DEUSES DA ANTIGA MESOPOTÂMIA E SANTOS CATÓLICOS

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DEUSES DA ANTIGA MESOPOTÂMIA E SANTOS CATÓLICOS –
semelhanças de devoção e proteção no imaginário popular
Gustavo Uchôas Guimarães1
Resumo
Os povos da Mesopotâmia deixaram um rico legado religioso aos povos que os
sucederam no domínio do Oriente antigo. Esta herança proliferou no mundo junto com
as religiões chamadas monoteístas, ou seja, aquelas que adoram uma só divindade, todas
elas surgidas no Oriente Médio. No Ocidente, a grande força religiosa é a Igreja
Católica, cuja doutrina em relação aos santos permite uma série de devoções que muito
se assemelham às práticas religiosas da antiga Mesopotâmia. Cada vez mais, a Igreja
Católica deve repensar as devoções de seus fiéis, para que se contextualizem na doutrina
e não alienem os indivíduos em relação ao mundo atual.
Palavras-chave: Mesopotâmia. Catolicismo. Santos. Devoções.
Introdução
Desde que o ser humano começou a organizar-se em sociedade, práticas
religiosas passaram a fazer parte do seu cotidiano, primeiro em uma forma primitiva (o
culto aos mortos)2 e depois mais complexa (reconhecimento de uma ordem espiritual
atuando sobre o mundo)3. Quanto mais o homem evoluía socialmente, mais a noção
religiosa crescia nele, sendo usada para explicar e reverenciar o que era misterioso aos
olhos humanos. A partir daí, surge o conceito de divindade e o termo deus (na antiga
língua indo-europeia, significava “brilhante”, referindo-se ao sol)4, aplicado
primeiramente a elementos da natureza e aos astros do Universo.
1
Graduado em História pela Universidade de Franca (2013) e Normal Superior (2008); Pós-graduado em
Metodologia do Ensino de História e Geografia (2014). E-mail: [email protected]
2
MONTEIRO, Domingos. O livro de todos os tempos. Rio de Janeiro: Lidador, 1963. Volume 2.
Páginas 9-33.
3
Idem, pág. 62-63.
4
PAULI, Evaldo. Religião dos indo-europeus: Exame histórico-crítico das religiões. Disponível em:
<www.simpozio.ufsc.br/Port/1-enc/y-mega/mega-filosgeral/filosofia-religiao/7270y110.html>
em:
10
de
junho
de
2011.
Ver
também:
Deuses.
<http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Deuses> Acesso em: 10 de junho de 2011.
Disponível
Acesso
em:
Na Mesopotâmia, região entre os rios Tigre e Eufrates (atual Iraque), a religião
evoluiu conforme os povos que nela dominavam, desde os sumérios (III Milênio a.C.)
até os caldeus (século VI a.C.). Vemos na religião dos povos mesopotâmicos
(principalmente sumérios, acádios, assírios e babilônios) uma íntima relação entre a
espiritualidade e o cotidiano, característica de quase todos os povos na História da
humanidade. A religião subordinava a política, a cultura e as relações sociais, tentando
explicá-las e sustentá-las. O poder dos reis era considerado como dádiva dos deuses5 e,
portanto, quem fosse contra a realeza desobedeceria também às divindades.
A grande intimidade entre a religião e o cotidiano das pessoas gerou o que
chamamos de “devoção popular”. Por devoção entendemos a dedicação e a veneração
que o ser humano tem a seres considerados “superiores”6. Assim, uma pessoa devota
reza para o ser a quem atribui poderes e de quem busca seguir o exemplo. As pessoas da
Mesopotâmia eram muito devotas, como podemos ver nas várias estátuas mostrando
indivíduos em oração. O temor de que os deuses pudessem causar catástrofes naturais
levava os devotos a assumir práticas de humildade e retidão, externada também em
forma de sacrifícios de animais, para acalmar os deuses e ganhar deles a proteção e a
prosperidade.
Nos dias atuais, o catolicismo destaca-se no Ocidente como uma religião cheia
de devoções e práticas direcionadas aos santos, pessoas de grandes virtudes que, ao
morrerem, tornar-se-iam intercessores junto a Deus, em favor dos vivos. Os católicos
têm especial devoção a Maria, mãe de Jesus Cristo e chamada de “Rainha do
Universo”7 (os sumérios também tinham uma “rainha do céu”8, chamada Inanna, deusa
do amor, da procriação e da fertilidade). Esta onda devocional acentuou-se
principalmente na Idade Média, quando os santos, no imaginário popular, passaram a
5
SCHMIDT, Mário Furley. Nova História Crítica. São Paulo: Nova Geração, 2005. 2ª edição. 5ª série
do Ensino Fundamental. Páginas 82 a 85.
6
CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2005.
7
VIER, Frei Frederico (org.). Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 2000. 29ª edição. Página
108. Constituição Dogmática Lumen gentium.
8
KRAMER, Samuel Noah et al. Mesopotâmia: o berço da civilização. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1980. Página 109.
suprir nos fiéis a necessidade de ligação com um Deus considerado distante e
vingativo9, sendo os santos, portanto, intermediários entre o divino e o humano.
Neste trabalho, veremos com detalhes esta história de devoções e sentimentos
religiosos aflorados, dividindo o assunto em três partes: na primeira, as características
da antiga religião mesopotâmica; na segunda, a doutrina católica sobre os santos e as
práticas religiosas populares (sem entrar em dogmatismos e subjetivismos, mas será
necessário um aprofundamento em certos aspectos devocionais, para melhor
compreensão do leitor); e na terceira, a influência das devoções mesopotâmicas na vida
religiosa dos católicos. Cada povo, em todas as épocas, tem um sentimento peculiar em
relação ao divino, mas em todos há essencialmente um desejo de contemplar mistérios e
ligar-se a planos considerados “superiores”, na esperança da proteção e de um sentido
para a vida neste mundo.
1 – A multidão dos deuses heroicos10
Não é aconselhável falarmos em uma “religião mesopotâmica”, como se esta
tivesse sido uniforme em toda a História da região, pois eram muitos os povos que ali
habitaram ao longo de mais de três milênios. Cada povo tinha a sua tradição religiosa, e
esta tradição predominava sobre as outras quando um povo dominava a região. Assim
temos, por exemplo, o predomínio do deus Assur enquanto os assírios reinaram sobre os
outros povos mesopotâmicos, sucedido pelo deus Marduk quando os caldeus assumiram
o controle da região11. Mesmo assim, o fato de termos várias tradições religiosas na
Mesopotâmia acarretou nas influências exercidas entre elas, como veremos a seguir.
A primeira grande civilização da Mesopotâmia foi a dos sumérios, cuja religião
viria a influenciar os mitos e tradições de povos que ali dominaram depois deles. Os
sumérios imaginaram a existência das forças naturais anterior aos próprios deuses,
pregando assim o domínio do caos no Universo, do qual se formariam os deuses e os
astros (semelhante à religião dos antigos gregos)12.
9
PINELLI, Felice. Anjos e demônios. Disponível em: <www.padrefelix.com.br/anjos22.htm> Acesso
em: 10 de junho de 2011.
10
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Páginas 105 a 123.
11
ENCICLOPÉDIA Delta Universal. Rio de Janeiro: Delta, 1988. Volume 2. Página 801. Ver também:
MONTEIRO, Domingos. Op. cit. Volume 3. Página 220.
12
ENCICLOPÉDIA Delta Universal. Volume 10. Página 5392.
1.1 – Deuses sumérios
Segundo os sumérios, Apsu (a vida) e Tiamat (a matéria) organizaram o
Universo e geraram Anshar, o Céu, e Kishar, a Terra; por causa destes, o Universo tinha
o nome de An-Ki (“Céu-Terra”)13. Anshar e Kishar se uniriam para gerar Anu, deus do
céu e senhor dos deuses, além de Ea, que origina a vida humana, e Enlil, deus do ar 14. O
panteão dos deuses sumérios ainda tinha15:
 Enki, deus da água;
 Ninhursag, deusa da mãe-terra;
 Utu, ou Shamash, deus-sol da justiça16;
 Inanna, deusa do amor (correspondente à deusa assírio-babilônica Ishtar, à
grega Afrodite e à romana Vênus);
 Nammu, deusa do mar primitivo;
 Nanna, deus-lua;
 Ninlil, ou Ereshkigal, deusa do mundo dos mortos17;
 Geshtinanna, deusa do prazer, do vinho, da música e da fertilidade18;
 entre outros.
Estes deuses tinham formas e sentimentos humanos, envolviam-se em
aventuras e alguns até mesmo morriam (para depois renascerem). Para os sumérios, os
deuses eram capazes até mesmo de crimes e traições, como na história em que o deus
Enlil estuprou a deusa Ninlil, gerando o deus Nanna, ou no mito em que o deus Enki
entrega “leis universais” nas mãos da deusa Inanna, após ela tê-lo embriagado19.
13
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Página 105.
14
Idem, pág. 106.
15
Idem.
16
Os romanos que seguiam o mitraísmo (religião persa) também adoravam um deus associado ao sol (o
Sol Invictus), celebrado no dia 25 de dezembro, data escolhida pelos cristãos para comemorar o
nascimento de Jesus Cristo, chamado de “Sol de justiça” (conforme trecho bíblico de Malaquias 3, 20).
Informação mencionada na página: <http://www.centrowhite.org.br/textos.pdf/01/66.pdf> Acesso em: 10
de junho de 2011.
17
BRITO, Daphne. Enlil e Ninlil. Disponível em: <http://dragaosumeriano.blogspot.com/2010/05/enlil-e-
ninlil.html> Acesso em: 10 de junho de 2011.
18
TAMMY,
Rainna.
História
e
o
legado
da
Suméria.
Disponível
em:
<http://luzparaasluzes.blogspot.com/2011/01/historia-e-o-legado-da-shumeria.html> Acesso em 10 de
junho de 2011.
19
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Páginas 108 e 109.
As crenças sumérias diziam que o Universo fora criado das águas, que seriam
primitivas e eternas20. Esta noção de águas primitivas anteriores à criação sobrevive
ainda hoje na tradição judaico-cristã, através do texto bíblico que diz21: “No princípio,
Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo e
o Espírito de Deus pairava sobre as águas”. (Gênesis 1, 1-2)
Os deuses principais (An, Enlil, Enki e Ninhursag) tudo criaram com simples
palavras (paralelo ao “Faça-se” no relato bíblico da criação) e depois entregaram o
Universo aos cuidados dos demais deuses22.
1.2 – Cidades-estado
Os sumérios nunca formaram um Estado unido, mas eram divididos em
cidades-estado, cada uma com seu rei e seu deus protetor. O modelo de cidades-estado
viria a ser imitado principalmente entre os gregos, os fenícios e os maias, e ainda hoje
sobrevive na Europa (Vaticano e Mônaco) e na Ásia (Cingapura)23. As cidades-estado
sumérias eram: Ur, Uruk (ou Erech), Eridu, Lagash, Nippur, Kish, Adab, Umma, Sipar,
Larak, Akshak, Larsa e Bad-tibira24. Periodicamente, uma delas se impunha sobre as
outras, normalmente pela guerra, e o deus daquela cidade também passava a “dominar”.
A discórdia entre as cidades sumérias foi a principal causa das invasões que destruíram
o povo sumério25 entre os séculos XXIV e XX a.C. Apesar da destruição das cidades e
do desaparecimento do povo, a cultura suméria continuou influenciando os povos
posteriores. Assírios e babilônios, por exemplo, adotaram vários deuses e mitos da
antiga Suméria.
1.3 – Devoções mesopotâmicas
20
Idem, pág. 105.
21
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Bíblia Sagrada. Brasília e São Paulo:
Edições CNBB e Canção Nova, 2007. 6ª edição.
22
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Página 106.
23
JUAREZ, Rodolfo. No “pires” uma carta de oito pontos com propostas genéricas. Disponível em:
<http://www.jdia.com.br/pagina.php?pg=exibir_not&idnoticia=32700> Acesso em 13 de junho de 2011.
24
MOURA,
Francisco
das
Chagas.
Os
sumérios.
Disponível
em:
<http://portaldoconhecimentonet.blogspot.com/2009/04/os-sumerios.html> Acesso em: 13 de junho de
2011. Ver também: Uruk. Disponível em: <http://www.tiosam.org/enciclopedia/index.asp?q=Uruk>
Acesso em 13 de junho de 2011.
25
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Páginas 40 a 42.
Entre os povos da Mesopotâmia, a devoção pelos deuses era questão de
sobrevivência. Para eles, o favor dos deuses era a principal causa da prosperidade e do
bem-estar26. Por isto, o serviço religioso era levado extremamente a sério, e os bens
considerados propriedades do deus eram administrados pelo rei do lugar, auxiliado por
seus funcionários. O rei visitava o templo para informar o deus sobre a situação da
cidade e para fazer oferendas27. Já o povo servia passivamente aos deuses, consequência
da mentalidade dominante nas tradições religiosas mesopotâmicas.
Para os devotos, o ser humano fora criado para servir aos deuses e aceitar suas
vontades. Resignados, contentavam-se com os mitos como explicação de seu destino
sobre a terra, oferecendo alimento e abrigo às divindades, em troca da proteção nesta
vida, já que sua visão de “vida após a morte” era pessimista 28: para os sumérios e os
povos que vieram depois, o espírito do falecido descia ao mundo dos mortos, onde era
julgado pelo deus-sol e passava a ter uma “vida” muitas vezes melancólica. Ainda na
visão mesopotâmica, os mortos atravessavam um rio para chegarem às profundezas
onde seriam julgados (vemos tal ideia também na mitologia grega); além disto, o mundo
dos mortos tinha uma hierarquia, na qual os “melhores” lugares eram dos reis e dos
nobres.
Tamanha resignação levou os mesopotâmicos a crerem que os grandes deuses
eram distantes e muito ocupados para atenderem os clamores do homem comum. Por
isto, surgiu a ideia de “deuses pessoais”29. O indivíduo ou uma família tinha o seu “deus
padroeiro”, que intercedia em seu favor.
1.4 – Herança dos sumérios passada a outros povos
O imaginário sumério passou, como já foi dito, às tradições religiosas
posteriores. Dentro da Mesopotâmia, os acádios, assírios, babilônios, caldeus, entre
outros, conciliaram tradições próprias com as dos sumérios, carregando ao longo dos
séculos noções que culminariam em ideias como a existência de demônios ou o mito de
um dilúvio que arrasou toda a terra (ideias fortemente presentes nas atuais religiões
monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo).
26
Idem, pág. 86.
27
Idem, pág. 92.
28
Idem, pág. 110-112.
29
Idem, pág. 111. Ver também: Um breve olhar sobre a religião na Mesopotâmia. Disponível em:
<http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/brevepanrel.html> Acesso em: 13 de junho de 2011.
Falando em demônios, estes eram, na visão dos sumérios e dos povos depois
deles, espíritos que podiam auxiliar ou destruir com seus poderes, estando abaixo dos
deuses ou equiparando-se a eles. Entre os sumérios, acreditava-se, por exemplo, em
Nergal, o deus-peste30, que guardava o mundo dos mortos com a deusa Ereshkigal.
Criam ainda que vários demônios (os galla) auxiliavam na organização do mundo dos
mortos. Outro conhecido demônio mesopotâmico era Puzuzu, o demônio dos ventos31,
que protegia o parto das mulheres contra o demônio feminino Lamashtu.
Mesmo influenciados pelos sumérios, os babilônios e os assírios mantiveram
importantes tradições religiosas, como a adoração de El32, ou Ilu33, que aparece entre os
principais deuses da Babilônia no tempo de Hamurabi (também com o nome de Marduk
ou Bel) e que recebia o nome de Assur entre os assírios. Além de Assur, eram cultuados
pelos assírios34: Nabu, deus da sabedoria; Ninurta, deus da guerra; Ishtar, deusa do
amor; Adad, deus da chuva, dos relâmpagos e da fertilidade; entre outros. Estes deuses
eram também cultuados pelos babilônios, que ainda adoravam deuses cósmicos, como
Sin (a Lua) e Shamash (o Sol)35. Muitos destes deuses eram cultuados também por
povos ao redor da Mesopotâmia, como podemos ver no culto ao deus Tammuz,
originário na Babilônia (onde ele era deus da primavera, das flores e dos filhotes)36 e
que logo espalhou-se pelos povos vizinhos. Identificamos Tammuz com o deus fenício
Baal e o grego Adônis; Tammuz é também o nome de um dos meses do calendário
30
Ver nota 29.
31
Ver nota 4.
32
Pequeno
glossário
de
religião
da
Mesopotâmia.
Disponível
em:
<http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/glossa1.html> Acesso em: 13 de junho de 2011.
33
El, o mesmo que Ilu, aparecia em várias mitologias do Oriente Médio, principalmente nos mitos da
Fenícia, do Império Hitita e de Israel. Neste último, passou a ser o Deus hebreu, com o nome de Iahweh.
O deus El era representado em Ugarit (Fenícia) como um touro, fazendo-nos lembrar dos touros de ouro
construídos por Aarão, irmão de Moisés (Êxodo 32,1-6), e pelo rei hebreu Jeroboão (1Reis 12,28-29); nos
dois casos bíblicos, porém, o relato diz que os touros foram reprovados por Iahweh. Sobre El e sua
relação com Iahweh, que reprovou os touros, veja: LOPES, José e VERSIGNASSI, Alexandre. Deus –
uma biografia. Revista Superinteressante. São Paulo, Editora Abril, nº 284, páginas 58 a 67, novembro
de 2010. Ver também: OLIVEIRA, Marlanfe Tavares de. A hierarquia dos nomes divinos. Disponível
em: <http://www.ictys.kit.net/Cabala/pasta04/hierarquia.pdf> Acesso em: 13 de junho de 2011.
34
Ver nota 11.
35
Ver nota 32.
36
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994.
judaico37, além de ter sido, na Antiguidade, celebrado pelos hebreus, que lembravam
sua morte, como podemos ver no relato bíblico a seguir38: “Conduziu-me então à
entrada do portal do Templo de Iahweh, que dá para o norte, e eis ali as mulheres
sentadas a chorar por Tamuz”. (Ezequiel 8, 14).
As tradições religiosas da antiga Mesopotâmia perdem força com as sucessivas
invasões de povos estrangeiros a partir do século VI a.C., quando a região passa a
integrar os Impérios Persa, Macedônio e Sírio. Mesmo assim, conceitos e mitos
mesopotâmicos têm passado a vários povos e influenciado as religiões monoteístas. O
cardeal católico John Henry Newman (século XIX), por exemplo, enumera algumas
heranças que o cristianismo adotou das práticas mesopotâmicas39: ofertas como
agradecimento pela cura de uma doença, o uso da aliança de casamento40, a oração aos
mortos, entre outros costumes. Além destes, as religiões monoteístas também herdaram
mitos (como o dilúvio, a criação e a torre de Babel) e de certa forma a própria ideia de
monoteísmo41 (apesar de sempre terem sido politeístas, os mesopotâmicos, dependendo
da cidade ou da época, exaltavam tanto um deus que quase chegavam à prática
monoteísta).
Boa parte da bagagem religiosa dos povos mesopotâmicos chegou, em
adaptações, ao imaginário cristão (principalmente o católico) através do judaísmo, a
partir do qual o cristianismo espalhou sua mensagem pelo mundo. Veremos como é a
doutrina católica sobre os santos e sua relação com as práticas religiosas
mesopotâmicas.
37
O mês de Tamuz. Disponível em: <http://www.chabad.org.br/datas/calendario/tamuz.html> Acesso
em: 13 de junho de 2011.
38
A Bíblia de Jerusalém. A citação refere-se ao mito mesopotâmico da morte de Tammuz, que era
esposo da deusa Ishtar. Esta lenda nada mais é do que uma adaptação do mito sumério de Dumuzi, rei e
esposo da deusa Inanna. Para conhecer melhor o mito de Tammuz, veja: MONCAY, Lara. Mitologia
assíria-babilônica. Disponível em: <http://cantinhodosdeuses.blogspot.com/2011/03/mitologia-assiriababilonica.html> Acesso em: 13 de junho de 2011.
39
Babilônia.
Disponível
em:
<http://www.nehnaarab.net/component/content/article/128-
babilonia.html?start=1> Acesso em: 14 de junho de 2011.
40
OLIVEIRA, Pastor Denis de. Por que as Testemunhas de Jeová não comemoram aniversário.
Disponível em: <http://www.webservos.com.br/gospel/estudos/estudos_show.asp?id=399> Acesso em:
14 de junho de 2011.
41
Mesopotâmia e seus povos. Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/civilizacao-
mesopotamica/mesopotamia-e-seus-povos-2.php> Acesso em: 14 de junho de 2011.
2 – A multidão das testemunhas virtuosas
“Eis que vi uma grande multidão, que
ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos
e línguas. Estavam de pé diante do trono e diante do
Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na
mão”. (Apocalipse 7,9)
“...com tal nuvem de testemunhas ao nosso
redor... corramos com perseverança... com os olhos
fixos naquele que é o autor e realizador da fé, Jesus”.
(Carta aos Hebreus 12,1-2)
Os textos bíblicos acima citados pertencem ao Novo Testamento 42, conjunto de
livros escritos pelos primeiros cristãos. Os trechos falam de uma multidão de
testemunhas que nada mais são o que a Bíblia chama de “santos”. Para compreendermos
as práticas religiosas católicas em relação aos santos, precisamos entender os conceitos
de “santo” e “santidade”, assim como a doutrina católica a respeito do culto aos santos.
2.1 – Definição do termo “santo” e surgimento da devoção aos santos
O termo “santo” vem do latim sanctus, a partir do verbo sancire, que significa
“delimitar”, “separar”43, referindo-se ao que, por razões religiosas, é delimitado e
separado daquilo que é considerado “profano”. Na Igreja Católica, santo vai além do
que é material, designando também pessoas que vivem virtuosamente e que são
exemplo de fé e boas obras. Em relação à “santidade”, é definida como “um
comprometer-se com Deus, vinte e quatro horas por dia... é um estilo de vida segundo o
Espírito de Cristo”44.
A Bíblia traz o termo “santo” para falar de pessoas vivas (conforme
1Tessalonicenses 4,3 e 1Pedro 2,9), extensivamente a todos os que se convertiam à fé
cristã. Com o passar dos séculos, porém, a mentalidade em relação aos santos
transformou-se, com os católicos cada vez mais voltados aos “santos falecidos”. Para
42
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994.
43
RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Santidade. São Paulo: Loyola, 2006. Pág. 8. Apostila
5. Módulo básico da Escola Paulo Apóstolo.
44
Idem, pág. 9.
Bastos (2006), os “eleitos de Deus” (assim como o clero) sobrepuseram-se aos demais,
trazendo para si a exclusividade da mediação entre o humano e o divino. A noção de um
Deus distante fez com que o “monopólio da vontade divina” ficasse nas mãos do clero
(papa, bispos e padres), que eram, junto com os santos, intermediários na relação do
povo com Deus. Assim, estrutura-se a teologia45, conjunto de saberes a respeito do
divino.
A relação com os santos, no entanto, não começa na Idade Média. Desde os
primórdios do cristianismo, há uma veneração aos justos que morreram e a sua
importância como exemplares seguidores de Cristo. O bispo Policarpo, no século II,
escreve sobre isto46: “Nós adoramos Cristo qual Filho de Deus. Quanto aos mártires,
os amamos quais discípulos e imitadores do Senhor e, o que é justo, por causa de sua
incomparável devoção por seu Rei e Mestre”.
Sobre esta união com santos descrita por Policarpo, o documento Lumen
Gentium, do Concílio Vaticano II (1962-1965), diz47: “Veneramos a memória dos
habitantes do céu ... para corroborar a união de toda a Igreja no Espírito ... O
consórcio com os santos nos une a Cristo”.
2.2 – As relíquias dos santos
Junto com a devoção aos santos, surgiu também o costume de se guardar e
venerar as relíquias dos santos, objetos que para os cristãos teriam o poder de ligar o fiel
a Deus. O costume de se venerar relíquias começou muito cedo na Igreja. A história dos
primeiros santos conta que o bispo Policarpo foi morto em uma arena, diante do
governador, e que os restos mortais foram tão disputados, ao ponto dos judeus pedirem
ao governador que não entregasse os restos do bispo aos cristãos, temendo que a
multidão o adorasse no lugar de Jesus e que por isto fizesse incontroláveis tumultos na
cidade48.
Sobre as relíquias, ainda hoje a Igreja Católica recomenda que sejam
autênticas49 e que mostrem aos fiéis os exemplos a serem seguidos. Esta recomendação
45
CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ática, 2004. Página 136.
46
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000. Parágrafo 957.
47
Idem.
48
São Policarpo, bispo e mártir. Disponível em: <http://beinbetter.wordpress.com/2010/02/23/sao-
policarpo-bispo-e-martir/> Acesso em: 15 de junho de 2011.
49
VIER, Frei Frederico (org.). Op. cit. Página 298. Constituição Sacrossanctum Concilium.
de autenticidade refere-se ao absurdo costume da falsificação de relíquias, praticado
frequentemente na Idade Média, período em que cidades chegavam a guerrear,
disputando uma relíquia de santo (como a guerra entre as cidades italianas de Benevento
e Bari)50. A fixação dos fiéis pelas relíquias margeava o fetichismo51, tamanhos eram o
poder atribuído aos objetos santos e a necessidade que as pessoas sentiam de terem tais
objetos, o que lhes conferiria um certo status. Atualmente, a devoção pelas relíquias dos
santos e suas imagens (das quais falaremos a seguir) é incentivada pela Igreja com a
condição de serem ordenadas e não levantarem “devoções incorretas”52.
2.3 – As imagens sagradas
Além das relíquias, outra característica muito forte das devoções católicas é o
uso de imagens. Na Bíblia, vemos Deus proibindo imagens que representem a ele
mesmo ou a criaturas com fins de adoração (Êxodo 20,4-5), ao mesmo tempo em que
permite imagens de querubins53 na Arca da Aliança (Êxodo 25,18) e de uma serpente
numa haste de madeira (Números 21,8-9). Entre os primeiros cristãos, vemos pinturas
nas catacumbas54, representando principalmente Jesus Cristo (além de uma
representação de Maria, mãe de Jesus), mas foi na Idade Média que as imagens
esculpidas tornaram-se populares, muitas vezes como opção pedagógica para ensinar os
fiéis (lembrando que, na Idade Média, a maioria da população era analfabeta).
Rapidamente, as imagens passaram a ser parte importantíssima no devocionário
50
BASTOS, Mário Jorge da Motta. Santidade, hierarquia e dependência na Alta Idade Média.
Disponível em: <http://www.pime.org.br/missaojovem/mjhistdaigrejamedia.htm> Acesso em: 14 de
junho de 2011.
51
URANTIA
FOUNDATION.
Fetiches,
encantos
e
magias.
Disponível
em:
<http://www.urantia.org/pt/o-livro-de-urantia/documento-88-fetiches-encantos-e-magias> Acesso em: 15
de junho de 2011.
52
VIER, Frei Frederico (org.). Op. cit. Página 303. Constituição Sacrossanctum Concilium.
53
Querubim é, no pensamento judeu, uma criatura com asas, semelhante aos anjos. O termo pode vir do
babilônico karibu, que se referia aos seres meio homens e meio animais que protegiam as portas de
templos e palácios, ou ainda do assírio Kirabu, um deus metade homem e metade touro com asas. Para
melhor entender os querubins, veja: A Bíblia de Jerusalém. Nota explicativa do trecho de Êxodo 25,18.
Ver também: TOMAZINE, Anderson de Castro. Arcanjos-anjos-serafins-querubins. Disponível em:
<http://www.dedechi.hd1.com.br/anjos.html> Acesso em: 15 de junho de 2011.
54
Catecismo da Igreja Católica. Páginas 19 e 299.
popular, como que uma necessidade de tornar palpável a presença de Deus e dos fiéis
falecidos.
2.4 – Canonização dos santos55
Com o passar do tempo, porém, as devoções populares ganharam tons de
extremo abuso, distanciando-se da doutrina da Igreja. Esta, para combater os abusos no
culto aos santos, criou os ritos de beatificação e canonização, etapas nas quais a Igreja
analisa as virtudes do “candidato” a santo e, mediante milagres comprovados por sua
intercessão, o declara digno dos altares, ou seja, permite que os fiéis o venerem e façam
imagens suas.
Até o século X, um fiel falecido podia tornar-se santo por aclamação popular
ou pelo fato de ter sido mártir, isto é, ter morrido em defesa da fé. O primeiro santo
canonizado pela Igreja foi Ulrich (890-973), bispo de Augsburgo56, proclamado santo
em 993 pelo papa João XV. Desde então, a Igreja tornou-se extremamente meticulosa
no processo de canonização (Joana D’Arc, por exemplo, foi canonizada 489 anos após
sua morte, pelo papa Bento XV, em 1920). Raríssimos casos são exceção nesta atitude
da Igreja, como o do padre Antônio de Lisboa (o famoso Santo Antônio), canonizado
apenas onze meses após sua morte, em 123157.
Como o processo de canonização envolve milagres feitos por intercessão do
“candidato” a santo, podemos afirmar que a Igreja Católica admite que seus fiéis
dirijam-se aos mortos em busca de auxílio58, embora proíba a evocação do espírito59, ou
seja, que se chame o espírito de alguém para obter revelações, como era prática no
antigo Israel (conforme 1Samuel 28,3-25, em que o rei Saul evoca o espírito do profeta
Samuel). Esta permissão dada aos fiéis para que orem aos falecidos faz parte do que a
55
ENCICLOPÉDIA Barsa. Rio de Janeiro e São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1982.
Volume 5. Página 60.
56
04 de julho – Santo Ulrico. Disponível em: <http://www.fotolog.com.br/oracoes/15665005> Acesso
em: 15 de junho de 2011.
57
Santo
Antônio
de
Lisboa.
Disponível
em:
<http://www.igrejahoje.com.br/site/index2.php?pagina=revistas&id=515> Acesso em: 15 de junho de
2011.
58
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 2683.
59
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 2116. Para ver o ponto de vista do espiritismo a respeito da
evocação dos mortos, recomenda-se a página <http://www.espirito.org.br/portal/codificacao/re/1863/6310-da-proibicao-de-evocar.html> Acesso em: 15 de junho de 2011.
Igreja chama de “comunhão dos santos”60, na qual os fiéis, vivos ou mortos,
permanecem unidos em Jesus Cristo, segundo a doutrina católica.
2.5 – Orações e festas aos santos
Dado o incentivo da Igreja para que os fiéis recorram aos santos, os católicos
organizaram, com o passar dos séculos, uma série de devocionais compostos por festas,
músicas e orações em homenagem a seus santos padroeiros. O termo “padroeiro” referese aqui ao santo adotado como protetor por um indivíduo ou grupo. Mais adiante,
falaremos mais detalhadamente sobre os santos protetores.
Voltando aos devocionais, hoje são inúmeras as festas dedicadas aos santos,
com expressões populares próprias e ricas manifestações culturais, que por vezes
desviam-se da doutrina católica, como no caso da devoção ao Divino Pai Eterno,
amplamente divulgada no interior do Brasil. Vamos nos deter um pouco nesta devoção,
para depois prosseguirmos.
A devoção ao Divino Pai Eterno começou em 184061, no interior do estado de
Goiás, quando um casal de agricultores encontrou um medalhão em que se via a
Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) coroando Maria, mãe de Jesus (o
Filho). Na época, um artista da região fez uma imagem baseada no medalhão, e esta
imagem é até hoje venerada em Trindade, cidade goiana. Todos os anos, milhares de
pessoas peregrinam até o município de Trindade, para visitarem o Santuário do Divino
Pai Eterno. Nesta devoção encontramos um desvio em relação à doutrina católica e uma
característica devocional tipicamente popular: o desvio está na representação do Pai,
visto que a doutrina católica só permite imagens de Jesus, de Maria e dos santos, por
estes terem vivido neste mundo62, além da doutrina católica baseada nos dizeres de
Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (João 14, 9)63; e a característica devocional popular
60
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 1331.
61
Devoção.
Disponível
em:
<http://www.paieterno.com.br/?class=Textos&method=onListar&tipo=devocao> Acesso em: 15 de junho
de 2011.
62
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 1159.
Na mencionada passagem, Jesus responde a um questionamento do apóstolo Felipe: “Senhor, mostranos o Pai e isso nos basta!” (João 14,8). Por este trecho, a Igreja Católica entende que não é necessário
representar o Pai, primeira pessoa da Santíssima Trindade.
63
refere-se à exaltação de Maria, colocando-a em pé de igualdade com Deus (veremos
mais adiante a respeito da devoção mariana entre os católicos).
Além da devoção acima detalhada, muitas outras compõem o calendário
festivo e a vida de oração dos católicos. Algumas festas acabaram tornando-se marcas
importantes da cultura popular brasileira, como a Festa dos Santos Reis e as Festas
Juninas. Nesta última, os santos celebrados são o apóstolo Pedro, o profeta João Batista
e o padre Antônio de Lisboa, e ocorrem diversas festividades em todo o país, com
animados folguedos que param as atividades rotineiras em muitas regiões.
Normalmente, estas festas se caracterizam principalmente por procissões em
homenagem aos santos, tendo suas imagens carregadas pelas ruas das cidades, além das
missas e de todo o itinerário de promessas feitas ou cumpridas. Todas estas maneiras de
se celebrar o santo ficam mais evidentes nas cidades pequenas do interior, onde a gente
simples é mais apegada às devoções pelos santos.
Os bispos latino-americanos, reunidos em 2007 na cidade de Aparecida (estado
de São Paulo), chamaram a atenção da religiosidade popular como uma “história
compartilhada” que conduz a Cristo64. No entanto, dentro da Igreja Católica tem-se
pensado a questão das devoções populares, olhando principalmente para os “aspectos
que não provêm da inspiração evangélica”65.
2.6 – Santos padroeiros
Um costume muito arraigado entre os católicos é o de estabelecer santos
protetores para todos os aspectos da vida (indivíduos, lugares, fenômenos naturais,
profissões, entre outros). Este costume se espalhou principalmente na Idade Média,
quando as pessoas viam Deus como um ser distante e recorriam aos santos para pedir
auxílio em todas as situações.
A escolha daquilo que o santo vai “proteger” depende de fatores como:
detalhes da vida do santo, graça recebida pelo devoto, lugar onde o devoto se
estabelece, fato importante ocorrido no dia consagrado ao santo, entre outros. Assim
temos, por exemplo, Santo Antônio como “santo casamenteiro” porque celebrava
64
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida. Brasília e
São Paulo: CNBB, Paulus e Paulinas, 2007. 3ª edição. Página 32.
65
VITALINO, Dom Antônio. Repensar as manifestações religiosas populares. Disponível em:
<http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=86143> Acesso em: 15 de junho de 2011.
Entrevista cedida a Luís Filipe Santos.
muitos casamentos quando era padre, ou São Francisco de Assis como “protetor dos
animais” porque dialogava com eles quando orava no bosque.
A devoção ao santo padroeiro chega a apresentar algumas peculiaridades,
como a escolha de São Sabiano e São Zenon como protetores dos que aprendem a
nadar, ou de São Paulo (o apóstolo) como protetor contra câimbras e mordidas de
cobras66. Lugares também recebem padroeiros, como o Brasil (“apadrinhado” por Nossa
Senhora Aparecida) e até mesmo a ateia China (“protegida” por São José). As
profissões não escapam deste costume: nelas podemos ver São Lucas como padroeiro
dos pintores e dos vidraceiros, ou Santo Ivo como padroeiro dos advogados67. Enfim,
todas as situações da vida recebem um santo protetor, que garanta ao fiel relativa
segurança em sua existência.
2.7 – Lendas católicas?
Quando um herói se destaca, logo seus admiradores espalham histórias a seu
respeito, enfatizando façanhas e exaltando a coragem e as virtudes que lhe conferiram o
heroísmo. Esta é justamente a prática que se viu na Igreja Católica ao longo dos séculos:
os fiéis espalharam várias histórias sobre os santos, até chegarmos ao incontável
conjunto de memórias, reais ou fictícias, que caracterizam as devoções populares.
O objetivo da divulgação das histórias dos santos é eternizar as virtudes dos
fiéis falecidos e mostrar aos vivos as atitudes de quem quer chegar ao Céu. Várias
histórias são verossímeis e refletem o que realmente o santo viveu, porém outras
recorrem a recursos de narração lendária que lhes conferem um caráter puramente de
entretenimento.
Entre as lendas católicas, uma das mais conhecidas é a de São Jorge68.
Historicamente, foi um soldado romano morto pelo imperador Diocleciano no início do
século IV. Porém, ficou famoso pela lenda em que salva uma princesa que seria
devorada por um feroz dragão (semelhante ao mito nórdico envolvendo o herói
66
Santos protetores. Disponível em: <http://www.cademeusanto.com.br/protetores.htm> Acesso em: 15
de junho de 2011.
67
Santos
padroeiros.
Disponível
em:
<http://www.portaldascuriosidades.com/forum/index.php?topic=19001.0> Acesso em: 15 de junho de
2011.
68
São
Jorge
–
o
santo
guerreiro.
Disponível
<http://www.casadobruxo.com.br/textos/magia94.htm> Acesso em: 15 de junho de 2011.
em:
Sigurd69). Outra lenda refere-se a Santa Úrsula, princesa britânica do século IV que foi
morta quando ia ao encontro de seu noivo junto com 11 mil virgens70.
Até hoje, as histórias dos santos fascinam os católicos pelas demonstrações de
fé dada por eles enquanto eram vivos, e isto encoraja os fiéis em suas devoções,
levando-os a uma relativa firmeza dentro de suas convicções a respeito da Igreja.
2.8 – Maria, centro de intensa devoção católica
A Igreja Católica, ao longo de sua história, adotou quatro dogmas (“verdades
da fé”) a respeito de Maria71:
1. Pan-hagia, que em grego significa “toda santa”, título dado pelos padres do
Oriente para dizerem que ela é Imaculada, ou seja, nasceu e viveu sem pecado.
2. Aeiparthenos, que em grego significa “sempre virgem”, atestando que Maria
permaneceu virgem antes, durante e depois da gravidez na qual gerou Jesus Cristo.
3. Theotokos, que em grego significa “mãe de Deus”, dizendo que ela, sendo
criatura de Deus, tornou-se também mãe dele, ao conceber e gerar Jesus.
4. Assunta ao céu, ou seja, levada em corpo e alma para a presença de Deus.
Estes quatro dogmas fundamentam a fé católica na pessoa de Maria e na sua
importância como instrumento da salvação que, segundo o catolicismo, Deus trouxe à
humanidade em Jesus Cristo. No entanto, a prática devocional católica vai muito além
da crença nestes dogmas, expressando-se por vezes exageradamente em homenagens e
cultos à mãe de Jesus. Para se ter uma ideia da importância de Maria nos cultos
católicos, basta vermos que estes cultos são classificados em três níveis72: latria (em
grego, significa “adorar”), culto dirigido a Deus; hiperdulia (em grego, “dulia” significa
“honrar”), culto dirigido a Maria; e dulia, culto dirigido aos santos. Pela classificação
dos cultos, portanto, Maria tem importância maior que a dos santos, estando apenas
abaixo de Deus.
69
Dia de São Jorge. Disponível em: <http://fsj.edu.br/feriadosDatasEspeciais/abril/diadesaojorge.pdf>
Acesso em: 15 de junho de 2011.
70
Santa
Úrsula
e
companheiras.
Disponível
em:
<http://www.portalangels.com/santo_do_dia/21outubro.htm> Acesso em: 15 de junho de 2011.
71
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 487 a 507 e 966.
72
Intercessão dos Santos. Disponível em: <http://www.lepanto.com.br/dados/ApSantos.html> Acesso
em: 16 de junho de 2011.
Para o catolicismo, existem duas expressões do culto a Maria73, sendo elas as
festas litúrgicas, quando a Igreja celebra fatos da vida de Maria ou títulos que lhe
atribuem qualidades especiais, e as “orações marianas”, sendo a principal delas o
Rosário.
O Rosário foi criado como um conjunto de 150 orações da Ave-Maria,
divididas em 15 dezenas, todas iniciadas com a oração do Pai-Nosso, sendo cada dezena
uma memória de fatos da vida de Jesus e de Maria74. A devoção do Rosário surgiu na
Igreja por volta do ano 800, como uma forma do povo rezar à maneira dos monges
(estes tinham suas orações baseadas nos 150 salmos bíblicos). Em 2002, o papa João
Paulo II acrescentou mais cinco dezenas ao Rosário, através da Carta Apostólica
Rosarium Virginis Marie.
Na medida em que os católicos aumentavam sua devoção por Maria, foram
atribuindo-lhe títulos, referentes a lugares, qualidades ou situações que deveriam ser
“protegidos” pela mãe de Jesus. No início, Maria foi chamada de “Nossa Senhora”
(lembrando que o nome Maria vem do hebraico75, significando “senhora” ou
“soberana”). Com o passar dos anos, o título Nossa Senhora ganhou novos acréscimos,
originando os inúmeros títulos com que hoje os católicos a ela se dirigem em suas
orações76.
Temos, por exemplo, títulos que remetem a lugares onde Maria teria aparecido
aos fiéis, como Nossa Senhora de Fátima (Portugal) e Nossa Senhora de Lourdes
(França); ou ainda, títulos que se referem aos dogmas católicos, como Nossa Senhora da
Assunção e Nossa Senhora da Conceição; e ainda títulos que lembram atribuições de
Maria (Nossa Senhora do Bom Conselho e Nossa Senhora da Consolação) ou fatos de
sua vida (Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora da Glória). Alguns títulos nos
73
74
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 971.
Como surgiu a oração do santo Rosário. Disponível em: <http://www.acidigital.com/rosario/>
Acesso em: 16 de junho de 2011.
75
Significado e origem dos nomes: letra M. Disponível em: <http://www.portalbrasil.net/nomes/m.htm>
Acesso em: 16 de junho de 2011.
76
Títulos de
Nossa
Senhora.
Disponível
senhora.php> Acesso em: 16 de junho de 2011.
em: <http://www.cot.org.br/igreja/titulos-de-nossa-
admiram pela inventividade de quem os criou, como Nossa Senhora do Equilíbrio77 e
Nossa Senhora das Estradas78.
Tão variados quanto os títulos são também as “orações prontas” dirigidas a
Maria. Uma das mais conhecidas é o Ofício da Imaculada Conceição79, que contém
diversas atribuições a Maria, como “co-redentora”, “rainha dos céus”, “senhora do
mundo” e “rainha dos anjos”. Em outra oração dos devotos, Maria é chamada de
“Augusta rainha do céu e senhora dos anjos”, com os fiéis clamando o auxílio das
legiões de anjos que estariam sob suas ordens, o que é contrário à doutrina católica que
diz80: “Os anjos são servidores e mensageiros de Deus... poderosos executores de sua
palavra, obedientes ao som de sua palavra”.
O título mariano de “co-redentora” também é contrário à doutrina oficial da
Igreja Católica, que coloca Maria na condição de serva e fruto da redenção 81 trazida,
segundo o cristianismo, na figura de Jesus Cristo e em sua morte na cruz.
Cada vez mais, os devotos aumentam sua admiração e veneração por Maria,
muitas vezes incentivados pelo clero, que exorta os fiéis a aprenderem sobre Deus na
“escola de Maria”82.
2.9 – Rompimento protestante
Se estamos, nesta seção do artigo, falando sobre a devoção aos santos à luz da
doutrina católica, porque falar em protestantismo e rompimento com a Igreja Católica?
Justamente a devoção aos santos (incluindo Maria) é um dos pontos de maior
divergência entre católicos e protestantes, cada qual interpretando a Bíblia conforme
acredita ser a verdade.
77
REIS, Reinalda Delgado dos (org.). Orações selecionadas por cura, libertação e intercessão. São
Paulo: Loyola, 2001. Página 157.
78
Mês
de
Maria
e
seus
inúmeros
títulos.
Disponível
em:
<http://www.comshalom.org/formacao/exibir.php?form_id=1861> Acesso em: 16 de junho de 2011.
79
Ofício
da
Imaculada
Conceição
da
Virgem
Maria.
Disponível
em:
<http://www.paginaoriente.com/titulos/oficio.htm> Acesso em: 16 de junho de 2011.
80
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 329. O trecho do Catecismo cita a passagem bíblica do
Salmo 103,20.
81
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 494 e 508.
82
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Op. cit. Parágrafo 270.
O protestantismo nasceu em 1517, quando o padre alemão Martinho Lutero
publicou suas “95 teses”83, que criticavam principalmente a venda de indulgências
(perdão dos pecados). Antes de Lutero, porém, outros pregadores já haviam questionado
o poder da Igreja Católica sobre a Europa medieval84, mas foi Lutero quem fez a maior
revolução, originando a divisão que persiste até hoje no cristianismo.
As igrejas que foram fundadas após a chamada Reforma Protestante (o
movimento luterano) adotaram práticas que as distanciaram dos costumes católicos.
Assim, os protestantes logo rejeitaram a devoção aos santos85, alegando que seriam
costumes idólatras da Igreja Católica (idolatria é um termo grego que se refere à
adoração de outros deuses que não sejam o Deus cristão), embora os luteranos,
particularmente, conservem um calendário religioso semelhante ao católico86, inclusive
com a memória de alguns santos (o “Calendário dos Santos da Igreja Luterana”87).
Atualmente, as igrejas mais ferrenhas em suas críticas às devoções católicas
são as chamadas “pentecostais”, que abertamente chamam os católicos de “idólatras”,
“hereges”, “sincréticos” e “politeístas”88. Estas igrejas crescem cada vez mais,
principalmente no Brasil, com milhões de fiéis que frequentam igrejas com inúmeras
denominações.
3 – Relações entre o mundo heroico e o mundo virtuoso
83
AZEVEDO, Gislaine Campos; SERIACOPI, Reinaldo. História. São Paulo: Ática, 2007. Página 142.
Ver
também:
As
95
teses
de
Lutero.
Disponível
em:
<http://www.cacp.org.br/estudos/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=857&menu=7&submenu=1>
Acesso
em: 16 de junho de 2011.
84
O cristianismo, antes de Lutero, tivera outras divisões, sendo a principal delas entre os católicos do
Ocidente e os do Oriente, em 1054, que deu origem às igrejas ortodoxas espalhadas principalmente na
Europa Oriental e no Oriente Médio.
85
Protestantismo. Disponível em: <http://www.casadobruxo.com.br/religa/protestantismo.htm> Acesso
em: 16 de junho de 2011.
86
Luterana. Disponível em: <http://www.brazilsite.com.br/religiao/evangelica/lut01.htm> Acesso em:
16 de junho de 2011.
87
Santos no protestantismo. Disponível em: <http://charlesgomes.wordpress.com/2008/12/06/santos-
no-protestantismo/> Acesso em: 16 de junho de 2011.
88
VARGENS, Pastor Renato. As romarias e a idolatria do catolicismo. Disponível em:
<http://www.cacp.org.br/catolicismo/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=2173&menu=2&submenu=9>
Acesso em: 16 de junho de 2011.
Depois de expostas as devoções dos mesopotâmicos com seus deuses e as dos
católicos com seus santos, podemos perceber diversas semelhanças que são frutos de
intensas trocas culturais. Embora a última grande civilização mesopotâmica, os caldeus
ou neobabilônicos, tenha sido aniquilada quase 600 anos antes do nascimento do
cristianismo, temos entre estas tradições religiosas uma importantíssima ponte: o
judaísmo.
A relação do judaísmo com as tradições mesopotâmicas começam logo em
suas origens. Os judeus dizem ser descendentes de Abraão, que teria vivido no início do
II Milênio a.C. na cidade de Ur, sul da antiga Suméria. Depois, os hebreus (antigo nome
dos judeus) adotaram, em seu processo de formação, tradições culturais provenientes
principalmente dos povos mesopotâmicos, como por exemplo, a adoração de El, que
viria a chamar-se Iahweh. Exilados na Babilônia durante mais de 60 anos (século VI
a.C.), os judeus “beberam” da cultura mesopotâmica e carregaram consigo costumes,
mitos e conceitos, que depois foram adotados no cristianismo. A partir de agora, tendo
entendido a ligação cultural intermediada pelos judeus, veremos que semelhanças
existem entre as devoções cultivadas pelos povos mesopotâmicos e as cultivadas pelos
católicos.
3.1 – Submissão à vontade divina
Vimos que os povos da Mesopotâmia, em suas tradições religiosas, prezavam
por servir bem às divindades, a fim de delas obterem favores. O cristianismo, por
muitos séculos, caracterizou-se também por uma submissão extrema aos desígnios de
Deus (pelo menos os seus representantes diziam que se tratava da vontade divina).
Partindo do princípio de que “o mundo foi criado para a glória de Deus”89, a Igreja tudo
fez para manter junto de si os fiéis, através dos preceitos que norteiam as várias
situações da vida.
Isto aconteceu principalmente na Idade Média, quando na Europa a Igreja
Católica era a única instituição capaz de reconstruir a civilização arrasada pelas
invasões dos povos germânicos90. Ciente de seu poderio e de sua capacidade para tomar
a frente na reconstrução da Europa ocidental, a Igreja deteve por muito tempo o poder
espiritual e o temporal, ao ponto do papa, definido então como representante máximo de
89
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 293.
90
FREMANTLE, Anne et al. Idade da fé. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1981. Página 31.
Cristo sobre a terra, coroar e destronar diversos reis e imperadores em solo europeu. O
papa Gregório VII (século XI) chegou a afirmar que o papa era “a única pessoa cujos
pés são beijados por todos os príncipes”91. As pessoas facilmente obedeciam, pois viam
no clero a presença do próprio Cristo, a cuja divindade os fiéis deveriam se submeter.
Voltando à submissão dos mesopotâmicos a seus deuses, vejamos um trecho de
um hino ao deus Enlil92:
“Enlil, cujas ordens alcançam a distância,
cuja palavra é santa,
O senhor cuja decisão é imutável, que
decreta para sempre os destinos,
Cujos olhos erguidos percorrem as terras (...)
As suas divinas leis são como as divinas leis
do abismo, ninguém as pode olhar,
O seu ‘coração’ como um distante santuário,
desconhecido como o zénite do Céu (...)
Quando no seu poder aterrador, ele decreta
os destinos,
Nenhum deus se atreve a olhá-lo. (...)
Sem Enlil, a grande montanha,
Nenhuma cidade seria construída, nenhumas
instituições fundadas”.
Neste hino, podemos ver como o compositor se sente pequeno ante a sua
divindade favorita. Percebe-se também a ideia do distanciamento do deus em relação ao
devoto, no verso “o seu coração como um distante santuário, desconhecido como o
zênite do Céu”. Ao mesmo tempo, nota-se uma perplexidade diante do potencial divino,
encontrando paralelo no trecho bíblico a seguir93:
“Iahweh, Senhor nosso,
Quão poderoso é teu nome
Em toda a terra!
91
92
Idem, pág. 39.
KARLOFF,
Álvaro.
Hino
de
louvor
a
Enlil.
Disponível
em:
<http://documentofantastico.blogspot.com/2011/05/hino-de-louvor-enlil.html> Acesso em: 16 de junho
de 2011.
93
Ver nota 42.
Ele divulga tua majestade sobre o céu.
Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,
A lua e as estrelas que fixaste,
Que é um mortal, para dele te lembrares,
E um filho de Adão, que venhas visitá-lo?”
(Salmo 8,1.4-5)
Ao fim da Idade Média, pessoas começaram a questionar o caráter da Igreja
como representante da vontade divina. Eram principalmente padres que não mais
aceitavam uma obediência passiva, em face das contradições entre a doutrina pregada e
a prática de muitos líderes católicos. Os questionamentos culminaram com as teses de
Lutero e sua ruptura com o catolicismo.
Após o cisma que originou as igrejas protestantes, Martinho Lutero fez uma
releitura da submissão à vontade divina, dizendo94:
“De nenhum valor é para a alma se o corpo
se cobre de vestes sagradas... nem se, da boca para
fora,
recita
orações
repetidas,
jejua,
faz
peregrinações... A alma pode prescindir de tudo, menos
da palavra de Deus... de mais nada necessitará, pois na
palavra de Deus encontrará o suficiente”.
Para Lutero, portanto, a submissão a Deus não está propriamente nas ações do
corpo, mas nas da alma, quando esta se volta à palavra de Deus (Bíblia), o que reforça o
princípio protestante de sola scriptura, ou seja, somente a Bíblia como autoridade para
ensinar e conduzir os fiéis95.
Ao longo dos últimos séculos, o catolicismo se viu diante de uma grande
discussão sobre a liberdade humana. A submissão a Deus, tal como vivida nos primeiros
tempos do cristianismo, foi substituída pela liberdade individual, na qual o homem
decide sobre seu destino. Mesmo assim, a doutrina católica insiste que “a liberdade
94
LUTERO, Martinho. Da liberdade cristã. São Leopoldo: Sinodal, 2004. 6ª edição. Páginas 9 e 11.
95
MATOS,
Alderi
Souza
de.
Sola
Scriptura.
Disponível
em:
<http://www.monergismo.com/textos/cinco_solas/solascriptura_alderi.htm> Acesso em: 16 de junho de
2011.
alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus”96, sendo ela a maneira do ser
humano crescer e amadurecer “na verdade e na bondade”.
3.2 – Deuses e santos pessoais
As tradições religiosas mesopotâmicas vêm ao encontro das atuais práticas
católicas quando nos referimos à necessidade de intermediários entre o humano e o
divino. Enquanto na Mesopotâmia tivemos devotos assumindo deuses pessoais para
suprir a distância dos grandes deuses, houve também no catolicismo uma adoção dos
santos como intermediários que pudessem levar as orações dos fiéis a um Deus
considerado distante (principalmente pelo pensamento religioso medieval).
A doutrina católica diz que Jesus é o único mediador entre Deus e o ser
humano, baseado nas palavras do apóstolo Paulo em 1Timóteo 2,5-697. Ser mediador,
para a Igreja, é ser o único capaz de salvar o ser humano, levando-o a Deus. No entanto,
a doutrina católica também aceita os santos como intermediários, não no sentido de
salvadores, mas de auxiliares que podem obter para os vivos o socorro nas fraquezas e o
perdão dos pecados98.
Entre os povos da Mesopotâmia, os deuses pessoais desempenhavam papel
importantíssimo no relacionamento entre o devoto e as divindades, sendo capazes de
suprir as carências humanas e dar auxílio a todo momento99, intercedendo aos grandes
deuses, por exemplo, em casos de doença do devoto100. Como estes deuses pertenciam a
uma esfera muito pessoal, são raríssimos seus nomes que chegaram ao nosso
conhecimento.
Atualmente, a Igreja Católica, sem deixar de incentivar a relação entre os
devotos e os santos, procura mostrar um Deus próximo, capaz de estabelecer comunhão
com o ser humano101.
96
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 1731.
97
A Bíblia de Jerusalém. Nota explicativa do trecho de 1Timóteo 2,6.
98
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 956 e 1434.
99
TURCI,
Érica.
O
politeísmo
e
o
mito
do
dilúvio.
Disponível
em:
<http://educacao.uol.com.br/historia/mesopotamia---religiao-o-politeismo-e-o-mito-do-diluvio.jhtm>
Acesso em: 17 de junho de 2011.
100
Saúde e magia na Mesopotâmia. Disponível em: <http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/Farmacia-e-
Historia/node16.html> Acesso em: 17 de junho de 2011.
101
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafo 773.
3.3 – Protetores das coisas, situações e lugares
Tanto nas tradições religiosas da Mesopotâmia quanto no catolicismo, assim
como na maioria das religiões ao longo da História, os devotos sempre atribuíram
“funções” a seus intermediários, sejam eles deuses ou santos. Em algumas situações, dá
até para estabelecer paralelos, como por exemplo, a proteção para as mulheres em
trabalho de parto, atribuída pelos sumérios ao demônio Puzuzu (lembrando que entre
eles os demônios nem sempre eram maus) e pelos católicos a São Leonardo de
Noblat102.
Na Mesopotâmia, assim como hoje nos territórios de população católica, era
costume entregar cada cidade à proteção de um deus. Assim, tínhamos An como deus
protetor de Uruk, Marduk protegendo Babilônia e Enlil protegendo a cidade de Nippur,
da mesma forma como atualmente Santa Joana D’Arc protege a França e Nossa Senhora
de Guadalupe protege o México103.
Além de lugares, mesopotâmicos e católicos têm em comum a entrega aos
intermediários de situações importantes da vida, como a gravidez (protegida pela deusa
babilônica Zarpanitum104 e pelo católico São Geraldo Magela105) ou uma viagem pelo
mar (protegida pelo deus dos marinheiros Sirsir106 e pelo católico São Nicolau de
Mira107), bem como a súplica por proteção diante de fenômenos naturais, como as
tempestades (antigo atributo do deus acádio Adad108 e contra a qual se é protegido por
Santa Escolástica109). Este tipo de entrega faz parte da necessidade que o homem tem de
encontrar segurança na vida, recorrendo a seres que lhe pareçam “superiores”.
Em tempos mais antigos, encontrar respostas no sobrenatural era questão de
sobrevivência, numa tentativa do ser humano para entender os fenômenos ao seu redor.
102
São Leonardo de Noblat. Disponível em: <http://www.catolicosdobrasil.com.br/santos-da-igreja-
catolica/sao-leonardo-de-noblat/> Acesso em: 17 de junho de 2011.
103
Ver nota 66.
104
Ver nota 32.
105
São Geraldo Magela. Disponível em: <http://www.catolicosdobrasil.com.br/santos-da-igreja-
catolica/sao-geraldo-magela/> Acesso em: 17 de junho de 2011.
106
107
Ver nota 32.
São Nicolau. Disponível em: <http://www.catolicosdobrasil.com.br/santos-da-igreja-catolica/sao-
nicolau/> Acesso em: 17 de junho de 2011.
108
Ver nota 32.
109
Ver nota 65.
Como forma de oferecer respostas palpáveis, os homens criavam os mitos e entregavam
seus destinos nas mãos dos seres superiores. Isto faz parte do ser humano até hoje, em
um mundo cada vez mais tecnológico e globalizado, no qual o homem ainda tenta
respostas para seus anseios por segurança e ligação com o divino.
3.4 – Demônios
Na antiga Mesopotâmia, nem todos os demônios eram malignos, como já foi
dito aqui na explanação sobre as tradições religiosas mesopotâmicas. No entanto, o
catolicismo adotou a noção de demônios atribuindo-lhes apenas caracteres malignos, em
contraposição aos anjos, seres bons que servem a Deus. A Igreja Católica, inclusive, diz
que os demônios eram anjos que se rebelaram contra Deus e que depois quiseram
corromper o ser humano, como no relato de Adão e Eva tentados pela serpente110.
A Bíblia chega a mencionar alguns demônios das tradições mesopotâmicas,
como nos trechos a seguir:
“Os gatos selvagens conviverão aí com as
hienas, os sátiros chamarão aí os seus companheiros.
Ali descansará Lilit, e achará um pouso para si”.
(Isaías 34,14)111
“Então todos os maus, e filhos de Belial,
dentre os homens que tinham ido com Davi,
responderam, e disseram: Visto que não foram conosco,
não lhes daremos do despojo que libertamos; mas que
leve cada um sua mulher e seus filhos, e se vá”.
(1Samuel 30,22)112
Na citação do livro bíblico de Isaías, vemos a menção do nome de Lilith113, que
era um dos demônios mesopotâmicos mais conhecidos da Antiguidade, e cujo nome
vem do sumério lulu, significando “libertinagem”. Ligada à sexualidade, também
aparece na tradição cabalística judaica, como primeira esposa de Adão, tendo ela se
110
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 391 a 395. Sobre a tentação de Adão e Eva, ver na Bíblia o
trecho de Gênesis 3,1-24.
111
Ver nota 36.
112
A Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil: Barueri, 2005.
113
Lilith – a lua negra. Disponível em: <http://www.gnosisonline.org/textos-especiais/lilith-a-lua-
negra/> Acesso em: 18 de junho de 2011.
revoltado contra Deus por causa da posição sexual “inferior” que Adão lhe impunha nas
relações. Lilith é identificada na Epopeia de Gilgamesh com o nome Ki-sikil-lil-la114.
Na outra citação, a do primeiro livro de Samuel, aparece o nome Belial115, demônio cujo
nome vem de Belili116, outro nome da deusa Geshtinanna.
O imaginário mesopotâmico ainda concebeu vários outros demônios, como117:
Alu, que matava as pessoas enquanto dormiam; Miqut, ligado à parada cardíaca; Ugallu,
o leão demônio; Muttabriqu, associado aos relâmpagos; entre outros. Esta associação de
demônios a situações ruins chegou ao cristianismo medieval encontrando terreno fértil
no homem europeu. Os católicos da Idade Média viam demônios em todos os lugares118,
como que aterrorizando as almas para perdê-las do caminho virtuoso.
Entre os demônios que mais assustavam os ingênuos fiéis medievais,
estavam119: Azazel, antigo ser dos mitos judaicos e cananeus (aparece na Bíblia em
Levítico 16,8-10); Asmodeu, outro demônio dos mitos judaicos; Satanás, cujo nome
significa “o adversário”; Belzebu120, associado ao príncipe dos infernos; Íncubo121,
demônio masculino que assediava as mulheres em seus sonhos; Súcubo122, demônio
feminino que sugava a energia vital dos homens em seus sonhos, após ter relações
114
Lilith. Disponível em: <http://robsobrenatural.blogspot.com/2010/08/lilith_21.html> Acesso em: 18
de junho de 2011.
115
OPPERMANN,
Álvaro.
Diabo:
o
mal
em
pessoa.
Disponível
em:
<http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/diabo-mal-pessoa-518181.shtml> Acesso em: 18 de
junho de 2011.
116
Ver nota 32.
117
Ver nota 32.
118
FREMANTLE, Anne et al. Op. cit. Página 63.
119
A Bíblia de Jerusalém. Nota explicativa dos trechos de Levítico 16,8, Tobias 3,8 e Jó 1,6.
120
Belzebu é uma figura derivada de dois deuses das mitologias cananeia e fenícia: Baal, deus dos
trovões, da agricultura, da fertilidade, da morte e da crueldade; e Zebu, deus das moscas e das pestes.
Alguns judeus chegaram a dizer que as ações de Jesus Cristo eram inspiradas por Belzebu (Mateus 12,2232). Sobre este demônio, veja: A Bíblia de Jerusalém. Nota explicativa do trecho de Mateus 12,24. Ver
também:
Demonologia
–
Demônio
Beelzebuth.
Disponível
em:
<http://www.psioculto.com/2010/10/demonologia-demonio-beelzebuth.html - Acesso em: 18 de junho de
2011.
121
FARIAS,
Érik.
Íncubo.
Disponível
em:
<http://misteriosfantasticos.blogspot.com/2010/09/incubo.html> Acesso em: 18 de junho de 2011.
122
Idem. Súcubo. Disponível em: <http://misteriosfantasticos.blogspot.com/2010/09/sucubo.html>
Acesso em: 18 de junho de 2011.
sexuais com eles. Estes eram os demônios mais temidos e contra os quais os católicos
dirigiam intensas orações e exorcismos, procurando afastá-los com inúmeros rituais, os
quais podemos exemplificar com um aparentemente absurdo aos nossos olhos: quando
um homem tinha polução noturna (considerado pecado na época medieval), deveria
rezar sete salmos ao acordar e mais 30 pela manhã, para afastar o demônio e pedir o
perdão de Deus123.
Nos dias de hoje, a figura do demônio vem ganhando novo destaque na
corrente do cristianismo chamada “pentecostal”, conjunto de movimentos e igrejas que
envolvem católicos e protestantes. Em algumas igrejas, chega-se até a “dialogar” com o
demônio, antes de expulsá-lo do corpo a quem “possui”124.
3.5 – Lendas, mitos e heróis
As histórias dos heróis são parte da identidade de um povo, dando-lhe a certeza
do seu valor e animando seu orgulho. Todos os povos contam histórias, com
personagens que lutam, amam, superam barreiras, morrem ou até mesmo renascem.
Focando nossas atenções nos povos da Mesopotâmia e nos fiéis do catolicismo, vemos
também a pedagogia usada nas histórias, para explicar fatos e fenômenos, comunicar as
tradições ou simplesmente entreter.
As tradições católicas “beberam” da cultura mesopotâmica, através do
judaísmo, para contar acontecimentos que remetem à origem do mundo e ao curso dos
primeiros tempos históricos. Em ambas as culturas, existe a necessidade de relembrar
grandes feitos e memoráveis personagens, como forma de legitimar aquela cultura e
perpetuá-la no coração de seus membros.
3.5.1 – Moisés e Sargão
A Igreja Católica venera como santos também alguns personagens do Antigo
Testamento, como Noé, Davi, Abraão, entre outros125. Um destes personagens
123
SCHNEIDER,
Maitê.
Entre
o
amor
real
e
o
ideal.
Disponível
em:
Disponível
em:
<http://www.casadamaite.com/node/3903> Acesso em: 18 de junho de 2011.
124
Cenas
de
entrevista
com
demônios
na
Igreja
Universal.
<http://exorcismosreais.blogspot.com/2010/05/cenas-de-entrevista-com-demonios-na.html> Acesso em:
18 de junho de 2011.
125
FEDELI,
Orlando.
Redenção
dos
santos
do
Antigo
Testamento.
Disponível
<http://www.montfort.org.br/old/perguntas/redencao_at.html> Acesso em: 19 de junho de 2011.
em:
veterotestamentários, o legislador Moisés (século XIII a.C.), tem seu nascimento
envolto em uma história idêntica não só a uma lenda mesopotâmica, mas também de
outras regiões do Velho Mundo. Vamos detalhar estas histórias para compreendermos o
grau de influência entre as culturas mesopotâmica e cristã (na qual a lenda chegou pelo
judaísmo).
Segundo a Bíblia, Moisés nasceu já condenado, pois o faraó egípcio decretara a
morte dos recém-nascidos hebreus. A mãe de Moisés, para protegê-lo, colocou o
menino em um cesto e depositou-o no rio Nilo, de modo que o cesto acompanhou a
corrente até ser encontrado pela filha do faraó, que lhe deu o nome Moisés e o criou no
palácio real, até Moisés libertar os hebreus da escravidão no Egito. A história é idêntica
a de Sargão (século XXIV a.C.), que foi deixado pela mãe em um cesto de junco
flutuando sobre as águas do rio Eufrates126, até ser encontrado por um horticultor, servir
ao rei de Kish e tornar-se rei de Acad, reino ao sul da Suméria. Estas histórias têm
paralelo com as lendas dos nascimentos de Rômulo (fundador de Roma), Ciro
(imperador persa), Édipo (herói grego), Gilgamesh (rei e herói sumério), entre outros127.
Além das histórias de Moisés e Sargão, poderíamos sugerir as semelhanças
entre a criação de Adão por Iahweh e a dos primeiros homens de barro pelos deuses
Enki e Nammu128, ou ainda entre Noé (personagem bíblico) e Utnapishtim (personagem
sumério)129, assim como outras histórias que, com suas características comuns, revelam
a intensa influência exercida pelos povos da Mesopotâmia, mesmo depois de seu
aniquilamento.
3.5.2 – São Jorge e Gilgamesh
De certa forma, podemos também relacionar o mito de São Jorge com o de
Gilgamesh. Ambos são famosos por enfrentarem, no imaginário popular, monstros cuja
126
A Bíblia de Jerusalém. Nota explicativa do trecho de Êxodo 2,10. Ver também: SILVA, Airton José
da. História de Israel. Disponível em: <http://www.airtonjo.com/historia06.htm> Acesso em: 19 de
junho de 2011.
127
COIMBRA,
David.
O
que
Freud
dizia
de
Moisés.
Disponível
em:
<http://wp.clicrbs.com.br/davidcoimbra/2011/05/22/historias-muito-curtas-5/> Acesso em: 19 de junho
de 2011.
128
O nascimento do homem. Disponível em: <http://www.daphneshinnar.blogspot.com/> Acesso em:
19 de junho de 2011. Poema sumério.
129
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Páginas 122 e 123.
derrota deram aos heróis uma eterna notoriedade. Já foi falado sobre São Jorge, que
matou um dragão para salvar uma donzela. Gilgamesh130 foi rei de Uruk, e seu nome foi
imortalizado em aventuras relatadas desde o III Milênio a.C. Este herói, entre outros
feitos, matou o Touro do Céu (enviado pela deusa Inanna, a cujas seduções Gilgamesh
rejeitara), além de ter vivido uma intensa amizade com Enkidu, um selvagem criado
pelos deuses para castigar Gilgamesh, mas que criara laços afetivos com o herói ao
invés de lhe fazer mal. Gilgamesh buscou e encontrou a “planta da juventude”, que no
entanto foi devorada por uma serpente (paralelo com a Árvore da Vida mencionada na
Bíblia).
3.5.3 - Tammuz
Para terminarmos esta parte sobre lendas e heróis, vale mencionar outro herói
das tradições mesopotâmicas que influenciou alguns traços cristãos: Dumuzi ou
Tammuz.
Segundo Kramer (1980), Dumuzi era um rei que buscava a imortalidade, e para
isto casou-se com a deusa Inanna131. Porém, a deusa quis dominar o mundo dos mortos,
e por tal ambição foi condenada a morte pela deusa Ereshkigal, que só permitiria a
“ressurreição” de Inanna se esta lhe desse um substituto. Como Inanna descobriu que
Dumuzi se alegrara com sua morte, ordenou que ele fosse levado em seu lugar ao
mundo dos mortos. Geshtinanna, irmã de Inanna, concordou em substituir Dumuzi no
mundo dos mortos por metade de cada ano. Outras fontes relatam que Dumuzi morrera
e fora para o mundo dos mortos132. Inanna, desesperada, vai atrás de seu amado e
consegue sua libertação por metade de cada ano, ficando Geshtinanna em seu lugar. A
história de Dumuzi, relatada pelos sumérios, foi a base para o mito de Tammuz, deus
babilônico do florescimento e da primavera133.
130
Idem, pág. 120-121.
131
Idem, pág. 112-113.
132
O
mito
de
–
Inanna
O
retorno.
Disponível
em:
<http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/retorno.html> Acesso em: 21 de junho de 2011. Ver
também:
QUINTAS,
Beto.
Dumuzi,
o
deus
touro.
Disponível
em:
http://betoquintas.blogspot.com/2010/10/dumuzi-o-deus-touro.html Acesso em: 21 de junho de 2011.
133
RAZ,
Simcha.
O
mês
de
Tamuz.
Disponível
em:
<http://www.webjudaica.com.br/religiao/textosDetalhe.jsp?textoID=27&temaID=5> Acesso em: 19 de
junho de 2011.
Tammuz era identificado com Nimrod, misterioso rei e herói mesopotâmico134,
de quem pouco se sabe (a maior parte das informações sobre ele está na Bíblia, em
Gênesis 10,8-11). Na tradição judaica, Nimrod foi morto como castigo por ter desafiado
a Deus na construção da torre de Babel (Gênesis 11,1-9). Outra tradição afirma que
Tammuz era filho de Nimrod, tendo este morrido antes do nascimento do filho, razão
pela qual a mãe, Semíramis, espalhou a história de que Tammuz era na verdade a
“reencarnação” de Nimrod135. Semíramis era mãe de Nimrod e foi intitulada “rainha do
céu”, ao passo que Nimrod foi divinizado (embora muitos estudiosos se dividam quanto
à sua identidade, alguns relacionando-o a Sargão, outros a Gilgamesh136, e assim por
diante); encontramos paralelos de Semíramis nas deusas Inanna (Suméria), Ishtar
(Assíria), Ísis (Egito), Afrodite (Grécia), Vênus (Roma) e Ashtarot (Fenícia)137.
Diz a lenda que Tammuz foi morto prematuramente. Sua mãe o pranteou por
40 dias, até que ele ressuscitou138, razão pela qual as mulheres hebreias choravam em
ritos que celebravam Tammuz, no I Milênio a.C. Ainda de acordo com a lenda, o
sangue de Tammuz deu origem a uma árvore sagrada139, talvez o motivo pelo qual um
dos símbolos de Tammuz era o madeiro (a cruz)140. Esta lenda foi adaptada à mitologia
grega141, onde o personagem passa a chamar-se Adônis (provavelmente do hebraico
Adonai, que significa “senhor”). A relação com as devoções católicas é intensa: a
presença de uma “rainha do céu” que é também a mãe do ser divino; o nascimento de
um filho do céu; a cruz como símbolo que leva o fiel a um contato com a divindade.
134
MORENO, Mário. O fim no princípio. Disponível em: <http://www.shemaysrael.com/artigos/125-
escrituras/1804-o-fim-no-principio.html> Acesso em: 19 de junho de 2011.
135
TROIS,
Cláudio.
Início
das
raças
e
nações.
Disponível
em:
<http://solascriptura-
tt.org/Seitas/Romanismo/Nacoes-NimrodeSemiramisMariaBabelBabilonia-Trois.htm> Acesso em: 20 de
junho de 2011.
136
Ver nota 133.
137
Ver nota 134.
138
Ver nota 134.
139
CORDEIRO, Pastor Ismael Alves. Quem é a mulher da nota do real? Disponível em:
<http://www.ieqcruzeirodooeste.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=105%3Aque
m-e-a-mulher-da-nota-do-real&catid=23%3Ageral&Itemid=38> Acesso em: 20 de junho de 2011.
140
Jesus
morreu
mesmo
numa
cruz?
Disponível
em:
<http://www.watchtower.org/t/200604a/article_01.htm> Acesso em: 20 de junho de 2011.
141
Mitologia grega: Adônis. Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/MGAdonis.html>
Acesso em: 20 de junho de 2011.
Não pretende-se aqui discutir a veracidade das crenças cristãs, pois são
questões de fé (mais que isto: para os fiéis, tratam-se de dogmas). A intenção é perceber
a grande troca cultural entre civilizações que se desenvolveram numa região de intensa
convivência étnica e religiosa, o que deve ser um enriquecimento intelectual para quem
pesquisa tais assuntos e uma base mais sólida para a fé de quem acredita na dimensão
espiritual e teológica destes mesmos assuntos.
3.6 – O julgamento das almas
Embora da Antiguidade nos seja mais conhecido o modelo de julgamento após
a morte concebido pelos egípcios, as tradições religiosas mesopotâmicas também
conceberam a ideia de um processo para se entrar no mundo dos mortos, apesar do
destino não ser muito agradável até mesmo ao mais virtuoso dos homens. Segundo
Kramer (1980), a alma, depois de atravessar um rio, era julgada pelo deus Utu, mas
mesmo assim nada poderia esperar de consolador, pois a existência no mundo dos
mortos era sombria142; e segundo Schroeder (2010), as almas vagavam errantes pelo
mundo dos mortos, vigiado por sete demônios143.
A visão católica conservou esta ideia de um “mundo dos mortos” em algumas
passagens do Novo Testamento, como o trecho a seguir144: “Por isso é que se diz:
‘Tendo subido às alturas, levou cativo o cativeiro, concedeu dons aos homens’. Que
significa ‘subiu’, senão que ele também desceu às profundezas da terra?” (Efésios 4,89).
O apóstolo Paulo fala que Jesus Cristo desceu às profundezas, clara referência
ao mundo dos mortos, cujo imaginário os judeus herdaram dos povos mesopotâmicos.
Apesar das menções neotestamentárias ao mundo dos mortos, o catolicismo distingue
três realidades espirituais145, sendo duas definitivas (céu e inferno) e uma temporária (o
purgatório, estado de purificação das almas destinadas ao céu). A doutrina católica
ainda fala de um Juízo Final146, quando Cristo, voltando ao mundo, julgará os
142
143
KRAMER, Samuel Noah et al. Op. cit. Páginas 113 e 114.
SCHROEDER,
Gilberto.
Um
inferno
para
cada
um.
Disponível
http://www.revistasextosentido.net/news/um-inferno-para-cada-um/ Acesso em: 20 de junho de 2011.
144
Ver nota 36.
145
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 1021 a 1037.
146
Idem. Parágrafos 1038 a 1041.
em:
indivíduos e lhes dará, eternamente, o céu ou o inferno, conforme a opção de vida do
próprio indivíduo.
3.7 – As imagens e os sacerdotes
Objeto religioso comum à maioria das tradições religiosas na História, a
imagem do deus ou do santo tem papel de destaque na instrução dos fiéis e na condução
dos ritos. Algumas religiões proíbem a confecção de imagens, como o islamismo, o
judaísmo e o protestantismo, sob a alegação de que a imagem leva à idolatria. Na
Mesopotâmia, a maior parte das imagens mostravam os deuses ou pessoas em oração,
especialmente os reis, considerados representantes dos deuses. Entre os sumérios,
existia o hábito de se deixar imagens de pedra diante dos altares quando era necessário
interromper as orações, acreditando-se que a imagem iria orar em nome da pessoa
ausente147. Hoje, entre os católicos, a imagem é um ponto de grande importância no
devocional dos fiéis, sendo também instrumento de ligação com o divino.
Outro importante instrumento de comunicação com o divino e de incentivo às
devoções é a figura do sacerdote. Na Mesopotâmia, os sacerdotes se ocupavam apenas
no serviço dos templos, administrando os “bens” dos deuses e interpretando a vontade
divina para transmiti-la aos fiéis148. Já no catolicismo, o sacerdote é considerado
“imagem viva de Deus Pai”149, agindo na pessoa de Cristo, ou seja, acredita-se que
Jesus Cristo é visível aos fiéis através do sacerdote (seja ele o padre, o bispo ou o papa).
3.8 – Rainha do Céu
“Ave, Maria, Filha de Deus Pai. Ave, Maria,
Mãe de Deus Filho. Ave, Maria, Esposa do Espírito
Santo. Ave, Maria, templo da Santíssima Trindade. Ave,
Maria, Senhora minha, meu bem, meu amor. Rainha do
meu coração, Mãe, vida, doçura e esperança minha,
muito querida, meu coração e minha alma. Sou todo
147
A civilização mesopotâmica. Disponível em: <www.idealdicas.com/a-civilizacao-mesopotamica/>
Acesso em: 20 de junho de 2011.
148
A
Mesopotâmia
–
o
templo
e
os
sacerdotes.
Disponível
<http://www.astronomiaamadora.net/mesopotamia.asp?id_page=4> Acesso em: 20 de junho de 2011.
149
Catecismo da Igreja Católica. Parágrafos 1548 a 1551.
em:
vosso, e tudo o que possuo é vosso, ó Virgem sobre
todos bendita”.150
“Eu digo ’Ave!’ à Deusa que aparece nos
céus!
Eu digo ‘Ave!’ à Alta Sacerdotisa dos Céus!
Eu digo ‘Ave!’ à Inana, a Grande Senhora
dos Céus!
Tocha Sagrada! Vós encheis os céus de luz!
Vós iluminais o dia ao alvorecer!”151
Um dos pontos de maior semelhança entre as devoções mesopotâmicas e as
católicas é a figura da “Rainha do Céu”, a mãe dos homens que os auxilia e a quem se
dirige especial atenção da parte dos fiéis. Nas orações acima citadas, se tirássemos os
nomes da santa e da deusa, talvez não saberíamos a quem se dirigem tais louvores.
Inanna era filha do deus Enki, de quem ela roubou as Tábuas do Destino, após
tê-lo embriagado. Ela tinha dois pretendentes, o agricultor Enkidu e o pastor Dumuzi152;
recebendo presentes de ambos os pretendentes, preferiu Dumuzi e casou-se com ele
(lembrando a história bíblica do agricultor Caim e do pastor Abel, e de como Caim
matou Abel porque Deus escolheu as ofertas deste). Com a morte de Dumuzi, Inanna o
busca no mundo dos mortos.
A deusa Inanna faz parte de uma categoria formada pelas “deusas-mãe”153,
divindades femininas adoradas em diversos povos antigos. Inanna, portanto, pode ser
equiparada a Eurínome (pelasgos, antigo povo da Grécia), Asera (Canaã), Astarte
(Síria), Pinikir (Elam, atual Irã), Anann ou Dana (Irlanda), Ymai (Sibéria) e Durga
(Índia). Estas deusas eram importantes para seus devotos como fontes de fertilidade,
especialmente nas colheitas e na geração de filhos. Sobre Maria, não podemos chamá-la
de “deusa-mãe”, pois o catolicismo não a tem como divindade, mas podemos afirmar
que o culto a Maria tem resquícios dos antigos cultos a divindades femininas,
150
REIS, Reinalda Delgado dos (org.). Op. cit. Página 22. Coroa das Glórias da Virgem Maria.
151
À sagrada sacerdotisa dos céus. Disponível em: <http://www.daphneshinnar.blogspot.com/> Acesso
em: 20 de junho de 2011.
152
MONAGHAN,
Patrícia.
Inanna.
Disponível
em:
<http://www.hranajanto.com/goddessgallery/inanna.html> Acesso em: 20 de junho de 2011.
153
Deusa mãe. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Deusa_m%C3%A3e> Acesso em: 21 de
junho de 2011.
principalmente se levarmos em conta a influência que o cristianismo recebeu por onde
seus missionários passavam nos primeiros séculos da era cristã.
A Bíblia faz duas referências à “Rainha do Céu”, ambas no livro do profeta
Jeremias154:
“Os filhos ajuntam a lenha, os pais acendem
o fogo e as mulheres preparam a massa para fazerem
tortas à rainha dos céus”. (Jeremias 7,18)
“A palavra que nos falaste em nome de
Iahweh,
nós
não
a
queremos
escutar.
Porque
continuaremos a fazer tudo o que prometemos: oferecer
incenso à rainha do céu e fazer-lhe libações, como
fazíamos, nós e nossos pais, nossos reis e nossos
príncipes, nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém;
tínhamos, então, fartura de pão, éramos felizes e não
víamos a desgraça. Mas desde que cessamos de
oferecer incenso à rainha do céu e de fazer-lhe
libações, tudo nos faltou e nós perecemos pela espada e
pela fome”. (Jeremias 44,16-18)
Principalmente no segundo trecho bíblico acima citado, percebemos que o
culto à “Rainha do Céu” era antigo entre os hebreus, e assim permaneceu apesar do
monoteísmo de Moisés ou da reforma religiosa feita pelo rei Josias, no século VII a.C.
(conforme o trecho bíblico de 2Reis 23,4-27). Já era de se esperar tal culto entre o povo
hebreu, afinal seu território era cercado por inúmeros povos que adoravam deusas-mãe,
e o próprio povo hebreu era descendente de um mesopotâmico, Abraão.
O título “Rainha do Céu” passou a Maria, apesar desta não ser cultuada como
deusa. Os devotos católicos de todo o mundo se dirigem a ela com este atributo, que faz
parte do dogma da Assunção, pelo qual Maria teria sido levada ao céu, em corpo e alma,
e lá foi coroada por Deus155. No entanto, apesar de toda a devoção e do título real de
Maria, a doutrina católica afirma156:
154
Ver nota 36.
155
VIER, Frei Frederico (org.). Op. cit. Página 108. Constituição Dogmática Lumen gentium.
156
Idem. Página 109. Constituição Dogmática Lumen Gentium.
“Por sua multíplice intercessão prossegue
em granjear-nos os dons da salvação eterna... Isto,
porém, se entende de tal modo que nada derrogue, nada
acrescente à dignidade e eficácia de Cristo, o único
Mediador. Com efeito, nenhuma criatura jamais pode
ser colocada no mesmo plano com o Verbo encarnado e
Redentor”.
Apesar desta doutrina, vemos em muitos lugares manifestações devocionais
contrárias ao pensamento católico, como a oração a seguir157:
“Augusta Rainha do Céu e Senhora dos
anjos, vós que desde o princípio recebestes de Deus o
poder e a missão de esmagar a cabeça de satanás, nós
vos pedimos humildemente, enviai vossas santas
Legiões de Anjos, para que elas, sob vosso poder e
vossas
ordens,
persigam
os
infernais
espíritos,
combatendo-os por toda a parte, confundam a sua
audácia e os precipitem no abismo. Quem como Deus?
Ó boa e terna Mãe, vós sereis sempre o nosso amor e a
nossa esperança. Ó Mãe de Deus, enviai vossas santas
Legiões de anjos para nos defender e repelir para longe
de nós o cruel inimigo. Santos Anjos e Arcanjos,
defendei-nos e protegei-nos”.
Não pretende-se aqui, como já foi dito neste trabalho, discutir a veracidade de
dogmas e devoções ou entrar em polêmicas desnecessárias com grupos religiosos, mas
analisar a devoção e, no caso católico, confrontá-la com a doutrina, a fim de se perceber
a postura da Igreja Católica diante das devoções e a dos fiéis diante da doutrina. Assim,
podemos destacar nesta oração as seguintes características:
1 – O título “Augusta” refere-se a Augusto, imperador romano divinizado após
sua morte (inclusive há uma lenda romana que diz que Augusto nasceu da união de sua
mãe com o deus Apolo158, semelhante à concepção de Jesus no ventre de Maria);
Augusto vem do latim e significa “sagrado”, “sublime”, “majestoso”, “venerável”159.
157
158
REIS, Reinalda Delgado dos (org.). Op. cit. Páginas 28 e 29.
SALOM, Padre Agustin Juan Calatayud y. Repensando minha opção no Natal do Senhor.
Disponível
em:
2 – “Rainha do Céu” é o título, como já vem sendo dito, das deusas-mãe
adoradas desde a Antiguidade.
3 – O título “Senhora dos Anjos” não é apropriado a Maria; já foi mencionado
neste trabalho que a Igreja Católica considera os anjos como servos de Deus.
4 – A missão mariana de esmagar Satanás é uma interpretação católica do
trecho bíblico de Gênesis 3,15, segundo o qual, após levar Adão e Eva ao pecado, a
serpente recebe sua condenação: seria pisada por uma mulher.
5 – A expressão “sereis sempre o nosso amor” fica estranha quando atribuída a
Maria, pois o cristianismo refere, no trecho bíblico de 1João 4,8, que “Deus é amor”.
O catolicismo ainda venera Maria com outros atributos além de Rainha do Céu,
como “estrela da evangelização”160, “primeira redimida”161, “modelo”162, “sede da
sabedoria”163, entre outros. Todos são atributos que mostram a importância de Maria no
catolicismo, ao mesmo tempo em que nos revela uma realidade: mudam os povos e as
culturas, mas algumas manifestações (como o culto a seres femininos) sempre se
renovam para permanecer no coração humano, sobrevivendo a toda evolução filosófica,
teológica, sociológica, cultural e histórica.
Considerações finais
A religião não é uma instituição estática na história da humanidade, mas
evolui, assim como outras instituições de cunho político, social, cultural e econômico. A
evolução da religião não se dá de maneira igual e não é, necessariamente, de forma
linear e progressiva. Sociedades que adoram um deus “abstrato”, criador das coisas
<http://www.natalpress.com/index.php?Fa=aut.inf_mat&MAT_ID=11387&AUT_ID=53> Acesso em: 21
de junho de 2011.
159
SOUZA, Francisco Antônio de. Novo dicionário latino-portuguez. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves,
1931.
Ver
também:
Significado
do
nome
Augusto.
Disponível
em:
<http://www.osignificadodonome.com/significado-do-nome-augusto-2026.html> Acesso em: 21 de junho
de 2011.
160
PAPA PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 2005. 18ª
edição. Página 116.
161
PAPA JOÃO PAULO II. Abri as portas ao redentor. São Paulo: Paulinas, 1983. 3ª edição. Página
46.
162
Idem. Carta encíclica Redemptoris Missio. São Paulo: Paulinas, 2005. 7ª edição. Página 143.
163
Idem. Carta encíclica Fides et ratio. São Paulo: Paulinas, 2005. 8ª edição. Página 140.
concretas, convivem com outras sociedades que ainda adoram coisas concretas como se
fossem divindades.
Aos poucos, na história do homem, a noção de divindade também evoluiu:
primeiro, os deuses eram, por exemplo, aquilo que os homens podiam ver e não podiam
entender (astros, por exemplo); depois, as “divindades naturais” foram personificadas,
representadas como animais ou seres humanos (caso da religião do antigo Egito, por
exemplo); logo após, enquanto as religiões antigas divinizavam “criaturas” e coisas
visíveis, surgiram tradições religiosas que conceberam divindades acima das coisas
visíveis e que, portanto, não poderiam ser representadas em nenhuma forma concreta
(destaque para o judaísmo); no entanto, ainda hoje, podemos ver tradições religiosas
que cultuam a natureza, sem representá-la em imagens (por exemplo, o neopaganismo),
ou que adoram seres que personificam as atribuições que lhe são dadas (hinduísmo, por
exemplo).
Quando um povo definia suas divindades e os cultos a elas, a partir daí se
fortalecia a cultura popular, marcada pela piedade, pelas homenagens, pelas devoções e
por um transporte da vivência espiritual a todas as outras áreas da vida (família,
profissão, negócios, entre outros). É o caso do povo hebreu quando assumiu Iahweh
como sua divindade: a cultura hebreia se fortaleceu e os laços fraternais se tornaram tão
firmes que a religião judaica sobreviveu a quase 2 mil anos de dispersão dos seus fiéis,
que praticamente “respiram” judaísmo em todas as esferas da vida (levando em conta
que a Torá, conjunto de leis divinas escrita nos cinco primeiros livros bíblicos, traz
como palavras de Deus várias normas referentes à alimentação, ao comportamento, à
vivência familiar e até mesmo aos hábitos de higiene). Além do judaísmo, podemos
citar também o cristianismo, cuja doutrina quis abranger todas as áreas da vida do ser
humano, embora com menos intensidade e detalhes em relação aos judeus.
Esta característica de viver a espiritualidade no cotidiano marca a questão
devocional dos povos mesopotâmicos e dos que seguem o catolicismo, embora hoje se
veja entre os católicos uma distinção entre a esfera religiosa e as demais esferas da vida,
exemplificada pelos que só rezam quando vão à missa (o auge do culto católico). Fora
este detalhe contemporâneo, vemos em toda a História como as pessoas assumem em
suas vidas o caráter espiritual, como se tudo fosse uma coisa só. Os povos da
Mesopotâmia atribuíam suas vitórias bélicas ao deus protetor, culpavam espíritos
malignos pelas doenças que atacavam as pessoas, agradeciam aos deuses por uma
colheita farta ou se penitenciavam a eles por uma colheita mal sucedida; da mesma
forma, os católicos fazem novenas para pedir emprego, fazem peregrinações para
agradecerem pela cura de uma doença, expõem sinais religiosos em comércios ou até
mesmo repartições públicas.
As tradições religiosas mesopotâmicas se renovaram conforme os povos que
dominavam a região. Assim, a influência suméria acompanhou também, entre os povos
posteriores, a entrada de novos deuses, novos mitos, novos heróis, ou a adaptação de
antigas tradições constantemente relidas, para que os feitos heroicos antes creditados a
An ou a Enlil fossem atribuídos a Assur ou a Marduk, conforme o centro do poder
mesopotâmico. Na religião católica, a renovação também é constante, tendo seu grande
salto quando deixou de ser uma religião perseguida para tornar-se a religião oficial do
Império Romano, no século IV. O contato com outros povos fora das origens cristãs
(Israel) incrementou o pensamento, a doutrina e os costumes da Igreja, que no decorrer
dos séculos chegou a adotar tradições pagãs, relidas sob a ótica cristã (caso do Natal,
por exemplo).
Nos dias de hoje, a Igreja Católica se vê em constantes desafios diante da
modernidade. Como instituição, tem o direito de atuar e opinar nos assuntos nacionais,
como qualquer outra instituição (religiosa, social, política, econômica, cultural, entre
outras). Cada vez mais crítica em relação às instituições (e devemos discutir até onde é
legítima e imparcial esta criticidade), nossa sociedade pede respostas do catolicismo
ante as questões do mundo em que vivemos, dada a importância católica em momentos
cruciais da História no Ocidente (reestruturação da Europa medieval, por exemplo).
Não só o catolicismo, mas todas as grandes religiões precisam sempre refletir
sobre o seu papel nas sociedades em que predominam, a fim de que a memória religiosa
não se traduza apenas em sangue, fanatismo e alienação (como vem sendo em diversos
momentos históricos), mas passe a ser também contribuição para um mundo mais
tolerante, pacífico e justo para todos.
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