O PROGRAMA BRASIL ALFABETIZADO E AS CONTRIBUIÇÕES DE SÖREN A. KIERKEGAARD COMO EDUCADOR. Vera Lúcia Periassu de Oliveira 353 [email protected] 160F 1515B Zélia Salles 354 [email protected] 1516B 1517B 1518B 161F INTRODUÇÃO 1519B Em nosso estudo pretendemos buscar uma fundamentação no pensamento do filósofo Kierkegaard, a partir da obra de Jorge Miranda de Almeida “A Educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação ético-existencial”, analisando, particularmente, o segundo capítulo, onde o autor nos apresenta Kierkegaard como educador. 1520B A escolha da obra de Jorge Miranda de Almeida se justifica pelo fato da mesma, segundo o professor Antonio Sidekum, trazer a discussão sobre a ética e a política aplicada à educação e é um recurso muito especial para refletirmos eticamente a respeito da realidade da educação em nosso país, onde a indignação é uma constante em nosso cotidiano, no qual tantos crimes são cometidos contra a dignidade da pessoa humana. O texto parte de uma profunda análise da experiência ética sobre a subjetividade introduzida e refletida no âmbito da filosofia existencial de Kierkegaard e da dimensão da relacionalidade do fenômeno da educação libertadora em Paulo Freire. E ainda, segundo o próprio autor: 353 OLIVEIRA, Vera Lúcia Periassu de. Graduação em Letras. Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), 1981. Especialista em Língua Portuguesa, Universidade Federal da Paraíba/UFPB, 1990. .Mestre em Língua Portuguesa, pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB, 1994 Professora de Língua Portuguesa, Rede Estadual da Paraíba, 1978 a 1990; Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, Campus III da UFPB, Bananeiras, PB; 1991 a 2009. Educadora do Projeto Educação Informal no Norte e Nordeste do Brasil, 2009 até hoje (Educação Popular). Professora convidada do Programa Brasil Alfabetizado, Município de Bananeiras,/ PB. 2013. [email protected] 354 SALLES, Zélia. Psicoterapeuta/Teóloga. Graduação em Psicologia e Curso de Psicólogo, PUCCAMP/Campinas, SP, 1980. Graduação em Teologia, PUCRJ, Rio de Janeiro 1991. Mestrado em Teologia, com pesquisa em Teologia Moral e pesquisa fenomenológica em Psicologia. É membro da Associação Pierre Bonhomme (Terceiro Setor) de caráter sócio-educativo beneficente. Trabalha atualmente com psicoterapia (consultório) com Projeto de Educação Informal junto a comunidades populares menos favorecidas, na região amazônica e nordeste. [email protected] 495 “No contexto em que vivemos a ética só tem sentido se superar a crise da própria ética. Portanto, defendo que a superação da crise do homem, crise da educação, crise do sentido, crise da existência, crise de valores e crise da própria ética precisa necessariamente dialogar do interior com a ética da alteridade, como uma ética centrada na existência real e contraditória dos homens e mulheres. A ética da alteridade não se coloca como a salvadora da pátria e o remédio contra todas as doenças; mas ela é o antídoto contra uma concepção de ética ainda dominante na sociedade brasileira intimamente atrelada à ética do mercado. Ética da alteridade contra a ética da universalidade fria e indiferente.” (ALMEIDA, 2013 p.) 1521B 1522B Portanto, nos ajudar com muita propriedade em nossa reflexão e em nossa ação cotidiana sobre o fazer pedagógico. Se já caminhávamos com Paulo Freire numa linha de pensamento por uma educação libertadora, agora nos beneficiaremos com Kierkegaard, cuja postura é de que a virtude deve ser ensinada, mas não à maneira conceitual, porque ela não é uma doutrina; é um poder, um executar, um existir, uma transformação existencial. 1523B Dessa forma, nosso compromisso consiste em trabalhar por uma educação ético-existencial, contribuindo ainda mais para que o processo educativo seja realmente transformador da nossa realidade sócio-educativa, começando por cada um (a) de nós, por cada educador (a), no desejo constante de não apenas viver, mas existir como indivíduo singular. Neste sentido da busca e edificação de si mesmo, do existir e não apenas viver, de uma educação que seja realmente ética e não apenas educação formal nos moldes da sociedade capitalista, sentimos a necessidade de uma fundamentação teórica para que possamos evoluir e embasar 496 melhor o nosso fazer pedagógico. 1524B 1525B Como recurso metodológico vamos percorrer um roteiro em quatro etapas: Primeira etapa: Focalizaremos o Programa Brasil Alfabetizado como um todo e de uma forma abrangente e rapidamente, pois nosso interesse está em descobrir Kierkegaard como educador e suas contribuições para a educação em nosso país. 1526B Segunda etapa: Abordaremos nesta etapa o tema Kierkegaard como Educador, é a partir da obra de Jorge Miranda de Almeida “A Educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação ético-existencial”, focando, particularmente, o segundo capítulo, onde o autor nos apresenta Kierkegaard como educador. 1527B Terceira etapa: Esta etapa pretende constar de uma busca de contribuições a serem encontradas no pensamento de Kierkegaard para o Programa Brasil Alfabetizado. 1528B 1529B Quarta etapa: Nesta etapa realizaremos nossas considerações finais. O PROGRAMA BRASIL ALFABETIZADO (PBA) E SUA HISTÓRIA 1530B Programa Brasil Alfabetizado (PBA) fundamenta-se nas proposições do educador e filósofo Paulo Freire, que reflete a formação de professores como “ a prática de pensar a prática.”, especialmente em suas obras Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. A partir do pensamento deste educador, entendemos ser essencial que a formação de alfabetizadores no âmbito da Educação de Jovens e Adultos (EJA) contemple os aspectos relativos ao conhecimento das diversas dimensões que constituem os alfabetizandos, protagonistas de histórias reais e ricos em experiências vividas, com crenças e valores já constituídos. 1531B Nosso trabalho de formação de alfabetizadores, que teve início em Bananeiras no ano de 2009, quando o município aderiu à proposta do Ministério da Educação, adotando o Programa Brasil Alfabetizado, tem como princípio a concepção de alfabetização como uma ação dialógica, que compreende a capacidade de aprender sobre a língua a partir do diálogo entre o universo cultural e vocabular do sujeito alfabetizando e a dimensão da escrita como representação de linguagem. 1532B Ler e escrever constitui-se pela apropriação de Linguagem e ganham uma dimensão ampliada para outras áreas do conhecimento Nesse sentido, os estudos sobre a psicogênese da língua escrita – propagados por Emília Ferreiro e colaboradores -, as discussões acerca da relação entre a alfabetização e o letramento – proposta por Magda Soares – e o aspecto da alfabetização como processo discursivo – defendido nas pesquisas de Ana Luiza Smolka -, conjugados com o legado teórico e metodológico acerca do ato educativo produzido por Paulo Freire fundamentam esse trabalho de formação de alfabetizadores. 497 1533B Os fundamentos da Educação de Jovens e Adultos medeiam a compreensão histórica do direito à educação formal para as pessoas em desnível idade/escolarização, incluindo a constituição da EJA como modalidade de ensino na Educação Básica. Entre outros saberes que se organizam em torno de sua fundamentação, está a compreensão dos alunos dessa Modalidade como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Entende-se que não basta apenas ensinar a ler e a escrever; é preciso “alfabetizar letrando”, indo além das letras e palavras para a leitura do mundo, a leitura da vida, a compreensão de si mesmo. Conforme Paulo Freire, em sua obra “Educação como prática da liberdade” nos diz que “Educar é muito mais do que ensinar a ler e a escrever, educar é construir caráter, é construir personalidades fortes e edificadas...” 1534B Das campanhas que contavam com o trabalho voluntário à institucionalização do direito à educação para jovens e adultos (EJA) em nosso país, há toda uma trajetória que começa nas primeiras décadas do século XX, onde não havia uma política centralizada de educação nacional. Associações assumiam o objetivo de “erradicar o mal” do analfabetismo, que atingia cerca de 80% da população. Só em 1934 a Constituição prevê um Plano Nacional de Educação e a EJA é citada pelam primeira vez em um documento oficial. 1535B Nas décadas de 1950 a 1960 havia muitas críticas ao modelo da EJA por meio de grandes campanhas. Destaque para o grupo de Pernambuco que, liderado por Paulo Freire, propõe uma organização de cursos baseada na realidade dos adultos e um trabalho feito “com” e não “para” eles. Movimentos de educação e cultura 498 popular trabalham a alfabetização como um instrumento de conscientização e de participação política, tendo na alfabetização de adultos uma possibilidade para a transformação social. Com o Golpe Militar, muitos movimentos populares são extintos. Surge o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), que reedita uma campanha nacional, baseada no voluntariado e com material didático padronizado. 1536B Em 1971, o Ensino Supletivo é implantado e em 1985, no lugar do Mobral, surge a Fundação Educar, extinta em 1990 pelo Governo Collor. Só em 1996, a nova LDB (nº9.394) afirma a educação de jovens e adultos, superando o conceito anterior de ensino supletivo. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei Nº 9.394/96, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade específica da Educação Básica, que se propõe atender a um público ao qual foi negado o direito à educação durante a infância e/ou adolescência, seja pela oferta irregular de vagas, seja pelas desigualdades do sistema de ensino ou ainda pelas condições socioeconômicas desfavoráveis. 1537B Em 2003, a Educação de Jovens e Adultos volta à cena com o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), focalizando a Alfabetização como estratégia para minimizar a exclusão e a desigualdade, visando à construção de uma sociedade democrática e à garantia dos direitos humanos. O PBA é uma iniciativa do Ministério da Educação na tentativa de superar o problema do analfabetismo decorrente das desigualdades sociais e da falta de oportunidades de escolarização para a aprendizagem da Escrita e da Leitura. 1538B O PBA tem como princípio a concepção de alfabetização como uma ação dialógica, que compreende a capacidade de aprender a partir do diálogo entre o universo cultural e vocabular do sujeito alfabetizando e a dimensão da escrita como representação de linguagem. Fundamenta-se, principalmente, nas proposições do educador Paulo Freire e procura levar em conta a formação integral do ser humano – as diversas dimensões que constituem o alfabetizando, protagonistas de histórias reais e ricos em experiências vividas, com crenças e valores já constituídos. 1539B Portanto, para o Alfabetizador, é extremamente importante compreender o educando(a) como sujeito de conhecimento e aprendizagem, pois com suas histórias reais e cheios de ricas experiências de vida, os alunos e as alunas jovens e adultos são pessoas que chegam à escola com suas crenças e valores já constituídos. São tipos humanos diversos, com traços de vida, origens, idades, vivências profissionais, históricos escolares, ritmos de aprendizagem e estrutura de pensamento completamente variados. A cada realidade corresponde um tipo de educando (a), uma vez que são pessoas que vivem no mundo do trabalho, com responsabilidades sociais e familiares, com valores éticos e morais formados a partir da experiência, do ambiente e da realidade cultural em que estão inseridos. 1540B Se a origem de nossos educandos (as) é diversa, naturalmente, o acúmulo e a bagagem cultural deles(as) também são. Esse conjunto cultural formado pelas pessoas que se encontram numa mesma série, numa sala de aula, é extremamente rico. A cultura marca a visão de mundo e é a base onde a construção de 499 conhecimento vai se dar. Diante dessa diversidade cultural, é muito importante buscar assuntos de interesse dos educandos. O educador terá que descobrir quais são esses assuntos e começar por eles. A reflexão a respeito desses assuntos favorece a aquisição do conhecimento, evitando a memorização, que não é um método adequado de aprendizagem. 1541B O primeiro passo da aprendizagem é, portanto, fazer perguntas, pois as mesmas ajudam a refletir e desafiam o(a) educando(a) a pensar. São instrumentos indispensáveis para produzir conhecimento. As pessoas aprendem quando precisam encontrar respostas para suas perguntas: Por quê?... Como?... Onde?... Quando?... etc. Para favorecer o processo de autoconhecimento, pode-se começar, por exemplo, com perguntas: “Quem sou eu?...” “Onde moro?...“O que penso sobre a vida?...”O que penso sobre mim mesmo (a)”?... Grande parte dos educandos (as) ao buscar a escola esperam dela um espaço que atenda às suas necessidades como pessoa singular e não apenas como alunos(as) que ignoram o conhecimento escolar. Acreditam que a escola possa imprimir-lhes uma marca importante e, por isso, apostam nela. No entanto, a escola que têm em seu imaginário nem sempre é aquela com a qual se deparam nos primeiro dias de aula. Esperam encontrar aquele modelo tradicional, onde o professor e a professora são os únicos detentores do saber e transmitem conteúdos que são recebidos passivamente. Esperam muita lição de casa, porque acreditam que a quantidade de treino leva à boa aprendizagem. Especialmente educandos (as) mais idosos (as) se mostram resistentes à nova concepção de escola que os(as) coloca como sujeitos 500 do processo educativo, que espera deles(as) práticas ativas de aprendizagem. 1542B Muitos estranham, resistem e acreditam não ser esse o caminho para aprender o que a escola ensina, ao se depararem com uma aula na qual são convidados (as) a pensar juntos, através de rodas de conversa, a resolver desafios diferentes dos exercícios convencionais, a ler textos literários, a aprender com a música, a poesia e o jornal, a fazer matemática com jogos e cálculos diversos. Esta situação de estranhamento e resistência poderá ser transformada, na medida em que se investir no educando/a como singularidade, acolhendo e valorizando cada um e cada uma como sujeitos desse processo e no respeito à diversidade. 1543B KIERKEGAARD COMO EDUCADOR 1544B De acordo com o autor Jorge Miranda de Almeida, para Kierkegaard a maior exigência de sua e de nossa época é de educação. Concordamos com esta urgente necessidade e entendemos que a educação a qual se refere não é essa formal que aí está, nos moldes da sociedade capitalista, que prepara para o mercado e não para a tarefa do existir; que investe nas habilidades e competências em detrimento da sensibilidade; que incentiva à competição e concorrência, relegando o espírito de solidariedade, respeito e consideração ao próximo. Conforme diz Paulo Freire, isto não é educação; trata-se mais de uma “instrução” ou “domesticação”. 1545B A exigência é por uma educação como fundamento da transformação da vida vegetativa e instintiva em existência singular, pois segundo Kierkegaard, desprovido da interioridade o indivíduo não será capaz de transformar-se a si mesmo no extraordinário que a cada homem foi concedida a possibilidade de tornar-se. É no interior da educação como ética que o indivíduo realizará a estrutura dialética desta ciência que exige o essencial: a liberdade, a interioridade e a ética como condição da construção do caráter e da personalidade singular. Neste sentido, educar é comprometer-se com a edificação de si mesmo, sendo esta a maior tarefa atribuída ao indivíduo singular, constituindo-se na mais elevada forma de saber. 1546B No segundo capítulo do seu livro, nos apresenta Kierkegaard como educador, reunindo artigos e conferências ao longo de mais de vinte anos de estudos, com o objetivo de refletir sobre a relação educação e existência. Com base em Kierkegaard, o referido autor nos leva a refletir sobre esta relação educação e existência, afirmando que a existência é uma tarefa que quer ser realizada. Viver é um dom, existir é transformar-se em si mesmo. Mas o que significa existir? E como se realiza esta tarefa? É então a partir destes questionamentos que nós, educadores(as) comprometidos(as) com um existir autêntico, nos perguntamos também: A educação que temos favorece esse existir autêntico? As pedagogias atuais colaboram para construir uma individualidade autêntica? A partir de Kierkegaard, é ainda Jorge Miranda quem nos esclarece: 501 O existir autêntico é para o existente o seu supremo interesse e comprometer-se em existir é a sua realidade. Portanto, o autêntico saber é aquele que promove essa transformação interna, o que não é possível num discurso acadêmico e desinteressado, numa lógica fria e insensível diante dos destinos e dos dramas colocados a cada existente. O que está em jogo não é uma equação, fórmula ou regra gramatical, o que precisa ser entendido nas pedagogias atuais é que a nossa vida está em nossas mãos e que somos responsáveis pelas escolhas que construirão ou não uma individualidade autêntica. Mas como escolher se o discípulo aprendeu, mas, não apreendeu o essencial que é realizar-se a si mesmo? Como construir com o discípulo se o mestre não desceu do seu púlpito e não se fez ele mesmo discípulo? Como educar, se o mestre, ele mesmo não existe, mas apenas vive como um livro numa prateleira da biblioteca cheio de conhecimentos, mas carente de testemunho da verdade e, por isso, incapaz de traduzir-se em verdade? (ALMEIDA, 2013, p.25) 1547B 1548B Segundo Kierkegaard, educar é estar inexoravelmente articulado e comprometido, acima de tudo, com a edificação de si mesmo, com a realização da tarefa que é a única exigência da eternidade e que requer a transformação da vida biológica em existencial. Este processo de realizar-se no interior da existência é a maior tarefa que é atribuída ao indivíduo singular e constitui a mais elevada forma de saber. A partir desse pensamento, o que dizer então da nossa educação formal, cuja tarefa tem sido levar o indivíduo ao ter? Ter muito dinheiro, muito poder, muito prestígio, muito prazer, muita inteligência, muita beleza física... E onde fica o ser gente mesmo? Ser pessoa, indivíduo singular? Jorge Miranda nos esclarece, a partir de Kierkegaard: Um saber que não transforma o indivíduo em individualidade, o estar vivo em existente, o anônimo em testemunho da verdade ou extraordinário capaz de assumir o sacrifício de si para a promoção do Tu. Esse saber é para Kierkegaard um truque, uma blasfêmia, uma forma de controle que é em última instância responsável pela produção da mentira, da injustiça e da monstruosidade da dominação disfarçada em discursos democráticos, em planos educacionais assistencialistas e coniventes com a manutenção das classes dominantes e legitimadoras da miséria, da opressão, da fome e da exclusão social. É contra os discursos demagógicos que Kierkegaard empreendeu a tarefa de educar o indivíduo singular, é contra o sistema que vive às custas da mentira, da baixeza e da injustiça que governam o mundo que torna-se fundamental uma proposta pedagógica que promova a construção do si mesmo, única possibilidade de superar o sistema. (ALMEIDA, 2013, p. 117-118). 1549B 502 1550B Refletindo sobre o significado que se atribui à educação, defende a tese de que é possível enxergar na obra de Kierkegaard uma aliança inseparável entre educação, política e ética para a construção do si mesmo e a realização da pólis. 1551B [...] um processo árduo de educar o indivíduo singular em uma dupla direção, educar que é em primeiro lugar um combate, primeiro no homem interior, onde ele deve combater consigo mesmo, e depois, quando tiver feito progresso nesta luta, fora do homem, com o mundo. (ALMEIDA, 2013, p.119). 1552B Edificar-se a si mesmo pressupõe a educação como construção. Para Kierkegaard, o que é doado gratuitamente é a vida humana, a existência é uma tarefa que compete única e exclusivamente ao si mesmo. Isto nos faz lembrar o pensamento de Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços: “O Criador começa e a criatura acaba a criação de si mesma.” Como essa tarefa de edificar-se a si mesmo é um processo, quem sabe em vez de “acaba a criação de si mesma”, não poderíamos dizer “continua a criação de si mesma”? 1553B A partir destas reflexões, entendemos que é necessário lutar por uma educação ético-existencial, cuja tarefa primordial seja a construção ou edificação do si mesmo, do indivíduo singular que terá, então, as condições necessárias para lutar por um mundo melhor. Toda mudança começa, portanto, no interior do si mesmo, numa batalha renhida, conforme nos lembra o poeta Gonçalves Dias, em sua Canção do Tamoio: 1554B "Não chores, meu filho; Não chores que a vida É luta renhida: Viver é lutar.” 1555B Batalha essa não contra os outros lá fora, pois não se trata de algo exterior a nós; mas sim, de uma batalha que se trava no interior de nós mesmos, contra os nossos instintos egoístas, de acordo com o que escreve Paulo de Tarso em sua Carta aos Gálatas (Gl 5, 19-21). As obras dos nossos instintos egoístas, como a vaidade, a 503 mentira, a inveja, o ódio, a ambição etc., tão presentes no mundo globalizado, já nos têm causado muito mal. CONTRIBUIÇÕES ALFABETIZADO 1556B 1557B DE KIERKEGAARD AO PROGRAMA BRASIL A partir do pensamento do filósofo Kierkegaard e com as reflexões de Jorge Miranda de Almeida a respeito da educação ético-existencial, nós, educadores e educadoras do Programa Brasil Alfabetizado, entendemos que é preciso continuar lutando por uma educação ética, mas que seja uma educação como interioridade, conforme o que é descrito no Post-scriptum Conclusivo não Científico ás Migalhas Filosóficas: “para estudar a ética, cada homem é remetido a si mesmo, pois esse é o único lugar em que ele pode estudá-la com segurança”. A partir deste pensamento de Kierkegaard, Jorge Miranda nos esclarece mais com sua conclusão: “Por isso a educação como interioridade constitui a coisa séria por excelência, porque de outro modo, a ética é interioridade, a interioridade é educação, logo, a educação é ética e a ética é educação.” 1558B Partindo de Kierkegaard, concluímos que não há no Brasil uma educação, de fato; podemos até dizer que há “escolaridade”, “instrução”, “treinamento”, “ensino”, “domesticação”. Neste sentido, lembramos Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, com sua concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. 504 1559B Percebe-se que as políticas públicas, de modo geral atreladas ao capitalismo selvagem, visam muito a quantidade de brasileiros e brasileiras que serão alfabetizados (as). Parece que o mais importante são os números e as estatísticas. E mesmo agora, nos novos tempos de certa abertura ao pensamento do pedagogo Paulo Freire, percebemos que ainda estamos engatinhando no nosso fazer pedagógico. 1560B Percebemos que na sociedade capitalista em que vivemos, não resta dúvida, há muito investimento nas novas tecnologias e em toda forma de conhecimento a respeito do mundo exterior, haja vista a profusão de tabletes e computadores nos meios escolares. No entanto, e isto é lamentável, não percebemos quase ou nenhum incentivo ao conhecimento a respeito do si mesmo; muito pelo contrário, há todo um estímulo a se fugir cada vez mais de si mesmo, a se massificar. Não é a toa que a mídia favorece para que haja tanta festa, tanta música barulhenta, bebedeira, droga, futebol, carnaval, shows etc. O compositor Zé Ramalho expressa tudo isso muito bem em sua música admirável Gado Novo: “Ê, ê, ê, vida de gado. Povo marcado, ê. Povo feliz.”. 1561B Sabemos que se investe muito na Educação das Habilidades, porém, conforme nos diz Rubem Alves, um dos mais respeitados intelectuais do Brasil, “ sem a Educação das Sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido”, acrescentando ainda que “os conhecimentos nos dão meios para viver, mas que é a sabedoria que nos dá razões para viver.” E um saber que não transforma o indivíduo em individualidade, em ser humano autêntico, em indivíduo singular, capaz de assumir gratuitamente o sacrifício de si para a promoção do Tu, é para Kierkegaard, um truque, uma blasfêmia, uma forma de controle responsável pela produção da mentira, da injustiça e de toda forma de dominação disfarçada em democracia. 23B Os educandos e educandas, e muito pior ainda os próprios educadores, são preparados para tudo nesta vida, menos para serem eles mesmos e se realizarem como indivíduos singulares. Isto vem comprometendo o sentido da vida, ou gerando muita angústia e vazio, melhor dizendo, da existência. Esta compreensão da educação como Esta compreensão da educação como tarefa do existir já é para nós uma grande contribuição. Portanto, “Educar o indivíduo singular”, começando por nós mesmos, acreditamos ser esta a mais excelente contribuição do filósofo Kierkegaard para todos os educadores deste país, não apenas para os educadores do Programa Brasil Alfabetizado. Reforçamos também esta nossa compreensão com o pensamento de Paulo Freire: “Me movo como educador, porque, primeiro, me movo como gente.” Para Paulo Freire “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática.". Para este pedagogo "A teoria sem a prática é puro verbalismo inoperante, a prática sem a teoria é um atavismo cego". 24B Neste sentido, outra valiosa contribuição ao campo da pedagogia nos vem também do acervo kierkegaardiano, especificamente dos seus “Discursos Edificantes 505 de 1843”, quando ele atribui a Jó a responsabilidade de ser professor e guia da humanidade, afirmando que o significado do ensino de Jó se encontra não tanto no que disse, no que ensinou, mas, sobretudo, no que fez. Trata-se da reduplicação ou a coerência entre o pensar e o fazer, o discurso e a ação, a teoria e a prática. É exatamente no interior da reduplicação que é possível investigar as contribuições de Kierkegaard no campo da Pedagogia da Educação. 1562B Freire e Kierkegaard, segundo propõem para o caos em que vive a ética e a educação, a própria ética e a própria educação, o semelhante trabalhando e superando a si mesmo, porém, pensam uma nova ética e uma nova educação. Sendo assim, é possível desenvolver uma concepção da educação em Kierkegaard como remédio proposto para superar as doenças provocadas pela Ordem Estabelecida ou pela Sociedade de Espetáculo. É importante assimilar o que nos diz Jorge Miranda, baseando-se nesses dois pensadores (Kierkegaard e Paulo Freire): [...] o que precisa ser entendido nas pedagogias atuais é que a nossa vida está em nossas mãos e que somos responsáveis pelas escolhas que construirão ou não uma individualidade autêntica. (ALMEIDA, 2013, p.25) 1563B 1564B E ainda: [...] é contra o sistema que vive às custas da mentira, da baixeza e da injustiça que governam o mundo que torna-se fundamental uma proposta pedagógica que promova a construção do si mesmo, única possibilidade de superar o sistema. (ALMEIDA, 2013, p. 118). 1565B 1566B CONSIDERAÇÕES FNAIS 506 1567B Na tentativa de colaborar para que haja em nosso país uma educação ética, vínhamos estudando há um bom tempo a obra de Paulo Freire, tentando colocar em prática suas reflexões tão valiosas no campo da pedagogia - pedagogia humanizadora e libertadora. 1568B Recentemente, o pensamento de Kierkegaard vem nos esclarecendo e iluminando ainda mais a respeito do nosso fazer pedagógico. Este contato com o filósofo dinamarquês nos vem através do professor e pesquisador Jorge Miranda de Almeida, especialmente em sua obra: “A Educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação ético-existencial”. Este “casamento” entre duas referências tão iluminadas nos vem dando muitos esclarecimentos em relação à educação, à ética e à política, mas principalmente em relação a nós mesmos. Em especial com Kierkegaard, nós agora nos posicionamos não apenas como educadores comprometidos com a vida; muito mais do que isso e além disso, queremos nos comprometer com a nossa própria existência, com a nossa interioridade, transformando-nos em indivíduos singulares. Antes de nos preocuparmos com o mundo lá fora, com os nossos educandos, com as nossas famílias, com o nosso país etc., precisamos olhar primeiro para nós mesmos. Não adianta uma pessoa querer transformar o mundo se ela mesma não se transforma, e esta transformação precisa ocorrer no interior de si mesma. Não basta viver, é preciso existir! Existir como ser humano, como pessoa, como gente, enfim, como indivíduo singular. É importante investirmos nisso, mesmo sabendo dos riscos que corremos, pois, conforme nos diz Jorge Miranda de Almeida: “Tornar-se humano é uma aventura perigosa, pois estar aberto “a” significa carregar em si mesmo a ambiguidade de edificar-se com decência, decoro ética, mas também a de concretizar-se como a mais terrível e mesquinha das criaturas. É o risco e penso que inerente à condição de ser homem.” (ALMEIDA, 2013, p. 217). 1569B 1570B Temos consciência de que na sociedade neoliberal em que vivemos, com suas políticas públicas voltadas para o mercado e o lucro, fica muito difícil adotar uma educação que seja realmente ética. Pode até ser, conforme nos diz Jorge Miranda, uma educação de excelente qualidade em nível técnico, que é o objetivo dos governos, mas uma educação que humanize o humano do humano e no humano, implicaria a socialização, a partilha, o compromisso com o outro e isto não é de interesse da sociedade capitalista, uma vez que negaria a base do neoliberalismo, cujo objetivo é reduzir tudo a mercadoria, inclusive as pessoas. Por isso, o que vemos é a redução do si mesmo à condição de objeto, ou seja, uma subjetivação da própria subjetividade. Nosso empenho, portanto, é o de “lutar contra esta corrente”, não nos permitindo tornar “objetos”. Remamos contra o sistema e a única possibilidade de superá-lo é adotarmos uma proposta pedagógica que promova a construção do si mesmo. 507 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Jorge Miranda de. A Educação em Kierkegaard e Paulo Freire: por uma educação Ético-existencial. Vitória da Conquista/BA: Edições UESB,2013. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. 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