Anais do XVIII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178 Anais do III Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420 24 e 25 de setembro de 2013 A RELAÇÃO CREDOR-DEVEDOR: PASSAGEM DA NOÇÃO DE RESPONSABILIDADE-DÍVIDA À NOÇÃO DE JUSTIÇA E AO SENTIDO DO DIREITO NO PENSAMENTO DE NIETZSCHE Fábio Guimarães de Castro Vânia Dutra de Azeredo Faculdade de Filosofia Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas [email protected] Ética, política e religião: questões de fundamentação Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas [email protected] Resumo: 1 Esta pesquisa bibliográfica pretende investigar as relações contratuais fundamentais de compra, venda, troca e débito como passagem da noção de responsabilidade-dívida à noção de justiça e ao sentido do direito no pensamento Nietzsche. Insere-se na linha de pesquisa Ética: questões de fundamentação, do grupo: Ética, política e religião: questões de fundamentação. Mostraremos, filosoficamente, a partir da genealogia e da história, uma análise perspectiva segundo a qual se pode repensar as relações entre credores e devedores e suas implicações éticas, morais, históricas e ideológicas. Para tanto, sob suporte da interpretação perspectivo-nietzschiana, analisaremos a Segunda Dissertação da Genealogia da Moral bem como fragmentos, rigorosamente selecionados, do corpus nietzschiano e comentadores e/ou autores exteriores a fim de responder ao seguinte problema: Partindo das relações de compra e venda e da consequente culpa, inquirir como que o filósofo alemão, Friedrich Wilhelm Nietzsche, explica a proveniência e a gênese do sentimento de culpa desde a dívida e como é derivada a justiça e a obrigação pessoal dessa mesma dívida? Em que medida retraçar o caminho da dívida nos remete ao sentido do direito no pensamento de Nietzsche? Responder a essas e a outras questões é o principal objetivo dessa pesquisa de Iniciação Científica. Palavras-chave: Credor-devedor, Direito, Justiça. 1 Obs.: Os resultados dessa pesquisa já estão publicados, sob a forma de artigo científico, na Revista Lampejo (Nº 3 06/2013). Para o resumo expandido, fizemos algumas adequações, bem como inserimos alguns desenvolvimentos posteriores. Área do Conhecimento: Ciências Humanas – Filosofia – CNPq. 1. INTRODUÇÃO Extensamente exposta na segunda dissertação da Genealogia da Moral, a relação credor-devedor é analisada por Friedrich W. Nietzsche (1844 - 1900) desde a pré-história. Detectou-se que esse voltar-se aos primórdios revela a pretensão do filósofo alemão em não só fugir das tradicionais análises, bem como detectar, com o auxílio da filologia e da história, as nuances e consequências que a relação credor-devedor sofreu ao longo do devir-histórico. Destarte, as relações de compra, venda e intercâmbio, quando associadas ao sentimento de culpa (Schuldgefühl), dívida (Schulden), dever e obrigação pessoal, assumem caráter moral, postas a serviço da nuance interpretativa; Para tanto, voltamo-nos ao alvorecer da humanidade onde Nietzsche detecta a moralidade do costume (Sittlechkeit der Sitte) como possibilitadora do posterior indivíduo responsável, supra moral e, no limite a constituição do credor-devedor. 2. PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES: 2.1 Moralidade do Costume Localizada na pré-história, a moralidade do costume é o início do processo de adestração do indivíduo haja vista o aprendizado das exigências elementares ao convívio social. Destarte, dentre seus objetivos detectou-se: inscrever no humano a incondicionalidade da obediência, a submissão aos costumes e, por fim, a autonomia legislativa. Todavia, uma vez em posse da soberania, a moralidade é, necessariamente, auto suprimida. Daí, verificou-se que esse indivíduo soberano, plenamente dotado de responsabilidade, tornarse-á capaz de não só prescindir da moralidade como também legislar novos costumes consentâneos à sua condição livre. Dando origem ao promitente. Esse indivíduo capaz de responder por si como porvir. Anais do XVIII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178 Anais do III Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420 24 e 25 de setembro de 2013 Analisando o tipo promitente, foi possível constatar que ele é o avesso da irresponsabilidade, pois vê na palavra firmada um contrato jurídico que não poderá ser rescindido nem diante das intempéries do porvir. Ora, se o promitente para Nietzsche possui atributos não comuns a qualquer humano, mas dádivas alcançadas por poucos como: responsabilidade, vontade própria, consciência de si e do alcance de seu poder e por esses motivos vê na palavra firmada um pacto, concluir-se-á que o promitente, tornar-se-ia impecável devedor, pois veria na dívida, para com seu credor, uma obrigação moral a ser paga, impreterivelmente, dentro dos limites outrora estabelecidos por ambos. 2.2 Da Inadimplência à relação dano-dor: Uma vez prejudicado, o credor exigirá ressarcimento. Na ausência da restituição material, fundamenta-se o castigo moral e/ou físico como peso equivalente ao dano sofrido. Desse modo, objetivando o reconhecimento da sua responsabilidade, o devedor mediante a promessa, firma com seu credor uma relação contratual; comprometendo-se, restituir-lhe qualquer eventual dano advindo de sua dívida. Nesse contrato, o devedor, para o caso de inadimplir o crédito, penhora ao credor algo que ainda esteja em seu domínio: “como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida [...]).” [1]. 290 anos precedentes à análise nietzschiana presente em Zur Genealogie der Moral (1887), Wiliam Shakespeare, em The Merchant of Venice (1597) elucidara a exequível consequência da ruptura contratual entre credor e devedor através do célebre diálogo entre o mercador Antônio e o agiota Shylock (p. 114) [6]. Nos termos nietzschiano, “o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas, por exemplo, cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dívida” [1]. Em ambos, percebe-se a equivalência entre dano e dor, pois o devedor é responsabilizado por uma dívida que deve ser paga mediante a satisfação íntima do credor. Porém, estudos comparativas entre Nietzsche e Shakespeare, demonstrou-nos que tal satisfação não significa o repleto ressarcimento da dívida. Pois, a equivalência entre dano e dor embora faça o devedor responsável pela restituição dos benefícios que lhe foram a priori concedidos, esbarra-se num imenso problema: nem sempre a dor sofrida pelo devedor é equivalente ao dano causado ao credor, pois, mais do que quebra contratual, houve quebra de confiança, respeito, solidariedade; valores dificilmente ressarcidos pelo sofrimento ou dor carnal do devedor. Todavia, para Nietzsche, o único fundamento para a relação dano-dor é o axioma humano, demasiado humano no qual “vê-lo sofrer faz bem, fazê-lo sofrer mais bem ainda” [1]. Proporcionando ao credor, o mais esplêndido prazer, podendo, legalmente, descontar parte de sua indignação no infrator, sem ser punido pela lei vigente. 2.3 Da responsabilidade-dívida à responsabilidade-culpa: Notou-se aqui, pela primeira vez, a associação da responsabilidade à culpa. Oriunda, segundo Hironaka, da Idade Média; momento em que o direito ainda estava subordinado à religião e moral cristãs, sem contudo, adquirir a conotação de responsabilidade civil que lhe é posterior [7]. Análises genealógicas possibilitou-nos detectar que a passagem da responsabilidade-dívida à responsabilidade-culpa se efetivara com o advento martirológico de Jesus de Nazaré, momento no qual as categorias fundamentais de culpa e dívida (Schuld) transmutamse axiologicamente dum sentido jurídico-econômico (dívida) ao moral (culpa). Daí a humanidade ter contraído desse Deus-credor um débito irresgatável a ser ressarcido mediante a eterna adoração, sob o risco da eterna punição, por fim da alocação no Tártaro dos danados aos réus da desobediência ao “CredorOnipotente” monopolizado pela moral judaico-cristã. 2.4 Da responsabilidade-dívida à Justiça: Retornando ao título de nossa pesquisa detectamos que a “passagem da noção de responsabilidadedívida à noção justiça” se deu com a tresvaloração da noção de responsabilidade, isto é, anterior à proveniência da justiça os débitos individuais recaiam sobre o corpo social ali constituído. Nesse estágio, a comunidade “sente a culpa do indivíduo como sua culpa e leva o castigo deste como seu castigo” [2]. Havendo, portanto, uma responsabilização da comunidade pelos desvios de conduta de seus membros. Contudo, com a elevação de potência da comunidade, a proveniência da justiça e a consequente tresvaloração da responsabilidade o homem torna-se responsável por si e suas infrações não mais serão debitadas da comunidade, mas de si próprio, no limite torna-se responsável “pela criação de seu caminho, de sua virtude, de sua lei” [5]. 2.5 Nietzsche e o Direito: Tanto a justiça quanto o direito são abordados por Nietzsche nas três fases de seu empreendimento filosófico. Enquanto professor de filologia clássica, conheceu profundamente a origem do direito, momento anterior à cisão entre direito natural e direito positivo, bem como a sua posterior evolução onde ocorre a dissensão entre essas duas correntes que se encontram na base do ordenamento jurídico da cultura ocidental [3]. Anais do XVIII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178 Anais do III Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420 24 e 25 de setembro de 2013 De acordo com Fernandes [3], 25 anos antes de Hans Kelsen efetuar a desconstrução do direito natural em O problema da justiça, Nietzsche já descontruíra os quatro pressupostos que o embasam: universalidade, imutabilidade, atemporalidade e não postulação humana. Todavia, ainda segundo Fernandes, antes de levar a cabo a desconstrução do direito natural Nietzsche introduz um elemento anterior não posto por Kelsen o direito natural mitológico detectado na Antígona de Sófocles [3]. Segundo Nietzsche, o direito surgiu na pré-história da humanidade. Nesse sentido, localizado nos primórdios da civilização, inviabilizar-se-á a existência dum direito atemporal, anterior e independente do indivíduo. Esse é um dos pontos cruciais da filosofia do direito nietzschiana, a efetividade de se pensar o direito como fenômeno antinatural, uma criação humana. Daí a desconstrução realizada por Nietzsche e, posteriormente por Hans Kelsen da inviabilidade dum direito natural. 2.6 As relações contratuais: o Direito e a Justiça Acredita-se que surgiu aqui (relações contratuais), pela primeira vez, o homem como aquele que valora, mede e estipula valor [1]. Um verdadeiro “animal avaliador”. Daqui, depreende-se a valoração e a troca, que por sinal, acabam por definir e distinguir o homem dos animais irracionais. Na troca, encontramos o caráter inicial da justiça (Gerechtigkeit), marcado pela obtenção recíproca do estimado, uma verdadeira balança cujos pratos pendem de acordo com as referidas potências de culpa e castigo. Com esse dado, pudemos verificar a disparidade da concepção nietzschiana de justiça e a juridicidade distributiva meritocrático-aristotélica pautada pela consentaneidade dos méritos. Pois, ao contrário de Aristóteles, a juridicidade de uma ação para Nietzsche dependerá exclusivamente das forças, impulsos e vontades de poder que atuem sobre ela no momento da ação. Similar à justiça e ao direito, na relação credordevedor o rompimento do contrato é reparado sob a máxima de que “o criminoso merece ser punido”. Isso, faz com que o devedor adquira a consciência culpada devido ao rompimento do contrato. Aqui, deparamo-nos com a velha questão: até que ponto a justiça exigida pelo credor é justa e não vingativa? Contrário à Karl Eugen Dühring (1833 – 1921), Friedrich Nietzsche rejeita buscar a proveniência da justiça no terreno do ressentimento, evitando “sacralizar a vingança sob o nome de justiça” [1]. Para Nietzsche, o problema residente nessa sacralização é que a primeira, ao contrário da segunda, em uma avaliação moral, põe em questão e faz valer apenas o ponto de vista do prejudicado não levando em conta as razões do prejudicador. Enquanto na Justiça, “o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, até mesmo o olhar do prejudicado” [1]. Com isso percebeu-se a díspar diferença entre vingança e justiça e a consequente impossibilidade da justiça ter sido evolução do sentimento de estar ferido. A vingança, sim, nasce do ressentimento, criador do ódio, da inveja e do rancor. Desse modo, o direito penal, desde o alvorecer da humanidade, antagônico às preleções de E. Dühring, tem como função controlar o pathos reativo, conter seus desregramentos e, no limite impor um acordo. É nesse acordo tácito que, segundo Nietzsche, fundamentar-se-á a própria relação credor-devedor, estabelecendo, legalmente, para o caso da inadimplência, o castigo como cálculo reparador da infração. Entretanto, ainda que respaldado pela ideia de justiça, esse castigo deverá ser equipolente ao dano sofrido, sob risco do credor se tornar também um infrator e portanto outro fragmento irresponsável do destino, digno de castigo. Desse modo, detectou-se que o direito e justiça, utilizando-se de meios legais, defendem e/ou julgam o traidor e traído sempre de modo impessoal, isto é, sem estabelecer juízos de valor a priori. Do contrário, tanto a justiça quanto o direito, tornar-seiam vingança e fugiriam aos seus propósitos jurídicopenais. Na perspectiva nietzschiana, a relação do direito penal (Strafrecht) e da justiça (Gerechtigkeit) com a comunidade se dá consentâneo ao nível de soberania social. Isso ocorre, porque em uma comunidade enfraquecida social e juridicamente, qualquer revolta às leis pode significar o solapar das estruturas que regem a sociedade. Todavia, caso a mesma violação à lei ocorra em uma comunidade solidificada em bases concretas, os desvios do infrator passam a não mais oferecer o mesmo perigo que outrora oferecia para a estrutura social. Pois, nessa comunidade, tais ações poderão ser ressarcidas por meio da pena ao infrator, conduzindo-o à consciência de sua culpa e posterior arrependimento devido ao dano causado à estrutura social. O que, de certa forma, legitima a supressão da justiça e do direito concernentes ao grau de soberania atingido na relação entre o dominante (lei) e os dominados (cidadãos). 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como expusemos desde o início da pesquisa, as relações de tipo credor-devedor remontam a préhistória da humanidade, abrangem os mais diversos perfis da sociedade: Estado, divino, indivíduos, antepassados, bem como a consciência desses e suas respectivas relações. Suas origens vão desde o primitivo, escambo e/ou direito comercial primitivo à ne- Anais do XVIII Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178 Anais do III Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420 24 e 25 de setembro de 2013 cessidade de proteção e subjugação ou ainda superstição e introspecção [3]. A matriz de tais relações poderá ser, tanto uma relação mútua de credor-devedor, quanto de dominação por alguma parte. Breve análise do corpus nietzschiano revelou a pluralidade axiológica que o tema da justiça assume no pensamento do autor do Zaratustra. Com isso, não só inviabiliza qualquer sistematização conceitual bem como insere a justiça no âmbito das interpretações perspectivas. Desse modo, Nietzsche “não oferece, portanto, uma resposta do que seja o justo, mas mantém o homem na incomensurabilidade trágica” [5]. Nesse intento, o leitor que esperava uma definição ao conceito de justiça no pensamento de Nietzsche irá, sem dúvida frustrar-se. Pois Nietzsche apenas oferece perspectivas para a análise desse fenômeno primordialmente humano. Daí a impossibilidade presente de definirmos esse conceito ainda que seja possível pensarmos uma justiça nietzschiana. Eis que constatamos, tal como esperado no Plano de Trabalho de IC, a peculiaridade empreendida por Nietzsche, no trato da relação credor-devedor. Sob sua ótica, as relações de compra, venda, troca, escambo e crédito, quando concebidas desde o alvorecer da civilização e associadas à: culpa, dívida, responsabilidade, direito obrigacional e justiça, mostram-se, por vezes, mais abrangentes do que o tradicional discurso ideológico-social-capitalista propagado pela cultura de massa (televisão, rádio e sites não científicos). Dessa forma, na perspectiva nietzschiana, há entre o credor e o devedor mais do que uma relação de manipulação psicológica com vistas à obtenção desmedida de lucro, mas percebe-se a existência duma relação contratual a imprimir em ambos, além do desejo pelo produto, a fixação de: forças, impulsos, vontades de poder com as quais o humano valora, estipula, mede, traça equivalências entre os produtos. Em su- ma, percebe-se em Nietzsche, outra ótica segundo a qual a relação credor-devedor adquiri valor e é posta no recinto moral. Tornando possível, a sua análise tanto filosófica quanto jurídica. Daí, a efetividade, aqui empreendida, de se pensar, a partir da Filosofia nietzschiana, “a relação credor-devedor como passagem da noção de responsabilidade-dívida à noção de justiça e ao sentido do direito”. REFERÊNCIAS [1] NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987. [2] ____________ Nietzsche. Obras Incompletas. Coleção “Os Pensadores”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983. [3] FERNANDES, R. Rosas. Nietzsche e o direito. 2005, 239 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Pontifícia universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. [4] AZEREDO, Vânia. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial & Unijuí, 2003. [5] MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça. São Paulo: Perspectiva, 2010. [6] SHAKESPEARE, W. O mercador de Veneza. Trad. de Carlos Alberto Nunes. 2. Ed. São Paulo: Melhoramentos, 1597. [7] HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2005, p. 407.