OPINIÃO Cirurgia Endoscópica: A Revolução Silenciosa “... é preciso trinta anos para que uma ideia ou uma técnica nova seja aceite.” Jean de Brux, cirurgião , 2000 A história recente da cirurgia médica sofreu uma autêntica revolução com a introdução de um novo tipo de abordagem denominada, entre outras formas, videocirurgia, cirurgia endoscópica ou cirurgia minimamente invasiva. Como esta última expressão sugere esta técnica usa um acesso mínimo para chegar aos órgãos, e também a forma de interacção com estes é menos agressiva.Através da introdução de um sistema óptico acoplado a uma câmara que transmite as imagens do campo operatório, o local onde intervimos no doente é-nos acessível no monitor, a duas dimensões. Os instrumentos são mínimos e a imagem ampliada, facilitando a microcirurgia. Esta abordagem foi iniciada nos anos 40 do século passado, por um ginecologista sueco radicado em Paris, Raoul Palmer. Palmer criou uma escola de percursores que nos vinte anos seguintes procederam às primeiras cirurgias endoscópicas da cavidade abdominal. As doenças do aparelho genital feminino e a sua dificuldade de diagnóstico e compreensão, nomeadamente a infertilidade, os quistos do ovário e as complicações dos abortos, foram um terreno de eleição para o seu uso. Dir-se-ia que a laparoscopia nasceu da preocupação para melhorar a saúde reprodutiva da mulher e é hoje na ginecologia paradigma de qualidade e modernidade. O grande desenvolvimento desta técnica nas últimas décadas deve-se em grande parte aos avanços tecnológicos: a introdução das fibras de vidro e a luz “fria” nos anos sessenta, o uso de novos materiais e fontes de energia na interacção com os tecidos como o LASER e os ultrasons, a aplicação da electrónica digital que possibilitou optimizar a imagem 46 Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Outubro 2006 e o seu arquivo.A robótica e a electrónica estão a ser aplicadas a esta cirurgia, sendo já realidade operações executadas por robots e controladas por cirurgião à distância. Apesar de hoje, na Ginecologia, ser possível efectuar por esta via todo o tipo de intervenções padrão, tem sido na Cirurgia Geral que se tem verificado o maior desenvolvimento e implementação nos últimos anos. Este interesse está sem dúvida relacionado com o estabelecimento de grupos pioneiros, que divulgam o seu trabalho e fazem formação. Mas esta revolução na técnica cirúrgica opera-se a dois níveis. Não só na modificação dos gestos, da forma e da instrumentação, como também, e não menos interessantemente, a nível mental e comportamental. Citando o cirurgião francês Hubert Manhès: “Na cirurgia convencional abdominal existe abertura, exposição, extracção, transposição para o exterior do corpo.Todos os nossos gestos evocam um conceito puramente mecânico, como se tratasse de matéria inerte. Tudo se joga num espirito de realização imediata menosprezando a qualidade do material vivo do qual cuidamos e do seu estado após a nossa passagem. Em endoscopia o teatro das operações situa-se no interior do corpo e, por isso, impõe um comportamento diferente. Somos confrontados com a verdadeira anatomia na sua expressão fisiológica, no seu lugar. A acção sempre necessária é neste contexto contida, deixando um papel mais importante à contemplação e à reflexão. Estamos num espaço vivo e fechado onde o nosso primeiro dever é duma evidência primordial: preservar o equilíbrio biológico e fisiológico desse ecossistema. “ As vantagens desta mudança revelam-se desde logo na qualidade da recuperação operatória, que é pouco dolorosa, com internamentos curtos e convalescença rápida. As sequelas cicatriciais são minimizadas, tanto interna como exter- Susana Coutinho Médica Ginecologista namente, como se comprova nas reintervenções. Mas esta via diferente, que confronta e põe em causa a manipulação da cirurgia convencional, obrigou muitos cirurgiões a uma espécie de mutação, para apreenderem e desenvolverem os novos gestos adequados. Como se pode imaginar a implementação deste novo conceito, com toda a sua panóplia de tecnologia sofisticada, não tem sido pacifica. Se por um lado esta é uma cirurgia que pode ser apreciada por todos na sala operatória ou posteriormente usado o seu registo, com vantagens óbvias para a aprendizagem e reproductibilidade das técnicas cirúrgicas; por outro lado, as cirurgias mais elaboradas são consideradas pouco ”democráticas”, quer em termos da sua exequibilidade pelos cirurgiões devido às maiores exigências de material ou de perícia e coordenação espacial, quer em termos de elegibilidade dos doentes. Em Portugal a cirurgia endoscópica está difundida em muitos blocos operatórios, nomeadamente na sua vertente diagnóstica e cirúrgica de dificuldade menor e intermédia. A cirurgia avançada é ainda em número restrito e o seu desenvolvimento dependerá da capacidade de rentabilização dos serviços, pois esta é uma técnica mais onerosa. Este é um desafio actual, que implica a formação de equipas vocacionadas com acesso a blocos operatórios modernos, num sistema de saúde adaptado aos novos procedimentos e aos internamentos curtos, que serão em maior número. A abordagem endoscópica trouxe uma melhoria indiscutível aos cuidados médico-cirúrgicos, revelando um futuro pleno de potencialidades. É uma dádiva do nosso tempo que a endoscopia, uma ideia antiga, se tenha instalado e desenvolvido, pelo que, no mínimo, temos a obrigação de a respeitar.