Mecanismos de democracia participativa: o que há de

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33º Encontro Anual da ANPOCS
GT 03: América do Sul e regionalismos comparados
Novos modelos democráticos na América do Sul? Uma avaliação das experiências
da Venezuela, Equador e Bolívia
Fidel Pérez Flores
Clayton Mendonça Cunha Filho
André Luiz Coelho
1. Introdução
O presente trabalho busca analisar em uma perspectiva comparada os processos
de transformação atualmente em desenvolvimento na Venezuela, Equador e Bolívia e
suas implicações na construção de um novo modelo democrático a partir de suas novas
constituições. Apontados como os mais radicais processos de transformação política
recente na América Latina, os três países têm em comum o fato de terem passado por
uma ampla transformação institucional que em maior ou menor medida questionam o
modelo de democracia representativa clássico por meio da adoção de novas
constituições, no que alguns observadores têm chamado de “revoluções de
papel”(PARTLOW, 2009) por se embasarem fundamentalmente na mudança de seus
arcabouços jurídico-políticos.
Os três países enfrentaram recentemente, em um contexto de crise econômica,
situações de instabilidade política que se traduziram em colapso do sistema partidário,
quedas de presidentes e surgimento de movimentos contestatórios (ver, por exemplo,
COUTINHO, 2006; HELLINGER, 2003; MAINWARING, 2006; PACHANO, 2006;
PEÑA Y LILLO, 2009). Todos estes foram ingredientes de uma crise de representação
que para importantes atores políticos deveria se resolver mediante um processo de refundação do Estado e suas instituições que garantisse maior controle e participação
popular. O processo de imposição de reformas de mercado características dos anos 1990
passou a ser visto por esses atores como um movimento duplamente pernicioso: no
âmbito econômico, as reformas em si desconsideravam o interesse das classes
subalternas e impactaram no agravamento de suas precárias condições de vida; no terreno
político, desgastou-se a institucionalidade democrática na medida em que cresceu o
sentimento de revolta por quanto o processo decisório que levou a essas reformas tendeu
a excluir os setores que mais perderam com elas. Foi nesse contexto político e
vocalizando essas demandas que Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa foram
eleitos, respectivamente, em 1998, 2005 e 2006.
Autores que, como Enrique Dussel (2007), têm se dedicado a estudar a
problemática da dialética entre o poder popular originário (potentia) e o poder
constituído através de instituições (potestas) têm ressaltado o caráter necessariamente
transitório de toda instituição. Conformadas como canais de mediação necessários à
prática democrática em grandes comunidades, todas as instituições sofreriam, com o
tempo, processos entrópicos que as levariam a perder eficiência nessa tradução entre
2
vontade popular e execução política efetiva. Uma tarefa essencial da política seria então,
para Dussel, por um lado saber reconhecer o momento de transformar as instituições
dadas, e por outro tentar fazer com que essa transformação caminhe sempre na direção de
tornar essas instituições mais permeáveis à participação direta e ao controle por parte da
potentia, numa aproximação progressiva da utopia da democracia direta.
À primeira vista, os processos desencadeados nos três países andinos com suas
novas constituições parecem caminhar nesse sentido. Mas até que ponto os potenciais
contidos na nova institucionalidade têm se concretizado na prática? Se bem é verdade
que os processos políticos que aqui nos ocupam se orientam pela necessidade de
construir instituições que ampliem a participação e o protagonismo de setores sociais fora
do âmbito da política profissional, é pertinente uma análise que avalie o tipo de
participação política sugerida por essas novas instituições em contraste com as práticas
concretas até o momento passíveis de avaliação.
Nesse sentido, Armando Chaguaceda (2008) chama a atenção para a possibilidade
de que a dinâmica da participação acabe se enquadrando no que ele chama de
colaboração pragmática, situação na qual é o aparelho do Estado o principal sustentador
das formas organizativas dos cidadãos na medida em que tem um papel social e político
relevante. Neste modelo a participação é conduzida pelas autoridades estatais, que
acabam se tornando o centro de todo o processo participativo. Assim, resta para a
sociedade civil o papel mais limitado de identificar necessidades para serem atendidas
pela esfera governamental em subordinação aos objetivos da direção estatal. Há,
portanto, distintos modos de encarar a participação da sociedade organizada. O modelo
tradicional do socialismo de Estado identifica participação com mobilização e o seu
sujeito são as massas, destinadas a cumprir um papel passivo na implementação de
políticas desenhadas no governo. Outro modelo, que Chaguadeda identifica como modelo
cidadão, define seus atores como participantes ativos, abre espaços para o
compartilhamento da gestão dos assuntos públicos com a institucionalidade estatal e a
sociedade civil participaria de forma corresponsável e não subordinada.
Com o objetivo de analisar efetivamente o disposto nos textos constitucionais
propriamente ditos, na seção seguinte identificamos nas constituições dos três países os
mecanismos de participação concedidos aos cidadãos e que estariam, em tese,
aproximando tais Estados de um modelo de democracia mais direta. Em seguida,
fazemos uma tipologia dos mecanismos constitucionais e do grau em que eles aumentam
3
a participação cidadã e complexidade de sua implementação efetiva. Na seção seguinte,
buscamos observar algumas experiências concretas de utilização destes mecanismos e até
que ponto elas confirmam – ou não – a concretização deste paradigma participativo. Por
último, tentamos propiciar uma discussão sobre os alcances, limites e contradições que
estas experiências em andamento representam enquanto possibilidades de aprimoramento
democrático na região, bem como discutir possíveis caminhos e desdobramentos de
pesquisas futuras neste campo.
2. Os poderes constitucionais e a participação ampliada
Para efeito de análise, dividimos em oito dimensões distintas os mecanismos que
ampliam a capacidade dos cidadãos de intervir no processo decisório antes reservado aos
organismos tradicionais de representação, conforme disposto no Quadro 1 abaixo:
Quadro 1
Mecanismos de
participação
Bolívia
Equador
Cortes Superiores do
Judiciário eleitas por
sufrágio direto (Artigos
182, 183, 188, 194 e
197).
Venezuela
Conselhos Comunais
nomeiam representantes para
Possibilidade de eleger
integrar o Comitê de Seleção
parlamentares indígenas
Representação paritária de
de juízes. (Código de Ética do
Mecanismos de
e autoridades dos
homens e mulheres em cargos
Juiz e da Juíza
representação
territórios autônomos por
públicos, partidos e
Venezuelanos).
ampliada
meio de usos e costumes
movimentos (artigo 65).
(Artigo 11).
3 deputados especiais
indígenas (Artigo 186).
Quota indígena na
Câmara (Artigo 146) –
Regulamentado por Lei
Eleitoral Transitória de
2009
Todos os cargos eletivos
Todos os cargos eletivos são
Todos os cargos eletivos são
Revogação de
são revogáveis menos o
revogáveis (Artigo 105 e 105).
revogáveis. (Artigo 72).
mandatos
judiciário (Artigo 240)
Cidadãos podem convocar
Cidadãos podem convocar
referendo para revogar leis e
referendo para revogar leis e
decretos presidenciais.
Qualquer emenda à
decretos presidenciais (Artigos
(Artigos 73 e 74)
Revogação/
Constituição precisa de
103 e 104)
ratificação de
referendo (Artigo 411).
Qualquer modificação
leis
Qualquer modificação
constitucional precisa de
constitucional precisa de
referendo. (Artigos 341 e
referendo (Artigos 441 e 443).
344).
Cidadãos podem
Cidadãos podem convocar
Cidadãos podem convocar
referendo para aprovar
referendo para aprovar
Política Externa convocar referendo para
aprovar tratados e
tratados e convênios
tratados e convênios
4
convênios internacionais
(Artigo 259).
Mecanismos
populares de
controle e
prestação de
contas
Iniciativa de lei
Mecanismos de
co-gestão
Autonomia
indígena
internacionais (Artigo 420).
internacionais. (Artigo 73).
Tratados sobre questões
limítrofes, integração
monetária, integração
econômica estrutural e
cessão de competência a
órgãos supranacionais
referendo é obrigatório
(Artigo 257)
Exercido por mediação
Exercido por mediação do
da Função de Controle,
Exercido por mediação do
Poder Cidadão (Ministério
Defesa da Sociedade e
Poder Função de
Público, Defensoria do Povo
do Estado (Ministério
Transparência e Controle
e Controladoria Geral da
Público, Defensoria do
Social (Conselho de
República) (Artigos 273 a
Povo e Controladoria
Participação Cidadã e
291).
Geral da República)
Controle Social, Defensoria do
(Artigos 213 a 231).
Povo, Controladoria Geral do Sociedade organizada propõe
Estado) (Artigos 204 2 205).
candidatos para dirigir o
Sociedade civil
Poder Cidadão; Assembléia
organizada participa na
Cidadãos e organizações
Nacional nomeia. (Artigo
fiscalização, denúncia de
sociais selecionam os
279).
possíveis casos de
membros do Conselho de
revogação, controla a
Participação Cidadã e
Membros do poder cidadão
gestão pública em todos
Controle Social, para
são designados por consulta
os níveis estatais e de fiscalização em todos os níveis popular apenas em ausência
qualquer empresa que
de governo (Artigos 207, 209,
de maioria suficiente na
use recursos públicos
209 e 210).
Assembléia Nacional. (Artigo
(Artigos 241 e 242).
279).
Cidadãos podem propor
legislação, modificações
Cidadãos podem propor
constitucionais e convocar
Cidadãos podem propor
legislação, modificações
uma assembléia constituinte
legislação, modificações
constitucionais e
(Artigos 103, 104, 135 e 444).
constitucionais e convocar
convocar uma
uma assembléia constituinte.
assembléia constituinte
Equatorianos no exterior
(Artigos 204, 341, 342 e 348).
(Artigos 162 e 411).
possuem as mesmas
prerrogativas (Artigo 102).
Participação cidadã em todos
Organizações comunitárias
os níveis de governo (Artigos
participam na execução,
85 e 95).
controle e planejamento de
obras, programas sociais e
Sociedade civil
Garantia de participação a
fornecimento serviços
organizada participa do
representantes da sociedade
públicos. (Artigo 70 e 184).
desenho das políticas
civil em discussões e
públicas e gestão, mas a
deliberações dos governos
Trabalhadores participam da
regulamentação
subnacionais (Artigo 101).
gestão de empresas públicas.
específica ainda não
(Artigo 184).
existe (Artigos 241 e
Cidadãos participam no
242).
Conselho Nacional de
Lei de 2006 sobre Conselhos
Planejamento, que é
Comunais regulamenta
responsável pelo Plano
mecanismos de participação
Nacional de Desenvolvimento
comunitária.
(Artigos 279 e 280).
Territórios indígenas
Indígenas podem constituir
Reconhece-se existência de
autônomos são instâncias circunscrições territoriais onde
uma organização social,
sub-nacionais de
se aplicam mecanismos
política e econômica próprias.
5
governo, nos quais se
aplicam justiça indígena
e usos e costumes para
seleção de governantes
(Artigos 289 a 296).
judiciais próprios (Artigos 60
e 171).
Se reconhece e garante às
comunas, comunidades, povos
e nacionalidades indígenas Leis que afetem
direito de propriedade de
territórios indígenas e
terras comunitárias,
recursos naturais dos
indivisíveis e isentas de pagar
mesmos precisam passar
impostos (Artigo 57).
por referendo no
território em questão
Leis que afetem territórios
(Artigo 30).
indígenas e recursos naturais
dos mesmos precisam passar
por referendo no território em
questão (Artigo 57).
(Artigo 119)
Autoridades podem aplicar
instancias judiciais próprias
da sua cultura. (Artigo 260).
Fontes: Elaboração própria a partir de ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA, 2009; REPÚBLICA BOLIVIARIANA DE
VENEZUELA, 1999; REPÚBLICA DEL ECUADOR, 2008.
Tais dimensões não necessariamente refletem a estrutura formal na qual as
constituições estão divididas, mas permitem uma comparação sistemática entre as
semelhanças e diferenças dos países analisados. A seguir, desenvolvemos uma análise
mais específica de cada uma delas.
2.1 - Mecanismos de representação ampliada
De acordo com a Constituição equatoriana, o Estado promoverá a representação
paritária de homens e mulheres aos cargos de nomeação ou designação do poder público,
em suas instâncias de direção e decisão, bem como nos partidos e movimentos políticos.
O texto constitucional garante ainda que o Estado adotará medidas de ação afirmativa
para garantir a participação dos setores discriminados. No caso das eleições
proporcionais, a lei estabelecerá um sistema eleitoral que garanta os princípios de
proporcionalidade, igualdade do voto, equidade, paridade e alternância entre homens e
mulheres, além de determinar as circunscrições eleitorais dentro e fora do país.
A Constituição boliviana estabelece a forma comunitária como uma das
configurações possíveis da democracia no país, definindo a eleição de dirigentes dos
povos indígenas originários camponeses por usos e costumes, supervisionada pelo Poder
Eleitoral boliviano, sempre que não se aplique a necessidade de voto igual, universal,
direto, secreto, livre e obrigatório. Com relação às formas de representação clássica no
parlamento, o texto constitucional estabelece a participação paritária entre homens e
mulheres e a reserva de vagas para representantes indígenas, sem no entanto estabelecer
exatamente como estas se darão. A Lei Eleitoral Transitória, aprovada pelo Legislativo
6
em abril e que regulará as eleições gerais de dezembro de 2009 e as departamentais de
abril de 2010, estabelece que a lista proporcional de deputados deverá ser alternada entre
homens e mulheres e que nas circunscrições uninominais1 candidatos homens devem ter
mulheres na suplência e vice-versa e reserva sete circunscrições especiais para candidatos
indígenas. A lei, entretanto, deverá obrigatoriamente ser substituída por nova legislação
quando for empossado o novo parlamento e o governo tem sinalizado a intenção de
aumentar a quota indígena.
A Carta Magna boliviana define ainda que o Tribunal Supremo de Justiça terá os
seus membros eleitos via sufrágio universal. O texto estabelece que o Órgão Legislativo,
mediante 2/3 dos votos presentes, pré-selecionará os candidatos, que no entanto não
poderão efetuar campanha, ficando o poder Eleitoral encarregado de difundir os méritos
das candidaturas. A reeleição dos magistrados, no entanto, não é possível e os mesmo
procedimentos de escolha dos juízes se aplicam também ao Conselho da Magistratura, ao
Tribunal Agro-ambiental e ao Tribunal Constitucional.
Já a Constituição venezuelana estabelece que os povos indígenas possuem direito
a participação política e que o Estado deve garantir a representação indígena na
Assembléia Nacional (estabelecido em uma cota mínima de três deputados indígenas,
respeitando suas tradições e costumes) e nos organismos de deliberação nos níveis
federais e locais, de acordo com a lei.
2.2- Revogação de mandatos
Em relação à possibilidade de revogação de mandatos de autoridades eleitas
democraticamente, os três países analisados possuem significativas semelhanças.
Segundo a Constituição equatoriana, cidadãos que gozem de seus direitos
políticos estão aptos a revogar o mandato de todas as autoridades eleitas via voto popular.
Contudo, este processo pode ser iniciado apenas uma vez, devendo ocorrer após o
primeiro e antes do último ano de mandato para o qual foi eleita a autoridade
questionada. A solicitação de revogatória deverá ser respaldada por um número não
inferior a 10% dos eleitores inscritos no registro eleitoral correspondente ao nível de
governo do representante. Se a solicitação de revogação de mandato for para o máximo
1
A Câmara de Deputados boliviana é eleita metade por listas proporcionais fechadas e metade por
circunscrições uninominais.
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cargo eletivo, o de Presidente da República, então será necessário o respaldo de um
número não inferior a 15% dos eleitores inscritos no registro eleitoral total do país.
Caberá ao Conselho Nacional Eleitoral promover o processo. Para tal, será
necessário que este conheça a decisão do Presidente da República, dos governos
autônomos descentralizados ou aceite a solicitação apresentada pelos cidadãos. Caso
inicie o processo, o Conselho Nacional Eleitoral convocará em um prazo de 15 dias o
referendo ou consulta popular para a revogação do mandato. Para que ocorra a
aprovação, será necessária a maioria absoluta dos votos válidos, exceto no caso de
revogação do mandato presidencial, no qual será necessária a aprovação da maioria
absoluta dos eleitores.
No caso boliviano, a Carta Política regula a revogação de mandatos eletivos no
país, ao definir que toda pessoa que exerça cargo eletivo pode ter seu mandato revogado,
exceto membros do órgão judicial (maiores detalhes da seleção de membros do Órgão
Judicial serão apresentados na seção que discute os mecanismos de participação
ampliada). O pedido de revogatória poderá ser solicitado após a metade do mandato,
menos no último ano, e apenas uma vez por mandato. Este poderá ser iniciado por ao
menos 15% dos cidadãos da circunscrição do representante questionado. Uma vez
decidido pela saída do representante, este deverá ser retirado imediatamente de seu cargo,
assumindo seu suplente na forma da lei.
A Constituição venezuelana define o protagonismo do povo na revogação de
mandatos públicos de cargos eletivos. Estabelece que todos os cargos e magistraturas de
eleição popular são revogáveis. O processo de revogação de mandatos deve ser iniciado
apenas após a metade do período para qual foi eleito o representante, por um número não
inferior a 20% dos eleitores inscritos na circunscrição eleitoral correspondente, que
podem solicitar a convocação de um referendo para decidir a questão. Convocado o
referendo, se ao menos 25% dos eleitores inscritos participarem do mesmo e a decisão da
maioria for favorável à revogação do mandato, ocorrerá a imediata destituição do
representante. No entanto, o processo de revogação de mandato de um representante
eleito só poderá ser iniciado uma vez ao longo do mandato.
Ou seja, a principal diferença entre os países reside no fato de que na Venezuela
todos os cargos eletivos podem ser revogados, inclusive os cargos da magistratura,
enquanto na Bolívia todos os cargos eletivos também podem ser revogados, exceto os da
magistratura. Já no Equador todos os cargos eletivos podem ser revogados, mas não há
8
eleição para os cargos da magistratura, que são escolhidos por meio de concurso público
e não podem ser revogados pela vontade popular.
2.3 - Revogação/ratificação de leis
De maneira comum aos três países, existe a necessidade de aprovação em
referendo de qualquer modificação constitucional aprovada, independentemente de quem
a tenha proposto.
Na Venezuela e no Equador, os cidadãos têm ainda o poder adicional de convocar
referendos a fim de revogar quaisquer leis e/ou decretos presidenciais, faculdade não
mencionada no texto constitucional boliviano. No caso equatoriano, são necessárias as
assinaturas de 5% dos eleitores em consultas nacionais ou 10% dos eleitores no caso de
referendos de nível local. Os referendos podem também ser convocados por equatorianos
no exterior, necessitando-se nesse caso da assinatura de pelo menos 5% dos inscritos na
circunscrição especial em questão. No caso venezuelano, as solicitações deverão ser
feitas por 10% dos eleitores correspondentes.
2.4 - Participação em Política Externa
Os cidadãos dos três países têm poderes para convocar referendos para rejeitar ou
ratificar tratados e convênios internacionais assinados pelos seus respectivos governos.
No entanto, há diferenças específicas quanto ao tamanho do apoio relativo da população
para uma solicitação dessa natureza e ao tipo de tratados que podem ou devem ser
submetidos a referendo.
Na Bolívia, um referendo deve ser convocado de forma automática e obrigatória
em relação a tratados sobre questões limítrofes, integração monetária, integração
econômica estrutural e cessão de competências a órgãos supranacionais. Outros tipos de
tratados, para serem submetidos a referendo, precisam do apoio de pelo menos 5% dos
cidadãos inscritos na lista de eleitores.
A Constituição equatoriana abre a possibilidade de ratificação de qualquer tratado
internacional mediante ativação do mecanismo de iniciativa cidadã, a qual precisa do
apoio de pelo menos 0,25% dos eleitores.
Na Venezuela, os cidadãos só podem submeter a referendo aqueles tratados
internacionais que pudessem comprometer a soberania nacional ou transferir
competências a órgãos supranacionais.
9
2.5 - Mecanismos populares de controle e prestação de contas
As três constituições prevêem a criação de um poder ou função autônomo
específica do Estado para garantir mecanismos de controle e prestação de contas com
participação cidadã. Essa instância é integrada pela Defensoria do Povo, para garantir o
cumprimento dos direitos cidadãos e a Controladoria Geral, para controle dos órgãos da
administração pública.
Na Bolívia e na Venezuela, este poder do Estado inclui também o Ministério
Público, encarregado de exercer a ação penal pública. No Equador, a Fiscalia Geral do
Estado, que cumpre funções equivalentes, foi incluído na Função Judicial e de Justiça
Indígena.
No Equador e na Venezuela criaram-se canais de participação da sociedade
organizada na nomeação dos principais funcionários dessas instâncias. No caso
equatoriano, o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, integrado por sete
membros propostos por organizações sociais, é o encarregado de nomear a Defensoria do
Povo e da Controladoria Geral do Estado.
Os cidadãos venezuelanos podem participar do processo de nomeação das
autoridades do Poder Cidadão mediante o Comitê de Avaliação de Candidaturas,
composto exclusivamente por representantes de diversos setores da sociedade. Esse
comitê propõe à Assembléia Nacional os nomes para encabeçar o Ministério Público, a
Defensoria do Povo e a Controladoria Geral. Mas, caso os parlamentares não consigam
designar por maioria de dois terços às autoridades do órgão em questão, deve-se
submeter a decisão a uma consulta popular.
Na Bolívia, a Constituição não prevê mecanismos de participação cidadã no
processo de nomeação dos órgãos de controle e prestação de contas, mas dá à sociedade
civil o direito de participar na fiscalização, denúncia de possíveis casos de revogação,
controle da gestão pública em todos os níveis estatais e de qualquer empresa que use
recursos públicos. No entanto, a regulamentação específica sobre estes mecanismos de
participação direta de controle social não existe ainda.
2.6 - Iniciativa de Lei
A Constituição dos três países permite que cidadãos apresentem iniciativas de lei,
proponham modificações constitucionais, solicitem plebiscitos sobre qualquer assunto de
10
relevância e convoquem um referendo sobre a conformação de uma Assembléia
Constituinte. No caso do Equador, os cidadãos que moram além das fronteiras do país
têm as mesmas prerrogativas.
Para por em prática este direito, é preciso que os interessados formalizem sua
petição mediante a apresentação de um número de assinaturas de acordo com um
percentual da lista eleitoral que varia de país a país. É no Equador que se exige o menor
número relativo de assinaturas: 0,25% para propor uma lei, 5% para um plebiscito
nacional, 10% para um plebiscito local, 1% para modificações constitucionais e 8% se as
modificações propostas supõem alterações na estrutura fundamental da Carta. Por último,
12% dos eleitores inscritos podem convocar uma consulta popular sobre a convocação a
uma Assembléia Constituinte.
Na Venezuela, uma iniciativa de lei pode ser apresentada por 0,1% dos inscritos
na lista eleitoral; um plebiscito pode ser convocado pela petição de pelo menos 10% dos
eleitores e as modificações constitucionais, assim como a iniciativa de convocação para
uma Assembléia Constituinte, precisariam ser promovidas por 15% dos eleitores.
Tanto no Equador quanto na Venezuela, a Constituição dá garantias aos cidadãos
para que suas iniciativas perante o Parlamento e outros órgãos normativos sejam
efetivamente discutidas sem demoras excessivas. No caso equatoriano o prazo máximo é
de 180 dias para uma iniciativa de Lei e de um ano para uma reforma constitucional. Se a
iniciativa não for considerada pelos parlamentares, ela entra em vigor automaticamente e,
se for reforma constitucional, convoca-se a um referendo popular para sua aprovação.
Já na Venezuela os parlamentares devem considerar a iniciativa de lei pelo menos
no período de sessões ordinárias seguinte ao qual ela foi apresentada, enquanto que uma
reforma constitucional deve ser tramitada no mesmo período legislativo em que foi
apresentada e ser submetida a votação em prazo de dois anos. Na falta de discussão
parlamentar, a iniciativa de lei se submeteria a referendo popular para sua aprovação.
Na Bolívia, não existe ainda a regulamentação necessária sobre os procedimentos
para os cidadãos exercerem o direito à iniciativa legislativa e plebiscito, inclusive no que
diz respeito ao número relativo de assinaturas que devem apoiar a petição. Para o caso
das modificações constitucionais e a petição de referendo sobre a convocação a uma
Assembléia Constituinte precisa-se do apoio de 20% dos eleitores inscritos.
2.7 - Mecanismos de co-gestão
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De maneira geral, as constituições dos três países prevêem mecanismos de cogestão e participação da sociedade civil nas instâncias de governo, mas as formas através
das quais esta se efetiva varia muito entre eles.
No Equador, por exemplo, o principal instrumento de co-gestão estabelecido pela
Carta Magna é, provavelmente, o Conselho Nacional de Planejamento, que possui a
atribuição de elaborar o Plano Nacional de Desenvolvimento, de caráter vinculante para a
política econômica e de investimentos do setor público. De acordo com o texto
constitucional, o Conselho – que se replica nos níveis sub-nacionais de governo com as
mesmas funções – deverá contar com a participação dos cidadãos, embora não esteja
claro no texto qual a quantidade de membros, nem a forma de seleção dos mesmos,
detalhes fundamentais para avaliar qual o grau de poder da cidadania neste órgão. Há
ainda no país a criação da figura da “cadeira vazia”, a reserva de um assento com voz e
voto para representantes da sociedade civil nas sessões dos governos sub-nacionais,
embora esteja igualmente incerto no texto como isso se dará na prática.
Na Bolívia, por sua vez, a Constituição praticamente estabelece a sociedade civil
como um contra-poder ao criar a figura da “participação e controle social”, com o papel
de participar no desenho das políticas públicas, exercer o controle social de todos os
órgãos de governo e empresas públicas ou privadas que recebam verbas públicas, auxiliar
o legislativo na elaboração de leis, denunciar atos de corrupção e pronunciar-se sobre os
informes de gestão emitidas pelos órgãos do Estado. A forma como se efetivará esse
contra-poder, entretanto, é ainda mais obscuro no texto constitucional boliviano que a
formação do conselho de planejamento equatoriano mencionado acima. De fato, a
Constituição boliviana remete sua regulamentação a uma lei infraconstitucional ainda
inexistente a ser aprovada pelo novo parlamento a partir de 2010.
O fato de terem os dois países aprovado suas novas constituições muito
recentemente e, portanto, não terem seus mecanismos ainda em pleno funcionamento
impede a avaliação na prática dos mesmos.
Na Venezuela, por sua vez, a constituição determina a participação dos
trabalhadores e das comunidades na gestão das empresas públicas e estabelece que os
estados e municípios devam favorecer a descentralização e a transferência da gestão de
serviços públicos às comunidades e grupos vicinais. Embora à semelhança de Equador e
Bolívia o texto constitucional venezuelano também seja um tanto quanto vago nas formas
12
como se darão tais mecanismos de co-gestão, em 2006 foi aprovada uma Lei de
Conselhos Comunais que regulamenta e detalha melhor o funcionamento desses órgãos.
De acordo com a lei, os Conselhos Comunais podem ser estabelecidos em áreas
geográficas contíguas que comportem entre 200 e 400 famílias em áreas urbanas, a partir
de 20 em zonas rurais e a partir de 10 em territórios indígenas, e terão a função de
planejar e executar obras e políticas públicas de tipos diversos em seus territórios de
atuação, decididas através de assembléias de cidadãos. Para isso, recebem recursos do
Fundo Nacional de Conselhos Comunais, criado na mesma lei, outros dois fundos
públicos previamente existentes, de transferências de outros órgãos e instâncias de
governo, doações ou recursos gerados pelos próprios Conselhos e são canalizados através
dos Bancos Comunais também estabelecidos pela referida lei.
2.8 - Autonomia indígena
De participação decisiva nos processos políticos dos últimos anos e que
permitiram o redesenho constitucional de Bolívia e Equador, os povos indígenas
obtiveram nos novos textos constitucionais destes países extensos direitos de autonomia
e autogoverno. Na Bolívia, que adotou a denominação oficial de Estado Plurinacional em
reconhecimento às nações indígenas presentes no país, os povos indígenas têm na nova
constituição o reconhecimento de seus territórios como entes de governo sub-nacional em
igualdade hierárquica com municípios e províncias e onde se aplicam leis e
procedimentos judiciais comunitários próprios. Nestes territórios autônomos, os
indígenas podem organizar-se politicamente de acordo com seus usos e costumes
próprios e precisam ser consultados em referendo acerca de qualquer lei ou projeto que
afete seus territórios ou os recursos naturais contidos nos mesmos.
No Equador, embora não tenham seus territórios equiparados a entes
governamentais autônomos, os indígenas podem se organizar territorialmente, com o
reconhecimento da posse comunal de suas terras e podendo aplicar em seus territórios
sistemas de justiça comunitários próprios, além de também precisarem ser consultados
acerca do aproveitamento de seus recursos naturais.
Na Venezuela, entretanto, os indígenas dispõem de muito menos poder
constitucional, praticamente restrito à organização territorial em suas terras ancestrais
que devem ser demarcadas pelo Estado, consulta prévia sobre o aproveitamento dos
recursos de suas terras (sem ficar claro se tal consulta possui ou não caráter vinculante) e
13
o respeito a seus idiomas e culturas próprios. A Lei de Conselhos Comunais de 2006,
entretanto, abre a possibilidade de constituição de Conselhos Comunais indígenas, que
poderiam então exercer as funções de autogoverno comuns aos demais Conselhos.
3. Graus na intensidade da participação
É possível agora estabelecer uma tipologia de acordo com distintos graus de
intensidade na participação pressuposta em cada um dos mecanismos descritos na seção
anterior e inserta-los em um continuum que nos permita enxergar com maior clareza a
complexidade esperada na implementação dessas instituições. Isto é necessário na
medida em que não é a mesma coisa participar como eleitor em um referendo que
acontece só de forma excepcional do que ser envolvido, de forma permanente, no
processo de planejamento, gestão e tomada de decisão em torno dos problemas básicos
de uma comunidade específica. Do ponto de vista do cidadão, a participação em um
referendo termina com a escolha por alguma das opções que lhe foram apresentadas no
dia da eleição; já para o membro de um conselho comunal, tal e como é projetado na
Venezuela, a participação é muito mais complexa e exige dele um envolvimento
permanente, além de conhecimento e competências adequadas para efetivamente tomar
parte na solução dos problemas de sua comunidade.
Figura 1
A escala indica a relação diretamente proporcional entre a intensidade da participação pressuposta para cada mecanismo e a
complexidade dos desafios que podemos esperar para sua efetiva implementação. Isto é, quanto mais intensa a participação
esperada de parte dos cidadãos, mais complexa e difícil se torna sua plena realização dentro do sistema político democrático.
14
A questão que orienta o estabelecimento dessa tipologia dos mecanismos
constitucionais de participação ampliada nos três países analisados aqui é: que tão intensa
é a participação pressuposta dos cidadãos para a implementação efetiva do mecanismo
constitucional? Repensar os mecanismos de acordo com esse olhar nos permitiu
representar a intensidade participativa pressuposta para cada um dos diferentes tipos de
mecanismo constitucional de forma semelhante a uma escada. A cada degrau, aumenta
em alguma medida a intensidade com que se espera o cidadão seja participante ativo no
processo político. Mas aumenta também o tamanho dos desafios institucionais para sua
efetiva implementação.
Consideremos agora os mecanismos de acordo com sua posição na escala:
3.1 Representação ampliada
A representação se amplia nos três casos, basicamente, pela incorporação de
critérios étnicos e de gênero na eleição de representantes perante os órgãos executivos e
legislativos previamente existentes. Também, no caso boliviano, instâncias relevantes do
Poder Judiciário passam a ser eleitas por voto popular. Do ponto de vista do cidadão, isto
representa a ampliação de seus poderes como eleitor. Considera-se agora que a condição
indígena e a condição de mulher é politicamente relevante do ponto de vista da
representação e os eleitores identificados sob essa condição passam a ter uma parcela
mínima de representantes garantida em diversos órgãos executivos e legislativos. A
implementação deste mecanismo continua sendo o exercício do voto de forma periódica
de acordo com intervalos temporais pré-estabelecidos. Por isso, a intensidade pressuposta
da participação cidadã, neste caso, não é muito diferente do que já existia previamente
com a realização normal de processos eleitorais, Por isso, os mecanismos de
representação ampliada estariam no nível mais baixo do nosso continuum de
intensidades.
3.2 Poderes revogatórios
A possibilidade de revogar mandatos, leis e tratados internacionais mediante
referendo mantém como elemento central para sua implementação o exercício do voto.
Mas, desta vez, a periodicidade para que isso aconteça não obedece a um calendário préestabelecido. Precisa-se, segundo os casos, do envolvimento ativo de uma parcela de
15
cidadãos que coletam assinaturas para convocar um referendo, da assinatura de um
tratado internacional ou de alguma tentativa de reforma constitucional. Assim, para estes
poderes serem exercidos pelo cidadão, o mecanismo precisa ser ativado pela ação
concertada de uma parcela importante dos eleitores. Portanto, se pressupõe um nível de
envolvimento e participação em um nível maior de intensidade que o mecanismo anterior
da representação ampliada.
3.3 Mecanismos populares de controle e prestação de contas.
Nesta dimensão o voto perde sua centralidade e deixa de ser a única maneira pela
qual a participação se torna efetiva. Na Venezuela e no Equador criam-se canais para o
envolvimento de setores sociais relevantes para a nomeação dos integrantes das
instâncias diversas de controle e prestação de contas, o que implica mecanismos de
participação mediada pelas organizações envolvidas. Isto é, cidadãos que já se envolvem
com alguma intensidade na solução dos problemas coletivos em seus respectivos âmbitos
passam a ter maior capacidade de incidência. No caso da Bolívia, a constituição enuncia
poderes ainda mais diretos e permanentes de envolvimento na função de controle e
prestação de contas da gestão pública a todos os níveis. Assim, do ponto de vista do
cidadão, a intensidade da participação que dele se pressupõe aumenta.
3.4 Iniciativa legislativa
A confecção das leis deixa de ser atribuição exclusiva dos parlamentares e do
Executivo com a criação do mecanismo que permite a apresentação de iniciativas
legislativas a cidadãos não eleitos. Mas, para por em prática esta prerrogativa, os
cidadãos interessados devem mostrar capacidade não apenas para mobilizar a parcela
mínima de apoios prevista na constituição, como também seria preciso ter certo domínio
da técnica legislativa. Ou seja, de forma análoga aos projetos de lei originados nas
instâncias legislativas e executivas do Estado, os legisladores cidadãos precisariam
conhecer a linguagem e as estratégias políticas para aumentar suas chances de aprovação,
já que, a final das contas, o projeto de lei iniciado por eles deve ser também discutido e
avaliado pelo Poder Legislativo.
Vemos assim que o voto neste caso desaparece como protagonista do mecanismo
participativo e deixa seu lugar ao exercício de habilidades mais sofisticadas, que exigem
um envolvimento mais profundo e informado em relação à matéria que em cada caso
16
seria objeto da iniciativa legislativa. Podemos afirmar, portanto, que estamos diante de
um mecanismo que pressupõe uma intensidade participativa maior que nos casos
anteriores.
3.5 Mecanismos de co-gestão
O termo co-gestão sugere que os cidadãos se envolvem, tanto como seus
representantes, no planejamento, gestão e implementação de soluções às questões de
interesse público. Conceitualmente, podemos dizer que a co-gestão pode ser exercida em
distintos níveis do exercício governamental ou de administração das empresas públicas.
Mas, com isso, devemos também aceitar que quanto maior o tamanho da comunidade
sujeito dessa co-gestão, maior o tamanho dos desafios que a implementação dos
mecanismos de co-gestão enfrenta.2 Em qualquer caso, co-gestão significa um
envolvimento muito mais direto e intenso dos cidadãos em todas as fases do processo
político. Exige-se deles, conseqüentemente, co-responsabilidade. É por essa razão um
dos mecanismos de mais alta intensidade participativa suposta.
3.6 Autonomia indígena
Uma característica comum aos três casos é que, seja quais forem as atribuições
formais outorgadas às unidades políticas que eventualmente seriam criadas a partir das
comunidades indígenas existentes, sempre lhes é reconhecida a possibilidade de se
organizarem da acordo a usos e costumes próprios. A enunciação desse direito não nos
diz por si só nada a respeito das concretizações específicas desses usos e costumes.
Também não está garantido em lugar nenhum que seja necessariamente um costume
indígena um tipo de organização política que, do ponto de vista do cidadão, implique
graus elevados na intensidade da sua participação. No entanto, existe a presunção
amplamente aceita de que comunidades indígenas se organizam de acordo com padrões
intensos de participação e envolvimento de todos seus membros nas principais questões
da vida comunitária. Essa presunção se torna ainda mais aceitável se acatamos o
2
A esse respeito, Giovanni Sartori (1994) como parte de suas considerações a respeito dos modelos de
democracia participativa propõe que a intensidade de um autogoverno praticável está em relação inversa à
extensão e à duração requerida de autogoverno que se exige. Assim, a prática do autogoverno, que tem
elementos semelhantes com o que aqui chamamos de co-gestão, seria menos viável na medida em que
aumenta o tamanho da comunidade que se auto-governa. Reconhecido teoricamente este problema de
escala, o que interessa é indagar em que medida o desenho institucional nos três países consegue superar
esse desafio na prática.
17
argumento lógico de que em comunidades de pequena escala uma participação muito
intensa se torna mais viável. Incluir, portanto, a dimensão da autonomia indígena como o
de mais elevada intensidade participativas obedece a essas presunções que, em todo caso
e na falta de elementos mais explícitos nas constituições, precisam ser confirmadas ou
refutadas pelo exame cuidadoso do que acontece nessas comunidades.
4. Algumas aplicações práticas dos mecanismos constitucionais
Algumas experiências concretas na Bolívia e principalmente na Venezuela já
mostram como vêm se desenvolvendo na prática as prerrogativas constitucionais
discutidas na seção anterior. Notadamente, no que diz respeito à revogação de mandatos,
revogação/ratificação de leis, mecanismos de co-gestão e autonomia indígena.
Já o caso equatoriano é ainda muito recente e não possui casos suficientemente
relevantes para análise nessa seção. São ainda muito incipientes na vida política
equatoriana as iniciativas dispostas na nova Carta Política do país, razão pela qual o
Equador não foi incluído.
4.1 – Revogação de mandatos
Em agosto de 2004, materializou-se o disposto no artigo 72 da constituição
venezuelana com a realização, a pedido de uma parcela expressiva de cidadãos, de um
referendo popular sobre a continuidade no cargo do presidente Hugo Chávez. Em junho
daquele ano, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) validou as assinaturas coletadas entre
pelo menos 20% dos eleitores inscritos e organizou a consulta em nível nacional. Os
eleitores deram uma ampla vitória ao presidente, abrindo assim um período de
estabilidade e legitimidade renovada para o governo. Dessa forma, os mecanismos de
revogação de mandatos na Venezuela se revelaram um instrumento eficaz para canalizar
por vias institucionais as tensões próprias de um processo político altamente polarizado.
No entanto, o processo não esteve isento de dificuldades. Os atores políticos em
confronto, no caso, o presidente da República e os setores da sociedade que pretendiam
sua destituição, nem sempre se mantiveram fiéis à legalidade consagrada na Constituição.
Em 2002, um golpe de Estado fracassado e uma paralisação produtiva que tentou forçar a
renúncia do mandatário foram tentativas claras de ignorar os canais institucionais de
participação por parte dos opositores ao governo. Inconformados com o programa de
reformas que o Executivo se propôs a implementar, empresários, militares, sindicalistas e
18
meios de comunicação privados articularam uma aliança em torno do objetivo comum de
interromper o mandato presidencial a qualquer custo (MARCANO; BARRERA, 2004;
LEITE; PÉREZ FLORES, 2007).
Diante do insucesso dessa primeira onda de tentativas extra-institucionais contra o
presidente, a aliança opositora resolveu explorar os canais constitucionais de revogação
de mandatos. No entanto, as sucessivas campanhas de coleção de assinaturas a favor de
um referendo encontraram sérios obstáculos iniciais da parte das autoridades eleitorais e
judiciárias antes de efetivamente ser convocada a consulta com caráter vinculante. Uma
primeira tentativa de realizar um referendo consultivo foi desautorizada pelo Tribunal
Supremo de Justiça argumentando a necessidade de renovar a diretoria do CNE, até então
composta por autoridades provisórias. Posteriormente, e já com um novo CNE nomeado
pelo tribunal, uma segunda campanha de assinaturas foi invalidada sob argumento de que
ela havia se realizado antes do presidente completar a metade de seu mandato, como
ordena a constituição. Ainda a terceira e última campanha de assinaturas, realizada em
março de 2004, não conseguiu ser validada imediatamente devido a que as autoridades
eleitorais argumentavam que algumas assinaturas poderiam ter sido falsificadas
(MIGUEL ET AL., 2009).
Entre as fileiras governistas sempre foi levantada a hipótese de que a identidade
de várias pessoas estaria sendo usada indevidamente para forjar assinaturas contra o
presidente. Essa situação teria motivado o então deputado governista Luis Tascón a
divulgar no seu site de internet a lista dos assinantes desde a primeira campanha,
realizada no final de 2002. Dessa forma todos poderiam conferir e, se fosse o caso, retirar
a sua assinatura. No entanto, publicadas as preferências políticas dos assinantes mediante
a chamada Lista Tascón, uma parcela da população se tornou vulnerável a retaliações de
diversa natureza, especialmente aqueles que fossem funcionários públicos ou tivessem
sua fonte de renda ligada a máquina do Estado. Recentemente, um dirigente sindical do
setor petrolífero declarou ao jornal El Nacional que a referida lista estava sendo usada
como critério de recontratação dos funcionários de uma empresa de serviços recém
nacionalizada na região do Lago Maracaíbo. Conseqüentemente, aqueles que houvessem
assinado contra o governo em 2003/2004 não poderiam ser contratados pela estatal.3
Ver “Excluyen a 80 petroleros por la Lista Tascón” em El Nacional, publicado em 10 de junho de 2009.
Adicionalmente, um estudo patrocinado pelo National Bureau of Economic Research de Massachussetts,
EUA, encontrou que, pelo menos 30% dos assinantes da terceira e definitiva campanha pelo referendo
3
19
No caso boliviano, em 10 de agosto de 2008 foi realizado um referendo
revogatório dos mandatos do presidente, Evo Morales, e de oito dos nove governadores
departamentais4 e que resultou na revogação dos mandatos de dois governadores e na
ratificação de todos os demais cargos. Apesar de não previsto no ordenamento
constitucional anterior, o revogatório foi convocado por lei proposta pelo presidente
como tentativa de solucionar os impasses políticos entre o governo central e os
governadores opositores da região conhecida como “meia-lua”, no oriente do país.
O fato de não estar previsto na Constituição então em vigor chegou a gerar uma
tentativa – fracassada – de impugnação do revogatório pelo Tribunal Constitucional e as
ameaças dos governadores de oposição de não reconhecerem seus resultados. Após
negociações políticas, entretanto, apenas o governador de Cochabamba seguiu afirmando
até o dia da consulta que não o reconheceria. Contudo após a divulgação do cômputo
final do revogatório, ele – justamente um dos únicos dois a serem revogados –
reconheceu o resultado e deixou o governo.
As regras do revogatório aprovadas no Congresso, entretanto, eram bastante
confusas e estabeleciam a revogação do mandato do presidente ou dos governadores que
obtivessem votos contrários a sua permanência no cargo maiores que a sua votação
obtida em 2005, o que em tese permitiria a revogação do mandato de alguns
governadores mesmo que obtivessem mais votos a favor de sua permanência que de sua
revogação. Teria sido o caso justamente do governador de Oruro, Alberto Aguilar, que
em 2005 fora eleito com 40,95% dos votos e que no revogatório teve 50,85% dos votos
favoráveis a sua permanência e 49,15% de votos contrários. Entretanto, a Corte Nacional
Eleitoral havia emitido resolução interpretativa da lei mantendo as regras originais
apenas para o caso do presidente e estabelecendo a revogação dos governadores que
obtivessem 50% dos votos mais contrários a sua permanência.
4.2 – Revogação/ratificação de leis
viram sua renda e chances de empregabilidade cair em alguma medida entre 2004 e 2006, período
imediatamente posterior à realização do referendo revogatório. Os autores do estudo chegaram a essa
conclusão ao cruzar dados relativos a data de nascimento e endereço da Lista Tascón com dados
equivalentes da pesquisa anual por amostra de domicílios da Venezuela (ver MIGUEL ET AL., 2009).
4
A governadora do departamento de Chuquisaca havia sido recém-eleita em junho de 2009 e, por isso, não
foi submetida ao revogatório.
20
Na Venezuela, em dezembro de 2007, a participação cidadã se tornou
determinante na decisão de rejeitar uma reforma que modificaria 69 artigos
constitucionais por iniciativa do presidente da República e a Assembléia Nacional. Na
ocasião, foi ativado o mecanismo do artigo 344 que obriga à realização de um referendo
sempre que a Constituição for modificada. Os eleitores acabaram rejeitando a reforma
por uma margem estreita.5 Dessa forma, um projeto do Executivo para fixar na
Constituição parte do seu programa de transformações rumo ao socialismo foi barrado
pela vontade majoritária dos eleitores, decisão que foi aceita por todas as autoridades
constituídas.
No entanto, apesar de reconhecer oportunamente a derrota de seu programa pela
via da reforma constitucional, o governo não desistiu da aplicação de seu projeto
normativo através de outros mecanismos legislativos. A Assembléia Constituinte e o
próprio Executivo através dos poderes que lhe foram conferidos em 2007 através de Lei
Habilitante6 promulgaram leis que retomavam o conteúdo de várias das reformas
derrotadas pelo referendo popular. Na forma, este procedimento não era necessariamente
ilegal na medida em que aproveitava as margens permitidas constitucionalmente.
Entretanto, refletia sim a firme vontade do Executivo de avançar nos seus objetivos
independentemente das manifestações majoritárias dos cidadãos. Essa situação levou
setores da oposição a afirmar que o presidente estava, na prática, implementando de
contrabando a reforma constitucional que não conseguiu aprovar (PÉREZ FLORES,
2008).
Um dos artigos propostos para modificação em 2007 era o relativo aos limites
para a reeleição presidencial, que teriam sido eliminados caso a reforma tivesse sido
aprovada. Neste ponto, o presidente não tinha margem possível fora dos procedimentos
de modificação constitucional. Assim, uma emenda dos artigos correspondentes foi
submetida a referendo em fevereiro de 2009. Desta vez, a vontade presidencial contou
com a aprovação majoritária de 54,86% dos eleitores.7 Os opositores ao governo
5
A reforma foi dividida para a consulta em dois blocos. O bloco A foi rejeitado por 50,7% dos eleitores
contra 49,2%; o bloco B foi rejeitado por 51,05% dos eleitores contra 48,94% (Resultados disponíveis em
http://www.cne.gov.ve Acesso em 28/03/2009)
6
Em janeiro de 2007, logo após tomar posse para um novo mandato de seis anos, o presidente Chávez
obteve da Assembléia Nacional poderes para legislar em conselho de ministros durante 18 meses em onze
matérias de interesse público.
7
Resultados disponíveis em http://www.cne.gov.ve Acesso em 28/03/2009.
21
aceitaram a derrota, mas não deixaram de denunciar que a máquina do Estado e recursos
públicos em massa teriam sido utilizados para alavancar a mobilização e o voto a favor
da emenda.
4.3 – Mecanismos de Co-gestão
De acordo com um estudo da Fundação Centro Gumilla (MACHADO, 2008), até
março de 2008 existiriam mais de 25 mil conselhos comunais formalmente constituídos e
10 mil em processo de formação em todo o território venezuelano. Até o momento, os
resultados obtidos com os conselhos são ambíguos. Por um lado, destaca-se o aumento
de empoderamento local, a definição de prioridades pelas próprias comunidades e a
experiência de participação política direta proporcionada a muitos cidadãos antes
politicamente passivos. Por outro, a falta de experiência administrativa de muitos dos
conselheiros, a articulação deficiente com as instâncias de fiscalização nacionais como a
Controladoria e com os governos estaduais e municipais e a excessiva dependência frente
ao governo central de alguns dos Conselhos (Ver, por exemplo, ELLNER, 2009).
O caso dos conselhos comunais do município caraquenho de Chacao é ilustrativo
quanto a efetividade e os problemas que enfrenta esta experiência de co-gestão a nível
local. Em 14 de junho de 2009, 29 assembléias de vizinhos no município se
pronunciaram, mediante voto direto, sobre a continuidade ou não de um projeto de
revitalização do espaço onde se encontra o mercado municipal. O resultado favoreceu em
99% a concretização do projeto, que inclui a construção de um centro cívico.8 Esta
consulta se enquadra no disposto pelo artigo 70 constitucional, que cria a figura de
assembléias de cidadãos em nível local e dá a suas decisões caráter vinculante.
Adicionalmente, a Lei de Conselhos Comunais de 2006 faz dessas assembléias a máxima
instância para o exercício do poder comunitário.
Este caso, que não seria o único na Venezuela quanto ao exercício dos poderes
comunitários, é emblemático por duas razões: acontece em um município de maioria
opositora9 e a decisão tomada contraria a vontade do governo central e das instancias
8
Na consulta participaram mais de 20 mil vizinhos do município. Para a decisão final se tornar vinculante,
precisava-se de 8 mil eleitores (20% da lista de eleitores de Chacao), conforme a Lei de Conselhos
Comunais.
9
Na eleição municipal de novembro de 2008, o candidato governista do Partido Socialista Unido da
Venezuela (PSUV) obteve apenas 12,56% dos votos válidos. (Resultados disponíveis em
http://www.cne.gov.ve. Acesso em 01/07/2009)
22
judiciárias que haviam ordenado a detenção das obras por considerar a atividade dos
vendedores do mercado como tradição oral do município. Por esse motivo, a Guarda
Nacional, instância dependente do Executivo nacional, mobilizou alguns dos seus
efetivos para ocupar parte do terreno onde acontecem as obras. O prefeito de Chacao, que
pretende dar continuidade ao projeto, anunciou que usará do poder comunal precisamente
para reverter essas ações e dar prosseguimento às obras.
4.4 – Autonomia Indígena
Desde a reforma constitucional de 1994, a Bolívia reconhecia a existência de
Terras Comunitárias de Origem (TCO) nas comunidades indígenas, onde vigorava a
propriedade coletiva de terras e certa autonomia cultural e econômica. Espera-se que a
maioria dessas TCO venha a se converter em Territórios Indígenas Camponeses
Autônomos com as faculdades de autogoverno estabelecidos pela nova Constituição.
Entretanto, para que o façam, a Constituição estabelece a necessidade de realização de
um referendo e da redação de um Estatuto de Autonomia local adequado aos termos da
futura Lei Marco de Autonomias requerida pela nova Constituição e a ser aprovada pela
próxima legislatura.
Alguns efeitos não-esperados da constitucionalização das autonomias indígenas e
de seus direitos sobre os recursos naturais de suas terras, entretanto, já se fizeram sentir
em alguns conflitos localizados entre indígenas e cooperativas mineiras pela exploração
de jazidas minerais no departamento de La Paz. Os indígenas tentaram expulsar os
mineiros – que ali já trabalhavam antes da promulgação da Constituição – de suas terras
alegando que a Constituição lhes garantiria a propriedade dos recursos, sendo necessária
a intervenção do governo central para evitar o confronto. Outro problema a repercutir na
imprensa boliviana, desta vez relacionado à justiça comunitária indígena, foi a punição
de 50 chicotadas imposta a Marcial Fabricano, indígena mojeño e funcionário do governo
opositor do departamento de Beni, por traição. A punição foi defendida por organizações
indígenas como a Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB) como
perfeitamente compatível com o estabelecido na nova Constituição, mas o vice-ministro
de Coordenação com Movimentos Sociais, Sacha Llorenti, condenou a ação.
5. Considerações finais
23
Nos três casos existem efetivamente textos constitucionais que ampliam
consideravelmente os mecanismos de participação cidadã para além das instituições
representativas tradicionais. Podemos dizer que, em nível institucional, essa é a aposta
desses países para dar resposta à crise de representação que assolou a região nos anos
1990. Há coincidências fortes em matéria de revogação de mandatos, revogação de leis,
iniciativa de lei, mecanismos populares de controle e prestação de contas e política
externa. Mas há especificidades notáveis quanto aos instrumentos de co-gestão e
autonomia indígena.
Contudo, a existência desses mecanismos de democracia participativa não
significou um abandono das instituições e mecanismos representativos. Na verdade, a
verticalidade do processo decisório continua sendo pilar essencial ao funcionamento de
seu sistema político e estamos longe de qualquer afirmação que identifique o desenho
institucional desses três países como exemplos plenos de democracia participativa. A
incorporação de novos instrumentos de participação como os que foram aqui discutidos
sem dúvida abre espaços para a criação de um novo tipo de relação entre governantes e
governados, aproximando estes das instâncias de decisão. Mas abre também, como é
natural em todo processo de mudança institucional profunda, uma tensão entre a
enunciação de direitos e garantias constitucionais e a forma em que eles são efetivamente
levados à prática. Com este trabalho, esperamos apontar caminhos pelos quais podem ser
estudadas essas tensões.
Outra questão importante diz respeito à prática da cidadania na democracia.
Usualmente, diz-se que esta é exercida primordialmente no momento do voto, quando o
cidadão pode escolher seu representante. Essas novas possibilidades têm o potencial de
radicalizar a prática cidadã, tornando-a não apenas restrita ao momento do voto, mas
também em um controle constante sobre as ações dos representantes, conforme refletido
nos mecanismos de co-gestão e controle e prestação de contas. Se o que está escrito nas
Constituições analisadas nesse trabalho de fato se transmutar em prática cotidiana,
poderemos observar uma mudança na dinâmica da democracia representativa em seus
moldes tradicionais, em direção a um modelo de maior aproximação entre governantes e
governados, participação ampliada dos setores sociais organizados e controle popular dos
representantes eleitos.
Nesse sentido, um exemplo se encontra na capacidade de cidadãos iniciarem
processos de revogação de mandatos de autoridades com cargos eletivos. Refletindo
24
sobre o histórico político recente da região, nos quais vários presidentes traíram suas
promessas de campanha, tais mecanismos de revogação de mandato inexistentes no
passado passam a ser muito importantes para a concretização da vontade popular e
principalmente na resolução de crises. É notório que, tanto na Bolívia quanto na
Venezuela, a possibilidade de revogar mandatos foi essencial para encaminhar tensões
políticas recentes entre adversários altamente polarizados por vias institucionais e
pacíficas.
Assim, a vontade popular pode tornar-se um verdadeiro mediador entre as crises
cíclicas envolvendo poderes constituídos, uma vez que tanto o mecanismo da revogação
de mandatos quanto o da consulta popular, em tese, poderiam resolver conflitos que antes
paralisavam tais países por meses, quando não por anos. Contudo na Venezuela, a
experiência da Lista Tascón foi um precedente com capacidade de inibir a reutilização
desse mecanismo por cidadãos inconformados com seus governantes.
Quanto à revogação e ratificação de leis, mostrou-se importante em termos de
conferir legitimidade ao novo marco legal a convocação de um referendo para aprovar as
respectivas constituições. E no caso da Venezuela, para reverter uma reforma que
mudava substancialmente a Constituição de 1999, mas que não obteve apoio popular
maciço. Reforma, aliás, que diminuía em alguns aspectos a capacidade dos cidadãos para
intervir no processo decisório: aumento da barreira para convocar revogatórios,
iniciativas de lei, revogação de leis e a desaparição da possibilidade de consulta popular
para designar os dirigentes do Poder Cidadão.
Em relação aos mecanismos de co-gestão, verifica-se um aumento considerável
no nível de mobilização cidadã a partir da criação dos conselhos comunais na Venezuela.
No entanto, há dúvidas quanto a seus graus de autonomia frente às diretrizes do poder
central. E quando eles efetivamente preferem políticas públicas distintas às do Presidente,
há indícios de que as próprias instâncias do governo buscam contornar as decisões locais,
como mostra o caso de Chacao descrito na seção anterior.
Os textos constitucionais, como se vê, outorgam autênticos poderes para a
participação autônoma de setores da sociedade organizada. Mas no caso venezuelano há
sinais de que o governo prefere um tipo de participação mais verticalizado onde a
sociedade civil é mobilizada em função de definições estabelecidas a partir da cúpula.
Neste esquema, a participação se aproximaria mais de uma dinâmica em que as massas
acompanham, mas têm influência limitada, nas orientações produzidas por uma direção
25
política centralizada. Contudo, nada impede que essas tendências hoje observadas
possam vir a ser revertidas na Venezuela através dos próprios poderes de participação
ampliada incorporados na Constituição, nem que necessariamente essas incongruências
irão se reproduzir na Bolívia, no Equador10 ou em qualquer outro contexto sócio-político
em que esse tipo de modelo constitucional possa vir a ser experimentado.
Com este artigo buscamos essencialmente descrever os mecanismos de
participação cidadã presentes nos novos textos constitucionais dos três países. Estamos
conscientes de que não esgotamos o tema. Pelo contrário, esperamos que a partir desse
texto eminentemente descritivo, possam surgir futuros questionamentos e temas de
pesquisas. Por exemplo, uma das questões que merece maior atenção e desenvolvimento
seria a relação entre estes mecanismos de democracia direta e o chamado socialismo do
século XXI, muitas vezes assumidas implicitamente como relações necessárias (ver, por
exemplo, DASSO JÚNIOR, 2009).
Até que ponto a adoção deste tipo de mecanismos implica necessariamente na
adoção de um programa político de redistribuição econômica e justiça social? Um
hipotético cenário político diverso, com a eleição de presidentes de direita não poderia se
utilizar destes mesmos mecanismos para a implementação de políticas distintas?
Abordando o uso de mecanismos de democracia direta de alguns estados dos EUA, os
cientistas políticos Arthur Lupia e John G. Matsusaka (2004) mostram, por exemplo, que
nas últimas quatro décadas a iniciativa legislativa e referendo têm sido usados
majoritariamente para a implementação de políticas conservadoras de taxação e gasto
social e que no início do século XX atuavam em sentido inverso. Eles levantam a
hipótese de que tais mecanismos, na verdade, atuem como canais de aproximação entre
as políticas e o cidadão mediano, moderando-as quando muito mais à esquerda que este
ou radicalizando-as em situação inversa em vez de atuar necessariamente em
determinada direção ideológica. Como as experiências por nós estudadas ainda são
bastante recentes como para analisá-las em perspectiva comparada, não há elementos
suficientes para testar a hipótese nos casos em questão, mas seria necessário avaliar no
futuro as relações efetivas entre os mecanismos de democracia direta e o tipo de políticas
efetivamente implementadas nos três países.
10
Embora alguns autores (ver, por exemplo, CONAGHAN, 2008) venham apontando na atuação do
presidente Rafael Correa níveis de personalismo que poderiam apontar indícios desse tipo de tensão
também no Equador.
26
Outro ponto importante a ser investigado é de até que ponto esses mecanis
mos
dispostos nas constituições dos três países representam de fato a construção de uma
institucionalidade de novo tipo e fundamentalmente mais democrática como seus
governos buscam mostrá-los, o que requereria de uma comparação mais sistemática deles
com os países de institucionalidade “tradicional”, o que vai além do escopo deste
trabalho particular, mas mereceria uma maior atenção futura.
6. Referências Bibliográficas
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contexto cubano. In: A. Chaguaceda (Org.); Participación y espacio asociativo.
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