ESMPU Escola Superior do Ministério Público da União

Propaganda
ESMPU
Escola Superior do Ministério Público da União
Inconstitucionalidades do Novo Código Florestal em relação às áreas de
preservação permanente
ESMPU
Escola Superior do Ministério Público da União
Inconstitucionalidades do Novo Código Florestal em relação às áreas de
preservação permanente
Mário Roberto dos Santos
Ministério Público Federal
2013
Mário Roberto dos Santos
Inconstitucionalidades do Novo Código Florestal em relação às áreas de
preservação permanente
Trabalho de Conclusão referente ao
VIII Curso de Ingresso e Vitaliciamento, apresentado como requisito
para obtenção de certificação em
curso de especialização, em nível de
pós-graduação lato sensu.
Aprovado em:
Resumo
Este trabalho monográfico tem por objeto o estudo das alterações
promovidas pela Lei n. 12.651/2012 no regime jurídico das áreas de
preservação permanente, anteriormente objeto da Lei n. 4.771/1965, visando
demonstrar a flexibilização da proteção incidente sobre esses espaços
territoriais especialmente protegidos. Sustenta a inconstitucionalidade dos
artigos 3º, IV, 59, 60, 61-A, 61-B e 63 do Novo Código Florestal, com
fundamento na teoria dos direitos fundamentais, nos princípios do direito
ambiental, com destaque para o princípio da proibição de retrocesso
ambiental, além de argumentar pela invalidade dos preceitos frente a
convenções internacionais (controle de convencionalidade).
Palavras-chave: Regime jurídico das áreas de preservação permanente na
Lei n. 12.651/2012 – Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado
–
Princípio
da
vedação
de
retrocesso
ambiental
–
Inconstitucionalidade dos artigos 3, IV, 59, 60, 61-A, 61-B e 63, todos da Lei
12.651/2012.
Abstract
This monograph's purpose is the study of the changes introduced by Law
n. 12.651/2012 the legal regime of permanent preservation areas previously
covered by Law n. 4.771/1965 order to demonstrate the flexibility of protection
incident on these especially protected areas. Sustains the constitutionality of
Articles 3, IV, 59, 60, 61-A, 61-B and 63 of the New Forest Code, based on the
theory of fundamental rights, the principles of environmental law, particularly the
principle of non-retrogression environmental, and argue the invalidity of
ordinances against international conventions (conventionality control).
Keywords: Legal status of permanent preservation areas in Law.
12.651/2012 - Fundamental right to an ecologically balanced environment Principle of environmental sealing setback - unconstitutionality of Articles 3, IV,
59, 60, 61-A, 61-B and 63, all of Law 12.651/2012.
SUMÁRIO
1
Introdução...........................................................................................
5
2
.
Contraponto entre os regimes de proteção das áreas de
7
preservação permanente no Código Florestal de 1965 e no Novo
Código
2.1
Florestal..................................................................................
Regime jurídico das áreas de preservação permanente no
7
Código Florestal de
2.2
1965....................................................................
Regime jurídico das áreas de preservação permanente na Lei n.
2.3
12.651/2012 – Novo Código Florestal................................................
Autorização para continuidade de atividades e edificações em
13
áreas de preservação permanente e dispensa de recomposição
integral dos danos ambientais: artigos 3º, IV, 59, 60, 61, 61-A 613
19
B e 63 da Lei n. 12.651/2012...............................................................
Direito fundamental à proteção do meio ambiente na
Constituição de 1988, princípio da proibição de retrocesso
28
ambiental e status normativo dos tratados internacionais de
direitos
3.1
3.2
3.3
humanos.................................................................................
Direito Fundamental à proteção do meio ambiente
na
Constituição
de
1988...........................................................................
Princípio da proibição de retrocesso ambiental..............................
Status normativo dos tratados internacionais sobre direitos
28
38
43
humanos..............................................................................................
4
.
Inconstitucionalidade dos artigos 3º, IV, 59, 60, 61-A, 61-B e 63
da
Lei
n.
12.651/2012
–
Novo
46
Código
Florestal..............................................................................................
5
.
Conclusão...........................................................................................
.
58
1 - Introdução
Em 28/05/2012, foi promulgada a Lei 12.651, que realizou sensíveis
modificações no regime jurídico das áreas de preservação permanente,
ampliando as possibilidades de uso direto dessas áreas, em contraposição às
regras constantes do Código Florestal revogado (Lei 4.771/1965).
Além da instituição de um regime jurídico geral das áreas de preservação
permanentes, a nova Lei instituiu regime de transição, no capítulo XIII (artigos
59 a 65 da Lei n. 12.651/2012), permitindo a continuidade de atividades
agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas de preservação
permanente localizadas em áreas rurais consolidadas até 22/07/2008,
prevendo a recuperação ínfima de áreas degradadas, proporcionalmente ao
tamanho da propriedade rural.
Serão objeto do presente estudo, entretanto, apenas os artigos 59, 60, 61A, 61-B, 63 e artigo 3º, IV, que conceitua área rural consolidada, todos da Lei
12.651/2012, pois se referem a situações em que a proteção ambiental foi
relativizada em prol de interesses econômicos privados, inexistindo margem
para argumentar com suposto interesse público ou social na manutenção das
atividades passíveis de regularização, em que pese outros dispositivos do
capítulo XIII também serem alvo de críticas por parcela da doutrina. Foram
dispensadas de recuperação áreas importantes para a manutenção de
processos ecológicos essenciais e função ecológica das áreas de preservação
permanente, em contraposição à regra geral de vedação ao uso direto das
áreas de preservação permanentes que antes vigorava.
Essa nova lei, em grande parte, e os dispositivos a seguir analisados,
especificamente, vêm sendo alvo de críticas pela doutrina especializada no
direito ambiental, que apontam vícios gravíssimos de inconstitucionalidade
material, com amparo na teoria geral dos direitos fundamentais, na
caracterização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como
direito subjetivo difuso, apto a gerar o direito adquirido à sua preservação e,
especialmente, fundamentada no que vem sendo denominado princípio da
proibição de retrocesso ambiental, além de importante manancial teórico
emanado
dos
princípios
gerais
do
direito
ambiental
já
amplamente
consagrados na doutrina nacional e internacional, tais como princípios do
desenvolvimento
sustentável,
da
equidade
intergeracional,
prevenção,
precaução, poluidor-pagador, dentre outros.
Portanto, diante da importância do debate para a preservação do meio
ambiente e para a afirmação do desenvolvimento sustentável, buscar-se-á
contribuir para a análise da compatibilidade dos dispositivos mencionados com
a Constituição da República e convenções internacionais que tratam do tema.
A importância da matéria e o momento histórico são cruciais para que o direito
ambiental não fique à mercê de interesses de ocasião.
O
desenvolvimento
do
tema
foi
baseado
em
pesquisa
teórica,
predominantemente bibliográfica, qualitativa, utilizando-se o método hipotéticodedutivo.
Desenvolvimento
2. Contraponto entre os regimes de proteção das áreas de
preservação permanente no Código Florestal de 1965 e no Novo
Código Florestal
2.1 Regime jurídico das áreas de preservação permanente no Código
Florestal de 1965
O primeiro Código Florestal Brasileiro foi instituído pelo Decreto 23.793, de
23.01.1934, estabelecendo que as florestas existentes no território nacional,
consideradas em conjunto, constituíam bens de interesse comum a todos os
habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações
que as leis em geral e especialmente o aludido Código estabelecessem.
Embora a definição citada, constante do artigo 1º do Código, fosse bastante
avançada para a época, não houve efetiva preocupação com a conservação
ambiental, tratando-se de sistematização para a exploração econômica das
florestas, mediante a seguinte classificação quatripartite: a) florestas
protetoras; b) florestas remanescentes; c) florestas-modelos; d) florestas de
rendimento. José Afonso da Silva esclarece que essa classificação ensejou
críticas contundentes de Osny Duarte Pereira por não se assentar em critérios
jurídicos, isto é, por não ter estabelecido prerrogativas e restrições suficientes
ao direito de propriedade, cuja feição individualista era predominante. A
consequência foi a ineficácia do Código, decorrente de suas disposições, mas
principalmente da concepção egoística do direito de propriedade que então
vigorava.1
O Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771/1965) foi pioneiro quanto à
efetiva preocupação com a proteção ambiental, transparecendo a consciência
ambiental pela leitura do artigo 1º, que manteve a referência às florestas
existentes em território nacional e demais formas de vegetação como bens de
interesse comum a todos os habitantes do país, bem como pela função
primordial de criação de espaços territoriais especialmente protegidos, com
destaque para as áreas de preservação permanente e áreas de reserva legal. 2
O artigo 1º do Código Florestal de 1965 dispunha que:
As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação,
reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum
a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as
limitações que a legislação e geral e especialmente esta Lei estabelecem.
O parágrafo único do artigo supramencionado, por sua vez, estabeleceu
configurar uso nocivo da propriedade as ações e omissões contrárias às
disposições do Código na utilização e exploração das florestas.
Dessa forma, além de determinar a proteção de três bens jurídicos –
florestas, demais formas de vegetação úteis às terras que revestem e as terras
propriamente ditas -, foi estabelecido um regime jurídico singular, diferente do
puramente civil, com normas de direito público e privado, caracterizando um
regime jurídico ambiental.3
Foram estabelecidas duas espécies de áreas de preservação permanente,
denominadas legais (“ex vi legis”) ou administrativas, previstas nos artigos 2º e
3º da Lei n. 4.771/65, respectivamente. As áreas de preservação permanente
legais decorrem diretamente da lei, ao passo que as administrativas dependem
de declaração por ato do Poder Público, nas hipóteses previstas no Código. 4
Confira-se as áreas de preservação permanente instituídas “ex vi legis”
pelo artigo 2º do diploma normativo citado:
1
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 167-168.
2LEUZINGER, Márcia Diegues. Áreas protegidas e código florestal (publicado nos
anais do congresso do planeta verde/2012).
3ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 14. Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.
598.
4TRENNEPOHL, Natascha. Manual de direito ambiental. Niterói: Impetus, 2010, p.
150.
Artigo 2º. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as
florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em
faixa marginal, cuja largura mínima seja (Alínea a com redação determinada pela
Lei 7.803/1989):
1) de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez) metros de
largura;
2) de 50 (cinquenta) metros para os cursos d'água que tenham de 10 (dez)
metros a 50 (cinquenta) metros de largura;
3) de 100 (cem) metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a
200 (duzentos) metros de largura;
4) de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200
(duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
5) de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior
a 600 (seiscentos) metros;
b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais;
c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados “olhos d'água”,
qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta)
metros de largura;(Alínea c com redação determinada pela Lei 7.803/1989)
d) no topo de morros, montes, montanhas e serras;
e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45º, equivalente a
100% (cem por cento) na linha de maior declive;
f) nas restingas, com fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo,
em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; (Alínea g
com redação determinada pela Lei 7.803/1989)
h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a
vegetação. (Alínea h com redação determinada pela Lei 7.803/1989)
Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas
nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas
e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto
nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e
limites a que se refere este artigo.
As áreas de preservação permanente administrativas, por sua vez, apenas
poderiam ser instituídas pelo Poder Público nas hipóteses do artigo 3º:
Art. 3º Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando assim
declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação
natural destinadas:
a) a atenuar a erosão das terras;
b) a fixar as dunas;
c) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
d) a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares;
e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico;
f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçadas de extinção;
g) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas;
h) a assegurar condições de bem-estar público.
§1º A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será
admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for
necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade
pública ou interesse social.
§2º As floresta que integram o patrimônio indígena ficam sujeitas ao regime de
preservação permanente (alínea g) pelo só efeito desta lei.
Importante destacar que as áreas de preservação permanente destinadas
a manter o ambiente necessário à vida das populações indígenas, apesar de
constar do artigo 3º, eram consideradas áreas de preservação permanente
pelo só efeito da lei, conforme expressamente referido no parágrafo 2º.
Portanto, considerava-se área de preservação permanente a área
protegida, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei n. 4.771/1965, coberta ou não
por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos
hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico
de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações
humanas, consoante definição constante do artigo 1º, parágrafo 2º, II, da
mesma lei.
Romeu Faria Thomé da Silva esclarece que as áreas de preservação
permanente são ambientalmente relevantes, destinando-se à preservação de
suas funções ecológicas, tendo como características gerais a “intocabilidade e
vedação de uso econômico direto”.5
Nesse contexto, foram previstas hipóteses excepcionais de supressão de
vegetação em área de preservação permanente no artigo 3º, §1º, acima
transcrito, e artigo 4º, com a redação dada pela Medida Provisória n. 2.166-67.
O primeiro fundamenta a autorização de supressão em área de
preservação permanente administrativa, podendo ocorrer a supressão total ou
parcial de vegetação mediante prévia autorização do Poder Executivo Federal,
quando necessária à execução de obras, planos, atividade ou projetos de
utilidade pública ou interesse social. Esse regime é menos restritivo do que
aquele aplicado às áreas de preservação permanente legais, constantes do
artigo 4º, conforme se verá, sendo importante trazer à colação as ponderações
de José Afonso da Silva quanto ao alcance do artigo 3º, §1º, do Código de
1965:
A questão que se apresenta ao intérprete consiste em saber qual a abrangência
do disposto no referido art. 3º, §1º. A técnica legislativa leva à conclusão de que o
parágrafo só se refere à regra do artigo a que se vincula. Assim, quer dizer que
somente as florestas de preservação permanente assim declaradas nos termos
do dito artigo poderão sofrer a supressão na condições estabelecidas no seu §1º.
Vale dizer que nem as florestas e demais vegetação de preservação permanente,
ex vi legis, indicadas no art. 2º, nem as do patrimônio indígena a elas
equiparadas, mencionadas no §2º do mesmo art. 3º, poderão ser suprimidas,
5 SILVA, Romeu Faria Thomé da. Manual de direito ambiental. Salvador: Juspodivm,
2011, p. 265.
nem total nem parcialmente.
Mas não é apenas a técnica legislativa que nos leva a essa conclusão. A ratio
legis, especialmente, é que orienta tal interpretação, pois seria uma inutilidade a
lei reconhecer florestas de preservação permanente, só por efeito dela, ao
mesmo tempo em que admitisse a possibilidade de sua supressão total ou
parcial, ainda que em condições restritas.6
Em relação às áreas de preservação permanente ex vi legis, o artigo 4º do
Código Florestal (Lei 4.771/1965), com a redação dada pela Medida Provisória
n. 2.166-67, dispunha que a supressão de vegetação em área de preservação
permanente somente poderia ser autorizada em caso de utilidade pública ou
de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento
administrativo próprio, quando inexistente alternativa técnica e locacional ao
empreendimento proposto (caput). Ademais, dependeria de autorização do
órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber,
do órgão federal ou municipal de meio ambiente (§1º). Tratando-se de área
urbana, dependeria de autorização do órgão ambiental competente, desde que
o município possuísse conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e
plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual
competente fundamentada em parecer técnico (§2º). Além dessas hipóteses, o
órgão ambiental competente poderia autorizar a supressão eventual e de baixo
impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de
preservação permanente (§3º). Em todos os casos deveria o órgão ambiental
indicar, previamente à emissão de autorização para supressão da vegetação,
as medidas mitigadoras e compensatórias que deveriam ser adotadas pelo
empreendedor (§5º). Restringia ainda mais a supressão de vegetação nativa
protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, prevendo a possibilidade de
ser autorizada a supressão apenas em caso de utilidade pública (§5º). Por fim,
corroborando a regra de vedação do uso direto das áreas de preservação
permanente e a importância de sua preservação, permitia o acesso de
pessoas e animais às áreas de preservação permanente apenas para
obtenção de água, desde que não exigisse a supressão e não comprometesse
a regeneração e manutenção a longo prazo da vegetação nativa (§7º).
A própria Lei 4.771/1965 definiu o que seriam hipóteses de utilidade
pública ou interesse social, no artigo 1º, IV e V, respectivamente. Eram
consideradas de utilidade pública a) as atividades de segurança nacional e
6
SILVA, José Afonso da, 2010, p. 175.
proteção sanitária; b) as obras essenciais de infraestrutura destinadas aos
serviços públicos de transporte, saneamento e energia e aos serviços de
telecomunicações e de radiodifusão; e c) demais obras, planos e atividades ou
projetos previstos em resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente –
CONAMA. Caracterizariam interesse social a) as atividades imprescindíveis à
proteção da integridade da vegetação nativa, tais como prevenção, combate e
controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de
plantios com espécies nativas, conforme resolução do CONAMA; b) as
atividades de manejo agroflorestal sustentável praticadas na pequena
propriedade ou posse rural familiar, que não descaracterizem a cobertura
vegetal e não prejudiquem a função ambiental da área; e c) demais obras,
planos, atividades ou projetos definidos em resolução do CONAMA.
Com efeito, as situações consideradas de utilidade pública incluíam obras,
atividades e serviços públicos, enquanto as hipóteses de interesse social tinha
por objetivo a proteção da própria área. Em ambas, porém, facultava-se ao
Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA definir, mediante resolução,
demais obras, planos, atividades ou projetos em que seria possível a
autorização para supressão de área de preservação permanente. Contudo,
essa faculdade não pode ser interpretada descontextualizada dos demais
artigos e da finalidade da lei. José Afonso da Silva esclarece o alcance da
faculdade legal:
É preciso que se esclareça que a faculdade que assim se confere ao CONAMA
não é um cheque em branco que o autorize a aplicar os ditames legais: tais
obras, planos ou atividades e projetos hão que se enquadrar na mesma natureza
dos que foram enumerados, respectivamente, como de utilidade pública ou
interesse social.7
Registre-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal declarou a
constitucionalidade da Medida Provisória 2.166-67/2001 na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 3540 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, sob o
fundamento de que o artigo 225, §1º, inciso III, da Constituição da República
exigia lei específica para a supressão de área ambientalmente protegida, e não
para supressão de vegetação nessas áreas, que poderiam ser autorizadas por
ato administrativo, nas hipóteses legais.8
O Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA editou a Resolução n.
7
8
SILVA, José Afonso da, 2010, p. 177.
SILVA, Romeu Faria Thomé da, 2011, p. 267-268.
369, de 28/03/2006, dispondo sobre os casos excepcionais de utilidade
pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a
intervenção ou supressão de vegetação em área de preservação permanente.
O Ministério Público do Estado de São Paulo, em 2006, concluiu que a referida
resolução extravasou o poder regulamentar conferido pelo Código Florestal de
1965, apontando vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade. 9 No entanto, o
presente trabalho monográfico se limitará à análise do regime constitucional e
legal das áreas de preservação permanente.
Percebe-se, assim, que o regime jurídico de proteção das áreas de
preservação permanente era bastante rigoroso, somente admitindo a
supressão e utilização dessas áreas em hipóteses bastante excepcionais, em
conformidade com as disposições constitucionais e com as relevantes funções
ecológicas desempenhadas.
2.2 Regime jurídico das áreas de preservação permanente na Lei n.
12.651/2012 – Novo Código Florestal
Com o advento da Lei n. 12.651/2012 (Novo Código Florestal), que
revogou a Lei n. 4.771/1965, houve significativa alteração em relação às áreas
de preservação permanente, especialmente em relação à regra da vedação do
uso direto dessas áreas, com a instituição do conceito de área rural
consolidada e a desobrigação de recomposição desse espaço territorial
especialmente protegido, ou previsão de recomposição de áreas de
preservação permanente ripárias baseada em outros critérios que não a
largura do curso d’água, sem embasamento científico, em nítida violação ao
dever de promover a preservação e recuperação do meio ambiente,
constitucionalmente imposto (artigo 225, §3º, da Constituição da República).
Manteve-se, no artigo 2º, a referência às florestas existentes em território
nacional e demais formas de vegetação nativa como bens de interesse comum
a todos os habitantes do País. No entanto, no parágrafo primeiro do mesmo
artigo, advertiu-se que as ações e omissões contrárias às disposições da Lei
são consideradas uso irregular da propriedade, aplicando-se o procedimento
9
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 400.
sumário previsto no artigo 275, II, do Código de Processo Civil, sem prejuízo
das sanções administrativas, civis e penais. A alteração da expressão uso
nocivo da propriedade – constante do Código de 1965 – para uso irregular não
é apenas questão semântica, mas indicativo dos objetivos da Lei em questão,
qual seja, tornar aceitável, ou menos reprovável, as agressões ao meio
ambiente, em benefício de produtores rurais, na linha do alargamento das
hipóteses de utilização de áreas de preservação permanente constantes das
disposições transitórias.
No ponto, lecionam Sandra Cureau e Márcia Dieguez Leuzinger, com a
propriedade que lhes é peculiar:
A substituição uso nocivo da propriedade para uso anormal da propriedade altera
a própria finalidade da Lei, que é oferecer proteção máxima a todas as formas de
vegetação consideradas de utilidade às terras que revestem. Uso nocivo tem
conotação sempre negativa, de infração, de algo ruim para a sociedade,
enquanto uso anormal pode ser permitido. Embora uso irregular, como aprovado
pelo Senado e pela redação final do PL tenha também conotação negativa, não
se compara a uso nocivo, que agrega o sentido de agressão a um valor social.10
(grifos no original)
O artigo 3º, inciso II, por sua vez, estabeleceu o conceito de área de
preservação permanente, nos seguintes termos:
II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por
vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a
paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de
fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;
Foi mantida a divisão das áreas de preservação permanente em legais e
administrativas, excluindo-se as florestas que integram o patrimônio indígena
do regime das áreas de preservação permanente.
As áreas de preservação permanente legais constam do artigo 4º, com
inclusões e alterações promovidas pela Lei n. 12.727/2012 – que converteu em
lei a Medida Provisória n. 571/2012 -, que estabelece o seguinte:
Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou
urbanas, para os efeitos desta Lei:
I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural, desde a borda da calha
do leito regular, em largura mínima de:
I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente,
excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura
mínima de:
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de
10CUREAU,
Sandra; LEUZINGER, Marcia Dieguez; Direito ambiental. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2013, p. 165.
largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50
(cinquenta) metros de largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200
(duzentos) metros de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a
600 (seiscentos) metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a
600 (seiscentos) metros;
II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima
de:
a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20
(vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros;
b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas;
III - as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, na faixa definida na
licença ambiental do empreendimento, observado o disposto nos §§ 1o e 2o;
III - as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de
barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na
licença ambiental do empreendimento;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água, qualquer que seja a
sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;
IV – as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer
que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;
(Redação dada pela Medida Provisória nº 571, de 2012).
IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer
que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;
(Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).
V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a
100% (cem por cento) na linha de maior declive;
VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
VII - os manguezais, em toda a sua extensão;
VIII - as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em
faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;
IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100
(cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da
curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação
sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado
por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do
ponto de sela mais próximo da elevação;
X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que
seja a vegetação;
XI - as veredas.
XI – em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de
50 (cinquenta) metros, a partir do limite do espaço brejoso e encharcado.
(Redação dada pela Medida Provisória nº 571, de 2012).
XI - em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de
50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e
encharcado.
(Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 1o Não se aplica o previsto no inciso III nos casos em que os reservatórios
artificiais de água não decorram de barramento ou represamento de cursos
d’água.
§ 1o Não será exigida Área de Preservação Permanente no entorno de
reservatórios artificiais de água que não decorram de barramento ou
represamento de cursos d’água naturais.
(Redação dada pela Lei nº 12.727,
de 2012).
§ 2o No entorno dos reservatórios artificiais situados em áreas rurais com até 20
(vinte) hectares de superfície, a área de preservação permanente terá, no
mínimo, 15 (quinze) metros.
§ 2o (Revogado).
(Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 3o (VETADO).
§ 4o Nas acumulações naturais ou artificiais de água com superfície inferior a 1
(um) hectare, fica dispensada a reserva da faixa de proteção prevista nos incisos
II e III do caput.
§ 4o Fica dispensado o estabelecimento das faixas de Área de Preservação
Permanente no entorno das acumulações naturais ou artificiais de água com
superfície inferior a 1 (um) hectare, vedada nova supressão de áreas de
vegetação nativa. (Redação dada pela Medida Provisória nº 571, de 2012).
§ 4o Nas acumulações naturais ou artificiais de água com superfície inferior a 1
(um) hectare, fica dispensada a reserva da faixa de proteção prevista nos incisos
II e III do caput, vedada nova supressão de áreas de vegetação nativa, salvo
autorização do órgão ambiental competente do Sistema Nacional do Meio
Ambiente - Sisnama.
(Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).
Com efeito, as áreas de preservação permanente administrativas, que
dependem de declaração de interesse social pelo Chefe do Poder Executivo,
estão previstas no artigo 6º:
Art. 6o Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas
de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com
florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes
finalidades:
I - conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra
e de rocha;
II - proteger as restingas ou veredas;
III - proteger várzeas;
IV - abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção;
V - proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou
histórico;
VI - formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
VII - assegurar condições de bem-estar público;
VIII - auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares.
IX – proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional.
(Incluído pela Medida Provisória nº 571, de 2012).
IX - proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
O regime de proteção dessas áreas especialmente protegidas está
disciplinado nos artigos 7º a 9º da lei em comento:
Art. 7o A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser
mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título,
pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado.
§ 1o Tendo ocorrido supressão de vegetação situada em Área de Preservação
Permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título é
obrigado a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos
autorizados previstos nesta Lei.
§ 2o A obrigação prevista no § 1o tem natureza real e é transmitida ao sucessor
no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.
§ 3o No caso de supressão não autorizada de vegetação realizada após 22 de
julho de 2008, é vedada a concessão de novas autorizações de supressão de
vegetação enquanto não cumpridas as obrigações previstas no § 1o.
Art. 8o A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de
Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de
interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei.
§ 1o A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, dunas e restingas
somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública.
§ 2o A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação
Permanente de que tratam os incisos VI e VII do caput do art. 4o poderá ser
autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal
esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização,
inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas
urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda.
§ 3o É dispensada a autorização do órgão ambiental competente para a
execução, em caráter de urgência, de atividades de segurança nacional e obras
de interesse da defesa civil destinadas à prevenção e mitigação de acidentes em
áreas urbanas.
§ 4o Não haverá, em qualquer hipótese, direito à regularização de futuras
intervenções ou supressões de vegetação nativa, além das previstas nesta Lei.
Art. 9o É permitido o acesso de pessoas e animais às Áreas de Preservação
Permanente para obtenção de água e para realização de atividades de baixo
impacto ambiental.
As hipóteses de intervenção em área de preservação permanente foram
substancialmente ampliadas pelo artigo 8º, acima transcrito, sendo as
hipóteses de utilidade pública, interesse social, atividade eventual ou de baixo
impacto ambiental listadas, exemplificativamente, no artigo 3º, incisos VIII, IX e
X:
VIII - utilidade pública:
a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária;
b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos
de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de
solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos,
energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações necessárias à realização de
competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, bem como
mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e
cascalho;
c) atividades e obras de defesa civil;
d) atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das
funções ambientais referidas no inciso II deste artigo;
e) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em
procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e
locacional ao empreendimento proposto, definidas em ato do Chefe do Poder
Executivo federal;
IX - interesse social:
a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa,
tais como prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão,
erradicação de invasoras e proteção de plantios com espécies nativas;
b) a exploração agroflorestal sustentável praticada na pequena propriedade ou
posse rural familiar ou por povos e comunidades tradicionais, desde que não
descaracterize a cobertura vegetal existente e não prejudique a função ambiental
da área;
c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades
educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas,
observadas as condições estabelecidas nesta Lei;
d) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente
por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições
estabelecidas na Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009;
e) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de
efluentes tratados para projetos cujos recursos hídricos são partes integrantes e
essenciais da atividade;
f) as atividades de pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho,
outorgadas pela autoridade competente;
g) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em
procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e
locacional à atividade proposta, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo
federal;
X - atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental:
a) abertura de pequenas vias de acesso interno e suas pontes e pontilhões,
quando necessárias à travessia de um curso d’água, ao acesso de pessoas e
animais para a obtenção de água ou à retirada de produtos oriundos das
atividades de manejo agroflorestal sustentável;
b) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e
efluentes tratados, desde que comprovada a outorga do direito de uso da água,
quando couber;
c) implantação de trilhas para o desenvolvimento do ecoturismo;
d) construção de rampa de lançamento de barcos e pequeno ancoradouro;
e) construção de moradia de agricultores familiares, remanescentes de
comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em
áreas rurais, onde o abastecimento de água se dê pelo esforço próprio dos
moradores;
f) construção e manutenção de cercas na propriedade;
g) pesquisa científica relativa a recursos ambientais, respeitados outros requisitos
previstos na legislação aplicável;
h) coleta de produtos não madeireiros para fins de subsistência e produção de
mudas, como sementes, castanhas e frutos, respeitada a legislação específica de
acesso a recursos genéticos;
i) plantio de espécies nativas produtoras de frutos, sementes, castanhas e outros
produtos vegetais, desde que não implique supressão da vegetação existente
nem prejudique a função ambiental da área;
j) exploração agroflorestal e manejo florestal sustentável, comunitário e familiar,
incluindo a extração de produtos florestais não madeireiros, desde que não
descaracterizem a cobertura vegetal nativa existente nem prejudiquem a função
ambiental da área;
k) outras ações ou atividades similares, reconhecidas como eventuais e de baixo
impacto ambiental em ato do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA ou
dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente;
Evidencia-se, assim, que houve significativas alterações no regime geral
aplicável às áreas de preservação permanente, sendo as novas disposições
sensivelmente mais permissivas que o regime jurídico aplicável pelo Código
revogado.
A par do regime jurídico geral das áreas de preservação permanente, já
bastante permissivo em comparação ao Código Florestal revogado, foi
estabelecido regime de transição pelos artigos 59 a 65, com significativa
relativização da proteção dessas áreas ambientalmente relevantes.
Registre-se, por oportuno, que os artigos 61-a a 65 da Lei n. 12.651/65
instituíram diversas hipóteses de legitimação da continuidade de obras e
atividades em áreas de preservação permanente. No entanto, diante da
amplitude do tema, tratar-se-á apenas dos artigos 59, 60, 61-A, 61-B e 63, pois
autorizam a continuidade de atividades e permanência de edificações em
áreas de preservação permanente, bem como desobrigam a recomposição
integral dessas áreas em benefício exclusivo de particulares, ao contrário dos
artigos 61-C, 62, 64 e 65, nos quais existe interesse público em sua realização,
não obstante também serem objeto de controvérsia doutrinária.
2.3 Autorização para a continuidade de atividades e edificações em
áreas de preservação permanente e dispensa da recomposição
integral dos danos ambientais: artigos 3º, IV, 59, 60, 61-A, 61-B e 63 da
Lei n. 12.651/2012
O regime de transição implementado pela Lei n. 12.651/2012 legitima a
continuidade de algumas atividades e permanência de edificações em áreas
de preservação permanente, mediante o cumprimento de alguns requisitos e
recuperação parcial de áreas de preservação permanente degradadas, sendo
necessária a análise conjunta dos artigos 3º, IV, 59, 60, 61-A, 61-B e 63 para a
compreensão sistemática do Novo Código Florestal.
O artigo 3º, IV, do Novo Código Florestal estabeleceu o conceito de área
rural consolidada como “área de imóvel rural com ocupação antrópica
preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades
agrossilvipastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio”.
O inciso XXIV do mesmo artigo define pousio como a “prática de interrupção
de atividades ou uso agrícolas, pecuários ou silviculturais, por no máximo 5
(cinco) anos, para possibilitar a recuperação da capacidade de uso ou da
estrutura física do solo”.
Foi adotada a data de 22 de julho de 2008 para a caracterização da
ocupação antrópica consolidada, sendo essa a data da edição do Decreto n.
6.514/2008, que estabeleceu o processo administrativo para apuração de
infrações ambientais, disposto na Lei de Crimes Ambientais, conforme
esclarece João Evangelista de Melo Neto.11
O mesmo autor prossegue demonstrando as consequências de se
considerar consolidadas as ocupações preexistentes a data estipulada pela Lei
n. 12.651/2012:
Dessa forma, ao se instituir a data coincidente com a edição do Dec. 6.514/2008,
ocorre uma consolidação de tudo aquilo que esteve ilegalmente perpetrado até
aquele momento, à luz da Lei de Crimes Ambientais de 1998, não se
considerando sequer as infrações regulamentadas pelo Dec. 3.179/1999
(revogado pelo Dec. 6.514/2008), que primeiramente especificou as sanções
aplicáveis às infrações a Lei de Crimes Ambientais, editada no ano anterior.
Significa, em verdade, permitir a impunidade frente aos crimes contra o ambiente,
ocorridos ao longo de uma década, de setembro de 1999 a julho de 2008.12
Paulo Affonso Leme Machado dispara crítica contundente ao conceito de
área rural consolidada:
A Área Consolidada pretende legalizar o descumprimento de normas que estava
claramente expressas na Lei 4.771/1965 e suas modificações. A insubmissão à
Lei Florestal, se fosse uma decorrência de excesso nas exigências de
conservação florestal, seria compreensível e até merecedora de perdão.
Entretanto, “perdoar não significa entender que tudo está certo e que se pode
fazer o que quiser, ainda que cause prejuízo. O perdão admissível é o que leva a
alguma reparação da falta. Legalizar uma atividade tão perigosa fere a
organização do País, pois incentiva a ilegalidade e encoraja a prática de
comportamentos desrespeitosos ao meio ambiente”.
Faltou um diálogo franco e anterior à nova lei, em que os proprietários
expusessem ao Governo Federal suas dificuldades financeiras para efetuar a
recomposição florestal das APPs. Faltou ao Governo Federal a formulação
imediata e concreta de uma política de financiamento dessa recomposição (a lei
12651 simplesmente apresenta esse financiamento como uma possibilidade),
optando o Poder Público, com o art. 61-A da Lei 12.651/2012, por diminuir as
medidas das APPs, configurando uma compensação atentatória ao direito de
todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF).13
Com efeito, dando continuidade aos objetivos de “regularização”
11MELO
NETO, João Evangelista; MILARE, Edis (Coord.); MACHADO, Paulo Afonso
Leme (Coord.); Novo código florestal: comentários à Lei 12.651, de 25 de maio de
2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto 7.830, de 7 de outubro de
2012. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 82.
12MELO NETO, 2013, p. 82.
13MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed., São Paulo,
Malheiros, 2013, p. 879-880.
estabelecidos na Lei, o artigo 59 determinou à União, Estados e ao Distrito
Federal a instituição do Programa de Regularização Ambiental – PRA de
posses e propriedades rurais, no prazo de um ano, contado a partir da
publicação da Lei, prorrogável por igual período, por ato do Chefe do Poder
Executivo, a fim de adequar esses imóveis rurais às disposições transitórias,
constantes do Capítulo XIII da Lei 12.651/2012.
Dispõe o artigo 59 da Lei em comento:
Art. 59. A União, os Estados e o Distrito Federal deverão, no prazo de 1 (um)
ano, contado a partir da data da publicação desta Lei, prorrogável por uma única
vez, por igual período, por ato do Chefe do Poder Executivo, implantar Programas
de Regularização Ambiental - PRAs de posses e propriedades rurais, com o
objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo.
§ 1o Na regulamentação dos PRAs, a União estabelecerá, em até 180 (cento e
oitenta) dias a partir da data da publicação desta Lei, sem prejuízo do prazo
definido no caput, normas de caráter geral, incumbindo-se aos Estados e ao
Distrito Federal o detalhamento por meio da edição de normas de caráter
específico, em razão de suas peculiaridades territoriais, climáticas, históricas,
culturais, econômicas e sociais, conforme preceitua o art. 24 da Constituição
Federal.
§ 2o A inscrição do imóvel rural no CAR é condição obrigatória para a adesão ao
PRA, devendo esta adesão ser requerida pelo interessado no prazo de 1 (um)
ano, contado a partir da implantação a que se refere o caput, prorrogável por uma
única vez, por igual período, por ato do Chefe do Poder Executivo.
§ 3o Com base no requerimento de adesão ao PRA, o órgão competente
integrante do Sisnama convocará o proprietário ou possuidor para assinar o
termo de compromisso, que constituirá título executivo extrajudicial.
§ 4o No período entre a publicação desta Lei e a implantação do PRA em cada
Estado e no Distrito Federal, bem como após a adesão do interessado ao PRA e
enquanto estiver sendo cumprido o termo de compromisso, o proprietário ou
possuidor não poderá ser autuado por infrações cometidas antes de 22 de julho
de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação
Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito.
§ 5o A partir da assinatura do termo de compromisso, serão suspensas as
sanções decorrentes das infrações mencionadas no § 4o deste artigo e,
cumpridas as obrigações estabelecidas no PRA ou no termo de compromisso
para a regularização ambiental das exigências desta Lei, nos prazos e condições
neles estabelecidos, as multas referidas neste artigo serão consideradas como
convertidas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do
meio ambiente, regularizando o uso de áreas rurais consolidadas conforme
definido no PRA.
Dessa forma, impediu-se a autuação das infrações ambientais desde a
publicação da Lei, no caso de supressão de vegetação em área de
preservação permanente anterior a 22 de julho de 2008, até a implantação do
Programa de Regularização Ambiental, bem como no período posterior à sua
implantação, desde a assinatura do termo de compromisso pelo proprietário ou
possuidor.
Vladmir Passos de Freitas e José Gustavo de Oliveira Franco esclarecem
que a suspensão das sanções também se estende às infrações continuadas –
não se restringindo à supressão de vegetação em área de preservação
permanente, como sugere a literalidade do dispositivo legal -, tais como
impedir ou dificultar a regeneração de vegetação nessas áreas especialmente
protegidas, decorrendo essa conclusão da interpretação sistemática da lei, em
razão do tratamento dado às áreas consolidadas (art. 3º, IV), da possibilidade
de continuidade das atividades desenvolvidas nessas áreas, bem como do
artigo 60, que suspende a punibilidade do crime previsto no artigo 48 da Lei n.
9.605/98 – Lei de Crimes Ambientais14.
O artigo 60 do Novo Código Florestal determina a suspensão da
punibilidade dos crimes previstos nos artigos 38, 39 e 48 da Lei 9.605/98,
desde a assinatura do termo de compromisso e enquanto estiver sendo
cumprido. Determina a interrupção do prazo prescricional durante o período de
suspensão (§1º), bem como a extinção da punibilidade com a efetiva
regularização (§2º).
Esses dispositivos legais vem sofrendo severas críticas da doutrina
especializada e de ambientalistas, sob o fundamento de caracterizar
verdadeira anistia aos responsáveis por degradação ambiental, mediante
simples adesão a Programa de Regularização Ambiental – PRA, a qual foi
condicionada à inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural, beneficiando
aqueles que descumpriram a lei, em detrimento daqueles que a observaram 15.
Sobre a referida anistia, Sandra Cureau e Márcia Dieguez Leuzinger
esclarecem a impropriedade e alcance dos preceitos legais:
(…) todas as ações ilegais praticadas contra o meio ambiente serão
simplesmente anistiadas, desde que o proprietário ou possuidor adira ao
Programa de Regularização Ambiental. Tal anistia abarca, nos termos do art. 34
do PL, art. 61 do PLC e art. 60 da redação final do PL (Lei n. 12.651/2012),
inclusive, atos criminosos, conforme previsto na Lei de Crimes Ambientais (Lei n.
9.605/98), como, por exemplo, destruir ou danificar floresta considerada de
preservação permanente (art. 38). São dispositivos como esses que demonstram
que os crimes praticados contra o ambiente natural e, consequentemente, contra
14FREITAS,
Vladmir Passos de et al. Novo código florestal: comentários à Lei
12.651, de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto
7.830, de 7 de outubro de 2012. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2013, p. 428.
15 Ibid., p. 427.
toda a sociedade, compensam, e muito.16
As generosas concessões do legislador não param por aí. O artigo 61-A
autorizou, nas áreas de preservação permanente, exclusivamente, a
continuidade de atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural
em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008, determinando a
recomposição parcial das áreas de preservação permanente degradadas,
variando a metragem da área a ser recuperada de acordo como tamanho da
propriedade ou posse rural.
Confira-se a redação do dispositivo legal supramencionado:
Art. 61-A. Nas Áreas de Preservação Permanente, é autorizada, exclusivamente,
a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural
em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008.
(Incluído pela Lei nº
12.727, de 2012).
§ 1o Para os imóveis rurais com área de até 1 (um) módulo fiscal que possuam
áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos
d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais
em 5 (cinco) metros, contados da borda da calha do leito regular,
independentemente da largura do curso d´água.
(Incluído pela Lei nº 12.727,
de 2012).
§ 2o Para os imóveis rurais com área superior a 1 (um) módulo fiscal e de até 2
(dois) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de
Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a
recomposição das respectivas faixas marginais em 8 (oito) metros, contados da
borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d
´água.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
o
§ 3 Para os imóveis rurais com área superior a 2 (dois) módulos fiscais e de até
4 (quatro) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de
Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a
recomposição das respectivas faixas marginais em 15 (quinze) metros, contados
da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso
d’água.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
o
§ 4 Para os imóveis rurais com área superior a 4 (quatro) módulos fiscais que
possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de
cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas
marginais:
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
I - (VETADO); e
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - nos demais casos, conforme determinação do PRA, observado o mínimo de
20 (vinte) e o máximo de 100 (cem) metros, contados da borda da calha do leito
regular.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
o
§ 5 Nos casos de áreas rurais consolidadas em Áreas de Preservação
Permanente no entorno de nascentes e olhos d’água perenes, será admitida a
manutenção de atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo ou de turismo rural,
sendo obrigatória a recomposição do raio mínimo de 15 (quinze) metros.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 6o Para os imóveis rurais que possuam áreas consolidadas em Áreas de
Preservação Permanente no entorno de lagos e lagoas naturais, será admitida a
manutenção de atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo ou de turismo rural,
16CUREAU, 2013, p. 189.
sendo obrigatória a recomposição de faixa marginal com largura mínima de:
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
I - 5 (cinco) metros, para imóveis rurais com área de até 1 (um) módulo fiscal;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - 8 (oito) metros, para imóveis rurais com área superior a 1 (um) módulo fiscal e
de até 2 (dois) módulos fiscais;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
III - 15 (quinze) metros, para imóveis rurais com área superior a 2 (dois) módulos
fiscais e de até 4 (quatro) módulos fiscais; e
(Incluído pela Lei nº 12.727, de
2012).
IV - 30 (trinta) metros, para imóveis rurais com área superior a 4 (quatro) módulos
fiscais.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 7o Nos casos de áreas rurais consolidadas em veredas, será obrigatória a
recomposição das faixas marginais, em projeção horizontal, delimitadas a partir
do espaço brejoso e encharcado, de largura mínima de:
(Incluído pela Lei nº
12.727, de 2012).
I - 30 (trinta) metros, para imóveis rurais com área de até 4 (quatro) módulos
fiscais; e
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - 50 (cinquenta) metros, para imóveis rurais com área superior a 4 (quatro)
módulos fiscais.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
o
§ 8 Será considerada, para os fins do disposto no caput e nos §§ 1o a 7o, a área
detida pelo imóvel rural em 22 de julho de 2008.
(Incluído pela Lei nº 12.727,
de 2012).
§ 9o A existência das situações previstas no caput deverá ser informada no CAR
para fins de monitoramento, sendo exigida, nesses casos, a adoção de técnicas
de conservação do solo e da água que visem à mitigação dos eventuais
impactos.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 10. Antes mesmo da disponibilização do CAR, no caso das intervenções já
existentes, é o proprietário ou possuidor rural responsável pela conservação do
solo e da água, por meio de adoção de boas práticas agronômicas.
(Incluído
pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 11. A realização das atividades previstas no caput observará critérios técnicos
de conservação do solo e da água indicados no PRA previsto nesta Lei, sendo
vedada a conversão de novas áreas para uso alternativo do solo nesses
locais.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 12. Será admitida a manutenção de residências e da infraestrutura associada
às atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural, inclusive o
acesso a essas atividades, independentemente das determinações contidas no
caput e nos §§ 1o a 7o, desde que não estejam em área que ofereça risco à vida
ou à integridade física das pessoas.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 13. A recomposição de que trata este artigo poderá ser feita, isolada ou
conjuntamente, pelos seguintes métodos:
(Incluído pela Lei nº 12.727, de
2012).
I - condução de regeneração natural de espécies nativas;
(Incluído pela Lei nº
12.727, de 2012).
II - plantio de espécies nativas;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
III - plantio de espécies nativas conjugado com a condução da regeneração
natural de espécies nativas;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
IV - plantio intercalado de espécies lenhosas, perenes ou de ciclo longo, exóticas
com nativas de ocorrência regional, em até 50% (cinquenta por cento) da área
total a ser recomposta, no caso dos imóveis a que se refere o inciso V do caput
do art. 3o;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
V - (VETADO).
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 14. Em todos os casos previstos neste artigo, o poder público, verificada a
existência de risco de agravamento de processos erosivos ou de inundações,
determinará a adoção de medidas mitigadoras que garantam a estabilidade das
margens e a qualidade da água, após deliberação do Conselho Estadual de Meio
Ambiente ou de órgão colegiado estadual equivalente.
(Incluído pela Lei nº
12.727, de 2012).
§ 15. A partir da data da publicação desta Lei e até o término do prazo de adesão
ao PRA de que trata o § 2 o do art. 59, é autorizada a continuidade das atividades
desenvolvidas nas áreas de que trata o caput, as quais deverão ser informadas
no CAR para fins de monitoramento, sendo exigida a adoção de medidas de
conservação do solo e da água.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 16. As Áreas de Preservação Permanente localizadas em imóveis inseridos
nos limites de Unidades de Conservação de Proteção Integral criadas por ato do
poder público até a data de publicação desta Lei não são passíveis de ter
quaisquer atividades consideradas como consolidadas nos termos do caput e dos
§§ 1o a 15, ressalvado o que dispuser o Plano de Manejo elaborado e aprovado
de acordo com as orientações emitidas pelo órgão competente do Sisnama, nos
termos do que dispuser regulamento do Chefe do Poder Executivo, devendo o
proprietário, possuidor rural ou ocupante a qualquer título adotar todas as
medidas indicadas.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 17. Em bacias hidrográficas consideradas críticas, conforme previsto em
legislação específica, o Chefe do Poder Executivo poderá, em ato próprio,
estabelecer metas e diretrizes de recuperação ou conservação da vegetação
nativa superiores às definidas no caput e nos §§ 1o a 7o, como projeto prioritário,
ouvidos o Comitê de Bacia Hidrográfica e o Conselho Estadual de Meio
Ambiente.
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 18. (VETADO).
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
Houve substancial redução, portanto, da proteção incidente sobre as áreas
de preservação permanente, na medida em que foi dispensada a
recomposição integral das áreas degradadas, levando em conta o tamanho da
propriedade ou posse rural, desconsiderando-se, por completo, os argumentos
científicos que justificam a proteção dessas áreas ambientalmente relevantes.
Em propriedades com até 01 (um) módulo fiscal, a área de preservação
permanente na margem de cursos d'água poderá se restringir a 05 (cinco)
metros, contados da calha do leito regular (§1º).
Sobre a redução da área de preservação a ínfimos cinco metros,
transcreve-se importante apontamento realizado por Sandra Cureau e Marcia
Dieguez Leuzinger:
Como se pode perceber da simples leitura dos dispositivos mencionados, a MP
571/2012, convertida na lei n. 12.727/2012, apesar dos vetos, diminui, e muito, a
necessidade de recuperação das APPs ripárias e daquelas situadas ao redor de
lagos e lagoas naturais inseridas dentro das chamadas áreas rurais consolidadas.
A menção a 5 metros de vegetação chega às raias do absurdo, pios não é sequer
suficiente, em muitos casos, para abrigar raízes e copas de árvores.17
Qual à extensão da autorização para a continuidade das atividades
17CUREAU;
2013, p. 170.
agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural, em área de preservação
permanente, Paulo Affonso Leme Machado confere a seguinte interpretação:
As atividade de ecoturismo e de turismo rural podem ensejar o caminhar pelas
APP. Dependerá de uma prudente regulamentação, para que se evite excesso de
pessoas numa mesma área e para que impeçam procedimentos incorretos, como
lançamentos de rejeitos ou resíduos. Necessário acentuar que um turismo
ecológico não pode pretender instalar hotéis e restaurantes em APP, porque está
“vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos” que
justificam a proteção desses espaços protegidos e de seus componentes (art.
225, §1º, III, da CF).18
No entanto, o décimo segundo parágrafo do artigo 61-A expressamente
admite a manutenção de residências e infraestrutura associada às atividades
agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural, condicionando-as apenas
à inexistência de risco à vida ou à integridade física das pessoas. Esse
dispositivo está em consonância com o conceito de área rural consolidada,
constante do artigo 3º, IV, que se refere expressamente à existência de
benfeitorias e edificações nas áreas consolidadas, integrando o pacote de
anistias da Lei n. 12.651/2012.
A recuperação das áreas de preservação permanente degradadas em
data anterior a 22 de julho de 2008 podem ser ainda menores do que previsto
no artigo 61-A, pois o artigo 61-B trouxe mais um limite à recomposição dessas
áreas:
Art. 61-B. Aos proprietários e possuidores dos imóveis rurais que, em 22 de julho
de 2008, detinham até 10 (dez) módulos fiscais e desenvolviam atividades
agrossilvipastoris nas áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente
é garantido que a exigência de recomposição, nos termos desta Lei, somadas
todas as Áreas de Preservação Permanente do imóvel, não ultrapassará:
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
I - 10% (dez por cento) da área total do imóvel, para imóveis rurais com área de
até 2 (dois) módulos fiscais;
(Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - 20% (vinte por cento) da área total do imóvel, para imóveis rurais com área
superior a 2 (dois) e de até 4 (quatro) módulos fiscais.
Assim, quem detinha até 10 (dez) módulos fiscais e desenvolvia atividades
agrossilvipastoris, não irá recuperar mais do que 10% (dez por cento) da área
total do imóvel, para imóveis rurais com até 02 (dois) módulos fiscais, ou 20%
(vinte por cento) da área total, para imóveis rurais com área superior 2 (dois) e
de até 04 (quatro) módulos fiscais.
O artigo 61-B é fruto da MP 571/2012, convertida na Lei n. 12.727/2012,
18MACHADO,
2013, p. 881.
visando a suprir a lacuna decorrente do veto da Presidenta da República a
dispositivos que tratavam da matéria. Entretanto, a redação atual acabou
sendo mais nociva do que a redação dos dispositivos vetados, valendo a pena
transcrever trecho esclarecedor da obra de Sandra Cureau e Macia Dieguez
Leuzinguer:
O §6º do art. 62 do PLC e §5º do art. 61 da redação final do PL (Lei 12. 651/2012
– vetado) ainda permitiam, para os imóveis rurais de agricultura familiar e os que,
até 22/07/2008, detinham até quatro módulos fiscais, a garantia de que a
exigência de recomposição, somadas as áreas das demais Áreas de Preservação
Permanente, não ultrapassaria o limite da Reserva Legal estabelecida para o
imóvel. Ou seja, com exceção das áreas de floresta e cerrado amazônicos, a
recomposição não poderia ultrapassar, somando-se as demais APP's, a 20% da
propriedade.
O dispositivo foi vetado, e a MP 571/2012, convertida na Lei n. 12.727/2012,
inseriu, então, o art. 61-B, que consegue ser ainda mais nocivo à proteção
ambiental.
Na mesma linha, em relação às áreas rurais consolidadas em encostas,
topos de morro, chapadas e altitudes maiores que 1.800 metros – áreas de
preservação permanente previstas nos incisos V, VIII, IX e X do artigo 4º -, o
artigo 63 admitiu a manutenção de atividades florestas, culturas de espécies
lenhosas, perenes ou de ciclo longo, bem como de infraestrutura física
associada ao desenvolvimento de atividades agrossilvipastoris, vedada a
conversão de novas áreas para uso alternativo do solo. Foi estabelecido que o
pastoreio extensivo nestas áreas deverá ficar restrito às áreas de vegetação
campestre natural ou já convertidas para vegetação campestre, admitindo-se o
consórcio com vegetação lenhosa perene ou de ciclo longo (§1º).
Condicionou-se a manutenção de culturas e da infraestrutura correspondente à
adoção de práticas conservacionistas do solo e da água indicadas pelos
órgãos de assistência técnica rural (§2º). Por fim, admitiu-se, nas áreas de
preservação permanente nas bordas de tabuleiros ou chapadas (art. 4º, VIII),
em relação aos imóveis rurais com até 04 (quatro) módulos fiscais, no âmbito
do PRA, a partir de boas práticas agronômicas e de conservação do solo e da
água, mediante deliberação dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente ou
órgãos colegiados estaduais equivalentes, a consolidação de outras atividades
agrossilvipastoris, ressalvadas as situações de risco de vida.
Saliente-se que essas áreas “são importantes para a manutenção da
estabilidade do solo, pois estes locais possuem uma tendência maior para
sofrer desbarrancamentos e deslizes de terra”19. Em razão da relevância
ambiental para a estabilidade dos solo e as recentes tragédias ocorridas em
regiões serranas, tal como a do Rio de Janeiro, no início de 2010, existe
grande receio quanto a essa autorização legal, daí por que Walter José Senise
e Marina Montes Bastos advertem:
[…] Trata-se de análise que deverá ser feita com bastante cuidado, a fim de não
colocar em risco a análise a população e o meio ambiente local, e deverá ser
seguida de uma fiscalização ativa para verificar se as práticas conservacionistas
estão realmente sendo implantadas.20
Prosseguem os citados autores, deixando claro que a liberalidade do
legislador dispensou, por completo, a recomposição das áreas de preservação
permanente degradadas, sendo ainda mais nocivo do que o artigo 61-A:
Por fim, cumpre destacar que, ao contrário do que ocorre no art. 61-A, não se
determinam neste artigo faixas mínimas que deverão ser obrigatoriamente
recuperadas; para estas Áreas de Preservação Permanente de encostas, topos
de morros, chapadas e altitudes, determinadas atividades podem continuar sendo
desenvolvidas sem que com isto suja a obrigação de recompor a mata nativa,
nem mesmo parcialmente. Apenas é exigido, como já dito, que sejam adotadas
medidas de conservação do solo e da água. Resta saber se os órgãos
ambientais, no âmbito do Programa de Regularização Ambiental, vão fazer
alguma espécie de exigência adicional neste sentido.
Não há dúvidas, assim, que as disposições constantes dos artigos 3º, IV,
59, 60, 61-A, 61-B e 63 da Lei n. 12.651/2012 reduziram, e muito, a proteção
incidente sobre as áreas de preservação permanente, em comparação ao
Código Florestal revogado.
Dessa forma, imprescindível analisar a compatibilidade desses artigos com
o regime jurídico ambiental instituído pela Constituição da República de 1988,
com as principais convenções internacionais firmadas pelo Estado brasileiro na
matéria, bem como em relação ao princípio da proibição de retrocesso
ambiental – notadamente seu conteúdo, aplicabilidade e limites -, para, em
seguida, concluir-se acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade
desses dispositivos legais.
3. Direito fundamental à proteção do meio ambiente na Constituição
19SENISE,
Walter José, et al. Novo código florestal: comentários à Lei 12.651, de 25
de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto 7.830, de 7 de
outubro de 2012. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2013, p. 454.
20 Ibid., p. 455.
de 1988, o princípio da proibição de retrocesso ambiental e status
normativo dos tratados internacionais de direitos humanos
3.1 Direito fundamental à proteção do meio ambiente na Constituição
de 1988
A Constituição da República de 1988 dedicou especial atenção ao meio
ambiente, reservando o capítulo IV do título VIII, referente à Ordem Social,
para tratar do tema, além de diversos outros dispositivos esparsos em seu
texto, que consagram a proteção ambiental, sendo a primeira Constituição
brasileira a utilizar a expressão “meio ambiente”. 21
Estabeleceu, no artigo 225, “caput”, que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Assim, foi dada “uma nova dimensão ao conceito de 'meio ambiente' como
'bem de uso comum do povo'” (grifos no original). 22 Aliás, a locução “'todos têm
direito' cria um direito subjetivo, oponível 'erga omnes', que é completado pelo
direito ao exercício da ação popular (art. 5º, LXXIII, da CF) (grifos no original). 23
Trata-se, portanto, de um direito transindividual, pois “[…] apesar de pertencer
a cada indivíduo, é de todos ao mesmo tempo e, ainda, das futuras gerações”.
24
Nesse sentido, leciona Dirley da Cunha Júnior:
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido pela
Constituição Federal em capítulo situado no título da ordem social, é um direito
fundamental, na categoria direito social, qualificado pela doutrina como direito de
terceira geração. Nem por isso se lhe negue caráter, também, individual, uma vez
que a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada
à sua realização social, por isso mesmo considerado transindividual.25
Paulo Affonso Leme Machado, por sua vez, evidencia os reflexos das
disposições constitucionais na propriedade privada, ao instituir a função social
21
MACHADO, 2013, p. 150.
Ibid, p. 155.
23 Ibid, p. 151.
24 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed., atual. e ampl., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 1203.
25JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de direito constitucional. 5. ed., Salvador:
Juspodivm, 2011, p. 1259.
22
e ambiental, bem como esclarece as características e o resultado da
concepção do meio ambiente como bem difuso:
A Constituição, em seu art. 225, deu uma nova dimensão ao conceito de “meio
ambiente” como bem de uso comum do povo. Não elimina o conceito antigo, mas
o amplia. Insere a função social e a função ambiental da propriedade (art. 5º,
XXIII, e 170, III e VI) com bases de gestão do meio ambiente, ultrapassando o
conceito de propriedade privada e pública.
O Poder Público passa a figurar não como proprietário de bens ambientais – das
águas e da fauna -, mas como um gestor ou gerente, que administra bens que
não são dele e, por isso, deve explicar convincentemente sua gestão. A aceitação
dessa concepção jurídica vai conduzir o Poder Público a melhor informar, a
alargar a participação da sociedade civil na gestão dos bens ambientais e a ter
que prestar contas sobre a utilização dos bens “de uso comum do povo”,
concretizando um “Estado Democrático e Ecológico de Direito” (artigo 1º, 170 e
225).26
Fácil perceber, então, que o direito ambiental é vocacionado para a defesa
de direitos pluriindividuais, chamados de interesses difusos pela doutrina,
tendo origem na “[…] doutrina italiana a construção e a teorização mais
profunda e rica sobre a noção de interesse difuso, particularmente a Massimo
Severo Giannini”.27
A Constituição da República consagrou, expressamente, o princípio da
equidade intergeracional - também denominado princípio do desenvolvimento
sustentável ou princípio da responsabilidade entre gerações - ao determinar a
preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações,
significando que deve ocorrer o acesso equitativo aos elementos ambientais
necessários à uma boa qualidade de vida, tanto no espaço – entre gerações
presentes, sem discriminação -, quanto no tempo - com relação as gerações
vindouras -, conferindo juridicidade ao valor da alteridade, em nítida
conformação do fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da
pessoa humana (artigo 1º, III).28
Esclarecedor o conceito desenvolvido por Celso Antonio Pacheco Fiorillo
sobre o princípio em questão:
Dessa forma, o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a
manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas
atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e
destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham
oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa
disposição.29
26 MACHADO, op. cit., p. 155.
27MACHADO, 2013, p. 1260.
28CUREAU, 2013, p. 56-57.
29FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 6. ed.,
Sobre a sua importância, conclui o autor:
Como se percebe, o princípio possui grande importância, porquanto numa
sociedade desregrada, à deriva de parâmetros de livre concorrência e iniciativa, o
caminho inexorável para o caos ambiental é uma certeza. Não há dúvida de que
o desenvolvimento econômico também é um valor precioso da sociedade.
Todavia, a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico devem
coexistir, de modo que aquela não acarrete anulação deste.30
Diante da previsão constitucional, o meio ambiente ecologicamente
equilibrado foi erigido à categoria de direito fundamental e, portanto,
indisponível, decorrendo essa característica da equidade intergeracional.
Consequência disso é um dever jurídico e de natureza constitucional - não
apenas moral – de preservar o patrimônio ambiental para as futuras gerações.
31
Para assegurar o direito ao meio ambiente equilibrado, a Constituição da
República, no §1º do artigo 225, incumbiu expressamente o Poder Público a
preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas (inciso I); preservar a diversidade e a
integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas
à pesquisa e manipulação de material genético (inciso II); definir, em todas as
unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas
somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a
integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (inciso III); exigir, na
forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora
de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade (inciso IV); controlar a produção, a
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que
comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (inciso V);
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente; proteger a
fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco
ampl., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 27-28.
30Ibid, p. 28.
31MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina
jurisprudência, glossário. 6. ed., rev. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009,
p. 156-157.
sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais a crueldade (inciso VII).
As obrigações impostas ao Poder Público e à sociedade encontram
fundamento na teoria dos deveres fundamentais, no sentido de que a um
direito fundamental corresponde um dever com idêntica característica,
podendo ser mais ou menos explícito na Constituição da República, daí por
que existem deveres fundamentais implícitos 32.
Merecem destaque as obrigações impostas ao Poder Públicos §1º do
artigo 225 da Constituição Federal, as quais deixam claro que cabe ao Poder
Público não apenas prestações negativas, no sentido de não degradar ou
impedir a degradação ambiental, mas especialmente a adoção de medidas
concretas para o equilíbrio ecológico, através da restauração dos processos
ecológicos essenciais, definição de espaços territoriais a serem especialmente
protegidos, exigência de estudo prévio de impacto ambiental para a instalação
de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação
ambiental e a adoção de medidas administrativas eficientes para evitar a
poluição, dentre outras.
De acordo com José Afonso da Silva apud Paulo Affonso Leme Machado,
a obrigação de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, em
razão da dificuldade jurídica e científica em sua definição, deve adotar o
conceito da União Internacional de Conservação da Natureza, que afirma que:
“os processos ecológicos essenciais são os governados, sustentados ou
intensamente afetados pelos ecossistemas, sendo indispensáveis à produção de
alimentos, à saúde e a outros aspectos da sobrevivência humana e do
desenvolvimento sustentado”.33
Aliás, “restaurar” tem o significado de restabelecer o que existia
anteriormente, ou seja, os processos ecológicos essenciais, a fim de propiciar
um meio ambiente sadio, tal como definido na Lei Fundamental, daí por que
inadmissível relativizações de disposições constitucionais que visam a
assegurar direitos humanos fundamentais. No ponto, vale a pena conferir a
advertência formulada por Paulo Affonso Leme Machado:
O Poder Público e a coletividade deverão defender e preservar o meio ambiente
desejado pela Constituição, e não qualquer meio ambiente. O meio ambiente a
32NOVELINO,
Marcelo. Direito constitucional. 4. ed., rev., atual. e ampl., Rio de
Janeiro: Método, 2010, p. 357-358.
33MACHADO, 2013, p. 163.
ser defendido e preservado é aquele ecologicamente equilibrado. Portanto,
descumprem a Constituição tanto o Poder Público como a coletividade, quando
permitem ou possibilitam o desequilíbrio do meio ambiente.34
O fiel cumprimento dessas obrigações é essencial para a perpetuidade da
vida no planeta Terra, tendo em vista a interação integrada “[...] das espécies
da fauna, da flora, dos mircoorganismos, da água, do solo, do subsolo, do
lençol freático, dos rios, das chuvas, do clima etc”. 35
A exigência do estudo de impacto ambiental decorre do princípio da
prevenção, pelo qual devem ser adotadas medidas concretas para evitar a
ocorrência de danos ambientais, uma vez que esses danos, em regra, são de
difícil ou impossível reparação, ou seja, dificilmente é possível retornar o meio
ambiente agredido ao “status quo ante”. Esclareça-se, ainda, que o referido
princípio não tem função exclusivamente acauteladora, mas também de
planejamento, determinando a adoção de políticas públicas ambientais,
através de planos obrigatórios, tal como ocorre em relação a recursos hídricos
(Lei 9.433/1997), saneamentos básico (Lei 11.445/2007), resíduos sólidos (Lei
12.305/2010) e segurança de barragens (Lei 12.334/2010). 36
Romeu Thomé traz importante definição do princípio da prevenção:
O princípio da prevenção é orientador no Direito Ambiental, enfatizando a
prioridade que deve ser dada às medidas que previnam (e não simplesmente
reparem) a degradação ambiental. A finalidade ou objetivo final do princípio da
prevenção é evitar que o dano possa chegar a produzir-se. Para tanto,
necessário faz adotar medidas preventivas.37
Não obstante alguns autores os tratarem como sinônimos, a exemplo do
consagrado Édis Milaré, modernamente tem-se entendido que o princípio da
prevenção se diferencia do princípio da precaução, constante do princípio 15
da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, porquanto o primeiro pressupõe a
certeza científica do dano, ao passo que o segundo se refere aos casos de
ausência de certeza científica formal. Assim, o princípio da precaução sustenta
que a ausência de certeza científica formal não deve servir de pretexto para
postergar a adoção de medidas de proteção ambiental, limitando-se sua
aplicação aos casos de danos graves e irreversíveis. 38
34Ibid.,
p. 158.
35SIRVINSKAS,
2008, p. 74.
2013, p. 123.
37SILVA, Romeu Faria Thomé da, 2011, p. 68.
38Ibid., p. 69-70.
36MACHADO,
Registre-se, por oportuno, que o princípio da precaução foi adotado por
duas convenções internacionais ratificadas e promulgadas pelo Brasil, quais
sejam, a Convenção sobre Diversidade Biológica e Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Mudança do Clima, não tendo sido exigido, na primeira,
a ameaça de dano sério ou irreversível para justificar a aplicação do princípio,
bastando “[...] haver ameaça de sensível redução de diversidade biológica ou
ameaça sensível de perda de diversidade biológica.” 39
Não se pode confundir a inexistência de certeza científica com o
desconhecimento da extensão do dano, pois no último caso o dano e seus
efeitos são conhecidos pela ciência, havendo apenas dúvidas quanto às
proporções dele.
Interessante exemplo para distinguir os princípios é fornecido por Sandra
Cureau e Marcia Dieguez Leuzinger:
Todavia, como adverte Figueiredo (2012), não se pode confundir incerteza
científica com incerteza em relação à extensão do dano. O exemplo fornecido
pelo autor diz respeito à identificação de um caso apenas de gripe aviária, que
venha a acarretar decisão da Administração Pública de sacrificar todos os frangos
encontrados naquela região. Nesse caso, a incerteza para apenas sobre a
proporção que a doença pode adquirir, mas não sobre os seus efeitos sobre a
saúde humana e animal.40
Quanto a casos práticos de incidência do princípio da precaução, as
autoras mencionam a liberação de organismos geneticamente modificados no
ambiente e a construção de estações radiobase de telefonia móvel:
Exemplo clássico de precaução é o da liberação de organismos geneticamente
modificados no ambiente, em que não se tem certeza das consequências seja
para a saúde humana, seja para o ambiente natural. Paira incerteza também
sobre a construção de estações radiobase de telefonia móvel, face à emissão de
radiações não ionizantes geradas. Entretanto, a ausência de certeza científica
não pode servir como fundamento para a liberação da atividade, pois os danos ao
meio ambiente são, em geral, irreversíveis, o que determina cuidados com
qualquer tipo de ação que possa eventualmente provocar alterações prejudiciais
aos elementos que o compõem. Daí o fundamento para a inversão do ônus da
prova, cabendo ao empreendedor o ônus de provar que sua atividade não é
poluidora.41
Aliás, Guilherme José Purvin de Figueiredo apud Sandra Cureau e Marcia
Dieguez Leuzinger sustenta que, em razão da constante evolução do princípio
da precaução – que pressupõe incerteza científica sobre a existência de dano
39MACHADO,
op. cit., p. 101-102.
2013, p. 52.
41Ibid., p. 52.
40CUREAU,
ambiental -, deve-se aplicar a “Melhor Tecnologia Disponível” (Best Avaliable
Technology – BAT)” para avaliação de impactos ambientais, visando a sua
identificação,
atentando-se
para
as
condições
socioeconômicas
de
determinada região/país.42 Assim, “o custo excessivo deve ser ponderado de
acordo com a realidade econômica de cada País, pois a responsabilidade
ambiental é comum a todos os países, mas diferenciada”. 43
Não há dúvidas, portanto, que o Estudo de Impacto Ambiental - RIMA e o
Relatório de Impacto Ambiental – RIMA são os principais instrumentos para
implementar os princípios da prevenção e precaução. 44
Ao determinar ao Estado o controle da produção, comercialização e
emprego de técnicas que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o
meio ambiente (artigo 225, V), a Constituição consagrou os fundamentos para
a gestão dos riscos em matéria ambiental, que deve ser tanto preventivo
quanto repressivo.45
Sobre a gestão ambiental de riscos, Romeu Thomé afirma que:
Cabe ao Estado, através do exercício do seu poder de polícia, fiscalizar os
particulares quanto aos limites em usufruir o meio ambiente conscientizando-os
sobre a importância de observar sempre o bem estar da coletividade, como
também promover termos de ajustamento de conduta, visando colocar termo às
atividades nocivas.46
Foi adotada a metodologia das medidas liminares para estabelecer o
critério de antecipação da ação administrativa eficiente, ou seja, a Constituição
elegeu o “periculum in mora” para legitimar a proteção ambiental, podendo-se
extrair do preceito constitucional importante manifestação, ao menos implícita,
do princípio da precaução.
O combate à poluição em qualquer de suas formas é competência material
comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, VI), sendo a
competência legislativa concorrente entre os referidos entes federativos (art.
24, VI).47
O Poder Público foi incumbido de proteger a fauna e a flora, vedadas, na
forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
42Ibid.,
p. 53.
43MACHADO,
2013, p. 110.
op.cit., p. 53.
45SILVA, Romeu Faria Thomé da, 2011, p. 146.
46Ibid., p. 146.
47MACHADO, 2013, p. 165.
44CUREAU,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os os animais à crueldade,
tratando-se de mais uma importante manifestação dos princípios da prevenção
e precaução.
Dessa forma, a Constituição impõe a proibição de práticas que coloquem
em risco a fauna e a flora, que tem função ecológica, pois, quando se chega a
uma situação de irreversibilidade, nada mais se pode fazer. 48
Ademais, foi imposta constitucionalmente a obrigação de reparar os danos
causados ao meio ambiente (§§ 2º e 3º do artigo 225), bem como a
responsabilização civil, penal e administrativa, de forma independente, além de
consagrar expressamente a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em
relação à mineração, foi taxativa ao determinar a reparação do dano ambiental,
pois a atividade é potencialmente poluidora, sendo presumida a existência do
dano a ser reparado.
A responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva, nos termos do
artigo 14, §1°, da Lei n. 6.938/1981, bastando a presença do nexo causal entre
a lesão e uma determinada atividade. Tal modalidade de responsabilidade, é
inadmissível na esfera penal, que necessita de dolo ou culpa. 49
Quanto à responsabilidade administrativa, alguns autores entendem tratarse de responsabilidade subjetiva, dependendo de comprovação de dolo ou
culpa para do agente para sua caracterização. No entanto, nos termos do
artigo 70 da Lei n. 9.605/98, a responsabilidade administrativa decorre de “toda
ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção,
proteção e recuperação do meio ambiente”, daí por que parece ser mais
acertada a posição de que se trata de responsabilidade objetiva, bastando a
conduta omissiva ou comissiva e o nexo causal para o surgimento do dever de
reparar o dano ambiental. Inexiste, porém, na seara administrativa a mesma
tipicidade do ilícito penal, pois apesar de definidas em lei, essa definição não
ocorre com a mesma precisão do tipo penal. 50
Nesse sentido, Sandra Cureau e Marcia Dieguez Leuzinger:
Muito se tem discutido acerca da natureza dessa espécia de responsabilidade.
Enquanto autores como Heraldo Vitta e Fábio Osório defendem tratar-se de
responsabilidade subjetiva, dependente, por isso, de comprovação de dolo ou
culpa do agente para sua caracterização, Régis de Oliveira, Flávio Dino, Paulo
48Ibid.,
p. 166.
2009, p. 180-181.
50CUREAU, 2013, p. 306.
49MILARÉ,
Affonso Leme Machado, Vladimir Passos de Freitas e Daniel Ferreira, ao
contrário, entendem construir responsabilidade objetiva (Marchesan et alii, 2007),
posição esta, a nosso ver, mais acertada.51
Saliente-se, também, que a Constituição Federal conferiu tratamento
peculiar a cinco macrorregiões do País, objetivando um regime diferenciado de
proteção a cinco biomas brasileiros de particular importância, estabelecendo
que a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal MatoGrossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, determinando sua
utilização dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. O dispositivo visa a
evitar a fragmentação dessas regiões, de forma a conferir-lhes proteção global,
orientação essa fundada em bases científicas. Não se trata, assim, de
reconhecer a propriedade da União sobre esses biomas, conforme decidido
pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 134.297/SP, DJU
de 22.09.1995, Relator Ministro Celso de Mello, pois assegurado o direito de
propriedade pela Constituição, tratando-se, na verdade, de bens de interesse
público, a que se sujeitam tanto bens particulares quanto os pertencentes a
entidades públicas. Podem os proprietários, inclusive, utilizar os recursos
naturais existentes naquelas áreas, de acordo com as prescrições legais
destinadas à preservação ambiental.52
A Constituição também estipulou a indisponibilidade das terras devolutas
ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à
proteção de ecossistemas naturais. Assim, integram a categoria de bens
públicos de uso especial, pois afetados à destinação pública por expressa
disposição constitucional, diferenciando-as das terras devolutas que não
possuem essa finalidade, que integram a categoria de bens dominicais e,
portanto, disponíveis.53 As terras devolutas necessárias à proteção de
ecossistemas integram o patrimônio da União, nos termos do artigo 20, II, da
Constituição da República.
A necessidade de lei federal autorizar a localização de usinas que operem
com reator nuclear, sob pena de não poderem ser instaladas, está em plena
sintonia com o viés preventivo do direito ambiental (artigo 225, §6º, da
51Ibid.,
p. 306.
2009, p. 184.
53SILVA, Romeu Faria Thomé da, 2011, p. 152-153.
52MILARÉ,
Constituição Federal).
A par do dispositivo constitucional específico para tratar do meio ambiente,
a Constituição tratou do meio ambiente cultural nos artigos 215 e 216.
Estabeleceu, também, a função social da propriedade no artigo 5º, XXIII, de
modo geral, especificando o atendimento da função social da propriedade
urbana (artigo 182, §2º) e rural (artigo 186), além de afirmar como princípios da
ordem econômica a função social da propriedade e a defesa do meio
ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação.
Essa breve síntese do regime constitucional do meio ambiente visa apenas
demonstrar a preocupação com o desenvolvimento sustentável, bem como
evidenciar
às
diversas
prescrições
impostas
ao
legislador
e
aos
administradores para a efetiva implementação de um regime jurídico de
proteção do meio ambiente, em todos os seus aspectos (natural, artificial,
cultural etc), centrado primordialmente nos princípios da prevenção e
precaução de danos ambientais. Assim, surge um dever jurídico de
implementação pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade, em razão da
supremacia da Constituição.
3.2 Princípio da proibição de retrocesso ambiental
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é reconhecido
como um direito humano fundamental de terceira dimensão, baseado na
solidariedade intergeracional, daí resultando a preocupação com retrocessos
na legislação que, em última análise, poderiam conduzir à inefetividade das
normas constitucionais anteriormente analisadas. Assim, o direito ambiental
não pode ficar a mercê de interesses ocasionais, pois a própria vida no planeta
– ao menos a vida com um mínimo de qualidade – poderia ser comprometida
em casos de retrocessos nessa seara, em detrimento da segurança jurídica e
da supremacia da Constituição da República.
Após intenso processo histórico de reconhecimento de direitos, o momento
atual indica a necessidade de efetiva implementação dos direitos proclamados,
notadamente
em
nível
constitucional,
sob
pena
de
inefetividade
e
consequente ausência de credibilidade no sistema jurídico, em prejuízo da sua
finalidade, a pacificação social.
Ademais, tratando-se de normas constitucionais que asseguram direitos
humanos fundamentais, que visam justamente a implementar o princípio da
dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil
(artigo 1º, III, da Constituição Federal),
essa preocupação é ainda mais
acentuada.
O princípio da proibição de retrocesso surgiu, inicialmente, no âmbito dos
direitos sociais, como decorrência da obrigação de implementação progressiva
desses direitos, tal como prevista no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, além de seu reconhecimento como princípio constitucional implícito.
Flávia Piovesan tece importante contribuição para a compreensão do
princípio em comento:
[…] Da obrigação da progressividade na implementação dos direitos econômicos,
sociais e culturais decorre a chamada cláusula de proibição do retrocesso social,
na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo da implementação
desses direitos. Vale dizer, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e
culturais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à
garantia de tais direitos.54
Continua a autora sustentando a acionabilidade dos direitos sociais,
econômicos e culturais que, obviamente, também contempla a possibilidade de
intervenção judicial para corrigir eventuais retrocessos nessa seara:
Quanto ao debate sobre a acionabilidade dos direitos sociais, econômicos e
culturais, compartilha-se da visão de que a “insistência de que as Cortes são
incompetentes para tratar de políticas sociais parece ignorar a sua histórica e
contínua intervenção nesta área. As Cortes criam políticas sociais não apenas
quando interpretam a Constituição, mas também quando interpretam legislações
de Direito econômico, trabalhista e ambientalista, dentre outras, assim como em
suas resoluções em disputas privadas”.55 (grifo do autor)
Com efeito, Antônio Herman Benjamin traz sólidos fundamentos sobre a
necessidade de garantir-se segurança jurídica para a proteção de direitos
humanos, com ênfase na tutela do meio ambiente:
Nunca é demais recordar que vivemos em uma era de consolidação e afirmação
de direitos proclamados, que repele a instituição teatral e o uso ornamental das
normas, constitucionais ou não. Na mesma linha, também se mostra incompatível
com a pós-modernidade, que enfatiza a dignidade da pessoa humana, a
solidariedade e a segurança jurídica das conquistas da civilização, transformar
direitos humanos das presentes gerações e garantias dos interesses dos nossos
54PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.
10. ed., rev. e atual., São Paulo:Saraiva, 2009, p. 180-181.
55Ibid., p. 182.
pósteros num ioiô legislativo, um acordeão desafinado e imprevisível, que ora se
expande, ora se retrai. Essa uma preocupação que domina vários campos do
Direito e ganha centralidade na tutela do meio ambiente.56
Para garantia da segurança jurídica na proteção ambiental, bem como da
equidade intergeracional, vem sendo construído o princípio da proibição de
retrocesso ambiental:
Em tal contexto crescentemente se afirma o princípio da proibição de retrocesso,
sobretudo quanto ao chamado núcleo legislativo duro do arcabouço do Direito
Ambiental, isto é, os direitos e instrumentos diretamente associados à
manutenção do “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e dos “processos
ecológicos essenciais”, plasmados no art. 225 da Constituição de 1988.57
Em se tratando o direito ambiental de um direito fundamental, o princípio
em análise sustenta que as garantias de proteção ambiental, após
consagradas, não podem retroceder para níveis inferiores de proteção, sem
que as circunstâncias de fato tenham sido substancialmente alteradas. Buscase, portanto, obstar medidas legislativas e executivas que diminuam a proteção
ambiental, o que não significa a impossibilidade de alterações legislativas.
Dessa
forma,
seriam
admitidas
somente
alterações
legislativas
que
instituíssem garantias de proteção ambiental com eficácia similar. 58
Sandra Cureau e Marcia Dieguez Leuzinger ensinam que:
Sendo obrigação do Poder Público e da coletividade, inserta na CF/1988, a
proteção e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as
presentes e para as futuras gerações, estaria fora do alcance das decisões
políticas a disposição sobre questões que conduziriam a um retrocesso dessa
proteção, em detrimento da qualidade de vida daqueles que ainda nem sequer
nasceram.59
Sustenta-se que o princípio da proibição de retrocesso ambiental é um
princípio constitucional implícito, decorrente do Estado Socioambiental e de
Direito, centrado no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como do
princípio da segurança jurídica e seus consectários (princípio da proteção da
confiança e garantias constitucionais do direito adquirido, coisa julgada e ato
jurídico perfeito), além de referir-se aos limites materiais de reforma
constitucional, previstos no artigo 60, §4º, da Constituição Federal, de modo a
56BENJAMIN,
Antônio Herman. Princípio da proibição de retrocesso ambiental, p.
55. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso em: 08
jul. 2013.
57BENJAMIM, loc. cit.
58SILVA, Romeu Faria Thomé da, 2011, p. 88-89.
59CUREAU, 2013, p. 57.
evitar a afronta a direitos constitucionalmente estabelecidos por atos e
medidas que constituam retrocesso no âmbito de proteção. Ademais, ao longo
do processo histórico-civilizatório tem sido afirmado o princípio da dignidade da
pessoa humana como valor central dos sistemas jurídicos, daí por que
conquistas já realizadas se incorporariam ao patrimônio político-jurídico, com a
consequente proibição de retrocesso nos níveis de proteção. Ainda, no âmbito
dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), vigora o
dever de progressividade na implementação. 60
Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer esclarecem os fundamentos e
consequências da aludida vedação de retrocesso:
A proibição de retrocesso, nesse cenário, diz respeitos mais especificamente a
uma garantia de proteção de direitos fundamentais (e da própria dignidade
humana) contra a atuação do legislador, tanto no âmbito constitucional quanto – e
de modo especial – infraconstitucional (quando estão em causa medidas
legislativas que impliquem supressão ou restrição no plano das garantias e dos
níveis de tutela dos direitos já existentes), mas também proteção em face da
atuação da administração pública.61
Diversas são também as convenções e declarações internacionais que
consagram a proibição de retrocesso ambiental, tanto através de proibição
expressa de redução do nível de proteção quanto pela determinação de
implementação progressiva dos direitos sociais, econômicos, culturais e
ambientais, já referida.
Michel Prieur refere diversos documentos internacionais que acolhem o
princípio da proibição de retrocesso ambiental, também chamado de efeito
“cliquet” ou “cliquet antiretour”, para utilizar a expressão Francesa, que significa
trava ou trava antiretorno:
(…) O artigo 2º do Protocolo de Cartagena, de 2000, sobre a prevenção dos
riscos biotecnológicos, permite aos Estados tomar “medidas mais rigorosas para
a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica”. Na Convenção
sobre o Direito do Mar, os artigos 208, 209 e 210 dizem respeito a diversos tipos
de poluição marinha, impondo aos Estados que suas leis, regulamentos e
medidas nacionais “não sejam menos eficazes que as normas de caráter
mundial”. A Convenção de Basileia sobre o controle dos movimentos
transfronteiriços de resíduos perigosos, de 1989, permite aos Estados, em seu
artigo 11, “impor condições suplementares para melhor proteger a saúde humana
e o meio ambiente”. A Convenção de Berna de 1979 sobre a conservação da vida
selvagem e do meio natural da Europa, permite aos Estados, em seu artigo 12,
60SARLET,
Ingo Wolfgang; FERFENSTEIN, Tiago. Notas sobre a proibição de
retrocesso em matéria (sócio)
ambientaL,
p.
142-143. Disponível
em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso em: 08 jul. 2013.
61SARLET, loc. cit.
“adotar medidas mais rigorosas” do que as previstas pela Convenção. A
Convenção de Helsinki, de 1992, sobre os efeitos transfronteiriços de acidentes
industriais, prevê que as Partes possam adotar, de maneira individual ou
conjunta, medidas “mais rigorosas” (artigo 2-8). 62
Registre-se, por oportuno, que o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, já previa a imposição de melhoria
da qualidade ambiental e, por consequência, vedava o retrocesso nesse
âmbito, dispondo no artigo 11.1 ser “(…) direito de toda pessoa um nível
adequado e de uma melhoria contínua das condições de vida”, bem como
previa o “direito de toda pessoa a desfrutar do mais elevado nível de saúde
física e mental relacionado à melhoria de todos os aspectos de higiene do
trabalho e do meio ambiente”.
63
O Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Amemricana de
Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
igualmente, dispunha no artigo 11.1, que “toda pessoa tem direito a viver em
um ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos” e, ainda, que
os Estados-Partes “promoverão a proteção e melhoramento do meio
ambiente”.64
Em 1990, O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU
realizou a observação geral n. 3/1990, contrária a “[...] toda medida
deliberadamente regressiva”. Esse posicionamento foi reiterado pelo Comitê
na observação geral n. 13/1999, na qual consta que “[...] o Pacto não autoriza
nenhuma medida regressiva que diga respeito ao direito à educação,
tampouco aos demais direitos ali enumerados”. 65
Carlos Alberto Molinaro salienta que na III Reunião Mundial de Juristas e
Associações de Direito Ambiental, realizada em 29/09/2011, na França,
aprovou-se um projeto de recomendação para adoção do princípio da não
regressão na Conferência Rio+20, que seria realizada no ano seguinte no Rio
de Janeiro, nos seguintes termos:
“[existe] um consenso internacional sobre a necessidade de tomar medidas legais
para atingir um nível elevado de proteção e melhoria da qualidade ambiental que
tem o efeito de reduzir progressivamente a poluição que afeta a saúde e
aumentar a preservação da biodiversidade essencial para o equilíbrio ecológico
62PRIEUR,
Michel. Princípio da vedação de retrocesso ambiental. p. 26, loc. cit.
loc, cit., p. 156.
64Ibid., p. 155.
65PRIEUR, loc cit., p. 21.
63SARLET,
entre os homens e a natureza, […] Considerando que a não regressão pode
resultar de uma disposição expressa contida na Constituição ou nas leis, bem
como na jurisprudência dos tribunais com base no princípio do direito humano ao
meio ambiente que necessariamente leva a evitar qualquer ação que resulta em
uma perda de biodiversidade ou aumento dos níveis de poluição, […]
Solenemente solicita aos Chefes de Estado e de Governo reunidos no Rio de
Janeiro em junho de 2012 para o 20º aniversário da Declaração do Rio para
anunciar oficialmente na declaração final como um novo Princípio de Direito
Ambiental, que completa os princípios que já proclamou no Rio em 1992 que:
“Para evitar o declínio na proteção do ambiente, os Estados devem, no interesse
comum da humanidade, reconhecer e consagrar o princípio de não regressão;
para este efeito, os Estados devem tomar as medidas necessárias para
assegurar que nenhuma ação pode reduzir o nível de proteção ambiental atingido
até agora.66
No entanto, não houve consagração expressa do princípio no documento
final elaborado na Rio+20, embora mantidas disposições que indicam a
progressiva implementação de direitos sociais, econômicos, culturais e
ambientais, inclusive mediante reafirmação dos compromissos assumidos nas
conferências anteriores.
Não obstante, tem-se que a consagração constitucional e internacional
implícita do princípio representa importante avanço para a garantia da
sustentabilidade ambiental.
3.3 Status normativo dos tratados internacionais sobre direitos
humanos
Em matéria de direitos humanos, tendo em vista a convivência harmônica
e complementar dos sistemas global e regionais de proteção, bem como os
diversos documentos produzidos no âmbito desses sistemas, vigora o princípio
da primazia da norma mais favorável no direito internacional, conforme leciona
Antônio Augusto Cançado Trindade apud Flávia Piovesan:
“O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas,
consagrado expressamente em tratados tratados de direitos humanos, contribui
em primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravalmente as pretensas
possibilidades de “conflitos” entre instrumentos legais em seus aspectos
normativos. Contribui, sem segundo lugar, para obter maior coordenação entre
tais instrumentos em dimensão tanto vertical (tratados e instrumentos de direito
interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). (…) Contribui, em treceiro
lugar, para demonstrar que a tendência e o propósito de coexistência de distintos
instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de
66MOLINARO, Carlos Alberto. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. p.
114-115. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso
em: 08 jul. 2013.
ampliar e fortalecer a proteção.67
Portanto, havendo conflito entre as disposições constantes de tratados
internacionais e o direito interno – dimensão vertical – ou entre diversos
tratados internacionais, seja em âmbito global ou regional – dimensão
horizontal -, deverá prevalecer a norma mais favorável à promoção e
fortalecimento do direito humano em discussão.
Por consequência, pelo princípio da primazia da norma mais favorável, não
poderiam as normas internas prevalecer quando menos protetivas do que os
tratados internacionais ou vice-versa, tornando mais efetiva a preservação
ambiental, em favor da sustentabilidade ambiental, que beneficiaria não só as
presentes como as futuras gerações.
Relembre-se que, no âmbito do Direito Internacional, os Estados não
podem fundamentar no Direito Interno o descumprimento dos compromissos
assumidos, nos termo dos artigos 27 e 46 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados, que consagrou o princípio da primazia da norma mais
favorável, já explicitado, o que faria com que as normas internacionais sobre
direitos humanos tivessem o status de supraconstitucionalidade. 68
No entanto, são diversas as posições sobre a hierarquia interna dos
tratados que versem sobre direitos humanos no Brasil, cuja definição é
importantíssima para a análise do tema. Antes, porém, necessário verificar o
momento a partir do qual um tratado internacional tem vigência em território
nacional, pressuposto para criar direitos e obrigações na ordem jurídica
interna, bem como para passar-se ao exame de sua hierarquia.
Para Flávia Piovesan, o tratado internacional que verse sobre direitos
humanos passa a ter aplicabilidade nos âmbitos internacional e interno a partir
da ratificação, posterior à assinatura do tratado e aprovação pelo Poder
Legislativo, dispensando, assim, o Decreto presidencial, com fundamento no
artigo 5º, §1º, da Constituição da República, que determina que “As normas
definidoras dos direitos e garantas fundamentais têm aplicação imediata”. A
67PIOVESAN,
Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo
comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 12. ed., rev.,
ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 90.
68PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado
incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. 3. ed. rev. ampl. e
atual., Salvador: Juspodivm, 2011, p. 836.
incorporação dos tratados internacionais configura um ato complexo,
decorrente da soma de vontades do Poder Executivo e Legislativo, que estaria
aperfeiçoada com a ratificação pelo Presidente da República, após aprovação
congressual.69
Essa concepção, porém, não foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal,
que entende ser indispensável a emissão de Decreto Presidencial para a
incorporação dos tratados ao ordenamento jurídico interno, assegurando-se a
sua promulgação e publicação, como elementos indispensáveis para a
executoriedade.70
Após a incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos
no plano interno, existem basicamente quatro posições quanto à posição
hierárquica no ordenamento jurídico nacional: a) hierarquia supraconstitucional;
b) hierarquia constitucional; c) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; d)
paridade entre tratado e lei federal.71
Com a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, esse debate ficou
ainda mais acirrado, pois foi acrescentado o §3º ao artigo 5º da Constituição
Federal, estabelecendo que tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais.
Durante muito tempo vigorou no Brasil que os tratados internacionais
teriam o mesmo status de lei ordinária (Supremo Tribunal Federal, Tribunal
Pleno, RE 80.0004, Relator Ministro Xavier Albuquerque, DJ de 29.12.1977).
Logo, poderiam ser revogados por lei ordinária, submetidos aos critérios da
especialidade e cronológico. Essa concepção, que vigorou aproximadamente
de 1977 até 2007, desconsiderava a primazia da norma mais favorável no
direito internacional e a disposição constante da Convenção de Viena, no
sentido de que os Estados-Partes não poderiam invocar disposições de seu
direito interno para justificar o descumprimento de tratado internacional. 72
Em 2007, porém, no Habeas Corpus n. 90.172/SP, Rel. Min. Gilmar
Mendes, DJ de 17.08.2007, consolidou-se no Supremo Tribunal Federal a tese
69PIOVESAN,
2009, p. 48-49.
op. cit., p. 835.
71PIOVESAN, 2009, p. 71.
72PORTELA, 2011, p. 840-841.
70PORTELA,
de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem status
normativo supralegal, isto é, estão em plano hierárquico inferior à Constituição
Federal, mas superior às leis, tornando, assim, inaplicável a legislação
infraconstitucional conflitante, ainda que anteriores à ratificação do tratado. 73
Em relação ao § 3º do artigo 5º da Constituição, acrescido pela Emenda
Constitucional n. 45/2004, prevaleceu o entendimento de que apenas os
tratados aprovados mediante o procedimento ali estipulado teriam status de
emenda constitucional, não sendo suficiente para amparar a corrente
doutrinária que sustentava que todo e qualquer tratado de direitos humanos
teria status de norma materialmente constitucional.
Sem prejuízo dos sólidos argumentos favoráveis à tese do status
constitucional ou supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, o
objeto da presente monografia não comporta maior profundidade sobre o
tema, sendo suficiente a explanação da concepção atualmente adotada pela
Corte Suprema.
Com a consagração do status supralegal dos tratados internacionais de
direitos humanos, além da possibilidade de serem equiparados a emendas
constitucionais, se aprovados pelo rito instituído pela Emenda Constitucional n.
45/2006, houve sensível melhoria na promoção dos direitos humanos, diante
da possibilidade desses tratados servirem de paradigma para o controle de
convencionalidade, com a possibilidade de se invalidar a legislação interna
incompatível.
4. Inconstitucionalidade dos artigos 3º, inciso IV, 59, 60, 61-A, 61-B e
63 da Lei n. 12.651/2012 – Novo Código Florestal
A Lei n. 12.651/2012 instituiu um denominado regime de transição nos
artigos 59, 60, 61-A, 61-B e 63, que deve ser analisado em conjunto com o
conceito de área rural consolidada constante do artigo 3°, inciso IV, visando a
legitimação de ocupações de áreas de preservação permanente anteriores a
22 de julho de 2008.
Os dispositivos legais em comento foram analisados no item 1.3, restando
evidente as consequências danosas para o meio ambiente, pois legitimam a
73Ibid.,
p. 840-841.
degradação ambiental de áreas vitais para a preservação ambiental e o
desenvolvimento sustentável, tendo em vista que as áreas de preservação
permanentes são áreas protegidas, isto é, espaços territoriais com funções
ambientais específicas e diferenciadas. 74
Com efeito, as anistias conferidas pela Novo Código Florestal confrontam
com o acolhimento do direito ao meio ambiente como direito fundamental de
terceira dimensão na Constituição da República, porquanto não se prestam a
permitir o desenvolvimento sustentável, isto é, não têm preocupação com a
manutenção da qualidade ambiental, pois gestados para amparar interesses
econômicos de grandes agricultores e pecuaristas. Tal conclusão decorre da
ausência de critérios científicos na elaboração das ditas “regras de transição”,
gerando contundente crítica da comunidade científica. 75
Em relação ao conceito de desenvolvimento sustentável, o Relatório
Brundtland afirma que “desenvolvimento sustentável é aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações
futuras atenderem suas próprias necessidades”, constituindo-se em importante
paradigma para aferir-se a sustentabilidade ambiental.
Para a consagração desse desiderato, a Carta Política determinou
expressamente ao Poder Público, dentre outras obrigações de relevo,
preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas, bem como definir, em todas as
unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, cuja alteração ou supressão somente podem ser
permitidas através de lei. Vedou-se expressamente qualquer utilização que
comprometa a integridade dos atributos que justifiquem a proteção dessas
áreas (artigo 225, §1º, incisos I e III, da Constituição Federal).
O cumprimento da determinação constitucional se fazia, em parte, com
instituição de áreas de preservação permanente pelo Código Florestal de
1965, que foi recepcionado pela Constituição Cidadã, sendo que essas áreas
especialmente protegidos representam locais onde ocorrem processos
ecológicos essenciais para a manutenção da sustentabilidade ambiental. A
autorização para a utilização de áreas de preservação permanente era
74
75
MACHADO, 2013, p. 871.
Ibid., p. 889.
excepcional e se restringia a casos de utilidade pública ou social devidamente
caracterizada e motivada em procedimento administrativo próprio, conforme
visto no item 1.1.
Com o advento da Lei n. 12.651/2012, os artigos 3º, inciso IV, 59, 60, 61-A,
61-B e 63 descumpriram frontalmente com a Lei Fundamental, pois
dispensaram a recuperação de áreas de preservação permanente, bem como
autorizaram
a
continuidade
de
danos
ambientais
nesses
espaços
especialmente protegidos.
A caracterização do meio ambiente ecologicamente equilibrado como
direito fundamental, bem como a imposição de obrigações específicas para o
Poder Público e para a coletividade têm importantes consequências para o
ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista o princípio da máxima eficácia e da
força normativa da Constituição. É dela que a legislação infraconstitucional
retira seu fundamento de validade, sob pena de vício de inconstitucionalidade.
Tratando-se o meio ambiente de um direito fundamental, não pode ser alterado
ou suprimido ao talante dos Poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário,
vinculando-os.76
Não obstante o artigo 5º, §1º, da Constituição dispor que “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”,
constata-se que a eficácia das normas constitucionais variam de acordo com o
preceito, embora todas possuam eficácia e aplicabilidade. Na classificação de
José Afonso da Silva, as normas constitucionais teriam: a) eficácia plena; b)
eficácia contida; c) eficácia limitada ou reduzida. As primeiras não
dependeriam de integração legislativa, pois seriam de eficácia direta, imediata
e integral. As normas de eficácia contida, por sua vez, embora possuam
eficácia imediata, admitem lei integrativa que venha a reduzir a sua eficácia,
respeitado o núcleo essencial do direito. Por fim, as normas de eficácia
limitada ou reduzida teriam aplicabilidade mediata, isto é, reclamam lei futura
para regulamentação de seus limites, caracterizando-se como norma de
aplicabilidade indireta, mediata e reduzida. Porém, em todos os casos haveria
eficácia negativa, irradiando feitos jurídicos inibidores ou impeditivos de
76MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed., rev., e atual., São Paulo: Saraiva,
2008, p. 245.
disposições em contrário.77
Portanto, ainda que normas constitucionais sobre o meio ambiente
reclamem complementação legislativa, caracterizando-se como norma de
eficácia limitada ou reduzida, caraterizado está o dever de não legislar em
sentido contrário, sob pena de inconstitucionalidade.
Ainda no que se refere à eficácia, cumpre mencionar a clássica
classificação de José Afonso da Silva:
A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm os direitos fundamentais
dependem muito de seu enunciado, pois se trata de assunto que está em função
do Direito Positivo. A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui
que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a
Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de
algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentre os
fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos
fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade
imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sêlo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que
mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios
programáticos e de aplicabilidade indireta, as são tão jurídicas como as outras e
exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem
eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo
exercício dos direitos fundamentais.78
Logo, não poderia a legislação infraconstitucional descumprir os preceitos
plasmados na Norma Fundamental, especialmente porque suficientemente
delineado o âmbito de conformação do legislação ordinário, impondo-se a
restauração e proteção do processos ecológicos essenciais, bem como a
implementação de espaços territoriais especialmente protegidos que garantam
a equidade intergeracional apregoada.
Não bastasse, o “caput” do artigo 225 afirma que o meio ambiente é um
bem transindividual, sendo ao mesmo tempo individual e coletivo, sendo apto à
criação de direitos subjetivos oponíveis “erga omnes”, sendo completado pelo
direito ao exercício da ação popular.79
Importante esclarecer, assim, que os direitos fundamentais possuem
dimensão subjetiva e objetiva, que traduzem relevantes consequências,
impondo-se explicitá-las.
77JÚNIOR,
2011, p. 166-169.
José Afonso da. Curso de Direito constitucional positivo. 30. ed., rev. e
atual., Malheiros: São Paulo, 2008, p. 180.
79Ibid., p. 151.
78SILVA,
A dimensão subjetiva se refere a possibilidade de “(...) ensejarem uma
pretensão a que se adote um dado comportamento ou então essa dimensão
se expressa no poder da vontade de produzir efeitos sobre certas relações
jurídicas”.80 Poderia, assim, dar ensejo a uma pretensão positiva ou negativa
de outrem.
A dimensão objetiva, por sua vez, caracterizam os direitos fundamentais
como “(...) normas que filtram os valores básicos da sociedade política,
expandindo-os para todo o direito positivo. Formam, pois, a base do
ordenamento jurídico de um Estado democrático”.81
Em relação à existência de direito subjetivo difuso ambiental (dimensão
subjetiva), esclarece José Joaquim Gomes Canotilho apud Luciano Furtado
Loubet e Luiz Antônio Freitas de Almeida:
Se do ponto anterior saiu reforçada a ideia da existência de um novo valor que
reveste cada vez mais importância para a comunidade jurídica organizada – valor
esse que, pelo menos neste sentido, é sobretudo compreendido na sua dimensão
pública ou coletiva – importa em todo caso ainda mostrar que essa sua natureza
não prejudica (mas, pelo contrário, reforça) a circunstância de o ambiente dever
ser também assumido como direito subjetivo de todo e qualquer cidadão
individualmente considerado. Isto é claro se compreendermos que o ambiente,
apesar de um bem social unitário, é dotado de uma indiscutível dimensão
pessoal.82
Tem-se reconhecido, assim, a existência de direitos subjetivos individuais,
individuais homogêneos, coletivos e difusos, cuja definição tem sido extraída
do artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. A
consequência da existência de um
direito subjetivo ambiental é o
reconhecimento do direito adquirido à preservação ambiental, não podendo a
lei posterior retroagir em prejuízo desse direito fundamental de terceira
dimensão.83
As disposições do Novo Código Florestal não poderiam, então, ser
aplicadas as fatos ocorridos na vigência da Lei n. 4.771/65, para retirar a
proteção então incidente sobre as áreas de preservação permanente e reserva
legal, daí resultando evidente inconstitucionalidade, por ofensa ao direito
80MENDES,
2008, p. 265.
p. 266.
82LOUBET,
Luciano
Furtado;
ALMEIDA;
Luiz
Antônio
Freitas
de.
Inconstitucionalidades dos retrocessos empreendidos pelo novo código
florestal.Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22582/inconstitucionalidadesdos-retrocessos-empreendidos-pelo-novo-codigo-florestal>. Acesso em: 08 jul. 2013.
83 LOUBET, loc. cit.
81Ibid,
adquirido.
Por outro lado, como consequência da dimensão objetiva – pauta de
valores que geram efeitos para o ordenamento jurídico como um todo -, os
direitos fundamentais legitimam restrições a direitos individuais e de outros
bens constitucionais. Ainda, e mais relevante para o presente trabalho, cria a
dimensão objetiva de um direito fundamental um dever de proteção pelo
Estado, tanto contra agressões dos próprios Poderes Públicos quanto de
particulares ou outros Estados.84
Logo, cria-se para o Estado o dever de legislar para promover proteção
ambiental, mediante a criação de espaços territoriais a serem especialmente
protegidos, bem como para proteger e restaurar os processos ecológicos
essenciais. Aqui não tem o Estado ampla liberdade de conformação do direito
fundamental, pois restou suficientemente delimitado pela Constituição,
mediante obrigações específicas, além da limitação a essa liberdade
decorrente da incidência do princípio ou postulado da proporcionalidade. No
ponto, Paulo Affonso Leme Machado esclarece:
A utilização dessas unidades de conservação e/ou áreas de proteção ambiental
só poderia ser feita de modo que não comprometa a totalidade dos atributos que
justificam a proteção desses espaços. A Constituição foi explícita ao vedar toda
forma de utilização que fira qualquer atributo do espaço territorial protegido. E
vemos que foi necessária a previsão constitucional, pois recentemente tentou-se
transformar uma via interna de comunicação do Parque Nacional de Iguaçu em
estrada de rodagem, tendo a tentativa – apoiada por forças poderosas – sido
obstada pelo Poder Judiciário, através de ação civil pública.85
O princípio ou postulado da proporcionalidade atua como limite da atuação
e discricionariedade estatal, vedando excessos de seus órgãos. Tem origem na
garantia do devido processo legal, que remonta ao direito anglo-saxão, mais
especificamente na cláusula “law of the land” inscrita na “Magna Carta” de
1215.
Dirley da Cunha Júnior destaca a origem e desenvolvimento do princípio:
Esta garantia teve origem na Inglaterra, com um aspecto meramente formal
(“procedural due process”, segundo o qual não é possível a condenação de
alguém sem o devido processo legal) e se desenvolveu nos Estados Unidos com
um aspecto muito mais substantivo ou material (“substantive due process of law”),
para permitir oo Judiciário investigar o próprio mérito dos atos do poder público, a
fim de verificar se esses atos são razoáveis, ou sejam se estão conforme a razão,
supondo equilíbrio, moderação e harmonia.86
84 MENDES, 2008, p. 266-267.
85MACHADO, 2013, p. 173.
86JÚNIOR, 2011, p. 227.
A aferição do respeito à proporcionalidade se faz mediante análise dos
subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito. A adequação se refere à aptidão das medidas adotadas pelo Poder
Público atingirem os fins propostos. A necessidade ou exigibilidade impõe ao
Poder Público escolher os meios que menos limitações causem aos direitos
fundamentais, sob pena de caracterizar excesso. Por fim, a proporcionalidade
em sentido estrito exige equilíbrio entre a razão de atuação e a providência
adotada para tanto, de forma que as vantagens que serão obtidas superem as
desvantagens. O não atendimento a qualquer dos subprincípios caracteriza a
desproporcionalidade e consequente inconstitucionalidade da norma. 87
De mais a mais, a princípio da proporcionalidade possui duas vertentes, a
proibição de excesso e a proibição de proteção insuficiente, impondo esta o
efetivo exercício das competências pelo Estado para atingir os fins a que se
destina, sob pena de sua omissão ou atuação insuficiente configurar-se
inconstitucional. Na aferição da proteção insuficiente são utilizados os mesmos
parâmetros antes delineados, que são meros desdobramentos do princípio ou
postulado da proporcionalidade.
É patente, assim, a inadequação dos artigos do Novo Código Florestal que
relativizam a proteção de áreas de preservação permanente, já que não são
aptos à proteção dessas áreas especialmente protegidas, tampouco garantem
a restauração e proteção de processos ecológicos essenciais, fazendo tábula
rasa das obrigações específicas impostas ao Poder Público no §1º do artigo
225 da “Lex Mater”.
Nesse sentido, a inadequação da redução das áreas de preservação
permanente em razão do tamanho da propriedade rural é demonstrada por
Paulo Affonso Leme Machado:
A dimensão das APPS não tem relação direta com o tamanho da propriedade
rural. A APP deve existir não porque o imóvel seja grande, médio ou pequeno. Se
não se racionar com base na função ecológica da APP na sua defesa das águas,
do solo e da biodiversidade, esse espaço perde seu sentido existencial.
Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga respeitada e uma das autoras do livro O
Código Florestal e a Ciência para o Diálogo, afirma: “A agricultura familiar está
sendo na realidade diretamente prejudicada pela brutal redução que vinha sendo
feita das matas ciliares. No Nordeste e no Norte de Minas vários rios secaram.
Com o antigo Código ainda se tinha o amparo de lei para protestar. Hoje o fato
87Ibid,
p. 228.
consumado tornou-se legal. Isso se chama desregulamentação.88
Por óbvio, o tamanho das áreas de preservação permanente deve levar
em conta a ciência, a função ecológica que se busca proteger, tendo em vista
o caráter finalista do direito ambiental, que não pode contrariar as leis da
natureza, sob pena de ineficácia, e mais, de sanções decorrentes de desastres
naturais.89
Dessa forma, resta patente a inconstitucionalidade da relativização da
proteção das áreas de preservação permanente, em razão de violação do
princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de insuficiência, já que
as medidas escolhidas para a proteção ambiental são manifestamente
inadequadas.
O regime de transição instituído ignora a função social da propriedade,
cujo fundamento decorre genericamente do artigo 5º, inciso XXIII, além da
previsão específica para a função social da propriedade urbana, no artigo 182,
§2º, e rural, no artigo 186, todos da Constituição Federal.
Em relação à propriedade rural, a que se referem os artigos da Lei n.
12.651 questionados, o artigo 186 assevera que a propriedade cumpre a sua
função social quando atende, simultaneamente: a) aproveitamento racional e
adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam
as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores.
O Código Civil de 2002 explicitou o conteúdo da função social da
propriedade no artigo 1.228, §1°, verberando que o exercício desse direito
deve observar as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de acordo com lei especial, a flora, fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas.
Flávio Tartuce destaca o conteúdo da função socioambiental da
propriedade:
O CC/2002 foi além de tratar da função social, pois ainda consagra a função
socioambiental da propriedade. Há tanto uma preocupação com o ambiente
natural (funa, flora, equilíbrio ecológico, belezas naturais, ar e águas), como com
88MACHADO, 2013, p. 889.
89LOUBET, loc. cit.
o ambiente cultural (patrimônio cultural e artístico). Exemplificando, o proprietário
de uma fazenda, no exercício do domínio, deve ter o cuidado para não queimar
uma floresta e também para não destruir um sítio arqueológico. […]
O artigo 1.228, §1º, acabou por especializar na lei civil o que consta do art. 225
da Constituição Federal, dispositivo este que protege o meio ambiente como um
bem difuso e que visa à sadia qualidade de vida das presentes e futuras
gerações. Esse é o conceito de Bem Ambiental, que assegura a proteção de
direitos transgeracionais ou intergeracionais, particularmente para os fins de
responsabilidade civil, tratada na Lei n. 6.938/1981.90
Com efeito, a obrigação do novo proprietário recuperar os danos
ambientais, mesmo não sendo o seu causador, decorre da função
socioambiental da propriedade, suficiente para consagrar a responsabilidade
objetiva, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de
Justiça (Ex: STJ, AgRg no RESP 471.864/SP, Rel. Min. Francisco Falcão,
Primeira Turma, j. 18.11.2008, Dje DE 01.12.2008). 91 A responsabilidade
objetiva do proprietário, consagrada na jurisprudência, foi acolhida pela Lei n.
12.651/2012, no §2º do artigo 2º, que preceitua que “As obrigações previstas
nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer
natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”.
Ora, são justamente os institutos das áreas de preservação permanente e
de reserva legal que representam o cumprimento da função social da
propriedade rural, merecendo destaque pelo hoje Ministro do Superior Tribunal
de Justiça, Antônio Herman Benjamim apud Luciano Furtado Loubet e Luiz
Antônio Freitas de Almeida:
Em linhas gerais, nenhum dos dispositivos do Código Florestal consagra,
aprioristicamente, restrição que vá além dos limites internos do domínio, estando
todos constitucionalmente legitimados e recepcionados; demais disso, não
atingem, na substância, ou aniquilam o direito de propriedade. Em ponto algum
das APPs e a Reserva Legal reduzem a nada os direitos do proprietário, em
termos de utilização do capital representado pelos imóveis atingidos. Diante dos
vínculos que sogre elas incidem, tanto aquelas como esta aproximam-se muito da
modalidade moderna de propriedade restrita, restrita, sim, mas nem por isso
menos propriedade.92
Então, esvaziando-se o conteúdo das áreas de preservação permanente,
por consequência, também se enfraquece a função social da propriedade rural,
em nítida violação à Carta Magna, que passou a contemplar a função
socioambiental como elemento interno do domínio.
90TARTUCE,
Flávio. Manual de direito civil. São Paulo: Método, 2011, p. 798.
Ibid, p. 799.
92LOUBET, loc. cit..
91
Importante salientar, também, que o novo regime de proteção das áreas
de preservação permanente retrocedeu em relação ao regime jurídico instituído
pela Lei n. 4.771/1965, sem que houvesse a instituição de proteção jurídica
similar, ou seja, houve sim efetivo retrocesso e prejuízo ambiental
cientificamente comprovado.
Relembre-se que o princípio da proibição de retrocesso ambiental é um
princípio constitucional implícito, decorrente do Estado Socioambiental e de
Direito, centrado no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como do
princípio da segurança jurídica e seus consectários (princípio da proteção da
confiança e garantias constitucionais do direito adquirido, coisa julgada e ato
jurídico perfeito), além de referir-se aos limites materiais de reforma
constitucional, previstos no artigo 60, §4º, da Constituição Federal, de modo a
evitar a afronta a direitos constitucionalmente estabelecidos por atos e
medidas que constituam retrocesso no âmbito de proteção. Ademais, ao longo
do processo histórico-civilizatório tem sido afirmado o princípio da dignidade da
pessoa humana como valor central dos sistemas jurídicos, daí por que
conquistas já realizadas se incorporariam ao patrimônio político-jurídico, com a
consequente proibição de retrocesso nos níveis de proteção. Ainda, no âmbito
dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), vigora o
dever de progressividade na implementação. 93
A vedação de retrocesso ambiental constitui-se importante instrumento na
formação do conteúdo mínimo ambiental, que passa a se revestir de caráter
dinâmico, ou seja, uma vez que normalmente demanda integração normativa
para concretizá-los, motivo pelo qual o princípio apanha as sucessivas
reelaborações do conteúdo para impedir o retorno a padrões inferiores de
proteção.94
Esse princípio, por estar consagrado na Constituição e em Convenções
Internacionais, presta-se a determinar a conformidade do ordenamento
jurídico, notadamente infraconstitucional, com a Lei Fundamental (controle de
constitucionalidade), bem como com as convenções que tratam do tema
(controle de convencionalidade), que seguem a mesma lógica. 95
93SARLET,
loc.cit.
94ROTHENBURG,
Walter Claudios. Princípio da proibição de retrocesso
ambiental. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso
em: 08 jul. 2013.
95ROTHENBURG, loc. cit..
Afirma-se, costumeiramente, que o controle de constitucionalidade dos
atos emanados do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário decorre de seu
papel contramajoritário, partindo-se da premissa que a vontade do Parlamento
representa a vontade da maioria da população. De fato, em algumas situações
esse controle possui essa característica, tal como quando a vontade da maioria
da população, acolhida pelo Legislativo, se afasta da Constituição, que possui
maior estabilidade e legitimidade.96
Walter Claudios Ruthenburg entende que a Constituição é que seria
merecedora do adjetivo de majoritária:
Porém, se a Constituição é legítima e consagra os valores mais importantes
adotados democraticamente por uma sociedade, o adjetivo “majoritário” - e
qualificadamente majoritário, porque constituinte – haveria de qualificar a ela,
Constituição, e não as leis que a confrontassem.97
Prossegue o autor evidenciando, com precisão, que nem sempre o
Parlamento expressa a vontade da maioria da população, tal como ocorreu
com a Lei n. 12.651/2012, fruto da bem articulada bancada ruralista,
justificando
a
intervenção
do
Poder
Judiciário
no
controle
de
constitucionalidade, com o qualificativo majoritário, retomando a legitimidade
ameaçada pelas leis supostamente inconstitucionais. 98
Conclui o autor pela elevada importância da utilização do princípio da
vedação
de
retrocesso
ambiental
como
parâmetro
do
controle
de
constitucionalidade, e instrumento efetivo para garantir a sustentabilidade
ambiental:
Percebe-se claramente, assim, a importância do princípio do não retrocesso
como argumento para a fiscalização da constitucionalidade. Tanto mais quando a
incompatibilidade das normas não for evidente. À primeira vista, uma lei que fixe
a margem de proteção das margens dos cursos de água em 50 metros não
apenas não viola o direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado,
como, muito pelo contrário, concretiza esse direito e traduz uma avaliação da
competência exclusiva do Legislativo (uma reserva de conformação legislativa).
Tudo muda de figura, no entanto, se essa lei surge no lugar de outra anterior, que
estabelecia uma área de proteção de 100 metros, pois agora os cursos de água
terão uma proteção menor, menos intensa.99
Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fenstenseifer compartilham da ausência de
legitimidade do Projeto de Lei n. 1.876/199, que culminou com a aprovação do
96ROTHEMBURG,
loc. cit..
loc. cit..
98ROTHEMBURG, loc.cit..
99ROTHEMBURG, loc. cit..
97ROTHEMBURG,
Novo Código Florestal:
As razões para manter o Código Florestal com o padrão normativo (no sentido da
tutela do ambiente) atualmente vigente são muitas – tanto a partir de uma
abordagem social e ecológica, quanto pelo prisma de uma perspectiva
econômica-, ao passo que, do outro lado, as razões para se endossarem as
mudanças afunilam-se no interesse – puramente econômico e exclusivo – do
setor agropecuário. O descaso do projeto de lei com a qualidade e o equilíbrio
ecológico é gritante, alinhando-se a isso também todos os aspectos sociais e
econômicos vinculados à degradação ecológica. A prevalecerem os termos do
projeto, mais uma vez, o ônus ecológico (socioambiental) do aumento dos
desmatamentos das nossas florestas, que inevitavelmente virá em função dos
estímulos do novo regramento, recairá sobre os indivíduos e grupos sociais mais
pobres e necessitados, consoante, aliás, dão conta os exemplos dos últimos
desastres naturais – São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina etc – provocados
por episódios climáticos extremos […].100
Não há dúvidas, portanto, que o Legislador atuou em benefício de minoria
privilegiada da população, em detrimento do bem ambiental difuso,
pertencente à totalidade da população existente e às futuras gerações, com
manifesta ausência de legitimidade.
Diante disso, necessário o reconhecimento da inconstitucionalidade em
razão da violação à proibição de retrocesso ambiental, além da realização do
controle de convencionalidade das alterações prejudiciais ao ambiente.
Ao prever anistia às infrações, inclusive penais, cometidas em data
anterior a 22 de julho de 2008, e autorizar a continuidade das atividades
desenvolvidas em área de preservação permanente nessa data, o legislador
ordinário lesou o princípio constitucional da isonomia, privilegiando aqueles
que descumpriram a legislação em vigor, em detrimento daqueles que a
observaram.
O princípio da isonomia impõe o mesmo tratamento a todos que se
encontrem na mesma situação, na medida em que se igualem, e tratamento
diferenciado, na medida em que se desigualem, sendo destinada a sua
aplicação tanto perante a lei quanto na lei. Não se contentou a Constituição
Cidadã com a igualdade meramente formal, consagrando a igualdade material,
uma vez que elegeu como objetivo fundamental do Estado erradicar a pobreza
e reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III), além de orientar a
ordem econômica para assegurar a existência digna, conforme os ditames de
justiça sociais (artigo 170), e objetivar o bem-estar e justiça sociais ao tratar da
100SARLET,
loc. cit..
ordem econômica (artigo 193).101
Salta aos olhos, assim, a violação ao princípio da isonomia, pois somente
aqueles que transgrediram a legislação ambiental então em vigor serão
contemplados com a possibilidade de permanência das edificações, anistia das
infrações e possibilidade de continuar as atividades nesses espaços
especialmente protegidos.
Registre-se,
por oportuno,
o
ajuizamento
das
ações
diretas
de
inconstitucionalidade n. 4902 e 4903 pela então Procuradora-Geral da
República em exercício, Sandra Cureau, referente aos dispositivos que
relativizam a proteção incidente sobre as áreas de preservação permanente,
bem como sobre as anistias concedidas pelo legislador ordinário quanto às
infrações, inclusive penais, verificadas, além da autorização para a
continuidade de atividades em favor daqueles que infringiram a Lei 4. 771/65
(Código revogado).
Aguarda-se, assim, o deferimento da medida liminar pleiteada e, ao final, a
integral procedência dos pedidos formulados, por ser medida imprescindível
para assegurar-se a sustentabilidade socioambiental e impedir a consolidação
de inaceitável retrocesso na legislação ambiental.
5. Conclusão
A análise comparativa do Código Florestal revogado com a Lei n.
12.651/2012, em conjunto com a normatividade consagrada pela Constituição
Cidadã, bem como com as principais convenções e declarações internacionais
que tratam do tema, foram extraídas as seguintes conclusões:
1. O Código Florestal revogado possuía regime jurídico bastante restritivo
quanto à utilização direta de áreas de preservação permanente (legais e
administrativas), somente admitindo a utilização dessas áreas em casos de
utilidade pública e interesse social, quando inexistisse alternativa locacional, e
exigia ainda motivação em procedimento administrativo próprio. A regra então
consagrada de vedação do uso direto das áreas de preservação permanente
estava em conformidade com o regime constitucional e com as relevantes
funções ecológicas desempenhadas.
2. A Lei 12.651/2012, de outro lado, retirou as áreas destinadas a manter o
101JÚNIOR,
2011, p. 676.
ambiente das populações indígenas do rol de áreas de preservação
permanente legais, mantendo a dualidade de áreas de preservação
permanente, legais e administrativas. Ampliou substancialmente as hipóteses
de utilização direta de áreas de preservação permanente, nos casos de
utilidade pública, interesse social, atividade eventual ou de baixo impacto
ambiental (artigo 8º). Houve, portanto, substancial redução da proteção
incidente sobre as áreas de preservação permanente, com a ampliação de
possibilidades de uso direto dessas áreas.
3. A par do regime geral aplicável às áreas de preservação permanente,
bastante permissivos, foi instituído pelo Novo Código Florestal, nos artigos 59 a
65, regime jurídico de transição que ampliou ainda mais as intervenções em
áreas de preservação permanente, restringindo-se à pesquisa aos artigos 59,
60, 61-A, 61-B, e 63, porquanto ausente interesse público a justificar a
concessão legal. Esse regime necessita do conceito de área rural consolidada
constante do artigo 3º, IV, do diploma legal em apreço, motivo pelo qual foram
analisados em conjunto. O conceito de área rural consolidada e a autorização
para a continuidade de atividades agrossilvipastoris, de turismo rural e de
ecoturismo, mediante simples adesão a Programa de Regularização Ambiental
e inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural, implicam em anistia das
infrações administrativas e penais então praticadas, em detrimento da
coletividade e em prejuízo daqueles que cumpriram a legislação ambiental,
autorizando-se a perpetuação de infrações, inclusive criminais, continuadas.
Impediu-se, inclusive, a autuação das infrações praticadas em áreas de
preservação permanente, quando anteriores a 22 de julho de 2008. Ademais, a
redução das áreas de preservação permanente na margem de cursos d'águas,
em alguns casos a ínfimos cinco metros, carece de embasamento científico e é
extremamente prejudicial à qualidade ambiental. O pacote de benefícios do
setor agrário foi ainda mais agraciado com a instituição de limite à obrigação
de recuperar o meio ambiente agredido, limitando-se a recomposição
ambiental a 10% da área total do imóvel, para imóveis com até 02 módulos
fiscais, ou 20% da área total do imóvel, para imóveis com até 04 módulos
fiscais. Em relação às áreas rurais consolidadas em encostas, topos de morro,
chapadas e altitudes menores que 1.800 metros, foi admitida a continuidade
de atividades florestais, culturas de espécies lenhosas, perenes ou de ciclo
longo, cem como da infraestrutura física associada, vedando-se apenas a
conversão de novas áreas, ignorando que tais áreas são importantíssimas para
a manutenção da qualidade do solo e possuem tendência para desabamentos.
Sequer foi exigida, nesse caso, a recomposição das área de preservação
permanente degradadas.
4. A Constituição da República, por sua vez, dedicou especial atenção ao
meio ambiente, reservando o capítulo IX do título VIII, referente à Ordem
Social para tratar do tema, além de diversos outros dispositivos esparsos em
seu texto que consagram a proteção ambiental. A preservação ambiental foi
consagrada com o status de direito fundamental difuso, pertencendo ao
indivíduo e à coletividade simultaneamente, inclusive às futuras gerações, daí
por que possui aptidão para gerar direito subjetivo coletivo. Foram acolhidos os
princípios da equidade intergeracional, da prevenção, da precaução, dentre
outros, orientados pelo caráter finalista do direito ambiental . Com efeito, foram
impostas obrigações específicas aos Poderes Públicos e à coletividade no §1º
do artigo 225, destacando-se o dever de preservar e restaurar os processos
ecológicos essenciais e a definição, em todas as unidades da Federação, de
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos,
com autorização para a alteração ou supressão somente através de lei,
vedados usos que comprometam a integridade dos atributos que justificam a
proteção. Utilizou-se, o Constituinte, da técnica dos deveres fundamentais,
resultando no dever jurídico de adequada implementação dos direitos
fundamentais previstos. O Constituinte teve o cuidado de conferir tratamento
diferenciado a cinco biomas brasileiros, a Floresta Amazônica, a Mata
Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossensse e a Zona Costeira, que
passaram a integrar o patrimônio nacional. Ainda, previu a tutela do patrimônio
cultural nos artigos 215 e 216, e afirmou a função social da propriedade,
genericamente no artigo 5º, XXIII, e especificamente nos artigos 182, §2º, e
186, referente à propriedade urbana e rural, respectivamente. Para a
consecução dos fins colimados, a legislação infraconstitucional adotou a
responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, conforme artigo 14, §1º,
da Lei n. 6.938/81, bem como para as infrações administrativas, nos termos do
artigo 70 da Lei n. 9.605/1998, de acordo com expressiva parcela da doutrina.
5. O princípio da proibição de retrocesso ambiental resulta do dever de
implementação progressiva dos direitos sociais, econômicos, culturais e
ambientais, consistindo em que as garantias já consagradas não podem
retroceder a níveis inferiores de proteção, sem que as circunstâncias de fato
tenham sido substancialmente alteradas. Busca obstar medidas legislativas e
executivas que diminuam a proteção ambiental, somente admitindo alterações
legislativas com eficácia similar. Trata-se de princípio constitucional implícito,
decorrentes do Estado Socioambiental e de Direito, além de constar de
diversos documentos internacionais sobre a matéria.
6. Em matéria de direitos humanos, deve ocorrer a convivência harmônica
e complementar entre os sistemas global e regionais de proteção, daí por que
vigora o princípio da primazia da norma mais favorável, porquanto existentes
diversos instrumentos internacionais que tratam da mesma matéria. Assim,
havendo conflito entre disposições de tratado internacional ou entre tratado e o
direito interno, deve prevalecer a norma mais protetiva, como forma de
fortalecer o sistema de proteção e a promoção dos direitos humanos. Essa
concepção do direito internacional tem por fundamento a Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados, que impede que um Estado-Parte invoque o direito
interno para descumprir convenção internacional. A adoção dessa premissa
acarretaria reconhecer status de supraconstitucionalidade aos tratados
internacionais de direitos humanos, o que não ocorre no Brasil. Apesar de
diversas posições sobre a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos
humanos no ordenamento jurídico nacional, o Supremo Tribunal Federal, a
partir de 2007, tem reconhecido, em regra, o status de norma supralegal, ou
seja, estão abaixo da Constituição, mas acima da legislação ordinária. Nos
casos de aprovação pelo rito do §3º do artigo 5º, acrescentado pela Emenda
Constitucional n. 45/2004, teriam status de emenda constitucional. A virada
jurisprudencial representa melhoria na proteção dos direitos humanos no
Brasil, pois a concepção que anteriormente vigorava equiparava tais tratados à
lei ordinária, motivo pelo qual poderiam ser revogados por lei ordinária,
segundo os critérios da especialidade e cronológico, inclusive.
7. O conceito de área rural consolidada e as hipóteses de legitimação de
ocupação de áreas de preservação permanente trouxeram consequências
danosas para o meio ambiente, legitimando a degradação de áreas vitais para
a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável, ao autorizar a
ocupação de espaços territoriais com funções ambientais específicas e
diferenciadas, em confronto com a caracterização do direito ao meio ambiente
equilibrado como direito fundamental. O legislador ordinário descumpriu,
assim,
o
dever
fundamental
decorrente
do
reconhecimento
da
fundamentalidade material e formal das disposições constitucionais sobre a
proteção do meio ambiente, suficientemente especificados no §1º do artigo
225, da Constituição da República, os quais restringiram o âmbito de
conformação do legislador. Ademais, o §1º do artigo 5º da Carta Magna
determina a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e
garantias constitucionais, embora tal eficácia dependa muitas vezes do
enunciado normativo. De acordo com a classificação de José Afonso da Silva,
mesmo as normas de eficácia limitada ou reduzida, que necessitam de
complementação legislativa, tem eficácia negativa, impedindo a elaboração de
leis em contrário.
8. Não bastasse, os direitos fundamentais possuem dimensão subjetiva e
objetiva. A dimensão subjetiva se refere à possibilidade de ensejar a pretensão
a um determinado comportamento, no poder de a vontade produzir efeitos
sobre relações jurídicas. A caracterização do meio ambiente como bem
transindividual gera, por consequência, a possibilidade de gerar direitos
subjetivos coletivos. Anote-se que o reconhecimento de um direito subjetivo
coletivo é suficiente para assegurar a proteção ao direito adquirido, impedindo
que as alterações legislativas prejudiciais ao meio ambiente retroajam para
regular os fatos ocorridos durante a vigência da Lei n. 4.771/1965, sob pena de
ofensa à garantia do direito adquirido. De outro lado, a dimensão objetiva
caracteriza os direitos fundamentai como normas que representam valores
básicos da sociedade política, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento
jurídico. Essa dimensão cria para o Estado um dever de proteção contra
agressões dos próprios Poderes Públicos quanto de particulares ou outros
Estados. No cumprimento dessa tarefa, o Estado deve obediência ao princípio
ou postulado da proporcionalidade, nas vertentes da proibição de excesso e da
proteção insuficiente, ambos balizados pelos subprincípios da adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A partir desse critério,
conclui-se pela inadequação dos artigos do Novo Código Florestal que
relativizam a proteção desses espaços territoriais que deveriam ser
especialmente protegidos, bem como da dispensa de recuperação das áreas
degradadas, já que não garantem a sustentabilidade ambiental. O regime
jurídico transitório instituído viola o princípio da proporcionalidade, na vertente
da proibição de insuficiência, pois despreza os argumentos científicos que
justificam a proteção das áreas de preservação permanente, em detrimento de
processos ecológicos essenciais, além de dispensar a recuperação das áreas
degradadas, contrariando o princípio da reparação integral dos danos
ambientais. Viola, igualmente, a função socioambiental da propriedade rural,
que é exercida precipuamente através do respeito às áreas de preservação
permanente e reserva legal. Ofende, ainda, o princípio da vedação de
retrocesso ambiental, que tem por objetivo garantir um conteúdo mínimo
ambiental, impedindo retrocessos nos níveis de proteção do meio ambiente já
conquistados. Trata-se de um princípio constitucional implícito e que também
encontra amparo em convenções internacionais, prestando-se ao controle de
constitucionalidade e convencionalidade.
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 14. Ed., São Paulo: Atlas,
2012.
BENJAMIN, Antônio Herman. Princípio da proibição de retrocesso
ambiental,
p.
55.
Disponível
em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso em: 08 jul.
2013.
CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez. Direito ambiental. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2013.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 6.
ed., ampl., São Paulo: Saraiva, 2005.
FREITAS, Vladmir Passos de et al. Novo código florestal: comentários à Lei
12.651, de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do
Decreto 7.830, de 7 de outubro de 2012. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 428.
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de direito constitucional. 5. ed., Salvador:
Juspodivm, 2011.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed., atual. e ampl.,
São Paulo: Saraiva, 2012.
LEUZINGER, Márcia Diegues. Áreas Protegidas e Código Florestal
(publicado nos anais do congresso do planeta verde/2012).
LOUBET, Luciano Furtado; ALMEIDA; Luiz Antônio Freitas de.
Inconstitucionalidades dos retrocessos empreendidos pelo novo código
florestal.Disponívelem:<http://jus.com.br/revista/texto/22582/inconstitucionalid
ades-dos-retrocessos-empreendidos-pelo-novo-codigo-florestal>. Acesso em:
08 jul. 2013.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed., São
Paulo: Malheiros, 2013.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina
jurisprudência, glossário. 6. ed., rev. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
MELO NETO, João Evangelista; MILARE, Edis (Coord.); MACHADO, Paulo
Afonso Leme (Coord.); Novo código florestal: comentários à Lei 12.651, de
25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto
7.830, de 7 de outubro de 2012. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013, p. 82.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed., rev., e atual., São
Paulo: Saraiva, 2008.
MOLINARO, Carlos Alberto. Princípio da proibição de retrocesso ambiental.
p. 114-115. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>.
Acesso em: 08 jul. 2013.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 4. ed., rev., atual. e ampl., Rio de
Janeiro: Método, 2010.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional
internacional. 10. ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2009.
_____. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo
dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 12. ed., rev., ampl.
e atual., São Paulo: Saraiva, 2011.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e
privado incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. 3.
ed. rev. ampl. e atual., Salvador: Juspodivm 2011.
ROTHENBURG, Walter Claudios. Princípio da proibição de retrocesso
ambiental. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>.
Acesso em: 08 jul. 2013.
SARLET, Ingo Wolfgang; FERFENSTEIN, Tiago. Notas sobre a proibição de
retrocesso em matéria (sócio) ambientaL, p. 142-143. Disponível
em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242559>. Acesso em: 08 jul.
2013.
SENISE, Walter José, et al. Novo código florestal: comentários à Lei 12.651,
de 25 de maio de 2012, à Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012 e do Decreto
7.830, de 7 de outubro de 2012. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013, p. 454.
SILVA, José Afonso da Silva. Direito ambiental constitucional. São Paulo:
Malheiros, 2010.
_____. Curso de direito constitucional positivo, 30. ed., rev. e atual.,
Malheiros: São Paulo, 2008.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 6. ed., São Paulo:
Saraiva, 2008.
SILVA, Romeu Faria Thomé da. Manual de direito ambiental. Salvador:
Juspodivm, 2011.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. São Paulo: Método, 2011.
TRENNEPOHL, Natascha. Manual de direito ambiental. Niterói: Impetus,
2010.
Download