Tudo o que é inato de um povo, é apropriado pelo Ocidente

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INTRODUÇÃO
A invenção de uma disciplina que interpreta as sociedades e suas diversidades só
foi possível no momento em que foram descobertas civilizações com outra configuração
das já formadas da época. Nesse ponto, os países que empreenderam a jornada das
“conquistas” tornaram-se hegemônicos com a colonização e, a partir dela, foram
considerados e ditaram os modelos de civilização, consequentemente serviram de
comparação para as novas sociedades. Aconteceu dessa maneira, pois foram esses
países que instituíram todo o sistema material, simbólico e de conhecimento. É esse
contexto que marca a história da Antropologia:
Estes povos dominados, distribuídos pela Ásia, África e Oceania,
pertencem todos às culturas ditas “atrasadas”, ou “sem mecanização”
e compõem o campo de pesquisa dentro do qual operaram – e operam
– os antropólogos ou etnólogos. E o conhecimento, de caráter
científico, que temos dos povos colonizados, permanece devido, em
grande medida, aos trabalhos realizados por estes últimos.
(BALANDIER, 2014. p.33)
Não necessariamente a Antropologia surgiu com a colonização, mas emergiu
nesse contexto e a intenção deste trabalho é desenvolver um raciocínio que demostre
como a disciplina se afetou com a colonização e as consequências para a geração do
conhecimento. Assim, um ponto que vale ressaltar é o contato interétnico que tornou
possível o estudo da heterogeneidade dos povos, pois descobriram-se novos continentes
e novas sociedades.
Contudo, há no meio desse cenário uma perspectiva distinta entre os dois lados
da composição, o colonizador e o colonizado, o pesquisador e o pesquisado. Aos olhos
dos nativos dos continentes, o descobrimento foi, na verdade, um encobrimento da
tomada/invasão de um lugar onde já havia um modelo de vida. Costumes e crenças
foram sendo interpretados, julgados e modificados ao longo dos anos por uma
modernidade imposta, e um novo modelo de sistema mundo criado subjugou o os
nativos dos lugares “descobertos”. O olhar sobre a história desses povos virou motivo
para uma nova ciência, a Etnologia/Etnografia e mais tarde a Antropologia.
A MODERNIDADE COMO DISPOSITIVO DA ANTROPOLOGIA.
A ideia de modernidade está ancorada em uma dimensão simples das várias que
podem existir na pesquisa mais aprofundada do termo, porém, compreende-se aqui o
fundamental do que é ser “moderno” proveniente da perspectiva do eurocentrismo. A
partir dessa visão de mundo, os europeus foram considerados presentes no estágio mais
avançado da trajetória civilizatória, instituindo uma dicotomia entre dois sujeitos: o
superior, mais moderno da humanidade e “racional”, e o inferior, atrasado e
“irracional”. (QUIJANO, 2005). Assim, a modernização da sociedade é dada pela
ocidentalização do país, das culturas e dos povos nacionais, pois aqueles considerados
“não civilizados” pertencentes às sociedades “não europeias” e colonizadas, devem
seguir os passos do homem moderno europeu para atingir o ponto ápice da evolução.
Além disso, a determinação de identidades sociais como português, espanhol, índio,
negro, mestiços e – mais tarde – europeu, substituiu a identidade traçada pela referência
geográfica por uma ordenação racial, surgindo uma classificação por raça hierarquizada
(QUIJANO, 2005).
As Ciências Sociais foram influenciadas por toda essa construção, pautada na
ideia de raça, identidades inferiores e modernidade, que foi amplamente estimulada
pelas relações sociais da conquista da América, despois culminou nos séculos XVIII e
XVX, na centralidade geográfica, cultural e intelectual da Europa. Decorre que a
colonização gerou um sistema de conhecimento geocêntrico, com reconhecimento de
saberes, culturas, línguas e filosofias de sujeitos determinados – o homem branco –
deixando o sujeito colonizado oculto do protagonismo da produção de saber.
No cenário em que se inseriu a Antropologia, não há como escapar de um
imaginário colonial e ideológico. Até hoje a disciplina aborda termos binários como
barbárie e civilização, tradição e modernidade, mito e ciência – os quais reforçam a
oposição entre o colonizador e o colonizado – e hierarquiza raças ao ter sempre como
objeto de estudo um “outro” subalterno. Portanto, mesmo não sendo a vontade dos
etnógrafos/antropólogos da época da colonização, o pensamento e a ciência criada se
baseou no etnocentrismo, modernidade e racionalidade.
Não há a pretensão de desqualificar o conhecimento antropológico. Ele pode ser
válido para conclusões e análises sobre instituições, costumes e crenças. Porém, o outro
lado da composição é mais frágil e é necessário fazer pontuações do modo como são
inseridos dentro da sociedade dita civilizada e da ciência. A Antropologia pode não ser
completamente a ciência das sociedades exóticas e transformar-se em algumas
dimensões, mas teorias clássicas devem ser criticadas e colocadas à prova em todos os
momentos.
DECOMPONDO A ANTROPOLOGIA
Este trabalho pretende mostrar como a Antropologia, em sua visão geral, seu
contexto de surgimento, a teia de sua construção, sustenta uma ideia colonial,
começando pelos evolucionistas, mas também presente no seu método principal e no
pressuposto geral do “fazer antropológico”, que exclui o sujeito pesquisado.
Os registros de pensamentos, práticas e crenças consideradas passadas ainda
presentes no meio de uma dita sociedade complexa, foram inferiorizados nos estudos
dos evolucionistas, que usaram termos como “superstição”, “sobrevivência” e
“tradição” para remeter a ideias que, ao longo do curso da sociedade, foram tornando-se
“passado” e, assim, usa-las para provar a existência de um processo de estágios
evolutivo que vai do “primitivo” à “civilização”. Segundo Tylor, sobrevivência:
“Trata-se de processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que,
por força do hábito, continuaram a existir num novo estado de
sociedade diferente daquele no qual tiveram sua origem, e então
permanecem como prova e exemplos de uma condição mais antiga de
cultura que evoluiu em uma mais recente.” (TYLOR,2005,p.40).
Pode observar-se no trecho e nas ideias gerais evolucionistas que elas contêm
uma ideologia colonial e há o constante apelo a uma “condição mais antiga”, recheada
de juízo de valor dos saberes nativos/tradicionais. A partir disso, emergiu um
pressuposto comum de que costumes e noções “primitivas” são sobreviventes,
folclóricas e, por isso, atrasadas e sem valor em seu aprendizado - ou seja, a sociedade
supõe até hoje que aquele considerado “bárbaro” e “selvagem” detém um saber menos
necessário e intelectualmente pior, pois não é considerado “civilizado”, equivalente ao
não moderno, então:
A persistente negação deste vínculo entre modernidade e colonialismo
por parte das ciências sociais tem sido, na realidade, um dos sinais
mais claros de sua limitação conceitual.(...). Isto significa que para os
africanos, asiáticos e latino-americanos, o colonialismo não significou
primariamente destruição e espoliação e sim, antes de mais nada, o
começo do tortuoso mas inevitável caminho em direção ao
desenvolvimento e à modernização” (CASTRO-GÓMEZ, 2005,
pp.90).
Assim, o modo que se reconhece e compreende uma cultura, seus rituais, danças,
músicas, ofícios, tempo e espaço sofre vestígios das noções ideológicas evolucionistas e
colonizadas. Os saberes indígenas, rurais, quilombolas, periféricos, são menosprezados
e não dignos de estarem presentes dentro da Universidade como protagonistas, no
mesmo lugar da chamada “ciência”, em sua maior parte composta por clássicos
europeus e norte-americanos. A Antropologia transpõe tais conhecimentos para o
segundo plano, não se esforçando para conduzi-los até um cenário mais amplo. Ao
contrário, busca enquadrar os estudos antropológicos somente em sua área de um modo
sistematizado e teórico, pronto para ser digerido academicamente. Diante disso, vale
refletir até que ponto a Antropologia serve para levar à sociedade ocidental visões de
mundos diferentes sem exaltar, modificar, influenciar o modo de vida das pessoas
estudadas e dando o necessário reconhecimento.
Para demostrar a constante presença de um olhar colonizador no veículo o qual a
Antropologia se expõe, o trabalho desloca-se da proposta evolucionista, considerada
mais antiga, e transporta-se para o plano dos antropólogos clássicos e mais recentes. Um
dos maiores representantes da tradição empirista britânica, Malinowski, foi o principal
autor que institui um método preciso e rigoroso para a Antropologia. Ele enfatizava a
vida em conjunto com os povos nativos em oposição com o costume antes recorrente de
coletar relatos de informantes brancos e retrata o trabalho antropológico, a observação e
a análise do pesquisador.
“Vivendo na aldeia, sem quaisquer responsabilidades que não
a de observar a vida nativa, o etnógrafo vê os costumes, cerimonias,
transações, etc., muitas e muitas vezes; obtém exemplos de suas
crenças, tais como os nativos realmente as vivem (...). É por esta razão
que o etnógrafo, trabalhando em condições como as que vimos
descrevendo, é capaz de adicionar algo essencial ao esboço,
simplificado da constituição tribal, suplementando-o com todos os
detalhes referentes ao comportamento, ao meio ambiente e aos
pequenos incidentes comuns” (MALINOWSKI, 1978, pp.29).
Como reforça Malinowski, o antropólogo é “capaz de adicionar algo essencial
ao esboço, simplificado da constituição tribal”. Embora a etnologia seja enquadrada a
partir de um distanciamento do objeto, o campo empírico da disciplina é, em si, a
confluência de uma história política e econômica. Portanto, qualquer estudo e seu
trabalho de campo também é ideológico e não pode ser dissociado da finalidade da
Antropologia, que é a a construção de uma ciência que pretende ser moderna e racional.
“A ideia geral que se faz é a de que os nativos vivem no seio da
natureza, fazendo mais ou menos aquilo que podem e querem, mas
presos a crenças e apreensões irregulares e fantasmagóricas. A ciência
moderna, porém, nos mostra que as sociedades nativas têm uma
organização bem definida, são governadas por leis, autoridade e
ordem em suas relações públicas e particularidades, e que estão além
de tudo, sob o controle de laços extremamente complexos de raça e
parentesco” (MALINOWSKI, 1978, pp 23.)
Através da elaboração de um método de pesquisa de campo rigoroso, se legitima
e estabelece uma associação que não pode ser ignorada entre os povos e os
antropólogos, algo como uma relação entre o “novo”, o “diferente” e o Ocidente, o
ultimo subalternizando o primeiro a partir das ideias evolucionistas e colonizadoras já
citadas, que trazem a ideia de modernidade consigo. Nesse caso, a pessoa estudada
serve para ser intermediária na construção de uma teoria; o saber que dela emana como
fonte principal se modifica e se sintetiza em uma hipótese pertencente a um autor ou
área. Em outro trecho:
“Os nativos obedecem às ordens e a força do código tribal, mas não as
entendem, do mesmo modo como obedecem a seus próprios instintos
e impulsos, embora sejam incapazes de formular qualquer lei da
psicologia. As regularidades existentes nas instituições nativas são
resultado automático da ação recíproca das forças mentais da tradição
e das condições materiais do meio ambiente” (MALINOWSKI, 1978,
pp 24).
Tudo o que é inato de um povo, é apropriado pelo Ocidente; um nativo não
pensa o motivo, os mecanismos, o sistema, as etapas de sua comunidade. Porém, o
etnógrafo tem o papel de formar, ele próprio, inferências gerais sobre os fatos coletados
dos nativos e os dispor em algo sistemático, que se torna útil ao conhecimento.
Contudo, sabe-se que dentro desse sistema, a invenção do outro e a coleta de seus dados
se fez presente para negar a diversidade. O fundamento da construção do objeto da
antropologia é que “era preciso que o bom selvagem fosse considerado diferente e
distinto para que se tornasse possível defini-lo como objeto de conhecimento e
exploração” (COPANS, 1971, pp.14). Este fato é um dos maiores dispositivos da
antropologia, que está presente no imaginário colonial e no olhar antropológico. É capaz
de tornar legítimo o evolucionismo e a inferiorização de saberes. Pois criando o “outro”
dá-se lugar e voz à Antropologia através do homem branco organizando,
sistematizando, emoldurando e esmiuçando sociedades que já têm suas próprias
dinâmicas.
CONCLUSÃO:
Assim, as tradições e o protagonismo do “outro” vão contra um sistema padrão
de produção, assimilação e efetivação do conhecimento, ademais, existe formas de
inovar o conhecimento antropológico se propondo a conservar os valores espirituais,
simbólicos e decoloniais. Um exemplo, para concluir, é a matéria de Artes e Ofícios dos
Saberes Tradicionais que é possível frequentar em várias faculdades federais do Brasil
(UNB, UFMG, UFJF e outras), pois nela se expõe uma visão de mundo concreta e
alternativa ao sistema capitalista e colonial.
Uma matéria que se intitula Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais, já exalta
um estudo diferente, pois não delimita uma área da antropologia. Dentro do campo
pode-se aprender e explorar uma ampla possibilidade de estudos, música, artesanato,
canto, dança, teatro, saberes que se entrelaçam e se completam em conhecimentos ricos,
nos quais os protagonistas são os próprios detentores do conhecimento, eles são a fonte
primária. O método tradicional da Antropologia de vivenciar as atividades, costumes e
comportamento de uma população como “pesquisador” com um olhar exterior, se
transforma em Artes e Ofícios em uma vivência realmente intensa. A convivência com
os saberes é constituída de uma singela entrega para um aprendizado interior. Muda-se
internamente, seus pensamentos e modo de ver o mundo. No lugar de comparatismo e
estudo teórico do modo de vida de certas sociedades, há um reconhecimento do valor
das culturas através da sua prática e transmissão sem a apropriação. Esse novo conceito
proporcionado pela matéria é uma mudança muito grande para aqueles que estão
acostumados com o padrão antropológico e serve para pensar um novo lugar de de
antropólogo (a).
Então, ao longo do trabalho quis se compreender o lugar inferiorizado dos
conhecimentos não ocidentais diante da sociedade moderna e colonial e o cenário de
confluência da Antropologia marcado pela criação de uma ciência hierarquizada,
binaria, evolucionista que inventou um “outro” para ser estudado. Seu olhar colonizador
está presente e perdura em todo o “fazer antropológico”. Através do seu objetivo final
de ser rigorosa cientificamente, não propõe um veículo que inclua a fonte principal do
conhecimento na atuação principal, na exposição do saber. Tais reflexões revelam o
imaginário colonial presente e reproduzido pelas ciências sociais até hoje que pode
existir uma alternativa e esperança rumo a mudança.
BIBLIOGRÁFIA:
BALANDIER, Georges. A Situação Colonial: abordagem teórica. Cadernos Ceru v. 25,
n. 1. 18/12/2014. Pag. 33-58.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da
“invenção do outro”. En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur,
CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005.
FRAZER, James George. 1982 [1890]. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara. pp. 16-57.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. En
libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de
Buenos Aires, Argentina. 2005. pp.227-278.
MALINOWSKI, Bronislaw. 1976 [1922]. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São
Paulo: Abril Cultural. pp.11-34
COPANS, Jean. Antropologia: ciência das sociedades primitivas? Lisboa, Edições 70.
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