DE TEXTOS: AUTORIA NA ESCOLA
Raquel S. Clemente - FURB
RESUMO - Linguagem, educação e conhecimento caminham juntos na prática pedagógica, que se
constrói sobre textos diversos, orais e escritos.
A proposta da educação, em nível nacional e estadual, redimensiona o estudo da linguagem, apontando
para reflexões sobre seu uso como prática social. A textualização é destacada, ao considerar o aluno como
produtor de textos, como um sujeito que se faz conhecer pelos textos que produz e que o constituem,
podendo inscrever-se participante do seu grupo social.
Na escola o aluno é chamado (convidado ou obrigado) a escrever textos. Como parte desse processo,
como ele se vê? Como procede? O que pensa sobre o que escreve? Percebe-se autor de seus textos? Entre
outros aspectos, é o que a comunicação aqui apresentada procurou responder.
Partindo de concepções teóricas de alguns autores que pesquisam e se movimentam sobre questões que
envolvem linguagem, educação, conhecimento, texto e autoria, este trabalho direciona seu foco ao aluno
para questionar como o aluno se vê no processo de produção de textos na escola e qual o sentido de
autoria para esse aluno.
A pesquisa aponta para uma certa fragilidade nos espaços privilegiados de ser autor, em relação à
produção de textos na escola.
INTRODUÇÃO
A produção de textos, orais e escritos, tem valor decisivo na construção do
espaço da subjetividade, do pensamento abstrato, crítico e reflexivo. Participa
diretamente do processo de construção do conhecimento.
Ao escrever estabelece-se uma relação interior que possibilita o encontro da
reflexão de outro, num movimento de contraposição de argumentos e significados
próprios. É no texto escrito que um conhecimento construído se consolida mais
densamente e adquire um caráter pessoal.
A proposta da educação, em nível nacional e estadual, conforme documentos
“oficiais”, Parâmetros Curriculares Nacionais e Proposta Curricular do Estado de Santa
Catarina, redimensiona o estudo da linguagem, apontando para reflexões sobre seu uso
como prática social. A textualização é por ambos destacada, ao considerar o aluno como
produtor de textos, como um sujeito que se faz conhecer pelos textos que produz e que o
constituem como sujeito. A Proposta Curricular do Estado de Santa Catarina, ao referirse ao trabalho lingüístico, destaca o termo autoria, declarando ser papel da escola o
exercício de práticas pedagógicas que possibilitem o desenvolvimento de alunosautores. A intenção é possibilitar ao aluno a participação em práticas de envolvimento
com textos próprios e de outros, nos exercícios de produção de sentidos e construção e
consolidação do conhecimento nas diversas áreas do saber.
Processos de composição de textos, orais e escritos, implicam escolhas e
estratégias por parte dos alunos e um amadurecimento que se alcança ao longo do tempo
e da prática. Na escola o aluno é chamado (convidado ou obrigado) a escrever textos.
Como parte desse processo, como ele se vê? Como procede? O que ele pensa sobre o
que escreve? Percebe-se autor de seus textos?
Esta comunicação, que escolhe para reflexão um tema que tem sido alvo de
muitas discussões e questionamentos – texto e autoria em sala de aula, direciona seu
foco ao aluno para questionar como o aluno se vê no processo de ser chamado a
produzir textos e qual o sentido de autoria para esses alunos.
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O texto está dividido em duas partes. A primeira traz para interlocução
categorias relacionadas ao tema, a partir de concepções teóricas de alguns autores que
pesquisam e se movimentam sobre questões que envolvem Linguagem, Educação,
Conhecimento, Texto e Autoria. A segunda parte apresenta e discute dados sobre o
tema, coletados de uma turma de 5ª série do ensino fundamental estadual, no município
de Blumenau, em Santa Catarina.
Assim, é objetivo deste trabalho trazer alguns questionamentos e continuar
reflexões para buscar compreender que atribuições de sentido o aluno relaciona aos seus
textos, como o aluno percebe sua relação com o texto e como esse aluno assume-se
sujeito e autor de seus textos, ou não.
1. ENFRENTANDO POLIFONIAS E POLISSEMIAS
1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Linguagem, educação e conhecimento caminham juntos na prática pedagógica,
que se constrói sobre textos diversos, orais e escritos. Uma prática que se organiza num
lugar social, em função de relações entre sujeitos para com o objeto conhecimento e que
implica ler, resumir, conhecer e entender, organizar e expor idéias, escrever, refletir e
argumentar sobre textos próprios e de outros. Prática que se desenvolve numa relação de
interdependência, que se entende como fundamental no ambiente da educação escolar.
Acredita-se ser a partir desta relação, desenvolvida ao longo da escolaridade, que o
aluno poderá amadurecer expressões textuais de autoria, em que possa assumir-se
responsável pelo seu texto. Que sempre que convidado à textualização, o aluno possa
expressar pela escritura o que deseja dizer, organizando e consolidando com seus traços
de subjetividade o que se movimenta no pensamento, reelaborando suas idéias, seus
conhecimentos e suas leituras do mundo construídas nos processos da intertextualidade
e da interdiscursividade.
1.2. LINGUAGEM
Nos últimos anos da década de 20, os russos Bakhtin e Vygotsky produziram
teorias independentes, ainda que complementares, que deslocaram conceitos e
posicionamentos relacionados à linguagem e ao homem. Partilhando de uma base
comum de pensamento vivenciada na situação histórica russa pós-revolucionária,
voltaram-se para a interação do homem com a realidade, destacando o papel do social,
da subjetividade e da singularidade. São reflexões e investigações de cunho científico
que possibilitaram outros olhares e novas perspectivas de estudos e avanços teóricos.
Assume-se com Bakhtin (1997) a concepção sócio-interacional e dialógica da
linguagem. O autor apresenta a noção de sujeito social, em que cada sujeito é
constituído por diferentes vozes sociais. A linguagem, fundamental para a comunicação
e transmissão da cultura, realiza-se na singularidade do momento da enunciação e passa
a ser considerada em suas relações de interação, interdiscursividade e intertextualidade.
Só nos diálogos com os outros e com outros textos alcança-se o sentido do texto e a
significação das palavras, que não se realizam isoladamente. À página 113, o autor
apresenta as duas faces da palavra, que significa ao proceder de alguém, dirigindo-se
para alguém, como produto da interação e expressão de um em relação ao outro.
Bakhtin (1997, p. 132) destaca atitudes ativas nas interlocuções, a partir das
quais quem fala externaliza o seu “eu" historicamente constituído num discurso, assim
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como quem ouve assume uma atitude “responsiva ativa” para com o discurso que ouve.
A alteridade torna-se imprescindível para a definição do ser humano, que se define
dialogicamente em suas relações com o outro, nunca fora de um contexto histórico e
social mais amplo. Pela linguagem constituem-se subjetividade e alteridade na relação
entre sujeitos. Os sujeitos atuam sobre a linguagem, modificando-a em construções de
sentido.
Ao considerar que toda enunciação é socialmente dirigida (p.113-115), o autor
assume que o pensamento objetiva-se na expressão orientada sempre pelo social. Só
quando o discurso interior prolonga-se numa expressão material estruturada, a
consciência constitui um fato objetivo - formaliza a enunciação – e possibilita o
movimento contínuo da interação. Afirma ainda, à página 98, que mesmo na forma
imobilizada da escrita, toda enunciação responde a alguma coisa e é construída como
tal.
Em qualquer texto, oral ou escrito, organiza-se o pensamento. No texto escrito
há a possibilidade do retorno, da revisão, do aprofundamento e da reflexão sobre e a
partir do pensamento. Tendo como matéria-prima o conhecimento, a educação escolar
desenvolve-se pela linguagem e através de textos. A assunção das concepções
bakhtinianas implica diretamente posturas e atitudes a serem vivenciadas em sala de
aula pelo educador. Ao considerar que sujeito e linguagem têm sua relação mediada
pela relação com um outro sujeito/interlocutor, ainda que possa não estar presente
fisicamente, mas de alguma forma representado, torna-se fundamental ouvir o outro,
despertar e incentivar a polifonia proveniente de vários textos, expressões e
argumentações e a polissemia na construção de sentidos e interpretações, aceitar
conflitos de vozes. Respeitar e considerar o aluno como alguém que chega constituído
de determinada história e marcas culturais; alunos que, por serem individuais no todo
social, apresentam ritmos e capacidades variadas. Assumir-se como educador mediador
e não impositivo; incentivador e sem autoritarismo. Um educador disposto a coordenar
no grupo o equilíbrio e o interesse em tarefas variadas que permitam e possibilitem o
crescimento pessoal.
A concepção sócio-interacional e dialógica da linguagem completa-se no
entendimento de linguagem como prática social, vivenciada em contextos particulares micro, ao considerar-se o núcleo familiar, amizades e convivência e macro, referindo-se
ao ambiente da sala de aula, da escola e de outras instâncias sociais - porém
significativos e constitutivos no uso e desenvolvimento da linguagem e de seus sujeitos.
Sujeitos que constituem uma sociedade estruturada fundamentalmente por meio de
práticas escritas.
Teóricos da área da linguagem têm aprofundado discussões sobre o termo
letramento, aqui sumarizado como conjunto de práticas sociais permeadas pela
linguagem escrita no cotidiano das sociedades urbanizadas, sob as mais diversas formas
de usos e/ou exposições, em práticas orais e escritas.
Sujeitos com acesso a práticas de letramento percebem e convivem com variadas
funções da escrita, sobre textos lidos e escritos, em circunstâncias de entretenimento,
aprendizagem, conhecimento e participação. Esses sujeitos constróem para si o
significado que a escrita tem para o grupo em que convivem. É uma iniciação que para
alguns se dá a partir dos primeiros anos de vida, em famílias que valorizam eventos de
letramento, enquanto outros tantos dependem do acesso formal à escola.
A linguagem escrita, sistema simbólico culturalmente convencionado, circunda
os sujeitos nas atuais sociedades urbanizadas e tecnológicas, apresentando-se sob
formas variadas, desde as mais rotineiras do cotidiano (em compras diversas, nas
propagandas, no trânsito, em cálculos e informações...) até as formas mais complexas de
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relações de cunho público, institucional e tecnológico, que implicam a possibilidade de
acesso ao poder. O pensamento valorizado socialmente é aquele diretamente
relacionado ao pensamento transformado pela escrita (Kleiman, 2001), assim como
assumem uma importância privilegiada os saberes e conhecimentos também baseados
nas escrituras legitimadas pela sociedade (complementos próprios da autora desta
comunicação).
A educação escolar, trabalhando com informações, saberes e construção de
conhecimentos, parte da linguagem e encontra-se sempre com a linguagem, nos
processos de textualização e objetivação de experiências.
1.3. EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO
O momento da ação educativa hoje é parte de um mundo globalizado e
informacional, que acompanhou inúmeros avanços nas ciências e tecnologia e tantos
retrocessos quanto às relações pessoais e desigualdades sociais. Esta sociedade
condiciona ao chamamento à inserção social efetiva, aqueles que dominam práticas de
leitura e escrita, gerando desigualdades e exclusões, alvo de uma situação complexa e
bastante questionável que não será aprofundada aqui, em razão das delimitações
definidas para esta comunicação.
Desorientações, incertezas e interrogações refletem-se no pensamento e
conseqüentemente no processo de ensino e aprendizagem. A literatura sobre as novas
tendências na educação busca um aprendizado multidimensional e mostra uma grande
preocupação com a formação do ser humano. Arroyo (2002) destaca o papel da escola
auxiliando na resignificação dos saberes.
Na área educacional, embora muito se tenha avançado no campo das idéias, a
prática do sistema de ensino ainda privilegia intensamente o conteúdo, sem considerar o
sujeito como parte da relação de aprendizagem. A diversidade, por vezes conhecida, não
é reconhecida como enriquecimento educativo e social. A passividade mostra-se mais
cômoda que um ambiente ativo, questionador e curioso e muitas verdades ainda são
tidas
como absolutas, mesmo diante dos discursos da complexidade da vida e dos saberes.
O termo “conhecimento” tem estado muito presente em discussões e estudos,
por vezes com conceitos bem variados. Assim, ao falar em conhecimento relacionado à
escola, ao espaço da sala de aula, faz-se necessária a distinção entre o conhecimento
acadêmico, referente a informações a serem adquiridas acerca do que foi produzido
historicamente pela humanidade e o conhecimento num sentido mais amplo,
relacionado à vida e ao mundo, relacionado a percepções, interrogações, experiências e
construção pessoal sobre qualquer pensamento. Este último, mais próximo do que
alguns autores como Morin e Charlot nomeiam “saberes”. Ambas as colocações
constituem-se partes intrínsecas do processo educacional do ser humano que requer,
urgentemente, uma educação intercultural, que associe conhecimentos e valores.
Morin (2000) define os saberes necessários à educação do futuro voltando-se
para a condição humana, relacionando Universo, Vida, Ser humano e Conhecimento.
Afirma que o conhecimento não é uma reflexão única e objetiva do mundo exterior, mas
sim fruto de uma reconstrução por meio da linguagem e do pensamento. Por envolver
interpretação, o conhecimento pode estar sujeito a erros e ilusões a serem identificados e
enfrentados pela educação.
Modificam-se as relações pessoais e sociais também diante da construção do
conhecimento, a partir de uma educação que resgate a reflexividade, a expressão pessoal
e a contextualização, envolvendo linguagem, disciplinas e realidade além da escola.
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O ser humano nasce aprendendo e aprende por toda a vida: define-se ao longo de
uma história (Charlot, 2000). Para Charlot, nascer, aprender, é entrar em um conjunto de
relações e processos que constituem um sistema de sentido, onde se diz quem eu sou,
quem é o mundo, quem são os outros. A esse sistema o autor denomina educação. Um
sistema que se elabora no próprio movimento através do qual o ser humano se constrói e
é construído pelos outros, um movimento longo , complexo, nunca completamente
acabado. No âmbito da educação escolar, um movimento de investigação e diálogo
constante, repensando práticas e revendo conceitos.
Assim como a palavra encontra significado no contexto, o conhecimento se
consolida contextualizado e as pessoas fazem-se sujeitos a partir de relações com a vida
e das interações significativas com o outro e com o mundo. As informações nada são
por si só, precisam ser articuladas e relacionadas a um contexto muito maior para que
adquiram sentido. O homem está inserido em uma organização cultural e social onde
desenvolve suas experiências de vida e todo e qualquer processo de aprendizagem
perpassa por esta realidade.
O homem compartilha um mundo e faz-se homem na linguagem, que torna a
capacidade de reflexão humana inseparável de sua identidade. Esse homem realiza-se
num movimento contínuo de existir, num mundo lingüístico e semântico produzido com
outros (Maturana, 2000). Mais uma vez reencontram-se os pressupostos de Bakhtin da
dialogicidade e interação da linguagem.
Ao se estabelecer relações de sentido e compreensão no processo de ensino e
aprendizagem, colabora-se para a construção de um conhecimento que vai além da
simples apreensão de informações ou fatos. Através da prática de leituras atualizadas da
história e da cultura e através de uma linguagem contextualizada, possibilita-se a
construção de um ser que se projeta em sociedade e no mundo, experimentando e
problematizando para alcançar o conhecimento.
“Densidade do aprendido, significação e atração pelo saber serão os três pólos da
pedagogia moderna” (Gimeno, 1998, p.43). As fontes de conhecimento não são
completas e fechadas em si mesmas, necessitam do diálogo, da articulação de valores
individuais e sociais e com isso geram mudanças.
O conhecimento como construção pessoal não acontece passivamente enquanto
há apenas a reprodução superficial ou o treinamento, como às vezes a escola ainda o
faz. É preciso internalizar o aprendido sob o exercício da reflexão, da compreensão e do
questionamento, de forma a dotá-lo da experiência ativa e subjetiva de cada um, com
uma significação moral e social próprias de como se capta o mundo, através de
experiências práticas, exposições orais e produções textuais. Buscar o difícil equilíbrio
entre o valor do conteúdo, que deve ser denso e relevante e sua apropriação significativa
como saber. De outra forma, o que é supostamente ensinado não colabora com a
construção do sujeito para e com a cultura e dificilmente será estabelecida uma relação
positiva para com o aprender.
1.4. TEXTO E AUTORIA
Bakhtin, nas primeiras décadas do século XX, já apontava o texto como o lugar
central de toda investigação sobre o homem, que se faz conhecer nos textos e através
dos textos. O autor apresenta o texto como único e constitutivamente dialógico,
construindo significação nas relações com outras pessoas e outros textos.
Compreende-se o mundo pela linguagem, que ainda é a forma mais usual de
encontros, desencontros e confrontos de posições (Geraldi, 1997). Com o domínio dos
textos orais e escritos o homem inscreve-se participante do seu grupo social, através dos
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textos constróem-se as práticas sociais e se torna possível participar significativamente
do movimento de construção do conhecimento, ainda que o processo de distribuição do
conhecimento e participação social não seja homogêneo. Através da linguagem,
expressa de forma oral ou escrita, o individual especifica-se no todo social, podendo-se
reconhecer cada unidade como parte de uma diversidade maior.
Práticas escritas acompanharam o desenvolvimento das atuais sociedades
tecnologicamente industrializadas e de suas relações. A história resgata a relação da
escrita com o ser humano, registrando e legitimando ideologias, poder, dominação, mas
também conhecimento, cultura, desenvolvimento social e participação. A linguagem
escrita hoje permeia a sociedade e todo o espaço de aprendizagem na escola, ainda que
sobre textos de outros. O processo de expressão escrita requer um amadurecimento que
se alcança ao longo do tempo e da prática, desde que com ele haja uma negociação
constante por parte das atividades pedagógicas. Para produzir um texto não é suficiente
conhecer o código escrito, mas sim saber utilizá-lo em situações concretas,
desenvolvendo processos adequados de composição de textos. Palavras isoladas
possuem definições, mas não significam por si só. É o texto que significa (Orlandi,
1996).
Um texto auto-suficiente oferece informações mínimas que permitem ao leitor
alcançar um sentido pela interpretação. Ao escrever estabelece-se uma relação interior
que possibilita o encontro da reflexão de outro, num movimento de contraposição de
argumentos e significados próprios. É no texto escrito que um conhecimento construído
se consolida mais densamente e adquire um caráter pessoal. Muito do que é pensado e
expresso apenas oralmente perde-se sem o registro, sem uma expressão escrita.
Foucault (2000, p.56-57), sob a ótica da filosofia, situa a função-autor
relacionando-a ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina e articula o
universo dos discursos. Considera esta uma função variável no campo da
discursividade, com formas distintas de acordo com a época e formas de civilização e
que se define através de uma série de operações específicas e complexas, podendo dar
lugar a vários “eus”, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos
podem ocupar.
Concentrando seu olhar no autor de textos, livros ou obras literárias, Foucault
trata a questão da legitimidade de quem fala e destaca os “fundadores de
discursividade”, que excedem sua própria obra. A reflexão aqui em questão volta-se
menos para a discussão sobre a legitimidade foucaultiana da função-autor, que trata de
“quem fala?” e volta-se mais para questões relacionadas ao processo de assunção e
responsabilidade pelo dizer do aluno-autor. Uma investigação que busca compreender
um pouco mais sobre as relações de autoria no processo de produção de textos “na
escola” (Geraldi, 1997).
Orlandi (1998) também parte das reflexões de Foucault sobre a questão da
autoria, estendendo essa noção para a função enunciativa do sujeito. Considera presente
a função-autor sempre que um texto é produzido com unidade, coerência, progressão,
não-contradição e fim. Sempre que o autor responde pelo que diz ou escreve,
produzindo um efeito de continuidade e um lugar de interpretação no meio dos outros.
Para Orlandi (1996), o autor é uma posição de filiação de sentidos e é constituído ao
inserir-se em seu espaço de interpretação. Reconhece que há diferentes formas
históricas da função-autor porque a relação do sujeito com a linguagem pode se
transformar e acredita que atualmente enfrenta-se um processo agudo de mudança na
forma de autoria, em função da distinta materialidade das memórias.
Coracini (1999), ao tratar da identidade do autor, destaca que o sujeito constituise pelo que o outro pensa dele. A presença do outro vai construindo a identidade do
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sujeito por re-significações através da linguagem. A autora assume com Foucault (1983)
a noção de autoria e prossegue afirmando que, como autor, o aluno responsabiliza-se
pelo que diz, assumindo uma posição em uma dada formação discursiva [sem grifos no
original]. O autor consegue organizar o que já foi dito, fazendo parecer único o que é
múltiplo. Não é suficiente expressar um pensamento de maneira correta, mas sim
possibilitar rupturas em busca de outros sentidos. Relaciona diretamente autoria, sujeito
e produção de sentido.
Trabalhando com o discurso da escrita e ensino, Gallo (1992) relata estratégias
de autoria ensinadas aos alunos, que possibilitaram-lhes perceber o “como” produziram
um texto. A autora defende a passagem do discurso oral para o discurso escrito e
argumenta que “ a explicitação da autoria não consiste em uma compreensão teóricodiscursiva por parte dos alunos, tampouco em um domínio consciente dos processos
lingüísticos e ideológicos que estão envolvidos. Explicitar a elaboração da autoria
significa, para o sujeito, produzir a passagem do discurso oral ao discurso escrito”.
Implica a percepção que o sentido e a coerência do seu texto são, pelos próprios alunos,
construídas. É ele o responsável pelo texto.
Tfouni (1995), em seu trabalho com textos de adultos não alfabetizados,
argumenta que o autor é visto na bibliografia como aquele que organiza o discurso
escrito, dando-lhe uma orientação por meio de mecanismos de coerência e coesão, mas
também garantindo que certos efeitos de sentido e não outros serão produzidos durante
a leitura. Para a autora, a função-autor preencheria os efeitos de sentido que envolvem a
sensação de “cumplicidade” entre narrador e leitor/ouvinte, ou ainda a criação de um
efeito de suspense. Tfouni refere-se a Maingueneau (1993) para compartilhar que o
autor é uma posição discursiva, diferente de escritor e de narrador e utiliza como ponto
de referência o conceito de “autoria”, conforme definido na teoria da análise do discurso
de “linha” francesa (ver Pecheux 1969, 1988). Relaciona autor com a noção de sujeito
do discurso. Ela prossegue defendendo que “a função-autor não é prerrogativa possível
apenas para aqueles que aprendem a ler e escrever, mas, antes, é uma função ligada a
um tipo de discurso – isto é, o discurso letrado – que, por ser social e historicamente
constituído (como todos os discursos o são), pode estar também acessível àqueles que
não dominam o código escrito” e que tal função pode dar-se nos dois sentidos: do
discurso oral para o escrito, mas também do escrito para o oral.
A partir dessas reflexões, assume-se, com riscos, a autoria como o complexo
processo de construção de textos em que o autor compromete-se com o seu texto, com o
seu discurso, consciente da função deste texto e do leitor. O autor, em geral, busca
fazer-se compreender pelo outro, ainda que possa falhar. Alguns, intencionalmente,
brincam ou confundem o leitor. Ele não precisa necessariamente criar o novo, mas
constituir-se autor na sua forma distinta de expressar-se nos movimentos da
intertextualidade e dos interdiscursos. É uma identidade que se constrói na
materialidade do seu próprio texto, que, embora perpassado por um sem fim de outros
textos, diferencia-se e completa-se com a subjetividade que expressa.
Acredita-se que a formação progressiva da consciência lingüística do alunoautor diante de seus textos, trabalhada ao longo do período escolar, venha a facilitar
uma construção mais segura e significativa da relação aluno-autor/texto/leitor. É um
processo que exige amadurecimento e trabalho constante nas diferentes fases de
aquisição e desenvolvimento da linguagem. O aprimoramento da competência oral e a
aquisição e desenvolvimento da escrita não são atividades espontâneas, cabendo à
educação escolar a condução de tais práticas. Assim também, possibilitar ao aluno uma
escrita com autoria deve ser objetivo da prática pedagógica.
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As reflexões até aqui apresentadas relacionam-se a sujeitos que já elaboraram
sentidos e significados de escrever e ser autor. E o aluno em formação? Como se vê
neste processo de ser chamado a escrever textos na escola? É o que se discutirá a seguir.
2. OUVINDO VOZES (DES)CONSIDERADAS NA ESCOLA
“Este trabalho fundamental de criar autoria é papel da escola, é papel do
professor...” (PC/SC, 1998, p.86).
Partilhando das concepções teóricas apresentadas neste texto, ratificadas pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais ao afirmar que: “O aluno deve ser considerado como
produtor de textos, aquele que pode ser entendido pelos textos que produz e que o
constituem como ser humano”, assim como pela Proposta Curricular do Estado de Santa
Catarina, acredita-se que um dos objetivos a ser perseguido pela escola deve ser o
trabalho com textos diversos, permitindo ao aluno o contato com textos de outros e a
produção dos seus próprios.
É nesse espaço de exercício da linguagem que o aluno tem a possibilidade de
consolidar e discutir conhecimentos nas diversas áreas do saber, tem a possibilidade de
re-significar, de fazer ouvir-se pelo outro, assumindo a sua posição discursiva, que é
única e intransferível.
É sabido, pela literatura específica, que produzir textos tanto orais quanto
escritos implica escolhas e estratégias por parte dos sujeitos. Desde a aquisição da
língua escrita, ou ainda antes, vivenciando práticas de letramento, a criança vai
desenvolvendo uma relação de amadurecimento com seus textos, paralelamente ao seu
desenvolvimento cognitivo e cognoscente, no processo de exposição e interação com
outros textos. Entende-se que a criança vai se conscientizando de processos lingüísticos
envolvidos nas produções textuais.
Na escola o aluno é chamado (convidado ou obrigado) a escrever textos. Como
parte desse processo, como ele se vê? Como procede? O que ele pensa sobre o que
escreve? Percebe-se autor de seus textos?
Em diversas instâncias que compõem o cenário da sala de aula, observa-se uma
preocupação recorrente sobre o desenvolvimento de trabalhos com textos na maneira
como têm-se organizado inúmeros materiais didáticos, nas dúvidas e inquietações de
professores de linguagem ao planejarem suas aulas valorizando relações textuais e em
destacados trabalhos científicos que apresentam discussões, práticas e análises
relacionadas ao tema.
Os sujeitos desta reflexão são alunos de uma turma de 5ª
série do ensino fundamental de uma escola estadual localizada no centro na cidade de
Blumenau, em Santa Catarina. Os dados foram coletados no final do ano letivo de
dezembro de 2001.
Em sala de aula, após a produção individual de um texto de caráter pessoal,
relacionado a experiências positivas e/ ou negativas vivenciadas no decorrer do ano, foi
aplicado um questionário aberto com questões escritas, com cinco perguntas
relacionadas à escritura. Na seqüência, efetuou-se a gravação de uma entrevista
individual com alguns alunos escolhidos aleatoriamente, aprofundando questões sobre o
tema. Buscava-se compreender, pela linguagem, através das respostas e verbalizações
dos alunos, que indicadores sinalizariam para questões de autoria, como esse aluno se
relaciona com a produção de textos, como dialoga com o texto em movimento, como
faz suas escolhas.
Partilhando do entendimento de linguagem e escritura como práticas sociais
(Meurer, 1997), dialógicas e discursivas, dada a filiação dos sujeitos a determinadas
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comunidades discursivas, inicialmente os alunos foram questionados sobre o significado
de ser escritor, considerando a intenção de perceber como a prática de produção de
textos se apresentava aos alunos e de compreender em que medida os alunos
consideravam-se produtores de textos diante de suas escrituras.
Das imagens relatadas pelos alunos é bastante forte a concepção do escritor
como um outro sujeito, uma terceira pessoa que tem imaginação e conhecimentos para
escrever livros e histórias: “ser escritor é escrever vários livros e saber as regras de
português” ou “é escrever livros, poesias, revistas...”, “é ser uma pessoa com muita
imaginação”.
Para Orlandi (1996), o autor é constituído ao inserir-se em seu espaço de interpretação.
Diante das afirmações dos alunos, questiona-se onde está, ou quem se apropriou desses
espaços que eles deveriam ocupar na produção de seus textos?
Também foi significativa a associação de ser escritor com a prazerosidade e
gosto pela escrita e leitura, ainda se reportando a um outro que não eles próprios:
“significa gostar muito de escrever e fazer textos”, “é escrever livros sobre o que gosta
e gostar de escrever”, “é conhecer outras coisas através das palavras e se interessar
pela leitura”.
Poucos alunos falaram de si e de suas impressões sobre a produção de seus
textos: “...às vezes você expressa o que está sentindo. Até fábulas você inventa”, “...ser
escritor é uma arte legal que a gente aprende”, “é dar asas à nossa imaginação, porque
a gente inventa histórias, cria e faz várias coisas”. Retoma-se Gallo (1992) ao afirmar
que “estratégias” de autoria podem ser ensinadas ao aluno a partir da experiência de
produzir um texto percebendo “como”, compreendendo que cada autor responsabilizase pelo sentido e coerência de seu texto.
Dois alunos mencionaram a relação com o leitor: “eu acho que o escritor se
sente realizado porque as pessoas irão ler o seu livro”, “é ser uma pessoa que gosta de
escrever, de ler e de agradar os outros.” São afirmações que levam à questão da
interação e dialogia na sala de aula. Participar, ouvir o texto de outro e ter o seu próprio
texto lido para os colegas. São pequenas atitudes que podem gerar grandes significados.
Geraldi (1997), distinguindo a produção de textos “na” escola e “para” a escola, pontua
que para que um sujeito produza seu texto, ele precisa ter o que dizer, razão para dizer, a
quem dizer e que escolha como dizer. As respostas dos alunos pouco expressaram
comentários sobre seus próprios textos.
A segunda questão indagava sobre o que eles escreviam na escola. A partir desta
desejava-se perceber o que os alunos concebiam como textualização escrita. Como
relacionariam os seus textos com as experiências subjetivas vivencialmente acumuladas
ou com os conhecimentos trabalhados na escola. Produção pessoal? Cópia?
Aproximadamente metade do grupo afirmou que escrevem textos diversos em
diferentes matérias, histórias, textos, exercícios, respostas e trabalhos. Em menor
número, alguns escrevem ainda “palavras, números, para aprender e passar de ano”, “eu
escrevo o que as professoras me mandam...”, demonstrando suposta ausência de
produção de sentidos, que é a base da textualização. Em suas expressões poucos alunos
conseguiram escapar discursivamente da vigilância e ordenação do escrever no sentido
restrito de copiar para aprender, porque a professora quer, porque é importante para
passar de ano. “...se uma professora está escrevendo uma coisa importante e eu estou
desenhando e não copio, chega na hora da prova eu não vou saber”. Apenas três alunos
do grupo expressaram que também escrevem algo por si e para si mesmos: “...escrevo o
que eu aprendo, as minhas dúvidas e anotações, os meus textos”, “escrevo coisas
legais, interessantes, mais que tudo coisas pro resto da vida”, “escrevo o que eu
aprendo, minhas histórias, meus textos, meus pensamentos...”
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Na tentativa de perceber alguma sinalização de autoria na relação do aluno com
seus textos, uma terceira questão indagava aos alunos a respeito das percepções sobre os
seus próprios textos. A grande maioria afirma gostar do que escreve, justificando com o
fato de que assim estão aprendendo. Ainda que relacionando a escrita à aprendizagem
na escola, acredita-se que em torno desta expressão possa estar uma possibilidade de
readequação das questões para alcançar o vínculo com a autoria na produção de textos
na escola.
Dos 18 alunos que afirmaram gostar de escrever, 12 relacionam a escrita à
aprendizagem e 3 a relacionam à profissão. Poucos alunos deixam perceber um sentido
de texto mais subjetivo, relacionado à própria identidade: “escrevo o que eu sei, o que
eu penso, o que eu acho”, “gosto porque às vezes são coisas de opinião”, “quando vou
escrever eu me lembro de várias coisas”.
Entre os alunos que guardam os seus textos, os motivos principais são:
recordação, uma necessidade futura, alguns guardam para para ler novamente e outros
se a professora pedir. Observa-se neste último grupo o sentido de pertencimento
questionado. Escreve-se mais como tarefa “para” a escola e a professora.
A última questão voltou-se para a percepção dos alunos sobre as noções de
escrita como prática social. Como esses alunos percebem os textos escritos que os
circundam em seus meios de convivência social além da escola?
Dos 28 alunos que afirmam escrever fora da escola, 15 relacionam essa escrita a
atividades escolares e estudos, restringindo-se a um “sítio” pedagógico (Grigoletto,
2001). Fora da escola o outro grupo afirma escrever cartas, cartões, diários, textos e
histórias inventadas, poesias, recados, jogos e músicas, extrapolam o sítio pedagógico e
alcançam um sítio mais diversificado de gêneros literários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise destas expressões revelou muito mais sobre os vários sentidos que os
alunos atribuem à produção de textos na escola, que sinalizadores que se procurava
sobre o sentido de autoria. Esses sinalizadores buscar-se-ão alcançar em novas
pesquisas, já que esta emerge num grupo de pesquisa preocupado com “escrita e
cidadania”.
Esses alunos afirmaram que escrevem para aprender, porque é importante,
porque o professor quer. Escrevem para dar conta das tarefas e passar de ano.
Questiona-se, então, onde encontram-se essas expressões com as afirmações de
entendimento de produção de textos como base do desenvolvimento lingüístico, como o
espaço privilegiado para a expressão da subjetividade e do pensamento crítico? Onde
encontram-se com a dialogia e interação nesse espaço de sala de aula? O entendimento
que fica é de que são textos dirigidos unicamente ao professor e não aos outros sujeitos
do espaço da sala de aula, numa grande restrição das inúmeras possibilidades de troca.
São textos “para a escola” (Geraldi, 1997). As práticas de letramento parecem caminhar
ao lado de parte deste grupo de sujeitos, sem que tenha havido possibilidade real de
experimentação e integração durante esses primeiros anos de escolarização.
Se as novas tendências educacionais buscam um aprendizado multidimensional e
querem voltar-se para a formação do ser humano (Morin, 2000), que se faz conhecer
nos textos e através de textos, há muito para rever e redirecionar em termos de prática
de sala de aula. São muitos os educadores que se encontram inquietos, questionando e
tentando encontrar a maneira mais adequada e possível, dentro da realidade do cenário
educacional, de viabilizar mudanças na prática pedagógica que persigam tais propostas
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e objetivos. Outros tantos precisam ter condições de acesso às várias reflexões que vão
surgindo para que, então, possam redirecionar seus caminhos.
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