SERVIÇO SOCIAL E MERCADO DE TRABALHO: realidade contemporânea no Ceará Alano do Carmo Macêdo1 RESUMO: As transformações contemporâneas, com severos rebatimentos no mundo do trabalho, requisitam, supostamente, um perfil profissional compatível com as determinações da sociabilidade capitalista. Nesta direção, problematizaremos as conformações que, hipoteticamente, consubstanciam um perfil de assistentes sociais atrelados aos grilhões que orientam a lógica do mercado de trabalho nessa etapa do capitalismo. Assim, ofereceremos algumas reflexões, em tempos de desigualdades e paradoxos, sobre o emaranhado de complexos que desafiam o serviço social brasileiro nessa quadra histórica. PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social. Perfil profissional. Mercado de trabalho. 1 INTRODUÇÃO Na contemporaneidade, o serviço social brasileiro é interpelado por um cenário descompassado, o “novo” convivendo com o “arcaico”, avesso aos direitos, atualizado pelos expoentes do neoliberalismo, referendando a lógica que afirma o mercado como regulador das relações sociais. Vivenciamos um embate no universo do trabalho contra as formas de organização coletiva daqueles/as que possuem como única propriedade sua força de trabalho. O contexto de crise estrutural do capital constitui um panorama cada vez mais restrito e seletivo, destituindo trabalhadores/as de acessarem o mecanismo de subsistência de suas próprias vidas. Isso tem viabilizado um processo crescente de desigualdade que rebate diretamente na restrição dos direitos civis, políticos e sociais. São tempos de mundialização do capital, no qual presenciamos profundas mudanças na formação profissional e no mercado de trabalho das/os assistentes sociais. 2 SERVIÇO SOCIAL E MERCARDO DE TRABALHO No contexto de crise do capital, o Serviço Social enfrenta o desafio de decifrar algumas lógicas da sociabilidade capitalista contemporânea, particularmente, em relação às mudanças no mundo do trabalho, sendo estas, conforme Guerra (2010, p. 716), “[...] como 1 Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGSS/UFSC). uma condição básica para a elevação das taxas de lucro e do processo de financeirização do capital”, além de seus processos (des)estruturadores dos sistemas de proteção social e, por conseguinte, da política social em geral. São mecanismos que corroboram um cenário aquém da igualdade nas relações sociais, contribuindo para fundamentar a construção de formas que reiteram abordagens apolíticas das expressões da questão social, para além da dimensão pública e dos espaços democráticos que são legítimos nos processos de negociação dos interesses, por vezes antagônicos, entre Estado e sociedade (YAZBEK, 2009). Dessa forma, consideramos central observar as graves inflexões e desafios aos/as trabalhadores/as, sobretudo, assistentes sociais, que, histórica e contraditoriamente, alcançam protagonismo no cenário de elaboração, gestão e execução das políticas sociais, levando em consideração sua forma peculiar e histórica de especialização do trabalho coletivo, tendo o Estado como principal empregador e a questão social como objeto de intervenção. A defesa que fazemos em nossas análises, corrobora as avaliações de Raichelis (2009, p. 13) ao apontar que o “[...] debate e a difusão de um conhecimento crítico sobre as políticas sociais, especialmente na conjuntura atual, precisam ser ampliados no interior da própria categoria dos assistentes sociais e nos espaços de formação profissional”. No entanto, no contexto de crise estrutural do capital, não se requer um/a profissional em serviço social que pensa, cria, negocia demandas na arena pública, articula e elabora um projeto de intervenção, e cujo produto é o atendimento de necessidades individuais e também coletivas e/ou a formação da consciência. Apresenta-se um redirecionamento focado em mobilizar profissionais que operam o projeto de gestão da pobreza, reiterando-o junto a indivíduos e famílias. Nas avaliações de Guerra (2010, p. 717), encontra alocação no mercado de trabalho “[...] aquele trabalhador que se adapta aos processos de precarização e às constantes perdas de qualidade do/no trabalho. Não aquele trabalhador que oferece resistência à precarização e perda de direitos, mas o que apesar delas ainda se mantém”. Nesse contexto, o exercício e a formação profissionais podem favorecer uma onda neoconservadora devido a falta de preparo técnico e teórico, pela fragilização de uma consciência crítica e política, o que pode motivar a busca de respostas pragmáticas e irracionalistas, a incorporação de técnicas aparentemente úteis em um contexto fragmentário e imediatista. Ademais, cabe chamar a atenção que, no XIV Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (Cbas), realizado em outubro de 2013 na cidade de Águas de Lindóia/São Paulo, em uma das convocações da Executiva Nacional dos/as Estudantes de Serviço Social (Enesso) para articulação política estudantil, apenas, aproximadamente, 90 estudantes compareceram à uma dessas chamadas (sendo este o público mais expressivo das convocatórias), considerando o universo de 450 inscritos/as, nessa modalidade, em termos percentuais, verificamos a participação de apenas 20% em relação ao total (e os/as demais 80%?). É importante mencionar, também, que na plenária “Organização política dos/as assistentes sociais: em defesa do trabalho e da formação com qualidade”, tínhamos um público, na análise mais otimista, aproximado de 600 pessoas entre estudantes e profissionais, avaliando que o evento contou com mais de 3 mil participantes, entre alunos/as e profissionais em serviço social, temos um percentual de quase 20% (e os/as demais participantes?). Cabe destacar que simultaneamente a essa plenária ocorriam outras três, entendemos, dessa forma, que não era a única, mas, considerando a quadra histórica deveras adversa que vivenciamos, defendemos que o debate da referida plenária deveria ter assumido centralidade, então, indagamos: será que esse movimento já não é reflexo da mudança tanto no perfil dos/as estudantes como dos/as assistentes sociais? Isso se torna mais um desafio no Brasil contemporâneo, considerando as graves implicações nos processos de formação profissional, como a eclosão de vários cursos de graduação em serviço social, numa intensa mercantilização e precarização da educação. Nesse sentido, referendemos a hipótese de Guerra (2010), qual seja: a tendência de um movimento que favorece a formação profissional em sintonia com a ideologia neoliberal. Esta lógica, na cena pública brasileira, é vivenciada desde a década de 1990, com acirramento nos últimos anos, pondo em xeque a política educacional no nível superior, ao desestruturar um modelo universitário pautado na articulação do tripé ensino, pesquisa e extensão. Perante essa realidade, quanto ao serviço social, trata-se de propiciar um perfil adequado aos novos requisitos das políticas minimalistas em tempos neoliberais. O que se pretende é disponibilizar, no mercado, profissionais sem formação crítica e produzidos em massa, nos cursos de graduação públicos, privados e, principalmente, à distância cujo crescimento recente é evidente, para serem gestores da pobreza, mediante vigilância dos pobres. Nesse sentido, é possível identificar o crescimento de práticas autoritárias e cerceadoras de direitos, que tentam preencher os espaços deixados pelas políticas públicas por meio da refilantropização da questão social e da assistencialização das políticas sociais, ou mesmo reduzir a “solução” dos problemas sociais a intervenções individualizantes, formais e burocráticas (GUERRA, 2010, p. 721). Iamamoto (2009b) apontava o Brasil com o segundo maior contingente de assistentes sociais, na época, já ultrapassando a cifra dos 84 mil profissionais com registro no conselho da categoria, superado apenas pelos Estados Unidos da América (EUA). Dados do Conselho Federal de Serviço Social (Cfess) relativos a setembro de 2012 indicam um quantitativo de 121.234 assistentes sociais no mercado de trabalho. Ou seja, em três anos houve um aumento de aproximadamente 50% no número desses/as profissionais. Ademais, como evidenciado no XIII Encontro Nacional de Pesquisadores/as em Serviço Social (ENPESS), promovido em novembro de 2012, vivenciamos historicamente, pela primeira vez, no serviço social brasileiro, um número de alunos/as em processo de formação (143 mil) superior ao quantitativo de profissionais em exercício (121.234). Dados mais recentes do Cfess, relativos a setembro de 2014, revelam que hoje já somos, aproximadamente, 150 mil assistentes sociais, ainda atrás apenas dos EUA que, segundo a Federação Internacional de Trabalhadores/as Sociais (FITS), possuem um quantitativo de 750 mil profissionais. Numa análise preliminar desses simples indicativos quantitativos, podemos indagar: a quem interessa esse processo massivo de profissionais formados/as disponíveis no mercado de trabalho? Sobre este questionamento, compreendemos que a lógica neoliberal demanda a formação de um “exército de reserva de assistentes sociais”, nos termos de Iamamoto (2009b), para impulsionar, também, o valor da força de trabalho para baixo. Além disso, será que estamos formando um perfil culto, crítico, criativo e propositivo ou um contingente de força de trabalho especializada, conforme já problematizado, que finca seus laços com a ideologia da burguesia rentista? Nas análises de Guerra (2010, p. 724), no tempo presente, ocorre um favorecimento da “[...] formação que atenda as orientações do Banco Mundial, sendo que democratizar passa a ser sinônimo de uma inserção, ainda que precarizada, em instituições de ensino, seja pública ou privada, daí ser a expansão de vagas a meta cobrada pelos organismos internacionais”. Dados do Conselho Regional de Serviço Social – 3ª Região/Ceará (Cress/CE) revelam que em 2008 erámos 1.902 profissionais aptos ao exercício, em 2009 passamos a 2.113 assistentes sociais, já em 2010 o número sobe para 2.478 profissionais, 3.124 em 2011, no ano de 2012 nosso quantitativo é novamente alterado para 3.820, em 2013 chegamos a 4.649, em janeiro de 2014 já ultrapassamos 7 mil inscritos. Ao analisarmos essas informações, comparando, apenas, os anos de 2008 e 2012, observamos um aumento de mais de 100% dos/as profissionais disponíveis no mercado de trabalho, num intervalo de apenas quatro anos. A expansão dessa “indústria de imprimir diplomas” ou, nos termos de Guerra (2010), “fábricas de diplomas” pode ser corroborada, na realidade cearense, mediante o levantamento, em 2013, realizado pela Comissão de Orientação e Fiscalização (Cofi) do Cress/CE, segundo a qual existem 23 unidades de ensino superior que oferecem o curso de graduação em serviço social no Estado do Ceará. Dessas, dezesete ocorrem na modalidade presencial e seis na EaD. Dados do referido conselho, obtidos nos mapeamentos dos campos de estágio, apontam, os chamados “polos” dessas unidades na proposta EaD, em pelo menos 20 dos 184 municípios do Estado. Portanto, 11% dos municípios do Ceará possuem cursos de graduação à distância em serviço social que, em nossas avaliações, favorece a ausência da interação, do debate dialético tão caro à teoria social crítica. Temos, nesse sentido, um crescimento, evidente, no cenário dos [...] Cursos à distância, salas de discussão virtual, leituras virtuais, entre outras, que são algumas das formas de reprodução do neoliberalismo contemporâneo: o indivíduo isolado e passivo diante de uma máquina se comunicando com imagens e ideias que substituem as relações humanas por relações entre objetos e imagens fetichizadas (BARROCO, 2011, p. 214-215). Em uma análise mais detalhada dos dados, com relação às instituições presenciais, conforme constatamos, oito estão localizadas em Fortaleza, duas na região metropolitana e as demais em outros municípios cearenses, a saber: Aracati, Crateús, Icó, Iguatu, Juazeiro do Norte e Sobral. Ainda com relação a esses cursos, salientamos que apenas dois são oferecidos por instituições públicas, quais sejam: UECE, cujo curso completará 65 anos de existência em março de 2015 e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) – Campus Iguatu, desde 2010. Trata-se, pois, de grande conquista para a nossa categoria na defesa do ensino de qualidade, público, universal , laico, presencial e, conforme as reflexões de Guerra (2010, p. 734), “socialmente relevante, mas, fundamentalmente, contra a barbárie capitalista”. A precarização da formação superior e o crescimento desordenado e sem critérios de cursos de graduação em serviço social se expressam hoje como o “nó górdio” de todas as entidades de defesa da categoria (Cfess/Cress/Abepss/Enesso). Por conseguinte, estas expressões contemporâneas têm impactos deletérios nas condições cotidianas de trabalho do/a assistente social, na medida em que diminuem as condições de atendimento físicas, éticas e técnicas, incluindo-se impactos, também, na remuneração. Assim, encontramos advertências para uma intensa precarização do trabalho profissional do/a assistente social no mundo privado, caracterizado por contratos sem direitos e até o trabalho voluntário, o que representa a máxima mistificação: escravização com alegria de fazer “o bem”. Nesse cenário de tensões operadas no interior das ações estatais, sobretudo no trâmite relacionado à elaboração, gestão e oferta de serviços sociais públicos, identificamos nas políticas sociais um processo de subordinação às orientações neoliberais, pois o Estado passa a ser cada vez mais mínimo para o atendimento dos/as trabalhadores/as e cada vez mais permissivo ao atendimento das ordens do grande capital, conforme problematizamos anteriormente. O resultado dessa subordinação é sentido diretamente por todos/as os/as trabalhadores/as, como no caso da categoria de assistentes sociais, para a qual destacamos dois aspectos diferenciados. De um lado, os rebatimentos ocorrem como trabalhador/a, e, do outro, na qualidade do serviço prestado pelo/a profissional que atua diretamente com as políticas sociais. Assim, conforme revela Raichelis (2009, p. 16), é deveras central afincar a materialidade “[...] do projeto ético-político do Serviço Social, no cotidiano de trabalho profissional, que caminhe na direção do desenvolvimento da sociabilidade pública capaz de refundar a política como espaço de criação e generalização de direitos”. Nesse sentido, entendemos que [...] No campo das condições de trabalho, não é casual que as entidades da categoria tenham investido, com muito sucesso, na defesa das condições éticas e técnicas, da qual a supervisão é parte integrante e na definição de uma política nacional de estágio/supervisão. Estas foram as conquistas mais importantes dos últimos anos (GUERRA, 2010, p. 733). Assim, a partir de nossa pesquisa sobre mercado de trabalho no Estado do Ceará realziada em parceria com o Conselho Regional de Serviço Social – 3ª Região temos identificado a interiorização da profissão, decorrente tanto do processo de muncipalização, como da implementação do SUAS. Porém, se o processo de municipalização avançou em termos de estruturação de políticas e de campos de trabalho, para as/os assistentes sociais, também ocorreu, contraditoriamente, o aumento da inserção precária, com contratos terceirizados, baixos salários, ingerência política, etc. Uma das conseqüências do processo de precariedade do trabalho diz respeito à continuidade das ações desenvolvidas pelo profissional, à qualificação e à falta de autonomia profissional, exponencialmente relativa nos termos de Iamamoto (2009). Assim, nossa tese de que ocorre uma expansão no mercado de trabalho acompanhada de um contexto de precarização tem se confirmado a partir do evidenciado até o momento, quais sejam estas: formas precárias de inserção no mercado de trabalho por meio da prestação serviços, terceirização, criação de fundações que contratam profissionais sem concurso público, seleções públicas com período de início e fim das atividades a serem desenvolvidas pelo profissionais pré-determinados. Esses dilemas desafiam o/a assistente social no fortalecimento do projeto éticopolítico profissional, na medida em que contribuem para entender a dimensão política da profissão com rebatimentos no aprofundamento de resistências centrais, a saber: redução do projeto profissional à sua dimensão prático-operativa (e nos indagamos ainda: com qual competência profissional?); anulação de qualquer ideário que não seja o da ordem; submissão da crítica teórica e política à prova da formulação de propostas técnicas. Diante desses tempos difíceis, corroboramos com Barroco (2010, 212) ao defender a necessidade de [...] que nossa organização política esteja fortalecida e renovada com novos quadros, supondo o trabalho de base, junto à categoria, com as entidades de representação, as unidades de ensino, os profissionais e alunos. Por outro lado, só conseguiremos consolidar politicamente o nosso projeto, na direção social pretendida, se tivermos uma base social de sustentação; logo, é fundamental a articulação com os partidos, sindicatos e entidades de classe dos trabalhadores, com os movimentos populares e democráticos, com as associações profissionais e entidades de defesa de direitos. Nesse complexo cenário, compreendemos que a questão social ou o enfrentamento às suas expressões conferido no campo institucional, mediante as políticas sociais, traz a marca específica da ordem burguesa e das relações sociais que a sustentam. Assim, a questão social é apreendida como expressão ampliada da exploração do trabalho e das desigualdades sociais dela decorrentes. Sua produção/reprodução assume perfis e dimensões historicamente particulares, sobretudo na experiência brasileira (MONTAÑO, 2012). Desta forma, seu enfrentamento exige o investimento em estratégias que assegurem e ampliem a resistência e as necessidades da coletividade dos/as trabalhadores/as, a convocação da responsabilidade do Estado e a afirmação de políticas sociais de caráter universal, voltadas aos interesses das grandes maiorias, condensando um processo histórico de lutas pela democratização da economia, da política, da cultura, na conquista da esfera pública. Com vistas a resistir, diante destes desafios, tanto à formação quanto aos/as profissionais no seu campo interventivo, em especial no trabalho de elaboração, gestão e execução de políticas sociais, devemos assumir as exigências de compor um perfil profissional cada vez mais crítico, capaz de formular e recriar propostas que apontem para o progressivo processo de democratização, bem como para o fortalecimento do projeto éticopolítico profissional. Assim, concordamos com Iamamoto , ao afirmar que no contexto contemporâneo de crise estrutural do capital [...] torna-se fundamental a qualidade do trabalho de assistentes sociais, com respostas éticas, técnicas e políticas, como parte do trabalho social em todo o mundo, que identifica a nossa categoria com o conjunto da classe trabalhadora, suas formas de organização e de luta. Afinal, essa profissão não se confunde com assistência social, fazendo de nós muito mais do que meros executores e executoras de políticas públicas. Nesse ínterim, devemos compreender que a realidade se expressa através de múltiplas determinações. São os processos de mediações que viabilizam a apreensão dialética do movimento da realidade e do ser social confirmada numa legalidade tendencial, imanente, histórica e teórica e que conduz a investigação onde as categorias concretas no seu movimento dão sentido ao processo histórico. E a partir daí trilhar um caminho que se distancie das ações cometidas que favorecem uma onda “neoconservadora” na profissão. Dessa forma, [...] a presença de um projeto profissional crítico permite aproximar o profissional das mediações que se constituem ontologicamente no modo de ser, na legalidade tendencial dos processos sociais ali presentes, do que decorre a apreensão das instituições como campo de mediações que particularizam o movimento da legalidade social no cotidiano profissional, para o que é necessário que se capte a maneira como expressam neste cotidiano as determinações mais amplas da vida social, a lógica mercadológica, a alienação e a reificação das relações sociais, a exploração e os antagonismos de interesses do capital e do trabalho. Somente a percepção deste movimento permite que o profissional apreenda suas demandas profissionais [...] (GUERRA, 2007, p. 18). As reflexões que por ora se apresentam, buscam reafirmar teórico-metodológica e politicamente a urgente e efetiva formação e prática profissionais comprometidas com as legítimas demandas sociais provenientes da classe que sobrevive do trabalho. Entendemos que o melhor conhecimento da realidade, reorientado à intervenção profissional, pode ser uma efetiva forma de resistência e de luta contra a barbárie. Nesse sentido, [...] o cenário atual pode ser facilitador da reatualização de projetos conservadores na profissão, mas entendendo também que nossa trajetória de lutas, inserida no universo de resistências da sociedade brasileira permite esse enfrentamento, quero afirmar que do ponto de vista ético‑político a busca de ruptura com o conservadorismo no Serviço Social – princípio e objetivo que norteou (norteia) o projeto ético-político nesses trinta anos – é neste momento renovado como um grande desafio: o enfrentamento de suas novas formas ético-políticas e manifestações teórico-práticas (BARROCO, 2011, p. 211-212). (Grifos da autora). Dessa forma, referendamos as avaliações de Netto (2006, p. 19) ao analisar que o projeto ético-político do serviço social brasileiro “aponta precisamente ao combate (ético, teórico, ideológico, político e prático-social) ao neoliberalismo, de modo a preservar e atualizar valores que, enquanto projeto profissional, o informam e o tornam solidário ao projeto de sociedade que interessa à massa da população”. Cabe ainda reforçar e considerar, conforme as reflexões de Teixeira e Braz (2009, p. 17), que em tempo de exponenciação das expressões da questão social e radicalização da barbárie, vivenciamos uma quadra histórica decisiva, [...] porque remete à manutenção ou não das bases teóricas, organizativas e éticopolíticas do projeto coletivo da profissão que mudou as feições do Serviço Social brasileiro nos últimos 30 anos. A sua reafirmação depende, não exclusivamente, tanto das respostas políticas que as vanguardas profissionais darão aos desafios atuais (no âmbito do exercício profissional e no campo da formação – onde se destaca a espantosa expansão de cursos privados, inclusive os que se valem de metodologias de ensino em graduação a distância) quanto das ações dos profissionais nas diversas áreas de atuação, a partir de intervenções qualificadas, éticas e socialmente comprometidas. Vivemos num contexto caracterizado pela reificação das relações sociais, precarização do trabalho, estranhamento dos sujeitos, onde “coisas” podem ser vendidas (educação, saúde, força de trabalho). Temos um Estado penal em detrimento do social, com forte apelo à criminalização não só da pobreza, mas dos movimentos sociais. É a barbárie contemporânea com políticas sociais fortemente caracterizadas pelo assistencialismo e mercantilização. Constituição de um mercado profissional atravessado por metas quantitativas, o que pode rebater negativamente na qualidade dos serviços prestados à população usuária, com práticas padronizadas e burocráticas que reiteram a ausência de tempo para ser criativo no exercício profissional, reforçando o imediatismo e o distanciamento do campo de mediações. Nesse contexto, deveras adverso, aquecidos/as pela conjuntura nacional e internacional, que nos convoca a refletir e nos posicionar diante dos desafios do tempo presente, somos instigados/as coletivamente a construir mediações estratégicas na efetivação dos princípios éticos-políticos que orientam o serviço social brasileiro. 3 CONCLUSÃO Os processos problematizados impõem aos/as profissionais em serviço social um rigoroso e crítico esforço de análise para aclarar as diferenças de posicionamentos econômicos e ideopolíticos que se apresentam, nos diversos espaços sócio-ocupacionais, donde se confrontam e se amalgamam tensas zonas: ora referendando nitidamente as orientações neoliberais, ora em zonas de socialização da política, resistências e concretização de direitos sociais, pautando o horizonte de superação desta sociabilidade e materialidade do projeto ético-político. É uma época que atinge, visceralmente, a sociedade em suas múltiplas dimensões, dentre estas, o mundo do trabalho, num contexto de precarização e desemprego para jovens e adultos. Nesta direção, observamos os severos rebatimentos, ao problematizarmos o serviço social brasileiro, com inflexões na formação e exercício profissionais, num mercado que tem se tornado tão caro aos liberais. São tempos de mundialização do capital, com lucros privatizados e custos socializados, momento de ênfase na (des)estruturação das políticas públicas, exponenciado pelos processos de mercantilização dos serviços sociais (saúde, previdência, educação, entre outros). É nesse complexo terreno, que, também, torna-se fundante compreendermos a lógica do orçamento público para a luta, articulação e materialização de diretos sociais universais. Estamos diante de uma realidade que não é transparente, ela é opaca, em tempos de desigualdades e paradoxos. REFERÊNCIAS BARROCO, Maria Lúcia S. 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