TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM GOIÁS: Uma breve reflexão sobre sua dimensão cultural BRAGA, Helaine da Costa – IESA/UFG – mestranda do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia. Rua Mopyata, Q.105; L.11; Jardim Helvécia, Aparecida de Goiânia - Goiás ALMEIDA, Maria Geralda de. – IESA/UFG - Professora do IESA/UFG. Rua Rui Brasil Cavalcanti, ED. São Francisco, Ap. 902, St.Oeste, Goiânia – Goiás. Resumo: O artigo apresenta reflexões sobre tradição e modernidade goianas ressaltando nas duas formas de vivência social os aspectos culturais. As discussões retomam elementos das bases da formação socioespacial de Goiás e, ao adotar o sertão como categoria de análise, indica caminhos para se avaliar a influência da cultura sertaneja no espaço goiano contemporâneo. Palavras – chave : Espaço-sertão, Goiás, Tradição, modernidade, Cultura. Abstract: Tradition and Modernity in Goiás: One soon reflection on its cultural dimension The article presents reflections on goianas tradition and modernity standing out in the two forms of space experience the cultural aspects. The quarrels retake elements of the bases of the socioespacial formation of Goiás and, when adopting the hinterland as category of analysis, indicates ways if avalizr the influence of the culture sertaneja in the space contemporary. Words Key : Space-hinterland, Goiás, Tradition, modernity, culture Considerações iniciais O sertão é uma categoria importante para se pensar a formação socioespacial de Goiás e sua constituição cultural. Isto porque, ao longo da formação do território nacional, é concebido não só como um espaço físico com localização geográfica determinada mas também como um espaço social portador de significados. Seja por sua natureza física, seja pela vida social, estes espaços compuseram o imaginário nacional ocupando, não raras as vezes, uma posição periférica calcada nas visões etnocêntricas elaboradas a partir do litoral, conforme argumentam alguns autores como Sousa (1997) e Guillen (2002).O peso dessas representações, no seu desdobramento político, fomentaram o ideal de unificação do país. O presente texto procura discutir o elo entre tradição e modernidade em Goiás associando esta última ao projeto de unificação nacional. Aqui, a tradição é associada ao modo de vida rural experienciado no espaço-sertão que subsistiu como realidade física e social até a modernização do campo e a urbanização de Goiás. Esta concepção de tradição , voltada à interpretação de Goiás, está implícita nos estudos realizados por Almeida (2003; 2005) e Chaveiro (2001; 2005). Ela é a que melhor se aplica à análise pretendida. Os autores citados compartilham da visão do sertão como um espaço sociocultural peculiar que pode ser interpretado como criador de símbolos, valores, identidades e representações dos grupos sociais. A modernidade em Goiás é concebida como um contraponto à tradição, e, neste sentido, refere-se à complexidade atingida pela organização social do Estado no seu processo de desenvolvimento. Esta complexidade abarca, sobretudo, um conjunto de mudanças nos costumes, no modo de vida da população. Esta idéia de modernidade é própria do pensamento de Giddens (1991). No caso de Goiás ela é corroborada por Arrais (1999) e Cavalcanti (2001), autores que estudaram e aplicaram a concepção de Giddens identificando uma mudança significativa na organização social em Goiás, digna de ser interpretada como modernidade - na acepção de modo de vida -, muito após a introdução do projeto modernizador e da modernização técnica. Com base nos autores citados até aqui, propõe-se pensar tradição e modernidade goianas a partir das práticas sociais, das vivências espaciais, situando o avanço da modernidade a partir da década de 1970, período marcado por grandes transformações em escala nacional e com repercussões significativas no espaço goiano. Estas transformações encerram duas dimensões: uma material e outra simbólica, ambas relacionadas aos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais. A reflexão relativa ao estado de Goiás destaca algumas mudanças de ordem cultural propiciadas pela disseminação da modernidade no território. Goiás: Sertão, ruralidade e tradição Pensar o sertão goiano e interpretar sua contribuição para a constituição cultural da sociedade goiana atual exige uma busca cuidadosa, na geografia e na hitoriografia de Goiás, de elementos capazes de traduzir sua realidade material e simbólica. Realidade predominantemente marcada pelo modo de vida rural tendo em vista a formação socioespacial desse estado. O espaço sertanejo em Goiás teve sua ruralidade iniciada ao longo do século XIX quando a prática da pecuária - que durante o século XVIII convivia de forma elementar com a mineração, como afirmam Bertran (1978) e Palacin (1982) - se firma como principal atividade produtiva. Aqui, a ruralidade deve ser entendida como uma categoria simbólica representativa de um contexto sociocultural peculiar, de acordo com a concepção de Carneiro (1997). No período referido, o modo de vida rural constituiu-se, de fato, em torno da pecuária e da agricultura, atividades que à época não contavam com aparato tecnológico. Por ser assim, a ruralidade servia para identificar o espaço de acordo com sua organização social e com suas práticas culturais. Segundo Estevam(1998, p.72), durante todo o século XIX “a população goiana esteve em período de reacomodação e a característica básica foi a ruralização”, referindo-se à vida de relações desenrolada no interior da fazenda goiana. Para ele, a consolidação da fazenda goiana como unidade produtiva básica da economia de Goiás permitiu um desenvolvimento peculiar do modo de vida rural no interior das relações e das práticas sociais. A base para a afirmação desse modo de vida peculiar é a comparação da fazenda goiana com os outros tipos de fazenda que se criaram nas demais regiões do país, como por exemplo as fazendas açucareira e cafeeira nordestinas. A especificidade da fazenda em Goiás tem raízes no processo de povoamento do espaço goiano conforme observa-se nas palavras deste mesmo autor: (...) a própria burocracia (...) colaborou para restringir a concessão de sesmarias a poucos homens(...). O surgimento do agregado – morador de favor – esteve relacionado com o processo de ocupação da terra em Goiás. Um dos requisitos para a concessão de sesmarias eliminava do processo os menos favorecidos que obviamente não se enquadravam na condição de “homens de bens”. Restou ao desprovido da terra a possibilidade de avanço pelo sertão adentro na busca de estabelecer sua posse ou agregar-se a uma propriedade(...)Por seu lado, diante da necessidade de suprir a fazenda, o fazendeiro irmanou-se em acordo de ajuda mútua e convivência com seus agregados (...) não se utilizava predominantemente do trabalho serviu e a escravatura(...)esteve precocemente fadada ao desaparecimento em Goiás. A organização não apresentava características básicas de formação de classes e não promovera, até então, o divórcio entre os meios de produção e a força de trabalho (ESTEVAM,998, p.74-75). Embora o próprio autor reconheça a insuficiência de dados capazes de revelar a realidade socio-cultural do século XIX, o quadro acima resume importantes características das relações sociais e de trabalho no interior da fazenda goiana e auxiliam o entendimento da vida social da época. Ao explicitar a proximidade existente entre fazendeiro e agregado na fazenda goiana, Estevam, nesta mesma obra, chama a atenção para a rotina compartilhada, a realização do mesmo trabalho, os trajes parecidos, as relações de camaradagem etc. Essa aparente proximidade entre fazendeiro e agregado é importante para se avaliar o teor da hierarquização social e das relações de poder na fazenda goiana. É evidente que a aparente indistinção entre o dono da fazenda e o “morador de favor”, a prática das relações de camaradagem, não anulam o significado da existência de uma propriedade em uma das partes e, tão pouco, o caráter de tensão intrínseco aos sujeitos no interior das relações de trabalho. No entanto, é preciso considerar que esse tipo de relacionamento, e as demais práticas que se ali se formaram, inscrevem-se num sistema político-econômico e de valores que só puderam ser erigidos naquela sociedade, naquele momento histórico. As mudanças aconteceriam no curso dessa sociedade. Todas as relações sociais experienciadas no sertão permitem reconhecer a ruralidade e a sociabilidade como importantes aspectos culturais, considerando-se que as práticas que se sedimentam e os valores que as atravessam são culturais e, orientam condutas de um grupo e implicam na apreensão e na relação desse grupo com seu espaço. Esta apreensão e esta relação compõem os sentimentos de pertencimento e de identidade, tema que abordaremos adiante. A identificação da sociedade goiana com seu espaço pode ser clarificada por Borges (1990), Chaul (1998) Gomes e Teixeira Neto (2005) ao afirmarem que a vida rural goiana se passava num ritmo lento, o que era permitido pelos mecanismos políticos e econômicos da época. O espaço sertanejo, em seu arranjo, configurara-se em arraiais. Mais tarde, eles se transformariam em vilas e cidades, os quais sediavam o comércio e desempenhavam uma funcionalidade que atendia às necessidades da fazenda, sobretudo no que tange às atividades agropecuárias. Era no arraial que comercializavam os produtos essenciais ao trabalho no campo. Era nele, também, que, por ser a extensão da fazenda, desenvolvia-se se a sociabilidade entre as pessoas: o local permitia o estreitamento das relações sociais e a manifestação de crenças, festas, religiosidade, comemorações dos sertanejos. Até o início do processo de modernização-urbanização de Goiás, pode-se propor uma identificação da sociedade goiana com seu espaço de vida pautada pelos referenciais comuns e pelos símbolos que davam sentido à existência daquela sociedade. São exemplos disso as relações de proximidade com a natureza, o conhecimento da terra, o trabalho desenvolvido com técnicas rudimentares, a contagem cíclica do tempo, a linguagem, as vestimentas, a camaradagem, a confiança e a própria moral machista lembrada por Chaveiro (2005). As paisagens naturais e construídas, os objetos e as próprias relações pessoais compunham um universo conhecido, identitário. Essa vivência da ruralidade é a expressão da tradição goiana. A noção de tradição, conforme mencionamos no inicio, é portadora de algumas características primordiais que ao serem discutidas por alguns autores contribuem para pensar o espaço goiano. Tomamos como exemplo a concepção de Giddens, (2005, p. 52), que chegou afirmar: “as características distintivas da tradição são o ritual e a repetição”. Esta reflexão sintetiza o entendimento de que: nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais , por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. ( GUIDDENS, 1990, p. 37-38) O argumento de Giddens é pertinente à reflexão sobre a tradição em Goiás ao levar em conta seu caráter de repetição. Pode-se, inclusive, propor uma ligação da sua proposição com a idéia de “tempo cultural” manifesta por Bosi (1999). Este último defende que o ritmo lento de produção material, num determinado contexto cultural - na sua correspondência com o estágio do modo de produção - propicia a uma sociedade construir e enraizar signos e experiências. Uma vez enraizados, estes signos e estas experiências são repassados de geração a geração garantindo sua perpetuação e o caráter cíclico da cultura. Outro autor, cujo conceito proposto de tradição respalda a presente reflexão é Hatzfeld (1993). Sua idéia de tradição não é muito distante daquela de Giddens, pois, ao discorrer sobre a tradição, no seu domínio simbólico, ele afirma que esta cumpre o papel de oferecer “estabilidade ao comportamento social”. Esta afirmação é explicitada nas seguintes palavras: (...) o caráter repetitivo da produção e da transmissão das informações simbólicas permite que a regulação social seja possível e que o comportamento humano não seja afetado por uma transitoriedade insuportável para a vida do grupo. (HATSFELD,1993, p.52) Observa-se que na proposição de Giddens, reforçada pela de Hatzfeld , a noção de tradição é construída a partir de elementos fundamentais: repetição, recorrência, continuidade. Estes elementos contrapõem o estilo tradicional ao estilo moderno de vida já que o último anuncia uma dinâmica de mudanças rápidas e de descontinuidades. Na realidade de Goiás, estas mudanças se verificam a partir do ideário da modernidade, do projeto modernizador e do processo de urbanização, aspectos que ainda abordaremos. Cabe, aqui, refletir sobre a dimensão cultural das práticas conceptualizadas como tradicionais. Estas práticas não estão descoladas da estrutura socioeconômica de uma sociedade, embora não sejam determinadas somente por ela. Então, o que se postula é uma visão de cultura que contemple as vontades e ações humanas sem dissociá-las das condições históricas da produção material e simbólica da vida. Esta produção informará um conjunto de práticas no seio das quais observar-se-á uma unidade que responde aos códigos construídos socialmente. Gomes (2001) sugere pensar a cultura, numa de suas abordagens possíveis, como: um conjunto de práticas sociais generalizadas em um determinado grupo, a partir das quais este grupo forja uma imagem de unidade e de coerência interna. O conjunto destas práticas exprime os valores e sentimentos vividos por um certo grupo social e a delimitação de suas diferenças em relação a outros grupos. Trata-se de um processo em que a aceitação de um patamar comum de comportamento é responsável pelas idéias de identidade e de patrimônio próprio. Neste sentido cultura corresponde a certas idéias mais ou menos ritualizadas, por meio das quais se estabelece uma comunicação positiva entre os membros de um grupo ( GOMES, 2001,p.93). Depreende-se da idéia do autor o sentido dos “sistemas simbólicos” e das “oposições simbólicas” discutidos, por exemplo, por Bourdieu (1989) e por Barth (1969) citado por Cuche (1999), no processo de diferenciação dos grupos culturais. De acordo com estes autores os grupos culturais constroem seus “sistemas simbólicos de representação” que, numa perspectiva antropológica, carecem da decifração dos seus códigos para o entendimento da cultura. Numa perspectiva geográfica, encontra-se no pensamento de Almeida (2003;2005) elementos que permitem vislumbrar os sentidos atribuídos a uma cultura. Para essa autora, a cultura pode ser pensada a partir da relação de um determinado grupo com o território vivido. Esta relação pressupõe, em acordo com as condições históricas, a construção e o compartilhamento de códigos sociais, signos e símbolos cuja interiorização leva à vinculação com o espaço de vida. Tem-se aqui o significado da identidade cultural que, para Almeida, diz respeito, principalmente, aos valores que os grupos imprimem no seu território, valores que conduzem ao sentimento de pertencimento. As idéias de Gomes (2001), Bourdieu (1989), Barth (1969) e Almeida (2003;2005) são esclarecedoras quando aplicadas à analise da realidade sertaneja de Goiás, permitindo pensá-la – no seu contexto de ruralidade e tradição – como uma produção cultural na qual a sociedade, a despeito de suas diferenças internas, vivenciou um contexto particular no processo de formação do território nacional. Daí ser possível de pensar, também, em distinguir o sertão goiano de outros espaços brasileiros assim identificados. Pode-se afirmar, concordando com outros estudiosos da temática, já referenciados, que o sertão goiano produziu uma cultura dotada de especificidades e esta cultura exerceria uma influência muito significativa no processo de urbanização de Goiás durante a fase subseqüente, iniciada na década de 1970, concebida como moderna. A urbanização de Goiás e o ímpeto da modernidade As mudanças engendradas no território goiano nas últimas décadas têm origem no ideário da modernidade difundido no país na passagem dos anos 1930. O movimento da “Marcha para o Oeste” pretendia a integração nacional e o fortalecimento do Estado-Nação. Neste contexto, Goiás, estado de base agrária, localizado no sertão brasileiro, passa a ser palco das políticas territoriais desenvolvimentistas fundamentadas nos paradigmas da modernidade e no projeto nacionalista. Seria necessário, para a efetivação do projeto, preparar as bases para a modernização do território. A antecipação modernizadora se deu com a construção da cidade de Goiânia, a nova capital que concretizaria os ideais da modernidade e aceleraria o processo de unificação nacional, discussão já fartamente feita por Chaul (1998), Arrais (1999), Cavalcanti (2001) e Chaveiro (2001). Assim, Goiânia simboliza já na década de 1930 a modernidade em Goiás. Nas décadas seguintes, a crescente participação de Goiás no mercado nacional e sua inserção no mercado internacional respondem pela reestruturação do espaço goiano. Estes fatos dinamizam os setores político e econômico e alteram, paulatinamente, as práticas sociais, culturais e de trabalho no interior das relações capitalistas. Tem-se, a partir daí, um período de transição do modo de vida tradicional para o modo de vida moderno em Goiás caracterizado pelas rupturas próprias da modernidade. No espaço goiano, observa-se uma remodelação de suas paisagens e inaugura-se uma fase de ritmos cada vez mais acelerados. Entretanto, antes de prosseguir na discussão, necessário se faz entender o significado da modernidade para posteriormente pensar em como este fenômeno se materializa em determinados espaços. Este significado é muito discutido nas análises sociais. Marx e Engels (1973), apenas para ilustrar, enfatizavam que a modernidade é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos (..) todas as relações recém formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. ( MARX e ENGELS,1973 p.70) Esta visão, considerando o momento histórico na qual ela foi elaborada, muito contribui para o entendimento da modernidade posto que a origem da noção de modernidade é correspondente ao avanço do sistema capitalista de produção. Assim, é a produção de bens nos moldes do capitalismo industrial que responde pela parte mais significativa das mudanças na organização e no comportamento social. Ou seja, são os valores de uma “sociedade industrial” que criam e recriam incessantemente relações, padrões e estilos sociais. Outra concepção, que também contempla as mudanças aceleradas promovidas pela modernidade e suas repercussões na identidade dos sujeitos, tem a proposição de Giddens (2002). Ele afirma que esta altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os aspectos mais pessoais de nossa existência.(...) as transformações introduzidas pelas instituições modernas se entrelaçam de maneira indireta com a vida individual , e portanto com o eu. (GUIDDENS, 2002,p.09). A idéia desse autor propicia um aprofundamento no entendimento da modernidade na medida em que põe em evidência as mudanças na produção da própria subjetividade dos sujeitos. Fica claro, na proposição do autor, uma imbricação das esferas objetivas e subjetivas da vida: as mudanças nas instituições sociais que produzem efeitos contundentes na identidade dos sujeitos. Conseqüentemente, o que se tem é uma mudança nas visões de mundo colada aos valores capitalistas. Reafirma-se assim a noção de modernidade enquanto complexidade nos modos de vida (ARRAIS,1999), (CAVALCANTI, 2001). Em Goiás, os agentes que impulsionariam a transição da tradição para a modernidade situam-se nas ordens política, econômica, social e cultural. Nesse caso, a hegemonia da modernidade sobre a tradição dependeria do fortalecimento das instituições modernas que ao se concretizar, combina aspectos dos dois modos de vida. A modernidade em Goiás coincide com a introdução das novas tecnologias no processo produtivo - as quais alteraram as atividades econômicas e as relações de trabalho - e se caracteriza, principalmente, pela reorientação das práticas sociais e pela criação de novas mentalidades e vida de relações. Observe-se que aqui não se confunde modernidade com modernização: o que ocorre é a constatação de que o segundo preparou as bases do primeiro no mundo capitalista, conforme procura-se esclarecer. É importante destacar que uma análise focada no contexto político-econômico do Brasil no início do século XX permite dizer que o advento da modernidade no território goiano está intrinsecamente relacionado à força das representações do sertão no imaginário nacional. Autores como Souza (1997), Moraes (2002; 2003) Guillen (2002), Espíndola (2004), entre outros, já discutiram tais representações apontando as leituras do sertão a partir do litoral brasileiro que foi a referência pela qual se elaboraram as imagens etnocêntricas do interior do país – as de um espaço vazio, distante, atrasado – e os ideais da unificação nacional. No que diz respeito ao espaço específico do sertão goiano, Chaul (1997) lembra a adjetivação de “decadente” - muito utilizada após a crise da mineração - recorrente nas interpretações de intelectuais e relatórios de viajantes ao se referirem à Goiás. O autor, ao contestá-la, alega que “essa linha de argumentação (...) traçou um perfil de decadência que serviu e serve até hoje para ampliar a idéia de uma sociedade que parecia não ter motivos para existir, de tão inoperante”(CHAUL,1997,p.16). As proposições apresentadas pelos autores citados permitem recuperar o teor das ideologias que fundaram a modernidade em Goiás. A modernização do território acompanhou o processo de industrialização no Brasil. A mecanização da agricultura, iniciada na década de 1950, acelerou a urbanização do Estado ao promover as migrações rurais-urbanas bastante intensificadas nas últimas três décadas. Gomes e Teixeira Neto (2005) confirmam uma aceleração do processo de urbanização em Goiás a partir da década de 1970: “em 1980, 62% dos goiano-tocantinenses já se diziam urbanos. Em 1991, já com o Tocantins separado de Goiás, 80,8% dos goianos e 57,7% dos tocantinenses viviam nas cidades”(2005,p.102). O fenômeno urbano recria o espaço goiano, no que diz respeito à sua produção e à sua organização. Isso pode ser confirmado, por exemplo, pela observação da conformação das paisagens que permutam de um ambiente de cerrado vasto em vegetação natural para um ambiente de campo mecanizado, de agroindústria, das redes de cidades, de transporte e de comunicação. Todas essas transformações refletem nas ações mais subjetivas do corpo social: nas suas ações, nas representações e nas formas de viver e conceber o mundo. Concebe-se que a nova realidade impulsiona mudanças graduais na composição cultural da sociedade goiana, referendada como sertaneja, desde a substituição da atividade mineradora pela agropecuária até a mecanização do campo. Durante este período, foi esta identidade que afirmou, em Goiás, suas raízes, sua cultura. É neste sentido que se pode propor uma significação para a cultura goiana tomando por base os códigos da sua singularidade associando-os, primeiramente, ao modo de vida rural. A influência da cultura sertaneja no espaço goiano contemporâneo Para aprofundar a reflexão sobre a influência da cultura sertaneja no espaço atual de Goiás, o que equivale identificar os elos entre tradição e modernidade, é preciso retomar a discussão e explicitar algumas concepções de cultura. Já fora mencionada a abordagem proposta por Gomes (2001) pela qual se entende a cultura como “ o conjunto de práticas sociais generalizadas de um determinado grupo a partir das quais este grupo forja uma imagem de unidade e de coerência interna” (2001,p.93).Também as concepções de Bourdieu (1989) e Barth(1969) que assumem a idéia de “sistemas simbólicos” e de “oposições simbólicas”. Ainda, a de Almeida (2001;2005) a respeito da cultura e da identidade cultural para discutir os pertencimentos territoriais. Estas concepções parecem ser um bom ponto de partida para propor uma interpretação para a cultura goiana naqueles aspectos que lhe conferem um caráter de unidade. Mesmo porque, a dinamização da cultura no processo histórico de Goiás permite falar tanto nos códigos da sociedade goiana quanto nos códigos mais restritos de grupos inseridos nesta sociedade. A abordagem adotata aqui contempla uma escala mais ampla que opta pela busca da “unidade na diversidade” (CUCHE,1999). É certo que desde o início do povoamento do território goiano já se pode apontar sua diversidade cultural dado o encontro entre os grupos étnicos pioneiros de indígenas, negros africanos, brancos portugueses (TEIXEIRA NETO, 2002) No decorrer da história, as migrações - no início majoritariamente intra-regionais - e o contato entre grupos, se intensificaram fortalecendo a composição da população goiana. A junção de grupos sociais de diferentes localidades do país, dispersas pelo vasto território goiano, construíram durante o século XIX e início do século XX, como mencionado e comentado anteriormente, a ruralidade goiana, a cultura sertaneja. Na década de 1930, ano da inauguração da pedra fundamental de criação Goiânia, a população goiana era predominantemente rural (esta afirmação é consensual nas análises sociais e se baseia em dados oficiais do IBGE). A construção da cidade, a urbanização de Goiás intensificada durante a década de 1970 e as correntes migratórias, aceleraram a sua dinâmica cultural. Neste sentido, o ponto que se destaca nesta reflexão - a influência da cultura sertaneja nos dias atuais, a qual constitui um elo entre tradição e modernidade -, pode ser pensado pelas construções coletivas realizadas no contexto da tradição e sua contribuição na constituição cultural do espaço goiano de hoje. Lembrando que, o trabalho e outras práticas sociais realizadas no passado propiciaram uma determinada produção do espaço e uma determinada vida de relações orientadas pelo modo de vida rural. É essa ruralidade, repetimos, que se busca entender no espaço goiano do presente na sua coexistência com o urbano. Este entendimento considera o pressuposto de que a cultura é também herança. Claval ( 2002) já afirmara que “(...) a cultura é o conjunto de representações sobre as quais repousa a transmissão, de uma geração a outra ou entre parceiros da mesma idade, das sensibilidades, idéias e normas.(CLAVAL,2002,p.102) Desta noção de cultura depreende-se que as trocas sociais, estabelecidas numa mesma geração, num espaço comum, são fundantes da “imagem de unidade” proposta por Gomes (2002). Os conhecimentos e os valores construídos por um grupo social continuam a ser transmitidos para as gerações seguintes e, acredita-se, terão mais infiltração e disseminação em espaços e sociedades já transformadas no processo histórico, conforme sua solidez, seu enraizamento. Para a compreensão desta transmissão de valores é preciso conhecer o passado para verificar sua relação com o presente. Uma importante forma de conhecimento da relação do passado com o presente, e que é característica da análise geográfica, é aquela dada pela interpretação das paisagens. Uma observação acuidosa das paisagens contemporâneas irá validar o entendimento de que: as paisagens são as ações humanas na sua materialidade, elas expressam o acúmulo de tempos e contemplam as dimensões objetiva e subjetiva da vida (SANTOS,1997). Assim, sendo, transmitem significativas informações culturais de uma geração a outra (CLAVAL, 2002) É importante enfatizar, concordando ainda com Claval (2002), que “a cultura não é apenas herança. Ela comporta elementos novos, é o fruto de uma incessante atividade inventiva” (2002, p.143). Assim, os significados transmitidos por uma geração irão dialogar com aqueles significados construídos no presente. À luz dessas discussões pode-se refletir sobre o espaço de Goiás, aceitando que a hegemonia da ruralidade, que predominou até meados do século XX, produziu raízes, uma gama de códigos, símbolos e significados correspondentes à produção cultural daquele período. É a partir das diversas mudanças engendradas nas décadas seguintes, como as migrações, tecnificação, intensificação da globalização e suas variáveis, que se observa uma efervescência da dinâmica cultural em Goiás. Este é um quesito importante a ser melhor investigado e, como outros apontados, aparece na brevidade deste texto apenas como caminho para se pensar aspectos importantes da cultura sertaneja goiana na sua relação com o espaço atual. Entende-se que o espaço goiano, no processo de suas transformações, recebeu uma significativa influência daquela cultura mais arraigada que só pode se consolidar num contexto de tradição. Já que a tradição e modernidade se caracterizam, sobretudo, pela repetição e pela ruptura, respectivamente, como afirmamos anteriormente, ambas podem ser consideradas formas diferenciadas das sociedades viverem e conceberem o mundo. Assim, a cultura corresponderá a esta prerrogativa contando com todas as instituições da sociedade. Não se pode desconsiderar é o fato de que a modernidade não rompe com todas as formas de tradição. Aliás, tratam-se de dois fenômenos que dependem da demarcação de suas características para se afirmarem um ao outro. São, também, fenômenos que se complementam. Dessa forma, a transição do tradicional para o moderno só pode ser analisada numa perspectiva dialética. Na interação dos dois fenômenos, a cultura alcança outro estágio. Considerações finais Pretendeu-se com este texto encaminhar algumas reflexões sobre a relação entre tradição e modernidade em Goiás. Para tanto considerou-se o sertão como categoria importante para se pensar e estabelecer os pontos dessa relação.Levou-se em conta que o espaço sertanejo é um espaço criador de identidades e, por assim ser, a ruralidade que ali se iniciou serviu de base para a constituição cultural de Goiás. As transformações do território goiano, seu processo de modernização e sua modernidade, incitaram novos modos de vida e de relação com o espaço. Neste contexto, aposta-se numa forte influência da tradição na urbanização do estado. As reflexões sobre tradição e modernidade levaram à consideração de que sua análise deve ser realizada numa perspectiva dialética para que se possa conhecer seus elos, sua dimensão cultural e sua repercussão socioespacial em Goiás. Referências ALMEIDA, Maria Geralda de. A captura do cerrado e a aprecarização de territórios: Um olhar sobre sujeitos excluídos. IN: ALMEIDA, M.G. de.(org). Tantos cerrados Múltiplas abordagens sobre a biodiversidade e a singularidade sociocultural. Goiânia: Vieira, 2005,p.321-347. __________. 2005. Fronteiras, territórios e territorialidades. Revista da ANPEGE. Ano 2, N.2. Fortaleza: 103-114. _________.2003 Em busca do poético do sertão: um estudo de representações. 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