PROFESSOR E A FILOSOFIA NA SALA DE AULA: UMA TEORIA A SER ENSINADA? MENDONÇA, José Carlos - UFSC e-mail: [email protected] Área Temática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: Não contou com financiamento. Resumo Com a temática “O professor e a filosofia na sala de aula: uma teoria a ser ensinada?” visa-se contribuir com o evento ao propiciar reflexões acerca do papel da filosofia na sociedade contemporânea, a partir do campo teórico de investigação de Ludwig Wittgenstein, mais precisamente quanto à concepção de filosofia que, para este resumidamente podemos denominar de uma atividade de esclarecimento e de terapia. Sendo assim, ela tem um fim ético e age como um modificador ético do nosso modo de ver a mim, os outros e o mundo da forma correta e, após modificar o meu olhar, a conseqüência será o modificar do modo de viver. Portanto, o ensino não pode ter como prisma o repasse de conteúdos ou teorias, pois, o conceito de filosofia wittgensteiniano a pressupõe como atividade e não como produção de teorias. A filosofia, enquanto terapia e fim ético, objetiva a curar o nosso olhar e o nosso modo de vida; e no que toca ao ensino-aprendizagem criticar, justificar e explicar deixaram de ser os objetivos próprios da filosofia – agora o que resta ao filósofo é descrever os diferentes tipos de “jogos de linguagem” e de “formas de vida” em que estes estão incrustados, problematizando nossas crenças básicas, na tentativa de recriar suas condições de possibilidades e ver que argumentos e atitudes, poder-se-lhes-iam opor. Quanto à disciplina, deve propiciar ao aluno atividades que oportunizem “o trabalho sobre si mesmo”, sobre as próprias expressões do pensamento, com o qual identificamos a “terapia filosófica wittgensteiniana”, a liberdade de imaginação e a sua individualidade. Palavras Chaves: Filosofia; Ensino de Filosofia; Wittgenstein Introdução Na esteira do Parecer nº 38/2006, do Conselho Nacional de Educação em de 2006, tornando o Ensino de Filosofia obrigatório em âmbito nacional e, recentemente, mais que tudo pela sanção definitiva a obrigatoriedade da Filosofia como disciplina, a proposta de tal trabalho vem contribuir com as reflexões que são de suma importância para a dissolução de algumas interrogações acerca da Filosofia, enquanto disciplina da grade comum de base curricular, principalmente, no que se refere aos conteúdos a serem ensinados e à metodologia a ser utilizada. 10418 Todos aqueles, que de alguma forma, estão envolvidos com o Ensino de filosofia, sabem que o debate ou o diálogo sobre questões e reflexões que indiquem “o que”, o “como”, o “com que” objetivos ensinar, e ao mesmo tempo, levando em consideração a significação deste ensino dentro do contexto histórico-social, é um desafio e promove reações. Uma delas é o de começar definindo o que a filosofia é ou deveria ser; e, para, ampliar as reações, perguntar sobre a possibilidade deste ensino e, ainda, o “que” e o “como” ensinar. Afinal de contas é possível ensinar Filosofia? Se, sim, o que ensinar? Como ensinar? Tendo presente a relevância das idéias de Wittgenstein para o pensamento contemporâneo, o presente artigo pretende apresentar a concepção de filosofia de Wittgenstein e, a partir da delimitação do seu campo teórico acerca da tarefa da filosofia verificar a possibilidade e implicações do seu ensino. Wittgenstein, debruçando-se sobre a cultura de seu tempo constatou: o homem está enfermo. Esta enfermidade advém quando este se utiliza da linguagem para expressar fatos e pensamentos, que surgem na sua relação o mundo contingencial; assim, lança-se à enfermidade que nos acompanha há séculos. De um lado ela se produz porque se fala do que não se pode falar e deve-se calar (ética, religião, estética, enfim, os valores) e, de outro, porque se perde em confusões conceituais na utilização da gramática, produzindo a enfermidade. Uma segunda causa desta enfermidade é mais ampla e abarca a vida no seu todo; e este a ciência não pode resolver, pois está limitada aos seus métodos. Partindo deste diagnóstico qual a tarefa da filosofia? Aqui, pergunta-se, o que fazer para tornar o mundo do homem, um mundo feliz? Na educação do ser humano, o ensino de filosofia teria um papel possível a contribuir e relevante? E, mais, partindo do arcabouço teórico de Wittgenstein, é possível uma educação para os valores? Na busca de possíveis respostas a tais indagações é que abordo a concepção e o método da Filosofia em Wittgenstein; e, em seguida, levantar, caracterizar e situar os limites, possibilidades e contribuições de um Ensino de Filosofia numa perspectiva wittgensteiniana. Ao abordarmos a natureza da filosofia em Wittgenstein, faz-se importante notar que, para uma maior compreensão, mesmo existindo dentro da literatura filosófica uma divisão de ‘primeiro’ e ‘ segundo’ Wittgenstein, adota-se aqui o posicionamento de que haja uma continuidade, no que se refere à concepção de filosofia entre as duas nomenclaturas wittgensteiniana1, principalmente no que se diz a respeito à compreensão da tarefa reservada à 10419 filosofia, pois em ambas as obras a filosofia se auto-afirma como uma atividade metodológica de análise da linguagem2. Como pontuado por STEGMÜLLER (1977) as diferenças de concepção filosófica ocorrem quando se trata de definir o que cada obra compreende por análise lingüística - a concepção de análise do Tractatus é mais limitada, fundamentada no atomismo lógico e na visão essencialista da linguagem, que assume a figuração de fatos como a forma comum de todo discurso significativo, reduzindo a multiplicidade dos usos lingüísticos a uma homogeneidade substancial3. Depois desse esclarecimento sobre a possível continuidade quanto à tarefa e o método da filosofia na totalidade do pensamento wittgensteiniano abordemos, através de um breve esboço, os principais aspectos da concepção de filosofia a partir do Tractatus. 1 Não se tem a pretensão aqui de entrar nos meandros das discussões acerca da ruptura ou não entre os dois campos teóricos de investigação wittgensteinianos, as Investigações Filosóficas (1996) e o Tractatus (2001). Até porque, mesmo em Wittgenstein, há uma aparente indefinição quanto à existência haja ruptura, dando a impressão em certos trechos de sua obra (1996) de que existe uma ruptura e em certos momentos de que exista a continuidade entre suas obras. Em um momento ele faz uma espécie de autocrítica no prefácio das Investigações Filosóficas (1996) dando a entender a descontinuidade, reconhecendo os graves erros cometidos no Tractatus; porém outro momento, ele menciona haver certa dependência entre as obras, já que os novos pensamentos não poderão ser corretamente compreendidos sem o confronto com os antigos: “pareceu-me, de repente, que eu deveria publicar aqueles antigos pensamentos junto com os novos: estes poderiam receber sua reta iluminação somente pelo confronto com os meus pensamentos mais antigos e tendo-os como pano de fundo” (WITTGENSTEIN, 1996, p.12). E um desses conceitos básicos do pensamento que aqui se tem como continuidade seria o da concepção de filosofia, principalmente no âmbito de sua função de esclarecimento. Sobre este assunto, e na obtenção de um melhor detalhamento deste aspecto, conferir a confrontação das duas obras e a análise de rupturas ou não entre as mesmas em Wolfgang STEGMÜLLER (1977). 2 Contudo, as diferenças de concepção filosófica ocorrem quando se trata de definir o que cada obra compreende por análise lingüística. A concepção de análise do Tractatus é mais limitada, devido à sua visão essencialista da linguagem que assume a figuração de fatos como a forma comum de todo discurso significativo, reduzindo a multiplicidade dos usos lingüísticos a uma homogeneidade substancial. Visão que conduz a um reducionismo lingüístico à medida que tende a generalizar a função descritiva para toda a linguagem, à qual todas as outras formas significativas de usos lingüísticos estariam submetidas. Nessa concepção, analisar tornase uma atividade que visa desentranhar a essência última da linguagem, a sua forma lógica que faz dela a imagem especular do mundo. Em contraposição à teoria formal da linguagem do Tractatus, os jogos lingüísticos desenham uma imagem dinâmica e aberta da linguagem tornando-se um instrumento metodológico de análise mais capaz de fazer o filósofo dar-se conta do multiforme uso de nossas expressões lingüísticas. 3 Visão que, entre muitos outros elementos do corpo teórico, conduz a um reducionismo lingüístico e que irá ser modificada na fase posterior a 1929. 10420 Concepção de filosofia Para Wittgenstein dentro da história do pensamento ocidental, apesar de haver variações entre os períodos e entre as diversas correntes teóricas, de algum modo permanece a idéia de que a Filosofia é uma disciplina, ao lado das outras ciências, que visa produzir conhecimentos atingindo o mesmo status que a ciência. Por isso a sua crítica é enfática: “A filosofia não é uma das ciências naturais. (A palavra ‘filosofia’ deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais.)” (WITTGENSTEIN, 2001, p.177). Desde os seus albores, a tradição filosófica entendeu a filosofia como uma ciência que tem por finalidade a produção de conhecimentos sobre a realidade. Assim como as outras ciências, a filosofia tem um objeto e um método de estudo. E, através destes intenciona dizer o que ‘são’ os seres, a vida e a realidade na sua totalidade. Se voltarmos o nosso olhar à raiz da filosofia com Platão e Aristóteles, quando estes delegam à Filosofia o estatuto de sistematização da totalidade do sabe, esta passa a ter até os dias atuais a pretensão de ‘dizer’ o mundo e a realidade de todos os seres, sensíveis a supra-sensíveis, com a mesma concisão que as ciências naturais. Se olharmos no tempo, podemos ver em Platão (1991, pp. 87-94) a defesa de uma filosofia que não tem a função apenas de descrever meramente a realidade a partir de seus atributos e causas físicas e, sim, alça vôos muito mais alto: a filosofia é uma disciplina a priori que investiga a essência de todas as coisas. Em outras palavras, ela se ocupa com a verdadeira causa do mutável, isto é, sua preocupação é investigar as idéias que fundam a estrutura ontológica das coisas sensíveis. E, culminando com o seu discípulo, Aristóteles (1991) assegurou à filosofia o status de ciência (epistème), que não trata restritamente dos particulares, mas das causas primeiras e dos princípios universais e necessários da realidade. Em Descartes (1996), fazendo uso de um método rigoroso de tipo matemático, a filosofia passa a se ocupar dos fundamentos do conhecimento, certo e indubitável. Por intermédio de Locke (1690), pautado no método empírico, afirma-se a tendência da filosofia, mediante a investigação da origem e da formação das idéias, para a qual o objeto agora é o exame da certeza, das capacidades e da extensão do conhecimento humano. Chegando a Kant (1994), a partir do seu método transcendental, a filosofia se define como reflexão crítica, cujo objetivo não é voltar-se para os objetos externos e conhecê-los, mas, descrever os modos a 10421 priori de como o intelecto os conhece e descrever as condições de possibilidade de todo conhecimento, em uma palavra, a filosofia trata das condições transcendentais de possibilidade do conhecimento. Por fim, o autor do Tractatus (2001) e das Investigações Filosóficas (1996), Wittgenstein propôs o esclarecimento do pensamento como objetivo do método filosófico (WITTGENSTEIN, 2001, p.177) e através de diferentes terapias ou métodos, o filósofo deve mostrar como funciona a estrutura conceitual que está causando a enfermidade e o enfeitiçamento do intelecto (WITTGENSTEIN, 1996). No Tractatus, a filosofia é entendida como ‘crítica da linguagem’ (WITTGENSTEIN, 2001, p.165), isto é, um método que tem por finalidade não a descoberta do ‘novo’ e a teorização, mas, apenas o esclarecimento lógico das proposições científicas e, por isso ela é atividade. Ao cumprir o seu papel de tornar claros os pensamentos por intermédio da análise das proposições (WITTGENSTEIN, 2001, p.177), a crítica da linguagem, ao mesmo tempo, ‘mostra’ a estrutura da linguagem e, com esta, expõe claramente a estrutura do dizível, ou, melhor dizendo, mostra o que pode ser dito com sentido; e, com esse procedimento, delimita o âmbito da linguagem significativa (WITTGENSTEIN, 2001, p.179), traçando os limites entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito (WITTGENSTEIN, 2001, p.179; pp.131ss) 4 . Ao definir a filosofia enquanto método de elucidação das proposições da linguagem, Wittgenstein não a reconhece como uma ciência positiva. E, portanto, a filosofia não é uma teoria científica, pois suas proposições não afiguram fatos. A ciência produz um conjunto de proposições que afiguram a realidade em virtude de possuir a mesma forma lógica da afiguração. As proposições da ciência asseveram a possibilidade da existência ou da nãoexistência de um estado de coisas, permitindo o controle. As asserções filosóficas não podem ser verificadas empiricamente, pois suas proposições não fazem uma descrição de fatos e como estas não são bipolares, isto é, não têm a possibilidade de serem falsas ou verdadeiras no confronto com a realidade; conseqüentemente, as proposições filosóficas são vazias de sentido, são denominadas de contra-sensos dos quais não se podem predicar a sua verdade ou falsidade. Essa é uma razão porque a filosofia não pode ser uma considerada uma ciência 4 Segundo o Tractatus, aquilo que pode ser dito pode-se dizer claramente, pois o âmbito do dizível segue o modelo da figuração lógica dos fatos e, isso acontece porque a estrutura do mundo é a mesma da linguagem. Aquilo que não pode ser dito não é excluído, mostra-se. No entanto, o que se mostra não é possível falar significativamente por meio das proposições (TLP 4.022, 4.115, 4.12-4.121). Ultrapassar as fronteiras do que pode ser dito com sentido, como, por exemplo, tentar representar a forma lógica, é cair em proposições sem sentido e em contra-sensos (TLP 4.12). Para Wittgenstein as proposições “não podem expressar o mais alto” (TLP 6.42) e, assim, conhecer o mundo pela lógica é conhecê-lo limitadamente, pois, por mais que suas proposições dêem conta do que pode ocorrer no mundo não podem dar conta do sentido do mundo. Por isso, também que as ciências naturais são limitadas em seu papel e sua finalidade, restringir-se ao mundo dos fatos. 10422 entre as outras ciências naturais (WITTGENSTEIN, 2001, p.165; 177). E além da filosofia, outros temas não podem ser ditos proposicionalmente, tais como a ética, estética, a religião, a metafísica, etc. Porém, faz-se importante lembrar que se a filosofia de um lado está limitada, por outro lado, a ciência igualmente também está, porque para Wittgenstein as proposições “não podem expressar o mais alto” (WITTGENSTEIN, 2001, p.275) e, assim, conhecer o mundo pela lógica é conhecê-lo limitadamente, pois, por mais que suas proposições dêem conta do que pode ocorrer no mundo não podem dar conta do sentido do mundo. Por isso, também que as ciências naturais são limitadas em seu papel e sua finalidade, restringir-se ao mundo dos fatos. Nesse ínterim, a filosofia tem como função simplesmente o ato de esclarecer os fatos descritos pelas ciências: “Não existem deduções em filosofia; ela é puramente descritiva. A palavra ‘filosofia’ deve sempre designar algo (que esteja) acima ou abaixo, mas não ao lado das ciências naturais” (WITTGENSTEIN, 2004 p. 155). As ciências têm por tarefa a descrição dos fatos. A filosofia não trata da descrição do mundo. Ela possui uma tarefa mais fundamental, a de determinar as condições de possibilidade de toda descrição: “A filosofia é a doutrina da forma lógica das proposições científicas (não apenas das proposições primitivas)” (WITTGENSTEIN, 2004 p. 155). Sendo assim, a tarefa filosófica se justifica como um método descritivo do funcionamento da linguagem ou como uma atividade crítica, que visa determinar as condições de possibilidade das ciências. Essa crítica permite à filosofia limitar claramente o espaço disputável das ciências, determinando as condições de possibilidade de seus enunciados (WITTGENSTEIN, 2001, p.179), impedindo que elas extrapolem a fronteira do dizível e se arvorem a falar sobre a realidade mística. Nas Investigações Filosóficas5, a atividade descritiva da gramática continua interessada em compreender a essência, a função ou estrutura da linguagem (IF 89, 92). Contudo, nesta obra a essência não é vista como algo oculto que está por trás dos fenômenos particulares da linguagem (IF 89). “A essência está expressa na gramática” (IF 371). A essência está à vista de todos e diz respeito ao uso da palavra segundo regras (IF 92, 89). A investigação lingüística busca compreender o funcionamento e a estrutura da linguagem, pondo em luz o que se encontra abertamente manifesto e que se situa na superfície (IF 126, 129: “Queremos compreender algo que já se encontra abertamente diante de nossos olhos” 5 Devido à forma de numeração que Wittgenstein adota para exposição de seu conteúdo, adota-se como forma de indicação de referência bibliográfica da sua obra Investigações Filosóficas (1996) as siglas iniciais da mesma, a saber, IF o número correspondente. 10423 (IF 89). Daí, analisar é elucidar o que está à vista de todos (IF 126). O que é acessível a todos são as formas de vida que, por tratar-se de algo tão familiar, muitas vezes, impedem uma clara visão do funcionamento das atividades lingüísticas (IF 23, 241; II, 572). Para ver claramente este funcionamento, a filosofia muda os termos da questão, não perguntando pela essência do fenômeno, mas pelo uso do conceito (IF 92, 384). No Tractatus, a filosofia tinha como tarefa a crítica da linguagem a fim delimitar os limites do dizível (WITTGENSTEIN, 2001, p.165; 179), mediante uma notação eficiente que apresentasse a vantagem da exatidão lógica (WITTGENSTEIN, 2001, p.159). Progressivamente, a partir de 1929, ganha corpo na obra de Wittgenstein a idéia de que a lógica não se ocupa com uma linguagem ideal, a análise ocupa-se com as proposições da linguagem cotidiana assim como elas são dadas. Por sua vez, a descrição da gramática não implica uma notação eficiente para uma posterior regulamentação da linguagem (IF 124, 126, 130, 133). A linguagem cotidiana está em perfeita ordem (IF 98). A análise não toca no uso real da linguagem, mas deixa as coisas como estão (IF 124, 126, 130, 132, 89-91). O método visa apenas oferecer uma série de exemplos e lembretes para uma clara visão da gramática (IF 122). É um modo novo de fazer filosofia ao qual alguém pode se dedicar com muita liberdade, deixando de filosofar quando quiser (IF 133; BT 431). Além disso, a filosofia como método parte de uma visão multiforme da linguagem. A idéia de que a proposição é uma imagem da realidade pode ser conservada como uma analogia eficaz, sem pretensões metafísicas. A sua função é iluminar determinados aspectos de como funcionam determinadas proposições. Existem vários jogos de linguagem e não somente a figuração de fatos, conseqüentemente, analisar é descrever os diferentes modos de uso de uma expressão lingüística (IF 23-24). Ao invés de decompor a proposição até as suas partes últimas (WITTGENSTEIN, 2001, p.152s; 1896; IF 91), a análise redefine-se como esclarecimento gramatical e tenta exibir, através de analogias e exemplos, a gramática de uma palavra (IF 90, 383), determinando a sua função no sistema lingüístico a que pertence (IF 90). Analisar não é somente descrever a sintaxe de uma palavra, mas também descrever os fatores extralingüísticos que determinam o significado delas. A análise considera o jogo lingüístico como parte de uma forma de vida. Quer dizer, uma expressão não é vista isoladamente, mas como parte de um contexto, de um sistema de comunicação no interior de uma forma de vida (IF 19, 23, 241; II 572-573). 6 Conferir Tractatus Logico-philosophicus (2001) aforismos TLP 3.2 - 3.201, 3.25, 4.22 - 4.2211. 10424 Neste contexto a tarefa da é ser terapêutica, isto é, retroceder as palavras da linguagem filosófica que gira no vazio dos pretendidos significados puros às situações concretas em que comumente são utilizadas; portanto, ela não é uma teoria, e, sim, uma prática, ou melhor, é uma pura atividade que tem dois momentos básicos: 1) num primeiro tem como objetivo o de ser crítica ou desconstrutiva; e, 2) num segundo, o de se construir sobre a base de minuciosas descrições de nossos jogos de linguagem cotidiano. A filosofia enquanto terapia, então, deve orientar nosso olhar para outras possibilidades, resultando numa ”visão panorâmica” do emprego de nossas palavras e de nosso agir, contribuindo com o aumento ou não na nossa felicidade. Tal exercício não procura a ordem definitiva e absoluta, mas, apresentar as aplicações e limites de uma das ordens possíveis. A filosofia e o ensino Por isso a importância da educação na compreensão e esclarecimento da forma de vida; pois, assim, possibilita-se o modificador ético para uma nova ‘forma de ver’, pois, para compreender o significado do existir, tem-se que levar em consideração não somente as regras constitutivas do jogo (IF, 567, 563) como também os elementos culturais e antropológicos que o compõem (IF 3, 7, 19, 21, 23, 54, 156, 564) e, assim, fazendo-o surge a possibilidade transformadora da realidade que, num primeiro instante se dará individualmente na alteração do seu modo de ver e de viver e, automaticamente num segundo, alterando o modo de ver e de viver do contexto cultural e social de inserção. A partir do exposto até agora, pode-se concluir que a filosofia tem dois papéis fundamentais: um que podemos denominar de negativo e o outro de positivo. O aspecto negativo é o primeiro e recebe essa qualidade porque sua função é “deixar tudo como está” (WITTGENSTEIN, 1995) e não ir além do que é o caso, isto é, ela não pode teorizar nada nem sobre os fatos do mundo, porque essa é a função das ciências naturais e nem sobre a questão da metafísica ou dos valores, pois ultrapassam a realidade sensível e não estão presentes no mundo dos fatos. Assim, seu papel resume-se em respeitar os limites da linguagem, conseqüentemente, respeitando e aceitando o seu próprio limite e sua função como atividade: não dizer o que o que somente pode ser mostrado - essa constitui a 10425 dificuldade a ser superada7. Para Wittgenstein as proposições “não podem expressar o mais alto” (WITTGENSTEIN, 2001, p.275) e, assim, conhecer o mundo pela lógica é conhecê-lo limitadamente, pois, por mais que suas proposições dêem conta do que pode ocorrer no mundo não podem dar conta do sentido do mundo. Por isso, também que as ciências naturais são limitadas em seu papel e sua finalidade, restringir-se ao mundo dos fatos. Por sua vez, o positivo pode ser resumido nas palavras do próprio Wittgenstein “o trabalho na filosofia é – como freqüentemente o trabalho na arquitetura – mais um trabalho sobre nós mesmos, sobre a nossa concepção, sobre o modo como vemos as coisas” (WITTGENSTEIN, 1995). E é em base a este aspecto positivo que podemos entender o que Wittgenstein explicitou no aforismo 6.43 do Tractatus quando ele afirmou: “O mundo deve, então, com isso, tornar-se a rigor um outro mundo. Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo O mundo do feliz é um mundo diferente do mundo do infeliz” (WITTGENSTEIN, 2001, p.277). Mas, se não podemos teorizar e estamos impedidos pelos limites da linguagem de abordar temas que ultrapassam a realidade dos fatos como fazer com que o nosso mundo seja um outro mundo e, ainda, tornando-o um mundo mais feliz. E, isto está relacionado ao que Wittgenstein nos diz que devemos ver o mundo e a vida corretamente. Ao ver o mundo e a vida corretamente esta visão será a de um homem feliz, a visão de um estado de tranqüilidade da alma. E esta vida feliz é, para Wittgenstein, o que devemos buscar sempre. Nesse sentido respondendo a questão que foi o ponto inicial deste trabalho, a filosofia não é uma teoria e, enquanto tal, ela não pode ser ensinada. Porém, mesmo que não seja uma teoria ela é essencial num contexto de educação, pois, como vimos para Wittgenstein ela é atividade de esclarecimento e de terapia. Sendo assim, ela tem um fim ético e age como um modificador ético do nosso modo de ver a mim, os outros e o mundo da forma correta e, após modificar o meu olhar, a conseqüência será o modificar do modo de viver. A finalidade ética da filosofia engendra a responsabilidade pelo ensino de um novo olhar para a vida e de um modo de vida que vai além de um mero aprendizado teórico. A partir do exposto, conclui-se que quando pensamos o ensino de filosofia, numa perspectiva wittgensteiniana, este não pode ter como prisma o repasse de conteúdos ou teorias, pois, o conceito de filosofia wittgensteiniano pressupõe esta como atividade e não como produção de teorias. A filosofia, enquanto terapia e fim ético, objetiva a curar o nosso 7 E isso não quer dizer que ele está pregando a dissolução da filosofia. Apenas a colocando no seu lugar e definindo o seu papel, a saber, o de “mostrar à mosca o caminho para fora da campânula” (WITTGENSTEIN, 1995). 10426 olhar e o nosso modo de vida; e no que toca ao ensino-aprendizagem criticar, justificar e explicar deixaram de ser os objetivos próprios da filosofia – agora o que resta ao filósofo é descrever os diferentes tipos de “jogos de linguagem” e de “formas de vida” em que estes estão incrustados, problematizando nossas crenças básicas, na tentativa de recriar suas condições de possibilidades e ver que argumentos e atitudes, poder-se-lhes-iam opor. Quanto à disciplina, deve propiciar ao aluno atividades que oportunizem “o trabalho sobre si mesmo”, sobre as próprias expressões do pensamento, com o qual identificamos a “terapia filosófica wittgensteiniana”, a liberdade de imaginação e a sua individualidade. Considerações Finais A partir do campo teórico de investigação de Ludwig Wittgenstein, mais precisamente quanto à concepção de filosofia como atividade de esclarecimento e de terapia, este trabalho cuja temática é “O professor e a filosofia na sala de aula: uma teoria a ser ensinada?” teve a intenção de propiciar reflexões acerca do papel da filosofia na sociedade contemporânea, principalmente, no que se refere aos conteúdos a serem ensinados e à metodologia a ser utilizada, visto a mesma ser uma disciplina obrigatória dentro da grade comum de base curricular Num primeiro momento vimos que uma das primeiras dificuldades da Filosofia, enquanto disciplina, está em começar a definir-se, ou seja, perguntar sobre o seu próprio estatuto e deve ser e qual o seu objeto específico de ensino e, por conseqüência, perguntar sobre a possibilidade deste ensino. Afinal de contas é possível ensinar Filosofia? E isto que se ensina é uma teoria e, assim, um corpo delimitado de conteúdos fixos necessários à formação pessoal e à vida prática do aluno enquanto cidadão? Resumidamente na tentativa de tais respostas, o presente artigo tomou como base apresentar idéias de Wittgenstein, tendo presente a relevância deste para o pensamento contemporâneo, e a sua concepção de filosofia. A partir da delimitação do seu campo teórico acerca da definição e tarefa da filosofia verificou-se a possibilidade e implicações do seu ensino. Nesse ínterim, concluiu-se que a filosofia não pode ser considerada como uma teoria a ser ensina como as teorias científicas, porém, ela tem um importante papel na educação como atividade de esclarecimento e terapia. Sendo assim, ela tem um fim ético e age como um 10427 modificador ético do nosso modo de ver a mim, os outros e o mundo da forma correta e, após modificar o meu olhar, a conseqüência será o modificar do modo de viver. Portanto, o ensino não pode ter como prisma o repasse de conteúdos ou teorias, pois, o conceito de filosofia wittgensteiniano a pressupõe como atividade e não como produção de teorias. A filosofia, enquanto terapia e fim ético, objetiva a curar o nosso olhar e o nosso modo de vida; e no que toca ao ensino-aprendizagem criticar, justificar e explicar deixaram de ser os objetivos próprios da filosofia – agora o que resta ao filósofo é descrever os diferentes tipos de “jogos de linguagem” e de “formas de vida” em que estes estão incrustados, problematizando nossas crenças básicas, na tentativa de recriar suas condições de possibilidades e ver que argumentos e atitudes, poder-se-lhes-iam opor. Quanto à disciplina, deve propiciar ao aluno atividades que oportunizem “o trabalho sobre si mesmo”, sobre as próprias expressões do pensamento, com o qual identificamos a “terapia filosófica wittgensteiniana”, a liberdade de imaginação e a sua individualidade. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica. 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