trabalho completo

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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.433
A FLORA COMO FERRAMENTA: A IMPORTÂNCIA DAS PLANTAS
MEDICINAIS PARA A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA PORTUGUESA NO
SÉCULO XVI
Bruno Francia Carvalho
Felipe Estevam Jaques
Christian Fausto Moraes dos Santos
Universidade Estadual de Maringá-PR
Ao longo de toda a história da humanidade, seja na constituição de pequenas tribos ou
na construção de vastos impérios, o homem dependeu exclusivamente de um fator que
determinava o seu êxito: a capacidade de domesticar os diferentes recursos naturais do lugar
onde estavam se fixando. No início do século XVI, inúmeros viajantes lusos lançaram-se ao
mar rumo ao Novo Mundo, visando impor seu domínio sob a mais nova descoberta da coroa.
Como citado, grande parte do sucesso dessa empreitada, deveu-se ao trabalho minucioso de
homens que lançaram seu olhar investigativo sob a fauna e a flora daquela nova colônia
portuguesa.
Com efeito, inúmeros trabalhos vem tratando dessas questões ao longo dos anos,
dentre eles, a obra de Alfred Crosby merece destaque. Dean afirma que Alfred Crosby
demonstrou historicamente que a colonização é um fenômeno essencialmente ecológico, onde
os colonizadores comandam um processo de dispersão de plantas e animais. O autor alega que
espécies trazidas pelos invasores contam com uma grande vantagem: elas escapam a pragas e
predadores, uma vez que possuem recursos bióticos próprios. Dessa forma, em um novo
ambiente, essas espécies tendem a proliferar-se. É difícil imaginar como os europeus obteriam
a hegemonia do Novo Mundo sem comandar um exército de animais e plantas. (DEAN, 1996,
p. 71) Nota-se, portanto, que essa idéia de “imperialismo ecológico” está presente nas
discussões acerca da colonização do Novo Mundo. Entretanto, esse movimento de
preservação, domesticação e plantio da flora não ficava restrito apenas aos interesses
econômicos.
Mesmo no século XVI, os portugueses tinham a consciência de que novos ambientes
poderiam revelar, além de novas possibilidades mercantis, novas doenças. Assim sendo,
conhecer a biota da nova possessão, sesmaria ou Colônia poderia significar a diferença entre a
vida e a morte; mais do que uma questão de enriquecimento, saber a qual planta recorrer
quando da picada de um animal peçonhento, por exemplo, era uma questão de sobrevivência.
Desse modo, para esses colonizadores, catalogar a flora brasileira não era somente uma
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questão de encontrar elementos de poderio econômico, mas também uma forma de encontrar
a panacéia para as diferentes ameaças que esta natureza apresentava.
Chegando à América Portuguesa, os colonizadores se depararam com um ambiente,
para eles, completamente desconhecido. Sabe-se que, no século XVI, as ciências passavam
por um processo de transição paradigmática. Nesse contexto, as formas de classificação, no
que diz respeito á natureza, estavam atreladas ao clima intelectual da época, marcado pela
presença de um forte senso observatório e espírito investigativo, que eram motivados por uma
curiosidade intrínseca ao ser humano. Na obra de Gabriel Soares de Souza, podemos notar
essa curiosidade que vinha, muitas vezes, da ânsia em decifrar os “segredos” inscritos na
natureza. Dessa forma, imbuídos dessa curiosidade peculiar e fascinados com um mundo
natural repleto de formas, belezas e cores, os homens, que aqui aportavam, detiveram-se em
descrever os animais, plantas e minerais com os quais se deparavam. (MARQUES, 1999,
p.37) Para esses viajantes, descrever a flora e fauna recém-descobertas era a forma de revelálas e, assim, inseri-las em uma ordem natural, visto que a História Natural ainda estava se
constituindo no século XVI.
Diante desse universo totalmente novo, as plantas foram destaque nas crônicas,
tratados e descrições dos primeiros colonizadores. Afinal, nesse ambiente inóspito, as picadas
que avançavam selva adentro sujeitavam os colonizadores a lidar com feridas, arranhões,
fraturas, cortes, entre outros males. Não é difícil imaginar que, naquela época, os princípios
básicos de higiene eram precários e, portanto, complicações como sepse e infecções podiam
levar a morte. Nesse contexto, a flora brasílica foi de grande importância para o processo de
colonização, uma vez que, nas plantas nativas podiam ser encontrados extratos para chás
medicinais, emplastos, garrafadas, decocções, mezinhas, drogas e triagas, vitaminas, minerais,
fibras para cordoaria e habitação, madeiras para a construção de engenhos, monjolos, moinhos
e casas. Ordenar a fauna e a flora, portanto, significava ter maiores chances de sobreviver no
Novo Mundo.
De fato, desde a Antiguidade, o ser humano é impelido por esta necessidade de
ordenar o mundo, pois é a ordem que trás o conhecimento, e assim viabiliza a sobrevivência.
Mais do que uma busca por alimentos, o estudo das plantas com potencial medicinal sempre
foi uma prioridade humana. Civilizadas ou selvagens, as sociedades sempre se preocuparam
em dispor a flora ao seu redor de maneira a organizar suas propriedades farmacológicas. Em
seu livro As doenças têm história, Le Goff revela-nos que, desde o início da humanidade
moderna, o Homo Sapiens serviu-se, de forma consciente, dos vegetais para manter a vida.
(Le Goff, s.d., p. 343-345)
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Podemos notar, portanto, que o conhecimento sobre a flora e seu uso medicinal vem
sendo construído desde os primeiros grupamentos humanos. Segundo Vera Regina Marques,
podemos observar que, desde tempos imemoriais, a arte de curar com plantas foi constituindose através da união de saberes eruditos e populares. Tais saberes possibilitaram a cura de
determinadas doenças e contribuíram para o desenvolvimento da ciência médica.
(MARQUES, 1999, p. 39) Assim sendo, não restam dúvidas de que, toda essa forma de ver e
medir o mundo, bem como a construção desse saber, acerca das plantas e seus usos
terapêuticos, sempre acompanharam o homem. Deste modo, a construção desses saberes
merece ser explorada. Primeiramente, para compreendermos tais construções, devemos ter em
mente que o conhecimento acerca da utilização das plantas com qualidades fitoterápicas, está
intrinsecamente ligada á História das ciências da saúde. Principalmente porque, na história
ocidental do processo saúde-doença dois nomes da Antiguidade serão referências nesse
campo de saber por quase dois milênios: Galeno de Pérgamo e Hipócrates de Cós.
Galeno desenvolveu uma teoria médica que seguia a linha argumentativa de
Hipócrates: a da teoria humoral do organismo humano. De acordo com essa teoria a saúde do
organismo humano estaria diretamente relacionada ao equilíbrio dos elementos da natureza.
Assim sendo, da mesma forma que a natureza mantinha-se em equilíbrio através dos quatro
elementos (terra, água, ar e fogo), o corpo humano mantinha-se em equilíbrio através dos
humores conexos (sangue, fleuma, bílis branca e bílis negra). Deste modo, o desequilíbrio
causado pela abundância ou ausência de um desses humores caracterizava um organismo
doente. A cura desse organismo, portanto, se daria através da eliminação desse humor
abundante ou ausente, fazendo com que o corpo voltasse a estar em equilíbrio com seus
humores. Seus estudos e conceitos do que é adoecer e como curar perduraram por toda a
Idade Média e Renascimento. A medicina Hipocrática e Galenica irá ditar as normas e
procedimentos de anamnese, diagnóstico, prescrição e administração de mezinhas, drogas e
boticas. Sabe-se, entretanto, que com o passar do tempo essas teorias caíram em desuso, mas
sua influência permanece até hoje no imaginário e nas práticas populares. Tal influência não
isenta o olhar de Gabriel Soares de Sousa onde, em suas descrições sobre a flora brasílica,
pode-se notar o procedimento Galenico de purgar os humores se utilizando de plantas que
tinham propriedades laxativas. Mas a teoria Galenica, presente nas descrições de Sousa,
divide seu espaço com algumas outras tendências popularizadas no renascimento do século
XVI. (LIMA, 1996, p. 47-50)
O conhecimento produzido na época da renascença merece destaque devido á sua
composição multifacetada. Dentre as suas características principais destacam-se, como já
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afirmado, a retomada/crítica dos textos clássicos (Galeno, Hipócrates entre outros), a alquimia
e uma preferência, cada vez maior, por um sistema de análise e comprovação baseados na
observação e na experimentação, rejeitando, desta forma, os métodos de análise
conservadores. Não obstante, fazia-se presente uma relação intrínseca entre magia e ciência.
Essa relação vinha, sem dúvida, de uma herança Medieval, onde a marcante presença
religiosa fazia com que os intelectuais (clérigos em sua grande maioria) produzissem um
saber que deveria estar de acordo com as Escrituras e, portanto, apresentava um caráter
místico. (FOUCAULT, 1991, p. 23-63) Nas descrições de Gabriel Soares, essa acumulação
informativa européia entrecruzava-se ainda com a experiência vivencial do autóctone sendo
que, na maioria dos relatos deste senhor de engenho português, as plantas descritas possuem
nomes indígenas. Em suma, esses são os principais elementos que compõem a maioria das
descrições de plantas nos séculos XVI e XVII. Entretanto, a maioria das obras que versam
sobre a constituição da história natural, partilham de uma idéia eurocêntrica acerca da
construção desse saber, relegando as descrições do Novo Mundo a um segundo plano.
Ernst Mayr afirma que, no século XVI, a Alemanha foi o principal reduto de
naturalistas que, buscando novas propriedades medicinais nas plantas, passaram a privilegiar
as descrições baseadas nas plantas reais e vivas. Essa nova era de representação da natureza
teve início, segundo Mayr, com as obras dos chamados “pais alemães da botânica”: Brunfels
(1488-1534), Bock (1489-1554), e Fuchs (1501-1566). Deles também são as primeiras
tentativas de ilustrar as floras locais utilizando-se de escultores e desenhistas profissionais.
Desses três herbaristas o mais original foi Hieronymus Bock. Suas obras, escritas em um
alemão coloquial e preciso, são baseadas em suas observações pessoais. Seu método consistia
em colocar as plantas lado a lado buscando enxergar a diferença ou semelhança entre elas.
(OGILVIE, 2006, p. 142-157)
De acordo com Mayr, a ausência de um sistema consistente é o aspecto mais
relevante das classificações dos herbaristas alemães. Deste modo, o interesse desses
estudiosos não estava na forma de classificação, mas sim nas propriedades das espécies
individuais. (MAYR, 1998, p. 184-185) Certamente, as análises de Mayr são válidas, mas seu
equívoco reside em não atentar para o fato de que, nessa mesma época, Gabriel Soares de
Souza valia-se da mesma metodologia para descrever as fazia exatamente o mesmo tipo de
descrição das plantas da América portuguesa.
Podemos notar este acurado senso “herbarista” de Gabriel Soares de Souza quando,
em sua obra, Tratado Descritivo do Brasil, este dedica um capítulo inteiro às árvores
medicinais. Das onze árvores descritas, Soares de Souza identifica sete plantas de
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propriedades farmacológicas comprovadas, cientificamente, hoje em dia. Como iremos
observar adiante, essas descrições correspondem as atuais no que diz respeito ao preparo,
administração, efeito e uso de tais plantas já no século XVI. Essas importantes fontes
documentais, portanto, desmistificam o caricato do colonizador português pouco afeito ao
planejamento e minúcia, dando lugar ao viajante interessado, que não mede esforços para
adquirir conhecimentos que lhe garantam a integridade física e conseqüente sucesso da
empreitada colonizatória. Como já foi dito, a biota do Novo Mundo, até então desconhecida,
oferecia perigos reais aos desbravadores. Saber como e qual planta utilizar em fraturas,
“bostelas” e chagas significava muito para aqueles cujo trabalho era se enveredar,
cotidianamente, pela selva. Podemos inferir tal rotina quando nos atentamos ao fato de que as
descrições de Souza acerca das plantas medicinais priorizam o uso tópico. Ao discorrer sobre
a árvore Copaíba, por exemplo, Soares de Sousa alega que o óleo extraído dessa árvore:
“é excelente para curar feridas frescas, e as que levam pontos da primeira curam,
soldam se as queimam com ele, e as estocadas ou feridas que não levam pontos se
curam com ele, sem outras mezinhas; com o qual se cria a carne até encourar, e
não deixa criar nenhuma corrupção nem matéria.”(SOUZA, 1971, p. 202-203)
Deste modo, podemos notar, assim como nas outras descrições, a valorização dessas
plantas na sua virtude de promover curas a ferimentos externos. Sabe-se hoje que o óleo
extraído da Copaíba (Copaifera langsdorffi) possui ação atimicrobiana contra importantes
agentes patogênicos, como Staphilococcus aureus, Bacillus subtilis e Escherichia coli. Depois
de introduzida nas farmacopéias como medicamento antiblenorrágico, seu uso generalizou-se
na medicina popular como cicatrizante e antiinflamatório local. (LORENZI, 2008, p. 256)
Os acertos acerca do uso tópico dessas plantas vão mais além: ao citar outra planta, a
cabureíba o autor afirma que o bálsamo retirado dessa árvore “[...] é milagroso para curar
feridas frescas, e tirar os sinais dela do rosto.” (SOUZA, 1971 p. 202). Para além dos seus
usos, Gabriel Soares de Souza faz também apontamentos sobre o preparo e a administração de
tais plantas quando, por exemplo, ao citar a Embaíba diz que “Tem o olho desta árvore
grandes virtudes para com ele curarem feridas, o qual depois de pisado se põe sobre feridas
mortais[...]”(SOUZA, 1971 p. 203). Da mesma forma que a copaíba, sabe-se hoje que a
cabureíba e a embaíba, respectivamente classificadas como Myroxylon peruiferum e Cecropia
pachystachya, possuem propriedades farmacológicas comprovadas cientificamente. Segundo
Lorenzi, as folhas e frutos da cabureíba, assim como sua resina (bálsamo) tem sido utilizados
por séculos pelos indígenas americanos para cura de feridas externas e de outras
enfermidades. Estudos comprovaram suas propriedades anti-sépticas, sendo também muito
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útil nos casos de prurido e em estágios avançados de eczemas. Quanto á embaíba, Lorenzi
afirma que “nesta espécie foram detectados em análise fitoquímica, a presença de
leucoantocianidinas com atividade vitamínica P (anti-hemorrágica)” (LORENZI, 2008, p.
521). Visto isso, não é difícil perceber a importância dos relatos de Souza ao identificar uma
planta capaz de estancar o sangramento de feridas mortais.
Entretanto, como já afirmado, suas descrições abordam não somente os efeitos
fitoterápicos, mas também fornecem informações sobre o preparo e a administração dessas
plantas. Podemos perceber essas nuances nas descrições de Souza sobre duas árvores que ele
julga serem da mesma casta: o caraobamirim (Humiria balsamifera) e o caraobuçu (Cybistax
antisyphilitica). Ao falar da primeira o autor afirma que:
“Com as folhas desta árvore, cozidas, tomam os portugueses doentes destes males
suadouros, tomando o bafo dessa água, estando muito quente, de que se acham
muito bem; e lhes faz sair todo o humor para fora e secar as bostelas [...] e o sumo
da mesma folha bebido por xarope.” (SOUZA, 1971, p. 204)
Notamos nessa descrição, que Sousa demonstra a forma de preparo (decocção) e a
forma de uso (xarope). O autor alega ainda, em outra passagem, uma outra forma de
utilização onde queimam-se as folhas desta mesma árvore e com o pó delas feito em carvão
secam as feridas. (SOUZA, 1971, p. 203-204) Podemos observar ainda que Souza utiliza-se
do princípio Galenico ao citar que estando o decocto muito quente faz sair o humor das
feridas. Lorenzi, ao falar da Humiria balsamifera, afirma que “algumas tribos da Amazônia
ocidental transformam sua casca em pó e pulverizam-na repetidamente sobre cortes e
ferimentos para acelerar sua cicatrização” (LORENZI,2008, p. 296). Não obstante, o autor
alega que o decocto da casca é empregado contra dor de dente e para sarar feridas crônicas,
uma vez que, na composição química da casca, é citada a presença de bergenina, substância
de efeito antiinflamatório. O mesmo processo de pulverização da casca sobre as boubas,
bostelas e chagas é abordado por Souza ao falar dos usos do caraobuçu, mais conhecido como
Ipê Verde (Cybistax antisyphilitica). Sabe-se hoje que a casca do ipê-verde possui
propriedades anti-sifilíticas. De fato, muito se discute acerca do local de surgimento de
algumas doenças, como a sífilis, por exemplo. Porém, não seriam essas boubas, bostelas e
chagas descritas por Gabriel Soares de Souza uma manifestação da sífilis secundária? Teria
Gabriel Soares de Souza, no século XVI, descoberto um fitoterápico que curasse um dos
sintomas dessa doença, uma vez comprovado o efeito anti-sifilítico dessa planta? Essa questão
ainda permanece sem resposta, entretanto, podemos afirmar que sem os relatos, descrições e
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meticulosidade de colonizadores como Gabriel Soares, a colonização do Brasil teria sido mais
penosa.
Tal inferência pode ser melhor observada ao analisarmos as descrições de Gabriel
Soares de Souza sobre a árvore de nome ubiracica ( Protium heptaphyllum) cujo a almécega é
conhecida por suas virtudes. Souza afirma que:
“Esta almécega é muito quente por natureza, da qual fazem emplastos para
defensivo da frialdade, e para soldar carne quebrada, e para fazer a vir a furo
postemas, os quais faz arrebentar por si, e lhes chupa de dentro os carnegões, e
derretida é boa para escaldar feridas frescas, e faz muita vantagem à terebintina de
bétula; com a qual almécega se fazem muitos ungüentos e emplastos para
quebraduras de perna, à qual os índios chamam icica.” (SOUZA, 1971, p. 204)
Nessa passagem, notamos claramente o uso do princípio humoral de Hipocrates
quando o autor cita que a ubiracica é boa para “frialdades”, fazendo vir a furo postemas e lhes
chupando de dentro os carnegões (humor). Não obstante, nota-se o uso desta planta na
produção de emplastos utilizados em fraturas. De fato, um recurso deste nível é de suma
importância em um ambiente cujo relevo oferece riscos de lesões e fraturas, uma vez que fica
comprovada a eficácia do Protium heptaphyllum no tratamento de feridas. De acordo com
Lorenzi, a “literatura etnofarmacológica resgistra o emprego de sua casca e as folhas como
hemostáticas, cicatrizantes e antiinflamatórias, no tratamento de úlceras gangrenosas e
inflamações em geral” (LORENZI, 2008, p. 200).
Outra árvore de igual importância é a corneíba que, de acordo com Gabriel Soares de
Souza, tem a mesma virtude que a ubiracica, sendo usada, entretanto, no tratamento dos
dentes na forma de decocto. Uma planta com essa virtude certamente era considerada, no
século XVI, como indispensável numa triaga. Estudos apontam que a decocção da casca da
corneíba, classificada hoje como Schinus terebinthifolia, pode ser usada no tratamento tópico
de ferimentos na pele ou, especialmente, nas mucosas em geral, nos casos de cervicite e de
hemorróidas inflamadas, bem como nas inflamações das gengivas e da garganta na forma de
gargarejos (op. cit., p. 64). De acordo com esses estudos, podemos considerar que as
descrições realizadas por Souza tem fundamento.
Visto o que foi dito acima, é importante ter em mente que a história da observação e
estudo da natureza tem um valor incomensurável para melhor compreendermos o processo de
colonização da América Portuguesa. Nos processos de colonização, os esforços despendidos
na tentativa de conhecer melhor a flora nativa da nova colônia, em grande medida,
viabilizaram o mantenimento da vida e a evolução das ciências médicas em todo o mundo
ocidental. Essas descrições, que por muito tempo permaneceram sem a devida análise, devem
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ser melhor historicizadas, visando compreender a importância do conhecimento da natureza e
de seus recursos, assim como o seu uso medicinal ao longo da história da colonização da
América Portuguesa. Podemos notar, portanto, que olhares atentos de portugueses como
Gabriel Soares de Souza, sobre a flora brasílica lograram em certo sentido, êxito,
disseminando informações que possibilitaram a consolidação da colonização portuguesa no
Novo Mundo. Deste modo, percebemos que, assim como a arma ou o machado, o domínio da
flora e fauna nativos também podem ser considerados ferramentas igualmente úteis nos
processos de colonização portuguesa na América.
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