a doença e morte de eva perón: câncer, política e sigilo1

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A DOENÇA E MORTE DE EVA PERÓN:
CÂNCER, POLÍTICA E SIGILO1
Barron H. Lerner
Tradução do inglês: Alexandre Morales
RESUMO
O artigo reconstitui os acontecimentos em torno do diagnóstico e tratamento do câncer uterino
que acabou por vitimar Evita Perón, no início dos anos 1950. Abordam-se as razões médicas e
políticas do ocultamento do verdadeiro estado clínico da primeira-dama, por parte de médicos
e familiares, a ela própria e ao povo argentino — sigilo que se estendeu à identidade do médico
que a operou, um renomado cancerologista norte-americano. O episódio remete ao debate
mais geral sobre as questões éticas implicadas na atuação e atitude dos médicos em casos de
enfermidades graves de líderes políticos.
Palavras-chave: Evita Perón; medicina e política; diagnóstico e tratamento de câncer.
SUMMARY
This article reconstructs the events surrounding the diagnosis and treatment of Eva Peron's
cancer of the uterus in the early 1950s. The author discusses the medical and political reasons
that led doctors and family members to hide the first lady's actual clinical condition from both
her and the Argentine people — a secret that withheld the name of the doctor who performed
the operation, a renowned American oncologist. The episode raises a broader debate on the
ethical issues involved in the role of doctors when treating serious illnesses afflicting political
leaders.
Keywords: Eva Perón; medicine and politics; cancer diagnosis and treatment.
Quando Evita Perón foi submetida a uma histerectomia por câncer do
colo uterino, em novembro de 1951, acreditava que o cirurgião seria o
médico argentino Ricardo Finochietto. Sem que ela soubesse, porém, a
operação foi realizada pelo cancerologista norte-americano George T. Pack,
de Nova York, que, entrando na sala de cirurgia quando Evita já estava
anestesiada e saindo antes que ela despertasse, jamais travou conhecimento
com a primeira-dama.
Nos anos 1950, médicos e familiares geralmente ocultavam diagnósticos de câncer aos pacientes, e Evita — até sua morte, em julho de 1952 —
não foi exceção. Mas não sendo ela uma paciente comum, quando Juan
Domingo Perón solicitou que um renomado especialista em câncer fizesse
a operação, a identidade daquele cirurgião precisou igualmente ser encoberta — para a paciente e também para o povo argentino.
NOVEMBRO DE 2000
215
(1) Publicado originalmente
em The Lancet, vol. 355, 03/
06/2000.
A DOENÇA E MORTE DE EVA PERÓN: CÂNCER, POLÍTICA E SIGILO
Muito já se escreveu sobre o tratamento médico de figuras políticas
proeminentes, sobretudo em meio ao debate sobre a atitude de seus
médicos ao divulgar ou não os casos de doenças graves2. A história de Eva
Perón e George Pack ilustra as inusitadas dimensões que adquire para os
médicos e a família lidar com os aspectos pessoais e públicos da enfermidade de um líder político, bem como ilumina os conflitos que emergem
quando cuidados médicos têm implicações sociais e políticas.
(2) Post, J. M. e Robins, R. S.
When illness strikes the leader:
the dilemma of the captive
king. New Haven: Yale University Press, 1993; Annas, G.
J. "The health of the president
and presidential candidates:
the public's right to known".
N. Engl. J. Med., nº 333, 1995.
O diagnóstico do câncer
Eva Perón tinha 30 anos quando adoeceu, em 1950. A despeito de
seus muitos detratores, a primeira-dama argentina era poderosa e dinâmica,
e sua caridosa dedicação aos pobres — os "descamisados" — suscitou
intensas devoções 3 . Em janeiro daquele ano Evita desmaiou em público, e
em seguida se submeteu a uma apendicectomia. Um de seus médicos,
Oscar Ivanissevich, declarou posteriormente que diagnosticara câncer uterino e insistira com que Evita fizesse uma histerectomia, mas isso jamais foi
corroborado. O fato é que ela continuou debilitada e anêmica depois da
operação. Em agosto do ano seguinte, Evita desmaiou novamente. Agora
ela estava se ressentindo de extrema fraqueza, sangramento vaginal e dores
abdominais cada vez piores. Exames revelaram "câncer do útero [colo
uterino] em estado avançado" 4 . Ironicamente, a primeira esposa de Perón
havia morrido do mesmo mal.
O caso de Eva Perón tipifica como o câncer de colo uterino era
diagnosticado naquela época na Argentina e alhures. Entre 1944 e 1948,
menos de 30% das mulheres diagnosticadas em uma clínica argentina
estavam no estágio I da doença (confinada ao colo uterino), e as demais no
estágio II (câncer disseminando-se para além do colo mas detendo-se na
parede pélvica) ou no estágio III (já alcançando a parede pélvica). Cerca de
60% das mulheres no estágio I tiveram sobrevida de cinco anos, proporção
que caía para menos de 30% entre aquelas nos estágios mais avançados 5 .
Nos inícios do século XX, ativistas anticâncer nos Estados Unidos,
Inglaterra e Alemanha começaram a se engajar em campanhas pela diagnose
de câncer uterino num estágio mais inicial e curável. Um "sinal de alerta"
comumente apontado era "qualquer sangramento ou corrimento irregular"6.
"Imploro a vocês que não percam um tempo precioso!", escreveu à época
um médico7. Entretanto, muitas mulheres com sintomas demoravam a procurar orientação médica, ou o câncer tornava-se muito avançado antes de
causar enfermidades patentes.
Uma grande virada ocorreu em 1928, quando o biólogo George
Papanicolaou, em Nova York, detectou células cancerígenas em uma
curetagem uterina. Em 1942 ele anunciou o exame que podia identificar
câncer de colo uterino pré-invasivo num estágio com alto grau de
tratamento in situ. No fim dos anos 1940 a Sociedade Americana para o
216
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(3) Fraser, N. e Navarro, M.
Eva Perón. Nova York: W. W.
Norton, 1980.
(4) Ibidem.
(5) Di Paola, G. e Bulla, L. R.
Annual report on lhe results of
treatment in carcinoma of the
uterus (vol. 11). Estocolmo: A.
Norstedt & Söner, 1958.
(6) Patterson, J. T. The dread
disease: cancer and modern
American culture. Cambridge,
MA: Harvard University Press,
1987.
(7) Childe, C. P. The control of
a scourge. Nova York: E. P.
Dutton, 1907.
BARRON H. LERNER
Câncer iniciou uma agressiva campanha para promover o teste papanicolaou regular 8 . Em 1973, graças em parte ao papanicolaou, a mortalidade por câncer de colo uterino nos Estados Unidos declinou mais de
50% 9.
A Argentina instituiu programas anticâncer desde 191410. A primeira
apresentação para promover o papanicolaou ocorreu em Buenos Aires, em
1946. O médico argentino Guillermo Terzano escreveu extensivamente
sobre o tópico desde 194711. No entanto, não se sabe bem se Evita chegou
a ter conhecimento do teste. A divulgação do papanicolaou para além do
meio médico só começaria em 1950, quando a Liga Argentina de Luta contra
o Câncer publicou um panfleto sobre o assunto 12 . E muito embora os médicos de Evita provavelmente estivessem informados sobre o teste, ainda
não havia dados comprobativos de que salvara vidas. De fato, somente
cerca de cem mil testes papanicolaou haviam sido realizados na Argentina
até 196213.
Conquanto seus médicos tenham indicado o teste, Evita pode ter se
negado a fazê-lo. Depois da apendicectomia, ela resistiu aos apelos para
que aclarasse sua condição clínica: "Mesmo extenuada e visivelmente
doente, ela continuava a trabalhar"14. Ivanissevich aventou que a resistência
de Evita devia-se à sua devoção política ao peronismo, enquanto outros
conjeturaram sobre desconhecimento ou mera recusa.
(8) Patterson, op. cit.
(9) Breslow, L. (ed). A history
of cancer control in the United
States, 1946-1971 (Livro 1).
Washington: Department of
Health, Education, and Welfare, 1979.
(10) Bruno, M. F., Moron, H. e
Refojo, M. L. Historia de la
oncología clínica argentina através de sus instituciones. Buenos Aires: Sociedad Argentina de Historia de la Medicina,
1991; Huñis, A. P. Breve historia de la quimoterapia del cáncer. Buenos Aires: edição do
autor, 1999.
(11) Terzano, G. e Mezzadra, J.
M. E. "Diagnóstico del cáncer
por extendido vaginal". Bol.
Soc. Obstet. Gynecol. Buenos
Aires, nº 26, 1947.
(12) Argentine League in the
Fight against Cancer. Early detection of cervical cancer, the
Papanicolaou test: a hope. Buenos Aires, 1950.
(13) Klimovsky, E. e Matos, E.
"Use of the Pap test by a population group in Buenos Aires".
Bull. Pan. Am. Health Organ.,
nº 30, 1996.
(14) Fraser e Navarro, op. cit.
Operação e tratamento
O tratamento do câncer de colo uterino estava em pleno curso nos
anos 1950. Em 1898, Wertheim introduzira a histerectomia abdominal
radical, que consistia em remoção do útero, trompas de falópio, ovários e
gânglios linfáticos pelvianos. Nos anos 1920, porém, o tratamento por rádio
tornou-se preponderante. Nos anos 1940, Meigs reintroduziu a histerectomia radical com dissecção de gânglios linfáticos, referindo sobrevida de
cinco anos em 74% e 51% dos casos para os estágios I e II, respectivamente 15 , mas julgava que essa cirurgia não era indicada para cânceres de
estágio III.
Instigados pelo trabalho de Meigs, cirurgiões argentinos adotavam
histerectomia radical acompanhada de radioterapia para pacientes em
estágio I, mas aquelas em estágio II recebiam apenas radiação 16 . Os
médicos de Evita trataram-na inicialmente com implantes de rádio, mas
apenas para estancar o sangramento e assim estabilizá-la para a cirurgia.
Como seu câncer estava muito desenvolvido, a decisão de operá-la era um
desvio da prática usual na Argentina.
Um dos cancerologistas locais que os médicos de Evita consultaram
foi Abel N. Canónico, que depois se tornaria diretor do Instituto de
Oncologia argentino. Quando Juan Domingo Perón manifestou seu desejo
de que a operação fosse realizada por um eminente oncologista, Canónico
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217
(15) Meigs, J. V. "Cancer of the
cervix: an appraisal". Am. J.
Obstet. Gynecol., n° 72, 1956.
(16) Patterson, op. cit.
A DOENÇA E MORTE DE EVA PERÓN: CÂNCER, POLÍTICA E SIGILO
sugeriu George Pack, cirurgião, radioterapeuta e patologista do Memorial
Sloan-Kettering Cancer Center de Nova York. A pedido de seu irmão, Juan
Duarte, e outros parentes, Eva Perón jamais soube do envolvimento de
Pack e Canónico em seu caso. Ela acreditava que Finochietto iria operá-la 17 .
O governo Perón anunciou tão-somente que a primeira-dama seria submetida a uma cirurgia.
Tendo Pack aceito operar, Canónico voou a Nova York, em outubro de
1951, para de lá acompanhá-lo até Buenos Aires. Todos os preparativos
permaneceram altamente secretos, embora o pessoal do Departamento de
Estado dos Estados Unidos, inclusive o embaixador na Argentina, Ellsworth
Bunker, tenha ficado a par. Para que sua identidade se mantivesse incógnita,
Pack examinou Evita somente quando ela estava anestesiada. Tendo
confirmado o diagnóstico, ele voltou a Nova York e em 6 de novembro
retornou para fazer a operação. Entrou na sala de cirurgia depois que Evita
estava anestesiada, como sempre 18 .
Durante a operação, Pack constatou que o câncer tinha se disseminado do útero para os órgãos adjacentes, alcançando estágio II ou III. Ele
procedeu a uma histerectomia radical e dissecção de gânglios linfáticos19.
Embora tenha permanecido na Argentina até que Evita se estabilizasse,
Pack jamais a viu novamente. Ele não cobrou por seus serviços. Depois da
cirurgia, Evita recebeu radioterapia adicional.
Juan Domingo Perón foi reeleito enquanto sua mulher se recuperava
da cirurgia. Quando Evita reassumiu algumas atividades políticas, seus
sequazes corresponderam com a típica maneira adulatória20. Em fevereiro
de 1952, porém, as dores abdominais retornaram. Uma biópsia confirmou
recidiva de câncer pélvico.
Quão inesperada terá sido a recidiva? Tanto Canónico quanto Helen
Pack, a viúva de George Pack, recordaram que este não havia ficado
otimista, acreditando que o câncer não se extinguiria por completo 21 . De
forma similar, Fraser e Navarro — os primeiros a escrever sobre o envolvimento de Pack, em 1980 — afirmaram que para ele a operação havia apenas
contido a disseminação do câncer. Seja como for, a rapidez da recidiva foi
avassaladora.
Uma radioterapia adicional refreou temporariamente o câncer, mas
em maio as dores pélvicas retornaram. Pack recusou-se a fazer uma
operação-salvamento de risco, julgando que isso não beneficiaria a paciente. Quando Evita daí a pouco desenvolveu metástase pulmonar, Pack
recomendou quimioterapia com gás de mostarda nitrogenado, que tinha
sido recentemente introduzida nos Estados Unidos. Esse tratamento ajudou-lhe a aliviar a tosse e a dispnéia. Num artigo sobre o caso Evita publicado em 1991, Canónico afirmou que ela foi o primeiro paciente argentino
a receber quimioterapia 22 .
Em junho de 1952, Eva Perón pesava apenas 36 quilos. Ela morreu em
26 de julho, tendo ao seu lado o marido e a família.
218
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(17) Canónico, A. N. "Enfermedad y muerte de Eva Perón". La Nación, 22/03/1991.
(18) Ibidem.
(19) Ibidem.
(20) Fraser e Navarro, op. cit.
(21) Conforme comunicações
pessoais de ambos, em 14 de
maio de 1999.
(22) Canónico, op. cit.
BARRON H. LERNER
Sigilo e câncer
O sigilo recobriu a doença de Eva Perón. Mediante uma série de
"mentiras piedosas" 23 por parte dos médicos e da família, o diagnóstico do
câncer foi dissimulado para Evita e o público. Hernán Benitez, o padre
jesuíta que ministrou os ritos fúnebres de Evita, declarou que "ninguém
jamais contou a ela do que estava padecendo" 24 .
Tal opção pelo sigilo não é de surpreender, uma vez que diagnósticos
de câncer eram com muita freqüência omitidos nos países ocidentais
naquela época 25 . De acordo com um estudo no âmbito dos Estados Unidos,
somente 10% dos médicos preferiam dizer a verdade aos seus pacientes 26 .
Embora muitos pacientes com câncer acabassem por saber de seus
diagnósticos no decorrer da enfermidade 27 , pelo menos no início o sigilo
era a regra. Médicos e familiares temiam que pacientes informados da
doença perdessem a esperança, ficassem deprimidos ou até cometessem
suicídio. Também na Argentina desaprovava-se dizer a verdade. O paciente
com câncer, escreveu Canónico em 1951, "prefere manter a ignorância
sobre a doença, para que haja luz no fim do túnel"28. Assim, os médicos
diziam "somente as palavras necessárias para que o paciente aceitasse o
tratamento"29. Com efeito, já em meados dos anos 1990, e em contraste com
muitos outros países do Ocidente, o ocultamento de diagnósticos de câncer
ainda era comum na Argentina30.
A celebridade de Eva Perón também influiu em seu caso. Muito se
mencionou a "síndrome VIP", pela qual personalidades importantes recebem tratamento médico inadequado seja por causa de seu próprio comportamento, seja por desempenho médico aquém do ótimo. Embora o tratamento do câncer de Evita, uma vez diagnosticada a doença, pareça ter sido o
melhor possível, a "síndrome VIP" pode explicar que ela tenha negligenciado por mais de um ano a necessária avaliação médica.
O fator político também foi potencialmente relevante. É possível que
o sigilo em torno do diagnóstico tenha em alguma medida refletido a
intenção de não afligi-la com as implicações da iminência de sua morte para
o futuro da Argentina. Além disso, pode ter suscitado o proveito de não se
revelar um fato que aumentaria a vulnerabilidade política do regime de
Perón. Como mostram os casos de enfermidade de presidentes norteamericanos 31 , o ocultamento de diagnósticos médicos por motivos políticos
ocorre não só nas sociedades autoritárias, mas também nas democracias.
E como deveríamos avaliar o papel de George Pack ao transigir com o
sigilo? Atento aos preceitos éticos da época, Pack sabia muito bem que
esconder o envolvimento numa cirurgia era extremamente incomum, mas
diversos fatores o induziram a participar no caso. Primeiro, e mais importante, Pack acreditava que prestaria uma efetiva e particular contribuição à
paciente, já que os cirurgiões argentinos tinham pouca experiência na
realização de histerectomias radicais para estágio II de câncer do colo
uterino. Segundo, o convite o gratificava, atestando suas qualidades profissio-
NOVEMBRO DE 2000
219
(23) Crassweller, R. D. Perón
and the enigmas of Argentina.
Nova York: W. W. Norton,
1987.
(24) Fraser e Navarro, op. cit.
(25) Standard, D. e Nathan, H.
(eds.). Should the patient know
the truth? Nova York: Springer, 1955.
(26) Oken, D. "What to tell
cancer patients: a study of
medical attitudes". JAMA, nº
175, 1961.
(27) Lederer, S. E. "Medical
ethics and the media: oaths,
codes and popular culture".
In: Baker, R. B. e outros (eds.).
The American medical ethics
revolution. Baltimore: Johns
Hopkins University Press,
1999.
(28) Canónico, A. N. "Responsabilidad médica en el problema del cancer". El Dia Médico,
n° 23, 1951.
(29) Canónico, "Enfermedad y
muerte de Eva Perón", loc. cit.
(30) Victoria, M. I. de G., Bertolino, L. e Pavlovsky, S. "Argentina: telling the truth to cancer patients in a multicultural
society". Bull. NY Acad. Sci.,
n° 809, 1997.
(31) Crispell, K. R. e Gomez, C.
F. Hidden illness in the White
House. Durham: Duke University Press, 1988.
A DOENÇA E MORTE DE EVA PERÓN: CÂNCER, POLÍTICA E SIGILO
nais. Por fim, deve-se considerar a forte influência do próprio governo norteamericano, por razões diplomáticas e políticas. Depois da operação, Edward
Miller Jr., assessor do secretário de Estado, congratulou Pack por contribuir
com toda a sua "proficiência e experiência profissional numa situação tão
crítica e importante". Miller ainda admitia os "aspectos embaraçosos" da
situação, em face das "especiais precauções tomadas para evitar que a
paciente viesse a saber da identidade do cirurgião"32.
De sua parte, Pack ponderou — em contraponto aos requisitos
políticos — os imperativos médicos: seu intuito era antes de mais nada
realizar uma operação bem-sucedida. Ele demonstrou ainda seu zelo para
com a relação médico-paciente ao manter a confidencialidade de Evita.
A Newsweek e outros periódicos publicaram matérias especulando que ele
havia feito a operação 33 . Como mostra a correspondência que Pack
manteve à época com Ellsworth Bunker, um conceituado diplomata de
carreira, ele não tinha "a mais remota intenção de fazer qualquer pronunciamento sobre a operação" 34 . O que ocorrera entre médico e paciente —
mesmo sendo esta uma das mulheres mais famosas do mundo — não
pertencia ao domínio público. Por sua vez, Bunker louvou a ética de Pack,
qualificando-o como "muito sensato" por não divulgar o caso. Contou-lhe
ainda que, ironicamente, Finochietto recebera uma condecoração da Confederação Geral do Trabalho argentina por sua suposta atuação na cirurgia
de Evita35.
Interessado de perto nas relações entre doença e história, Pack esperava um dia escrever sobre o caso Evita e sua participação, mas somente
depois que os detalhes sobre a enfermidade viessem a público. Desafortunadamente, porém, ele morreu em 1969. Tal empenho em prestar seu próprio
depoimento sobre o diagnóstico e tratamento de Evita, trazendo à luz mais
fatos do que outros puderam fazer36, sugere quão oportuna possa ser a
discussão sobre aqueles eventos.
Conclusão
A história da doença de Eva Perón contém elementos tanto ordinários
como extraordinários. Um cirurgião de reputação mundial removeu-lhe um
câncer de colo uterino mediante um procedimento cirúrgico que outras
pacientes argentinas muito dificilmente teriam recebido. Mas ao se furtar a
uma pronta avaliação de sua condição, e como o teste papanicolaou se
disseminou muito lentamente na Argentina, Evita não procedeu muito
diferente do que a maioria das mulheres com câncer do colo uterino.
A decisão dos médicos e familiares de lhe ocultar a verdade ocorreu
num tempo em que o paternalismo era amplamente aceito na medicina. Na
maioria das vezes os médicos simplesmente faziam o que pensavam ser o
melhor a fazer. Mas se o ocultamento do diagnóstico não faz do caso de
Evita algo incomum, os meios pelos quais ocorreu, sim. A atuação incógnita
220
NOVOS ESTUDOS N.° 58
(32) Carta de Edward G. Miller
a George Pack, 29/11/1951
(cortesia de Helen Pack).
(33) "Famous patient". Newsweek, 29/10/1951.
(34) Carta de George Pack a
Ellsworth Bunker, 14/01/1952
(cortesia de Helen Pack).
(35) Carta de Ellsworth Bunker
a George Pack, 19/02/1952
(cortesia de Helen Pack).
(36) Fraser e Navarro, op. cit.;
Canónico, "Enfermedad y
muerte de Eva Perón", loc. cit.
BARRON H. LERNER
de Pack na sala de cirurgia representava uma situação que muitos cirurgiões
(inclusive ele próprio) por princípio desaprovavam, mas era algo que —
para Pack, Canónico e outros médicos, bem como para o governo norteamericano — se justificava em face da fama e posição política de Evita.
A história de Eva Perón e George Pack, com seus secretos vôos de
avião e identidades ocultas, pode parecer hoje em dia anacrônica, mas
conflitos éticos continuam a surgir em torno do acompanhamento médico
de personalidades da política37. Como as enfermidades dos políticos às
vezes têm dramáticas implicações para os governos, os médicos podem ser
pressionados a prover informações incompletas ou tendenciosas ao divulgar diagnósticos. Os médicos que cuidaram do xá do Irã em 1979, por
exemplo, "disseram parte da verdade em parte do tempo" 38 . Quando Paul
Tsongas concorreu à Presidência dos Estados Unidos em 1992, dois de seus
médicos qualificaram-no equivocadamente como "livre do câncer" desde
um transplante de medula óssea por linfoma em 198639. Não obstante as
vicissitudes da política, médicos não deveriam jamais iludir a opinião
pública40.
Deferências políticas também podem levar a procedimentos médicos
questionáveis. Quando o presidente norte-americano Dwight Eisenhower
sofreu dores no peito em 1956, foi levado ao hospital de automóvel, e não
em uma ambulância, e ao receber alta depois de ter um enfarto do
miocárdio ele deu um verdadeiro show ao caminhar até o avião que o
levaria para casa 41 . Rivalidades entre os vários médicos do xá do Irã levaram
a um quadro diagnóstico ineficiente que comprometeu seu tratamento 42 .
É certo que a enfermidade de políticos proeminentes tem amplas
conseqüências para a sociedade, mas os médicos que cuidam dessas
personalidades deveriam vê-las — como George Pack o fez no caso de
Evita Perón — primeiro e principalmente como pacientes.
NOVEMBRO DE 2000
221
(37) Post e Robins, op. cit.
(38) Bloom, M. "The Pahlavi
problem: a superficial dignosis brought the Shah into the
United States". Science, n° 207,
1980.
(39) Annas, op. cit.; Altman, L.
K. "Tsongas's health: privacy
and the public's rights". New
York Times, 17/01/1993.
(40) Post e Robins, op. cit.
(41) Kucharski, A. "Medical
management of political patients: the case of Dwight D.
Eisenhower". Perspec. Biol.
Med., nº 22, 1978.
(42) Shawcross, W. The Shah's
last ride. Nova York: Simon
and Schuster, 1988.
Recebido para publicação em
21 de agosto de 2000.
Barron H. Lerner é doutor em
medicina do Centro de Estudos de Sociedade e Medicina
da Faculdade de Médicos e
Cirurgiões de Colúmbia, Nova
York.
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