SIMULAÇÕES E DISSIMULAÇÕES EM ARQUITETURA Pablo Gleydson de Sousa IFS, Coordenadoria de Engenharia Civil, UFRN-PPGAU, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo [email protected] Daniel Fernandes de Macedo UFRN-PPGAU, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo [email protected] Resumo Este artigo discute como representações gráficas podem ser utilizadas para ilustrar projeto e construção, duas instâncias distintas de um mesmo objeto arquitetônico. Explora-se a capacidade que essa representação tem de ora simular uma realidade que antecipa, ora de dissimular uma realidade que registra a posteriori. Tendo por base imagens extraídas de projetos apresentados na Bienal Ibero Americana de Arquitetura de Medelín, 2010, tentar-se-á demonstrar por que o projeto é representado de forma hiper-realista, simulando usuários e atividades, enquanto edifícios são fotografados como se não tivessem nem usuários, nem usos. Palavras-chave: dissimulação. projeto, construção, representação, simulação, Abstract This paper discusses how graphic representations might be used to illustrate two distinct incarnations of an architectural object: design and construction. It´s aimed to show the power of such representations in simulate a reality that it anticipates, and also, to dissimulate a reality registered a posteriori. Considering project images presented at the 2010 Bienal Ibero Americana de Arquitetura de Medelín, it will be tried to demonstrate why the design is represented by hyper-realistic images, which simulate users and activities, while buildings are photographed like if they don´t have neither users nor function. Keywords: design, building, representation, simulation, dissimulation. 1 Projeto e edificação: dois artefatos, uma só arquitetura Projetar é uma atitude de antecipação que visa delimitar uma série de atitudes que, seguidas sistematicamente, devem culminar na resolução eficaz de uma necessidade. Não é exclusividade da arquitetura, mas antes uma atividade singular em resposta a uma demanda subjetiva (BOUTINET, 2002). Desta forma, existem projetos de naturezas diversas: de vida, pedagógico, etc., e a sua forma de representação, o meio através do qual se representa uma realidade antecipada, pode variar bastante segundo três aspectos inter-relacionados: a) A natureza especifica de cada projeto; b) Os diversos agentes envolvidos; conceptor ou conceptores, colaboradores, consultores, solicitantes, cliente e usuários, avaliadores, executores, etc. c) Os momentos ou etapas do projeto: desde a sua concepção na mente dos projetistas até a sua execução. Em arquitetura projetar é um compromisso de possibilitar construir objetos habitáveis específicos e o conhecimento mobilizado para concepção e registro destes ocorre, principalmente, através de desenhos (SILVA, 1991). O projeto é, portanto, uma mensagem a ser decodificada e, portanto, não é de estranhar que o modo como essa é emitida, representada, varie conforme destinatário imediato e etapa ao longo do processo (DURAND, 2003). Assim, há uma representação para concepção; outra para o cliente que pode variar conforme esse consuma a arquitetura no escritório, nos classificados de um jornal, ou numa prancha de concurso; uma para o licenciamento em órgãos públicos, outras para o canteiro de obras e, por definitivo, aquelas registradas pós-construção, como as fotografias. Embora o objeto arquitetônico seja um só, a mensagem que a representação gráfica veicula se modifica conforme o destinatário (TOSTRUP, 1999). Assumidos tais pressupostos sobre a arquitetura e suas representações, chamounos a atenção o fato de que, não apenas a forma como a mensagem é veiculada, mas os argumentos utilizados variam conforme a etapa do processo. Tentaremos exemplificar essas diferenças através de ilustrações extraídas de um contexto em particular: imagens de projetos de profissionais brasileiros que pleitearam representar o país na Bienal Ibero Americana de Arquitetura de Medelín, em 2010. Nessas imagens tentaremos demonstrar quão lacônicas podem ser as fotografias de arquitetura, a técnica dominante de representação dos edifícios no contexto da Bienal, principalmente quando comparadas com outras peças gráficas muito semelhantes a si em conteúdo como as perspectivas modeladas em computador, nas quais o discurso explora o caráter hiper-real do objeto representado. Nessa prática, um mesmo objeto arquitetônico é representado como dois artefatos distintos: um como constructo teórico, outro como construção física e habitável. Interessante é perceber as sutilezas implícitas na argumentação desses dois artefatos, projeto e edificação. Através da comparação de exemplares dessa bienal, demonstraremos diferenças na representação de uma arquitetura que existe: a) Ora como um simulacro, entidade virtual hiper-real, que não possui e que reclama para si um status que antecipa o da matéria; b) Ora como uma construção, entidade material, que registrada a posteriori tenta dissimular sua materialidade através de um discurso lacônico que nega a finalidade a que se destina. O que diferencia um discurso que ilustra uma realidade porvir doutro sobre uma existente? 2 A falha da representação? Ainda em 1948, Bruno Zevi alertou arquitetos e estudantes sobre as limitações das representações, principalmente as ortogonais, em tentar garantir ao expectador a compreensão de uma obra de arquitetura. Após uma crítica na qual seqüencialmente enumera às deficiências didáticas do emprego de plantas-baixas, cortes, fachadas e maquetes para dar a compreender e representar a arquitetura declara – e concordamos com ele – que “nenhuma representação é suficiente, precisamos nós mesmos ir, ser incluídos, tornarmo-nos e sentirmo-nos parte e medida do conjunto arquitetônico, devemos nós mesmos nos mover” (ZEVI, 1998, p.52). Conforme narra, nenhum modo de representação pode substituir a visita in loco que seria o único modo didaticamente aplicável e de fruição adequado para se compreender um espaço. Tanto mais que nenhuma representação, principalmente as bidimensionais, seria capaz de suscitar o espaço interno do objeto nem tampouco de garantir um sentido de escala que, para Zevi, é indispensável à compreensão da arquitetura. Mas se a questão que se coloca é a da falha da representação, seria a visitação uma solução para tal? Estando o sujeito interessado em compreender determinada arquitetura que se pretende estudar, ou mesmo representar, já a visitá-la, a passear por ela, a ponderar sobre este objeto ante suas três dimensões, somada àquela quarta garantida pelo deslocamento do tempo que o observador gasta em sua visitação, não parece paradoxal falar de uma representação se já o espaço e o edifício – em matéria – se colocam diante do espectador? E quanto ao construtor? Como conhecer ou edificar uma arquitetura ausente? Somente através da maquete em escala 1:1? Se representar, dentre tantas interpretações possíveis para esta palavra, é colocar-se no lugar, fazer às vezes de outro, que se supõe ausente, não haveria sentido em representar o que está presente. Logicamente, os argumentos de Zevi se aplicam somente para a arquitetura como construção. Para ele era incompreensível tratar de uma arquitetura que ainda não existia – tratar do projeto. Isso talvez porque em seu tempo era impossível adentrar numa arquitetura que não existisse fisicamente e observá-la com tamanha riqueza de detalhes que mesmo a visita a obra edificada poderia vir a ser dispensável. Se a sua época tal já existisse, talvez a única representação que atingisse os objetivos estipulados por Zevi fosse essa que cria o simulacro dos simulacros: a holografia, que não pretende resolver os problemas das peças gráficas tradicionais, mas que as supera por permitir conhecer o edifício em minúcias e passear por ele mesmo sem que esse exista como artefato construído (KALISPERIS, 2006). Na situação atual, aos sujeitos envolvidos com a arquitetura, a representação prescinde mesmo da promenade e antecede a materialidade. Como colocaria Baudrillard, a simulação é gerada “pelos modelos de um real sem origem nem realidade” (1981, p.09) num espaço hiper-real onde, como nunca antes, é possível mergulhar o espectador e apresentá-lo o edifício tal qual seria se executado. A materialidade vem a ser desnecessária, o simulacro é uma estratégia do real, e o real agora não é mais que nostalgia. 3 Simular ou dissimular? Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo refere-se a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir (...) fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário (BAUDRILLARD, 1981, p.09). Parece desejável que o projetista seja capaz de antecipar a seus clientes e construtores o objeto em que habitarão/trabalharão com uma grande riqueza de detalhes, pois, supõe-se, quanto maiores, melhor testemunham sobre o futuro objeto. Pode-se supor que a figura 01 tenha em algum momento servido para conduzir àquilo que foi posteriormente registrado na figura 02. Sendo a presciência um objetivo a ser alcançado para que se diminuam imprevistos (DURAND, 2003), colaboraria para tal o fato das atuais técnicas de representação oferecem aos projetistas a possibilidade de gerar antecipações, simulações, tão sofisticadas, que não é estranho deparar-se com o seguinte dilema: essa imagem é de um edifício ou de um projeto? É uma fotografia ou uma perspectiva eletrônica? Figura 01: perspectiva de centro comercial em Porto Alegre. Figura 02: Fotografia de centro comercial em Porto Alegre. O que esse dilema expõe é exatamente o sortilégio de um determinado tipo simulação que mascara uma ausência de realidade profunda, no qual quem é capaz de produzir uma imagem verossímil, é capaz também de simular, pelos argumentos realísticos apresentados a um expectador desavisado, uma realidade que pode ou não ser comprometida com a realidade. Mas seria função de toda representação simular? Certamente não. A geração dos simulacros parece ocorrer mais facilmente naquelas representações figurativas e de maior apelo popular. A esse conjunto tendem a escapar representações de caráter mais abstratas como plantas baixas, cortes e fachadas que, se executadas dentro do rigor que impõe a proporcionalidade dos fragmentos nelas reunidos, tanto demandam conhecimento técnico prévio para leitura, como dificultam manipulações nas quais se falseiem medidas. Representar não é forçosamente simular. Para a mídia há muito não é novidade que mensagens figurativas têm um apelo popular muito maior que o das abstratas (WEILL, 2010). Embora ofereçam aos técnicos a informação necessária para execução, se o projeto é divulgado apenas através de imagens abstratas será certa a dificuldade do leigo em compreender a ambiência e volume a que o projetista anseia, é dessa limitação que advêm a impopularidade. Opostamente, a popularidade da imagem hiper-real advém da surpresa que anula (Figura 03) pela exposição direta do objeto que antecipa (Figura 04). Figuras 03 e 04: Respectivamente perspectiva e fotografia de edifício residencial em Juiz de Fora. Na prática, nessa antecipação simuladora o comum é representar a arquitetura rodeada de coadjuvantes, elementos acessórios como pessoas, árvores, iluminações oníricas, pores-do-sol fantásticos, intensos contraste de luzes e sombras, entre tantas outras figuras de argumentação que tem por objetivo legitimar o simulacro como se este já fosse o objeto edificado (Figuras 01, 03 e 05). É assim que nas representações hiper-reais é sutil o limiar que permiti distinguir a fotografia do modelo tridimensional digitalmente elaborado (compare-se: Figura 01 e 02, e 03 com 04). Simula-se um cotidiano exposto em jardins e áreas de lazer povoadas por seres jubilosos, em estacionamentos acumulados de carros e motoristas, em salas e corredores repletos de usuários, nessa arquitetura exposta como se obra acabada fora, mas que não passa de projeto (Figuras 05 e 06). Figura 05: Perspectiva interna do Edifício de Escritório do Ministério da Educação em Brasília. Na contramão de tal prática, quando o objetivo é representar uma arquitetura que é edificação de fato, artefato físico, palpável e habitável por humanos de carne e osso ao invés dos de pixel, essa “argumentação visual” tem como princípio a ocultação: removem-se os usuários, os carros, esvaziam-se os jardins e as piscinas (Figuras 07 e 08), e, principalmente nas fotos dos interiores, geralmente a iluminação representada é diáfana. Pelo que cabe à iluminação, haveria algum drama (Figura 08)? Figura 06: Perspectiva interna do Edifício de Escritório do Ministério da Educação em Brasília. Figura 07: Fotografia da Fundação Habitacional do Exército em Brasília. Figura 08: Fotografia do Centro Educacional Burle Max, Inhotim, MG. Daí a perplexidade! Os mesmos acessórios que veiculam a “argumentação” são percebidos de duas maneiras: pela presença num e pela ausência noutro. A mesma utilização e ocupação que é simulada na representação do inexistente é dissimulada na que efetivamente existe! Quando o que se representa já existe, quando o objeto precede à imagem que o divulgará e o calcará na memória alheia, as pessoas que deveriam ocupar os espaços na obra construída são suprimidas por nunca serem perfeitas o suficiente para povoálo, já não há a necessidade de apelar para um pôr-do-sol espetacular, o momento do espetáculo ficou para trás, resta agora a contemplação, e a arquitetura a ser contemplada – e assim atesta a iconografia da disciplina – é antes de mais nada diáfana e solitária. A ocupação do edifício só importa ao simulacro, pois a verdadeira pode revelar o tédio e os dramas dos ocupantes que, nesse momento, não importam mais. 4 Considerações Lidar com a antecipação de uma realidade é a única constante do ofício do arquiteto, principalmente em dias em que é cada vez mais rara a garantia de execução da obra. Antecipar uma possível realidade, simular um edifício em potencial fingindo que este é capaz de existir, essa é atividade por excelência dos arquitetos. Principalmente quando o papel dura mais que a obra, que é precocemente demolida, e quando o destino mais otimista para o projeto é ser exposto numa galeria (MOON, 2005, p.21), ou figurar em pesquisas acadêmicas pelo conhecimento nele reunido. O projeto é a única instância sobre a qual o arquiteto tem total controle, e o simulacro é seu ofício por excelência. Numa pesquisa pregressa demonstramos que imagens que simulam uma realidade ausente, e não forçosamente comprometidas com uma realidade, que podem muito bem referirem-se apenas a si mesmas, um simulacro puro, parecem ser as mais aceitas e desejadas por arquitetos, construtores e clientes na situação de diálogo e experimentação de potencialidades do projeto (SOUSA, 2009). O que ocorre exatamente por estas representarem uma realidade mais que perfeita, utópica: hiperreal. O simulacro mascara e deforma uma realidade profunda (BAUDRILLARD, 1981, p.13). Mas que não se engane quem creia que os destinatários dessas imagens são espectadores inocentes das mesmas, pelo contrário (BANDEIRA, 2007). É exatamente da plausibilidade que advêm a força da imagem hiper-real: se é possível representar a isso, é possível também construí-lo! Se há tanta mobília na sala representada, será possível também mobiliá-la! Quando se trata de utilizar essa simulação para convencer ao cliente, este espera que o seu edifício assemelhe-se à imagem que o precedeu, pois a própria memória do edifício já o precede. E é essa a pratica que quando invertida resultaria numa representação capaz de dissimular o que foi previamente exposto. Na etapa de divulgação da obra construída não há de se provar mais nada. O prédio já existe, não há necessidade de povoá-lo, sua existência material já evidencia suficientemente o sucesso da empreitada. Portanto, necessário é despovoá-lo, e a dissimulação se processa exatamente no drama que a imagem omite. Visto de maneira simplista, o argumento da plausibilidade da imagem poderia justificar o fascínio exercido pelas representações hiper-reais, no entanto, o sortilégio do hiper-real não garante por si só que a realidade da obra executada coincida com a expectativa da mesma. Como admitir as latas de lixo no quintal ou as pessoas feias na piscina? Mas ora, o arquiteto só povoa e conserva o seu edifício na instancia do projeto, o que exceder a isso é má conduta do usuário (BANDEIRA, 2007, p.27). Igualmente, é possível dispor a mobília representada no espaço disponível a ela, se ela atenderá ao uso que dela se espera é uma questão de outra ordem. Não importa quão forte o apelo realístico de uma representação, ela não assegura que o edifício, se executado, lhe será idêntico. Assim como uma fotografia, que é também uma representação e, portanto, passível de manipulação, pode não condizer com a realidade que ilustra. Se houve uma clientela que financiou, e uma crítica que se dedicou à análise, de uma arquitetura que não tinha por princípio ser habitada – e tem a arquitetura de ser habitável? – como a casa III de Peter Eisenmann, talvez, com menor esforço – e sem submeter-se à ruína como ocorreu a dita casa – esse objetivo de criar uma arquitetura cuja única função é ser símbolo de si mesma, que deseja ser nada mais que um objeto de arte, possa também ser reclamado por uma arquitetura simulada: uma holografia? um cenário de vídeo game? Um produto hiper-real que só existe enquanto síntese de modelos combinatórios. Referências BANDEIRA, Pedro Jorge Monteiro. Arquitectura Como Imagem, Obra como Representação: subjectividade das imagens arquitectónicas. Tese de doutorado apresentada à Universidade do Minho, 2007. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Edititions Galilée, 1981. BOUTINET, Jean Pierre. Antropologia do Projeto. 5. ed. São Paulo: ARTMED, 2002. DURAND, Jean Pierre. La Representation du Projet. Approche, pratique et critique. La Villete: editions de la Villete, 2003. KALISPERIS, L. N. Virtual Reality and Architectural Design Comprehension. In: ENCONTRO REGIONAL DE EXPRESSÃO GRÁFICA, 6., 2006, Salvador. Anais... Salvador: EDUFBA, 2006.p. 25-39. MOON, Karen. Modeling Messages. The Architect and the Model. Monacelli Press, 2005. SILVA, Elvan. Uma introdução ao projeto arquitetônico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1991. SOUSA, Pablo Gleydson. A Representação em Projetos de Arquitetura: Concursos para Teatros em Natal e em Quebec. 2009. 205f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. TOSTRUP, Elizabeth. Architecture and Rhetoric. Text and Design in Architectural Competitions. London: Andreas Papadakis Pub, 1999. ZEVI, Bruno. Saber ver arquitetura. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. WEILL, Allan. O Design Gráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.