ISSN 1678-0493 Diálogos & Ciência w w w. f t c . b r / d i a l o g o s As relações de poder dentro da unidade hospitalar: uma perspectiva de médicos e enfermeiros Renato N. Chaves* e Amanda L. de S. Alves Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, Vitória da Conquista, BA, Brazil doi: 10.7447/dc.2012.015 INFORMAÇÕES RESUMO Histórico: Recebido em 24/11/2011 O presente artigo discute as relações de poder nas instituições hospitalares, entre médicos e enfermeiros. Nessa perspectiva, o objetivo principal é entender como se dão as relações de poder dentro da unidade hospitalar, para melhor programar ações de enfermagem e o bom gerenciamento da unidade. É um estudo dinâmico, quantitativo – descritivo e exploratório, e utiliza documentação direta para levantamento de dados. A pesquisa de campo realizada no Hospital Municipal Dr. José Maria de Magalhães Netto, situado em Barra do Choça – BA, utilizando questionário semi-estruturado, no qual fica claro que existe um conjunto de características que diferenciam as categorias em questão, sendo essas uma decorrência do tempo e do tipo de atividade exercida, do tempo de formação profissional. Os resultados obtidos nos propõem a reflexão a fim de promover a ampliação do conhecimento das relações de poder. Foi possível identificar e traçar alguns benefícios para os atores sociais envolvidos no contexto, como para a instituição de saúde onde atuam, tais como: manutenção do equilíbrio, melhor gerenciamento da unidade, prevenção e resolução de conflitos, entre outros. Revisado em: 02/04/2012 Aceito em: 23/04/2012 Palavras-chave: Enfermeiro, Relações de poder, Liderança Keywords: Power relationship, Leadership AUTORES ABSTRACT RNC Enfermeiro, Especialista em saúde do trabalhador e Enfermagem do Trabalho. *Autor para correspondência: [email protected] TITLE: Power relations in the hospital unit: a perspective of physicians and nurses. This article discusses the power relationships in hospitals, including physicians and nurses. From this perspective, the main objective is to understand how they give the power relations within the hospital to better plan nursing actions and the good management of the unit. It is a dynamic study, quantitative descriptive and exploratory, and uses direct documentation for data collection. The field research conducted at the Municipal Hospital Dr. José Maria de Magalhães Netto, located in Barra Shack - BA, using semistructured questionnaire, in which it is clear that there is a set of characteristics that differentiate these categories, these being a result time and type of activity, duration of training. The results suggest the reflection in order to promote the expansion of knowledge of power relations. It was possible to identify and draw some benefits for the actors involved in social context, as for the health institution where they work, such as maintaining balance, better management of the unit, preventing and resolving conflicts, among others. ALSA Acadêmica de Enfermagem. 1. Introdução Estudar as relações de poder em uma unidade hospitalar acarreta, antes de tudo, penetrar em terreno arenoso. Afinal, são muitas as disputas encontradas. Somado a isso, e entendendo que o “poder é uma relação, não é uma coisa” (FOUCAULT, 1989), significa investir nas relações e práticas sociais estabelecidas nesse contexto. De modo que, aprofundar nessa temática nos ajuda a entender como se estabelecem tais relações e, também, para afastarmos a idéia de que o poder é algo localizável, ou que seja propriedade de alguns indivíduos. Partindo desse ponto, podemos destacar dois pontos importantes desse artigo: a primeira é que vivemos num país onde o modelo do sistema de saúde se estabelece pela humanização e acolhimento dos pacientes, onde se faz supor que assim deveria acontecer com os profissionais inseridos nesta convivência, ou seja, as relações entre a equipe deveriam se dar pelo acolhimento e valorização do outro. O segundo ponto, e tambem importante, se dá pelo fato de poder ouvir os Diálogos & Ciência, no 30, junho de 2012 agentes inseridos nesse contexto, possibilitando assim, transformar de forma positiva as relações de poder encontradas, podendo ainda, promover o crescimento e o fortalecimento de boas relações entre médicos e enfermeiros e com isso, melhorar a qualidade da assistência prestada aos usuários. Sendo assim, foi definido como objetivo geral conhecer como se dão as relações de poder entre médicos e enfermeiros dentro da unidade hospitalar, e como específicos, analisar as percepções de poder nas relações de trabalho na unidade hospitalar entre médicos e enfermeiros, demonstrar como o poder é utilizado nos hospitais, discutir o papel do enfermeiro na instituição nosocomial e caracterizar o fator de dependência existente nas relações de poder entre médicos e enfermeiros. Sua relevância se dá pelo fato de buscar entender a dinâmica de relações de poder dentro do ambiente nosocomial e como esta interfere no gerenciamento da unidade e no atendimento à comunidade. Com isso, podemos melhor implementar ações de enfermagem e o bom gerenciamento da ©Rede de ensino FTC 160 CHAVES e ALVES, Diálogos & Ciência 30, 2012, 159-164 unidade. Diante disso é importante estudar e entender que poder tem o enfermeiro na unidade hospitalar, visto que, ainda prevalece a hegemonia médica, principalmente em instituições nosocomiais. . 2. Material e Métodos É uma pesquisa de campo do tipo quantitativa – descritiva e exploratória. Já do ponto de vista da estrutura é um estudo dinâmico. Com relação à natureza, constitui-se uma pesquisa aplicada, com objetivo de gerar conhecimentos para aplicação prática dirigida à solução de problemas específicos. Foi realizada no Hospital Municipal Dr. José Maria de Magalhães Netto (HMJMMN). Está situado no município de Barra do Choça – Bahia, inaugurado no dia 05.01.1979, atuando há 32 anos no atendimento a população. Dispõe de 30 leitos, assim distribuídos: 10 pediátricos e 20 de clinica geral, sendo que, desses 20 leitos 4 são obstétricos, 4 cirúrgicos e 12 de clínica médica. É considerada uma instituição de pequeno porte. Oferece serviços ambulatoriais, urgência e emergência, e de intervenção cirúrgica (pequenos procedimentos). Constituíram os sujeitos de pesquisa os funcionários médicos e enfermeiros do HMJMMN, no período compreendido entre os meses de março a abril de 2011. Conforme o setor de RH (Recursos Humanos) do HMJMMN, existem na unidade 9 médicos e 6 enfermeiros atuantes, atualizado em 09.03.2011, sendo um total de 15 sujeitos. Porém, apenas 4 médicos e 5 enfermeiros responderam ao questionário. Os participantes têm mais de 18 anos e possuem nível superior completo. Não houve restrição quanto ao gênero e estado civil. Os informantes da pesquisa foram devidamente esclarecidos quanto aos objetivos do trabalho, ficando livres para participar, uma vez aceitando, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo respeitados os princípios éticos que constam na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Com relação aos dados dessa pesquisa, foram analisados mediante toda a literatura referenciada, e para que não houvesse algum tipo de interferência pessoal, depois de respondidos, os questionários receberam um código de modo randômico, ou seja, para a classe médica foi instituído M1, M2 etc. e para enfermeiros E1, E2 etc. Desse modo, ao citar alguma resposta dada, será utilizado essa nomenclatura, assim não será exposto nenhum sujeito participante da pesquisa. 3. Resultados Para fins de esclarecimentos, não serão abordados nesse artigo todos os resultados obtidos na pesquisa, apenas discorreremos sobre os pontos mais relevantes. Ocupação dos cargos de chefia Nesta questão, os sujeitos enfermeiros, acreditam ocupar um cargo de chefia na unidade onde atuam, e atribuem à supervisão de enfermagem durante o período de trabalho esta chefia, ou seja, ao longo do turno de trabalho a própria supervisão de enfermagem é considerada um cargo onde se exerce o poder. Já entre os médicos, o entendimento é oposto, ou seja, não creem ocupar nenhuma função de chefia dentro da unidade. Quanto a este item, o questionário não trazia nenhuma informação sobre as diferenças entre cargo e função. Este feito foi propositadamente pensado, a fim de entender o que cada um responderia sobre ocupar algum cargo de chefia na unidade. Entendemos que o cargo está associado a posição hierárquica que um indivíduo ocupa e as tarefas atribuídas a Diálogos & Ciência, no 30, junho de 2012 ela, e que geralmente é o que está impresso no contrato ou carteira de trabalho, e que função são as atribuições ou tarefas que uma pessoa exerce de modo sistemático, ou seja, tudo o que é feito durante o período de trabalho e que diz respeito ao cargo em que se ocupa. A partir daí podemos inferir duas constatações: primeiro que nenhum enfermeiro estudado ocupava algum cargo de chefia, apenas eram enfermeiros e desempenhavam as funções que a profissão exigia, até aí não existe chefia. E segundo, que dos médicos, apenas um ocupava um cargo de chefia, função esta que o coloca hierarquicamente acima de todos os outros funcionários. Portanto, a resposta esperada para essa questão seria que todos os enfermeiros pesquisados respondessem que não ocupam nenhum cargo de chefia na unidade, e com relação aos médicos as respostas obtidas foram as esperadas. Porém é compreensível que o enfermeiro tenha essa visão a respeito do que seja cargo e função, ou seja, é esperado que a classe exerça papeis diversos nas suas atividades e que tenha as mais diferentes habilidades de gerenciamentos e liderança, portanto, liderar para muitos enfermeiros significa estar ou exercer um cargo de chefia. Nesse sentido concorda Ribeiro et al (2006) , quando afirma em seu artigo que Inevitavelmente, o enfermeiro desenvolverá a habilidade de liderança, independente de suas características pessoais, pois a Enfermagem requer um profissional competente, capaz de lidar com a grande diversidade humana, além de estar apto para resolver problemas e propor mudanças, apontando soluções para o que não satisfaz as necessidades da população e da equipe. Ainda para Ribeiro et al (2006), nesse contexto de mudança, a enfermagem passou a incorporar como atividade da profissão a liderança como um cargo. Mais adiante ela diz que se percebe [...] também a mudança de papéis no âmbito da enfermagem, ou seja, de uma função de supervisão do serviço de enfermagem e prestação de cuidados aos casos mais complexos, passou-se a ocupar cargos gerenciais atrelado à capacidade de liderança, acreditando-se que, assim como a gerência, a liderança se inclui num processo de aprendizado [...] Anos de estudo para o cargo Entre a classe médica pesquisada todos estudaram em média de 5 a 10 anos para ocupar o cargo de médicos. Já entre os enfermeiros, foram necessários menos que 5 ou de 5 a 10 anos de estudo para se tornarem enfermeiros. Os médicos da unidade estudaram mais que os enfermeiros. Esse é um dado que poderá suscitar uma submissão por parte dos enfermeiros na unidade médica, sendo que, o poder está totalmente relacionado com o saber e este com todos os anos de estudo de um profissional. Foucault (1979) aborda em seus estudos o tema saber e poder e faz correlações entre os dois pontos. Para ele poder e saber estão intimamente ligados, um produz o outro e não se pode exercer o poder sem ter conhecimento, sem ter o saber. Faz-nos entender, ainda, que o saber é um bom modo de reforçar o poder que se tem. Estaria ai uma breve explicação para a soberania dos médicos dentro da unidade hospitalar, visto que, a grande maioria fica em torno de dez anos estudando e adquirindo o saber teórico incluindo graduação e residência médica, já os enfermeiros na sua maioria estudam por volta de oito anos. Decisões na qual não são chamados a opinar e que gostariam Nessa questão os médicos afirmaram que geralmente não são chamados a opinar nas questões que envolvem a ©Rede de ensino FTC 161 CHAVES e ALVES, Diálogos & Ciência 30, 2012, 159-164 enfermagem, mas que também sabem que não compete aos médicos este quesito. Já entre os enfermeiros as respostas foram diversificadas, ou seja, acreditam que existem algumas decisões na instituição em que não são chamados a opinar e que seria importante a seu julgamento para a continuidade do serviço, principalmente na contratação de funcionários, onde deveriam levar em consideração a opinião da enfermagem. Com relação à admissão ou contratação de novos funcionários a enfermagem pode dar grandes contribuições para a unidade onde atua, visto que, é a única profissão que está 24 horas com o paciente, e por esse mesmo motivo conhecem muito bem as rotinas e necessidades da instituição, além do que, o enfermeiro é dotado de conhecimentos administrativos como, por exemplo, o cálculo de dimensionamento de pessoal. Para isso a classe tem um respaldo legal, pois, conforme a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem, na Resolução do COFEN-293/04 diz que “compete ao enfermeiro estabelecer o quadro quantitativo de profissionais necessário para a prestação da assistência de enfermagem” (BRASIL, 1997). Sendo assim, o dimensionamento tem também o objetivo de proporcionar melhor atendimento a população, no sentido de ter a quantidade exata de profissionais para cada paciente de acordo sua necessidade. Para fins de esclarecimento, Kurcgant et al (1989) define o dimensionamento de pessoal como: A etapa inicial do processo de provimento de pessoal cuja finalidade é a previsão da quantidade de funcionários por categoria, requerida para suprir as necessidades de assistência de enfermagem, direta ou indiretamente prestadas à clientela. Podemos perceber que o dimensionamento busca calcular antecipadamente a quantidade de pessoal que será necessário para exercer as atividades de enfermagem, por categoria, conforme a necessidade da clientela e da instituição, levando em consideração a qualidade da assistência prestada. Nesse sentido é necessária a participação do enfermeiro nessa toma de decisão, pois é ele quem conhece todas as atividades de enfermagem que o profissional dessa categoria precisa possuir, e é quem detém o conhecimento técnico-científico para a realização desse cálculo. Submissão do enfermeiro ao médico na unidade hospitalar Neste item, os médicos firmaram que sim, mas somente no que diz respeito à hierarquia na instituição, e também asseguraram que não há submissão em outros aspectos. Já os enfermeiros afirmam que não existe submissão do enfermeiro à classe médica, mas os médicos sempre têm a última palavra na instituição hospitalar. Essas divergências de respostas encontradas nos fazem pensar que tanto a enfermagem como a medicina tem visões diferentes no que diz respeito a submissão que uma classe tem com relação a outra. Ademais, entender se há uma submissão da enfermagem para com os médicos, fica claro quando estudamos as concepções de poder, e principalmente as atribuições de poder dentro da unidade de saúde hospitalar, pois estas se apresentam diferentes quando se compara uma classe a outra. Somado a isso, Romaniello (2003) afirma em sua dissertação de mestrado que “a submissão é um elemento central de toda análise de construção do poder, evidenciando a relação existente entre disciplina e a virtude organizacional que autoregula e estabelece os deveres de cada membro da organização”. Ademais, muitas vezes costumamos associar a submissão com o fator de dependência que uma pessoa ou grupo tem com relação à outra. Se possuirmos a posse sobre alguma coisa, nesse momento praticaremos em cima do que possuímos ou sobre ele alguma forma de poder. Nesse sentido, concorda Diálogos & Ciência, no 30, junho de 2012 Robbins (1999, p. 251), onde afirma que “quando você possui alguma coisa que outros exigem mas que você sozinho controla, você os torna dependentes de você e, portanto, você ganha poder sobre eles.” Desse modo, não basta possuir o que todos possuem, mas sim, obter aquilo que é tido como extraordinário, precioso, estimado, como é o caso de ter poder ou, na pesquisa em questão, ter o poder de curar, como é exposto diversas vezes pela classe médica, colocando, assim, a enfermagem como uma profissão submissa a eles. Florentino (2006, p. 95), em seu livro intitulado “Enfermagem e Medicina: relações de poder e de saber”, afirma que: A enfermagem, no campo da saúde, não é uma profissão inferior, mas que, por algum motivo, talvez cultural, ou pela perda progressiva do reconhecimento e do valor social do seu saber e fazer, deixa-se subordinar, coloca-se como inferior, aceitando e cumprindo ordens, o que caracteriza uma relação assimétrica de poder e subordinação atrelada a divisão social do trabalho. Ainda para a referida autora, e no tocante a subordinação da enfermagem, a questão do gênero é uma ferramenta importante para identificar essa submissão com relação à classe médica. Ela diz que “a construção da enfermagem como profissão foi calcada no saber e fazer da mulher, que desempenhou um papel de subordinação à medicina, exercida por homens” (FLORENTINO, 2006, p. 91). Essa questão do gênero tem um respaldo histórico de submissão da mulher ao homem, não somente com relação às profissões de enfermagem e medicina, mas também da história do paternalismo, onde a mulher competia fazer e obedecer, e o homem cabia “as funções, definições e saberes”. (FLORENTINO, 2006). Nessa questão, portanto, se evidenciou que há um certa submissão do enfermeiro ao médico, seja pela questão do gênero, ou pela própria cultura de desvalorização do saberfazer da enfermagem. 4. Discussão Por que estudar as relações de poder? Tem crescido consideravelmente, seja no campo acadêmico, empresarial ou mesmo na psicologia organizacional, o interesse pelo estudo do poder e suas vertentes relacionais, pois se trata de um fenômeno onde existem diferentes interesses e conquistas. Ter poder geralmente está associado ao fato de um individuo ou grupo exercer influência sobre outros a fim de almejar resultados comuns. Ademais, uma hora ou outra, sempre nos deparamos com alguma situação ou relação em que se envolve o poder. Alguns autores afirmam que não existe relação social sem a presença do poder. E todas as concepções que definem o poder trazem implícitos aspectos diversos da sociedade, seja entre a família, o trabalho ou o meio social em que o indivíduo está inserido. Nesse sentido concorda Stoppino (1984, p. 117), onde diz que Um dos fenômenos mais difundidos na vida social é exatamente o do poder. Pode dizer-se que não existe praticamente relação social na qual não esteja presente, de qualquer forma, a influência voluntária de um indivíduo ou de um grupo sobre o comportamento de outro indivíduo ou de outro grupo. Ademais, muitas vezes o poder é entendido como a chance de ter uma posição de privilégio em relação aos membros de um grupo, e também a oportunidade de exercer o poder de decisão. Nesse sentido, pensando em uma instituição, seja ela de saúde ou não, "o poder é uma relação social, não uma posse unilateral" (SROUR, 1998, p. 135). Somado a isso "as ©Rede de ensino FTC 162 CHAVES e ALVES, Diálogos & Ciência 30, 2012, 159-164 relações sociais, internas às organizações, articulam classes sociais e categorias sociais, e dizem respeito aos processos de produção econômica, política e simbólica" (SROUR, 1998, p. 112), nas quais os grupos sociais estão inseridos. Como podemos perceber as relações sociais e o poder estão intimamente ligados entre si, e atuam nos "processos de controle, de articulação, de arbitragem e de deliberação" (SROUR, 1998, p. 134). E para exemplificar temos na maneira de mediar conflitos entre os que mandam e os que obedecem, a negociação, a articulação ou ate mesmo a arbitragem, sendo esses pontos-chave desse processo. Mesmo assim, ainda hoje existem diversas formas de manifestação das relações de poder. A força é uma delas, porém, não se constitui como um bom modo de executar e manter o poder, pois a maioria das organizações pauta suas atividades nos princípios das relações públicas ou relações sociais, que para Simões (1995, p. 35) "é a relação de poder entre a organização e seus públicos" É necessário, ainda, ressaltar que não apenas os representantes precisam ser considerados na avaliação das relações de poder nas instituições, uma vez que "a liderança transcende cargos ou posições formais, não carece de institucionalização, decorre da sintonia ‘espontânea’ e informal estabelecida entre líderes e seguidores" (SROUR, 1998, p. 151), como também os gestores e proprietários, pois o poder de delegar cargos e funções está nas mãos deles. Ademais, esta dissertação busca uma visão analítica sobre o relacionamento profissional entre médicos e enfermeiros, dando oportunidades as partes envolvidas para expor seus conceitos e opiniões e, consequentemente, promover o crescimento das profissões como também da qualidade da assistência prestada. Relações de poder: médicos x enfermeiros Estudar tais relações nos faz entender que poder não é único, não é um bem, não é palpável, não pode ser dado ou repassado a alguém, e dentro de uma relação de poder, há quem comanda e quem é comandado, porém, todos os envolvidos em tal relação possuem certo grau de poder, como afirma Srour (1998, p. 137), onde ele diz que: Nenhum agente está totalmente destituído de alguma parcela de poder. Mesmo aqueles que ocupam uma posição subalterna nunca deixam de dispor de algum contrapoder: podem resistir e produzir efeitos sobre seus superiores e sobre seus colegas de trabalho. Partindo desse ponto, entende-se que o enfermeiro, nas suas atividades de enfermagem, detém significativo ‘poder’, e dentro da instituição, sua participação nas decisões, está relacionada com a assistência de enfermagem, que aparece muitas vezes durante o trabalho desenvolvido. Nesse sentido concorda Berni (1993): A maioria das atividades desenvolvidas passa pelo conhecimento e consentimento desses profissionais que, a todo instante, tomam decisões: autorizam o encaminhamento de pacientes a outros setores, resolvem questões burocráticas, escalam funcionários, fazem pedidos de medicação ou material de consumo, determinam a execução de cuidados de enfermagem, etc. São procurados com freqüência pelos médicos, funcionários, clientes ou familiares, que fazem solicitações, cujo atendimento depende de sua autorização [...] e) são as formas de funcionamento e de circulação do saber médico que constituem o saber dos profissionais de enfermagem como um saber periférico, e o saber do doente como um saber profano [...]; f) o pessoal de enfermagem pode ser considerado uma plataforma de mediação privilegiada entre os doentes e o poder médico. Nesse sentido e tomando como base as obras de Foucault (1993), que analisa o poder dentro da unidade hospitalar, entendemos que “o hospital não é só uma máquina de curar, mas também, um instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber que assegura o exercício do ‘poder’”. (FOUCAULT, 1993). Foucault (1990) entende que entre o poder e o saber não se estabelece uma relação casual. Não se pode distinguir um como causa e outro como efeito, pois um enfatiza a presença do outro, ambos estão entrelaçados. E esse encontro do poder com o saber configura uma sociedade disciplinar, onde estão atrelados a distinção de condutas e hábitos e à produção de conhecimentos específicos. Na atuação da enfermagem o poder e o saber se entrelaçam, sendo verificável pelo funcionamento das unidades. Esta característica faz a enfermagem ser vista como ponto de apoio na instituição hospitalar. Nessa perspectiva, Trevisan (1988, p. 7) considera que o serviço de enfermagem: [...] visa muito mais facilitar o serviço de outros profissionais na realização de suas tarefas na unidade de internação do que concretizar os objetivos de seu próprio serviço. Nesse sentido, ela limita-se a solucionar problemas para médicos, funcionários de laboratórios, nutricionistas etc. Trevisan (1988, p. 26), afirma ainda que os médicos possuem expectativas no que se refere ao papel da enfermagem: Que a enfermagem tenha responsabilidade pela manutenção da unidade, pela provisão e controle de medicamentos e materiais necessários e pela coordenação das funções da dispensa de cuidados, do hospital, com as funções de cura, do médico. Trevisan afirma também que o papel da enfermagem foi “[...] destinado a prática de higienizar e disciplinar, no sentido de organizar o espaço hospitalar, ou seja, colocar os doentes um em cada leito, observar a distância entre os leitos [...] (TREVISAN 1988, p. 47). Nesse sentido a atuação da enfermagem surgiu para servir e manter o hospital organizado e limpo, e que as outras profissões e principalmente a classe médica esperam essas atribuições dos enfermeiros. Essa expectativa tem seu berço no século XVIII, que vale a pena abordar para melhor ilustrar tais relações, onde Foucault (1990, p.110) relata em seu livro O Nascimento do Hospital, alguns regulamentos hospitalares daquele século: [...] cada pessoa deve estar colocada, o médico deve ser anunciado por uma sineta, que a enfermeira deve estar na porta com um caderno nas mãos e deve acompanhar o médico quando ele entrar, etc.[...] Por outro lado, Cecílio (1999, p. 321), pensando nos padrões de organização referentes ao hospital, afirma ainda que: Ainda hoje essa prática pode ser vista, mesmo que de modo velado, mascarado ou de certa forma modificado ao longo dos anos. Os médicos ainda hoje, ficam em plantões de sobreaviso, em suas residências aguardando o chamado de enfermeiros para avaliação de pacientes ou para realização de procedimentos. Muitas vezes, por meio de telefone, e-mail ou fax, o médico determina algumas orientações aos enfermeiros. Assim concorda Florentino (2006, p. 53), que afirma: [...] a) os médicos são os únicos profissionais realmente autônomos no hospital; b) a natureza do saber médico é um poder-saber. [...]; c) é a indeterminação que separa o saber médico dos saberes periféricos e dos saberes profanos [...];... [...] Atualmente, [...] médicos plantonistas de hospitais: ficam em seus quartos e determinam que sejam chamados nas emergências. Tal atitude é conflituosa, uma vez que não é somente responsabilidade do enfermeiro ficar à beira do leito Diálogos & Ciência, no 30, junho de 2012 ©Rede de ensino FTC 163 CHAVES e ALVES, Diálogos & Ciência 30, 2012, 159-164 do paciente, mas também do médico, fato que leva, sem dúvida a um problema ético, pois muitas vezes o médico orienta a realização de procedimentos por telefone, como a aplicação de fármacos, sem haver uma prescrição médica. Vale aqui ressaltar a importância de se conhecer as leis que regulamentam o exercício da enfermagem, por todos os enfermeiros, para que tal prática não seja realizada, pois, conforme a Resolução do COFEN (Conselho Federal de Enfermagem) – 225/1996 que dispõe sobre cumprimento de prescrição medicamentosa/terapêutica à distância, essa rotina não deve ser executada: Art. 1º - É vedado ao Profissional de Enfermagem aceitar, praticar, cumprir ou executar prescrições medicamentosa / terapêuticas, oriundas de qualquer Profissional da Área de Saúde, através de rádio, telefonia ou meios eletrônicos, onde não conste a assinatura dos mesmos. Art. 2º - Não se aplica ao artigo anterior as situações de urgência, na qual efetivamente, haja iminente grave risco de vida do cliente. Art. 3º - Ocorrendo o previsto no artigo 2º, obrigatoriamente deverá o Profissional de Enfermagem, elaborar um Relatório circunstanciado e minucioso, onde deve constar todos os aspectos que envolveram a situação de urgência, que o levou a praticar o ato, vedado pelo artigo 1º. Diante disso, é fundamental que a enfermagem estabeleça o seu exercício firmado nas condutas éticas de acordo com as leis que regem a profissão. A fim de coibir ou minimizar os tais situações que algumas profissões têm frente ao enfermeiro. Outro ponto importante do qual devemos tratar, e ainda falando de lei do exercício profissional, é sobre a grande ascensão da enfermagem, e de outras profissões da saúde, em detrimento da medicina, gerando uma acirrada disputa de poder, e a consequente criação do Projeto de Lei nº 25, de 2002, intitulado Ato Médico, que para Florentino (2006, p. 84) é definido como: A intenção não somente de garantir espaços profissionais, como, também, de manter o poder e o saber médico com a intenção de subjugar as demais profissões da área de saúde, em especial a enfermagem, em detrimento da perda gradual de seu status. Nesse sentido a enfermagem e outras profissões ganham espaço profissional, principalmente na organização hospitalar, e aumento do status, em virtude da melhor qualificação, que gerou a necessidade da classe médica criar esse projeto de lei, pois, “a medida que o papel do enfermeiro mudou no campo da saúde, passando a incluir maior participação em decisões sobre o tratamento, diagnóstico e avaliação, também a relação entre o enfermeiro e o médico mudou” o que gerou grandes disputas de espaço e de delimitação do poder. (FLORENTINO, 2006) Outros autores e estudiosos ainda preocupados com a aprovação desse projeto de lei tem tentado entender o real motivo desse movimento pela recuperação da hegemonia médica. Assim, Ojeda (2004, p. 121) define o Ato Médico como “um movimento muito bem articulado pela sociedade médica brasileira, o qual está vinculado à perda do status dos médicos nos últimos anos”. E essa perda de status profissional, está diretamente ligada ao fato de muitos cargos administrativos estarem centrados nas mãos de outras profissões, principalmente de enfermeiros, que exercem com muita sabedoria suas atividades de gerência. Nesse sentido, Florentino (2006, p. 86) considera que A enfermagem tem assumido cargos assistenciais e administrativos importantes nas esferas municipal, estadual e federal (coordenadores, gerentes e diretores de serviço no campo da saúde), os quais eram espaços ocupados outrora Diálogos & Ciência, no 30, junho de 2012 somente por médicos no modelo assistencial curativista. Essa disputa por espaço profissional, pelo poder, tem colocado a medicina e a enfermagem em constante conflito, o que ocasiona menor qualidade de assistência prestada ao cliente, que deixa de ser o foco principal nessa relação de poder. 5. Conclusões Ao se estudar as relações de poder, podemos constatar o exercício de poder, tanto entre os profissionais quanto nos ambientes onde atuam, por meio de evidências coletadas no dia a dia de cada um, ou seja, pode-se analisar as resistências construídas a cada dia. Porém não podemos avaliar apenas movimentos de resistência, mas sim, considerar qual a fundamentação moral que a mesma implica para o seu exercício, fazendo isso estaremos dentro da visão ética que deve permear as atividades de cada profissional envolvido nas relações de poder. Somado a isso, esse estudo tem importância para próximas pesquisas, servindo como base teórica para a fundamentação do tema pesquisado. Os resultados obtidos nos propõem a reflexão sobre a necessidade de pesquisarmos sobre as relações de poder dentro da unidade hospitalar, a fim de promover o desenvolvimento de se conhecer a temática. Associado a isso, os questionamentos podem ser respondidos e convertidos em qualidade, tanto no campo da assistência de enfermagem prestada aos clientes, seja por meio do dimensionamento de pessoal de enfermagem ou pela redução das disputas e conflitos na organização, ou quanto nas relações interpessoais e interprofissionais existentes na unidade hospitalar. Nesse contexto, esse complicado mundo das relações de poder nos faz perceber que os enfermeiros devem reconhecer o seu papel de chefe, uma vez que desempenham em suas atividades diárias diversas funções de chefia, tais como gerenciamento, exercício da autoridade, liderança, tomada de decisões e são naturalmente superiores de profissionais como técnicos e auxiliares, estes por sua vez estão sob o comando dos enfermeiros em qualquer situação. Sendo assim, a enfermagem necessita ampliar sua visão no sentido de compreender que o enfermeiro é chefe, pois o próprio exercício da profissão o faz assumir essa atribuição. Por tudo isso, fica claro que a enfermagem dentro de uma instituição hospitalar atua e interage com diversos profissionais de saúde. Sendo assim, é fundamental que esta categoria, tenha sempre em si, a busca pelo conhecimento, controle, liderança, autonomia para gerenciar situações de conflito, manter boa relação de poder com seus liderados, pois essas ações impulsionam tanto o enfermeiro quanto a categoria para uma melhor assistência de enfermagem, e consequente afirmação da enfermagem enquanto ciência. 6. Referências BERNI, N. I. O. Assistência de enfermagem em Obstetrícia: aparência e essência. São Paulo, s.n., 1993. 137 p. Dissertação (Mestrado em Obstetrícia) – Escola de Enfermagem, Escola Paulista de Medicina. BRASIL. Lei do COFEN nº 293, de 21 de setembro de 2004. Estabelece Parâmetros para Dimensionamento do Quadro de Profissionais de Enfermagem nas Instituições de Saúde. Portal do COFEN, Rio de Janeiro, RJ, . 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