PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS LIÇÕES ACERCA DO ADVÉRBIO: UMA VIAGEM DIACRÔNICA POR GRAMÁTICAS DO PORTUGUÊS MARIA JOSÉ AGOSTINI SAKSIDA BELO HORIZONTE 2005 1 MARIA JOSÉ AGOSTINI SAKSIDA LIÇÕES ACERCA DO ADVÉRBIO: UMA VIAGEM DIACRÔNICA POR GRAMÁTICAS DO PORTUGUÊS Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da Pontifícia Universidade de Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Língua Portuguesa. Orientadora: Profa. Drª. Vanda de Oliveira Bittencourt BELO HORIZONTE 2005 2 Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas e aprovada por Comissão Examinadora constituída pelos seguintes professores: ___________________________________________ Profa. Dr.ª Marlene Machado Zica Vianna (UFMG) ___________________________________________ Prof. Dr. Johnny José Mafra (PUC Minas) ____________________________________________ Profª. Drª. Vanda de Oliveira Bittencourt (Orientadora – PUC Minas) Belo Horizonte, 01 de julho de 2005 ______________________________________________ Prof. Dr. Hugo Mari Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC MINAS 3 Ao meu filho Rômulo Saksida Bittencourt de Souza. À professora Drª. Vanda de Oliveira Bittencourt. 4 AGRADECIMENTOS À Vanda de Oliveira Bittencourt, pela orientação segura e primaz. A Rômulo Saksida Bittencourt de Souza, pela paciência e pelas horas de convívio que lhe foram roubadas. À Eliane Mourão, pelo incentivo primeiro. À Luciane Dinardo Abreu, pelo carinho e pelas orações. Ao Professor Johnny José Mafra, pelas valiosas observações e pela atenção dispensada. Aos Professores da Pós-graduação em Letras da PUC Minas, pelas inúmeras lições de sabedoria. Aos funcionários da Secretaria da Pós-graduação em Letras, pelo carinho e disponibilidade. Aos amigos Carla Cristina Viana, Aníbal Amaral de Barros, Welder de Oliveira Melo, Yolanda Lopes, Pollyanne Bicalho e Geane Rodrigues Ribeiro Leite, sem os quais este trabalho não teria sido realizado. Aos companheiros de todas as horas Fábio Roque, Isabel Cristina Martins e Maria Regina Gomes, pela voz estimuladora. Aos colegas da E. E. Tito Fulgêncio e da Faculdade de Santa Luzia, pelo apoio inestimável. Aos meus “alunos-cobaia”, público-alvo deste trabalho. 5 Os lingüistas modernos tenderam muitas vezes a desconsiderar o que chamam de gramática tradicional e a subestimar os pontos de vista dos estudiosos da linguagem na era medieval e início da era moderna (...) Apesar disso, as observações da gramática tradicional são mais profundas e sua contribuição é maior do que tendem a reconhecer seus críticos. É muito mais fácil fazer amplas críticas do que avaliar séculos de trabalho cuidadosa e criteriosamente. À medida que nossas teorias sobre as estruturas lingüísticas vão se tornando mais sofisticadas, tonamon-nos mais conscientes de que os gramáticos tradicionais não se distanciavam tanto da trilha. (LANGACKER, 1972, p.17) 6 RESUMO De caráter eminentemente metalingüístico, o presente trabalho busca realizar um estudo descritivo e, na medida do possível, crítico, de “lições” fornecidas por gramáticos – portugueses e brasileiros – de “ontem” e de “hoje”, acerca da classificação de palavras, e, principalmente, do tratamento conferido ao advérbio. Dissimulada e camaleônica, essa espécie lexical vem, ao longo do tempo, desafiando nossos lingüistas a delimitar, com a devida precisão, os traços que lhe são peculiares, distinguindo-o, assim, dos demais tipos vocabulares encontrados no português. Em oposição aos que consideram inócua qualquer proposta taxonômica de ordem lingüística, defende-se, aqui, a importância da tarefa de categorização para o conhecimento e descrição das línguas. Com base nesse pressuposto, busca-se rastrear o percurso evolutivo dos “ensinamentos” em torno do advérbio, colhidos de gramáticos considerados representativos de tempos pretéritos – séculos XVI e XIX –, e de tempos mais recentes – séculos XX e XXI. Como contribuição própria, procura-se, ainda, apontar: as convergências e as divergências entre as “lições” examinadas, os avanços alcançados pelos autores, bem como os problemas que ainda demandam soluções mais coerentes e precisas. Paralelamente a essas tarefas, tenta-se, à guisa de contraposição aos ensinamentos apresentados, mostrar, a partir de dados empíricos, o uso real do “advérbio” no português hodierno. Palavras-chave: Gramáticas de língua portuguesa Fases pretérita e contemporânea Lições sobre a classificação de palavras Lições sobre o advérbio Linha de Pesquisa: Variação e Mudança Lingüística 7 RÉSUMÉ Dans ce travail nous nous proposons d’ examiner des «leçons » données par nos grammairiens – portugais et brésiliens –, d’ « hier » et d’ « aujourd’ hui » sur l’ adverbe. Ce type de mot, appelé « maudit », constitue, le long du temps, un défi pour les linguistes qui essayent de déterminer ses caractéristiques particulières, qui le distinguent des autres espèces de mots trouvées dans la langue portugaise. Ainsi, au contraire de ceux qui considèrent anodiene quelconque proposition taxonomique, nous cherchons à montrer ici l’importance de la catégorisation pour la connaissance et la description des langues. Dans un « voyage » tout au long de différents siècles, nous cherchons à déceler le parcours évolutif des « enseignements » sur ce group vocabulaire, empruntés à quelques-uns de nos grammairiens anciens – XVIème et XIXème siècles – et modernes – XXème et XXIème siècles. À titre de contribution personnelle, nous tâchons de mettre en évidence les convergences et les divergences entre les « leçons » ayant été examinées et les avancées de la pensée linguistique qui ont eu lieu. Atravers de exemples empruntés au portugais courant, nous essayons, aussi, à titre de contrapoint, de montrer l’usage réel de l’adverbe dans nos jours. Mots-clé : Grammaires de la langue portugaise Temps ancien et temps moderne Leçons sur la classification des mots Leçons sur l’adverbe 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS FIGURA 1 “Partes da oração”, segundo Fernão de Oliveira (1536/1975) ................. 56 FIGURA 2 “Partes da língua portuguesa”, segundo João de Barros (1540/1957) .... 62 FIGURA 3 “Sistema completo dos elementos da oração”, segundo Jeronymo Soares Barbosa (1803/1881) ..................................................................................... 78 FIGURA 4 “Taxeonomia das palavras do português”, segundo Júlio Ribeiro (1882/ 1884) ............................................................................................................. 87 FIGURA 5 “Taxionomia das palavras do português”, segundo José Oiticica (1919/ 1923) ............................................................................................................ 104 FIGURA 6 As “espécies” de palavras do português, segundo Gladstone Chaves de Melo (1970 e 1981) ..................................................................................... 115 FIGURA7 “Caracterização das categorias gramaticais” do português, segundo Mário Vilela e Ingedore Villaça Koch (2001) ..................................................... 125 QUADROS QUADRO 1 Lições sobre a caracterização dos advérbios em gramáticas dos séculos XVI e XIX ................................................................................................. 95 QUADRO 2 Lições sobre a distribuição dos advérbios em gramáticas dos séculos XVI e XIX ............................................................................................................ 96 QUADRO 3 Lições sobre a caracterização dos advérbios em gramáticas dos séculos XX e XXI ..................................................................................................... 136 QUADRO 4 Lições sobre a distribuição dos advérbios em gramáticas dos séculos XX e XXI ............................................................................................................ 137 9 LISTA DE ABREVIATURAS Adj. = Adjetivo Adv. = Advérbio Art. = Artigo Conj. = Conjunção Coord. = Coordenativa Inv. = Invariável Prep. = Preposição Pron. = Pronome SN Sintagma Nominal = SPred. = Sintagma Predicativo SPrep = Sintagma Prepositivo SAdj. = Sintagma Adjetivo SAdv. = Sintagama Adverbial Sub. Subordinativa/ Subordinação = Subst. = Substantivo Var. Variável = 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: “CATEGORIZAR É PRECISO” 1.1 Delimitação do objeto e justificativa ............................................................................ 12 1.2 Objetivos ...................................................................................................................... 20 1.3 Metodologia ................................................................................................................ 21 1.3.1 Seleção dos compêndios gramaticais .......................................................................... 21 1.3.1.1 Critérios adotados ................................................................................................. 21 1.3.1.2 Compêndios selecionados ..................................................................................... 22 1.3.1.2.1 De tempos pretéritos: séculos XVI e XIX ......................................................... 22 1.3.1.2.2 De tempos recentes: séculos XX e XXI ............................................................. 23 1.3.2 Caminhos de análise ................................................................................................ 24 1.4 Plano do trabalho ........................................................................................................ 25 2 O ADVÉRBIO: UM “ORNITORRINCO” DA GRAMÁTICA? 2.1 Introdução .................................................................................................................... 27 2.2 Problemas de definibilidade ......................................................................................... 29 2.3 Problemas de caracterização e de subclassificação ...................................................... 33 2.3.1 De natureza morfológica ........................................................................................... 33 2.3.2 De natureza sintática ................................................................................................. 35 2.3.3 De natureza semântica ............................................................................................... 42 2.4 Conclusão ..................................................................................................................... 45 3 LIÇÕES DE ANTANHO: O TRATAMENTO DO ADVÉRBIO EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XVI E XIX 3.1 Introdução .................................................................................................................... 48 3.2 Lições primeiras: gramáticos do século XVI .............................................................. 50 3.2.1 Panorama lingüístico geral ....................................................................................... 50 3.2.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas ............................................... 53 3.2.2.1 Fernão de Oliveira (1536) ..................................................................................... 53 3.2.2.2 João de Barros (1540) .......................................................................................... 60 3.3 Lições intermediárias: gramáticos dos séculos XVII e XVIII .................................... 68 11 3.3.1 Século XVII ............................................................................................................ 68 3.3.2 Século XVIII ............................................................................................................ 70 3.4 Lições finais: gramáticos do século XIX .................................................................... 73 3.4.1 Panorama lingüístico geral ...................................................................................... 73 3.4.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas ............................................... 73 3.4.2.1 Jeronymo Soares Barbosa (1803/1881) ............................................................... 73 3.4.2.2 Júlio Ribeiro (1882/1884) .................................................................................... 85 3.5 Conclusão ................................................................................................................... 94 4 LIÇÕES DA CONTEMPORANEIDADE: O TRATAMENTO DO ADVÉRBIO EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XX E XXI 4.1 Introdução .................................................................................................................. 97 4.2 Lições de gramáticos dos séculos XX e XXI ............................................................ 99 4.2.1 Panorama lingüístico geral ..................................................................................... 99 4.2.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas .............................................. 102 4.2.2.1 Primeira “geração”: José Oiticica (1919/1923) ................................................... 103 4.2.2.2 Segunda “geração”: Gladstone Chaves de Melo (1951/1981 e 1968/1970) ........ 111 4.2.2.3 Terceira “geração”: Mário Vilela e Ingedore Villaça Koch (2001) ..................... 122 4.3 Conclusão .................................................................................................................. 134 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DECIFRAR O ADVÉRBIO É PRECISO.... 138 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 145 12 1 INTRODUÇÃO: “CATEGORIZAR É PRECISO” A linguagem, intérprete da intelligencia, é um instrumento de analyse: com effeito, as palavras servem para distinguir os seres, os objectos, as qualidades, as substancias reaes ou abstractas, as açções, os estados diversos das pessoas, das cousas, todas as manifestações da vida, todos os phenomenos, até mesmo os que caem sob o domínio da imaginação e do futuro, o contingente, o absurdo, o impossível. Ajuntem-se ainda as relações innumeraveis de tempo e de logar, de gênero e de espécie, de numero e de qualidade, de causa e de effeito; as relações e as correlações infinitas de tudo o que existe, e que se pôde conceber (...). Pasmará a mente ante a simplicidade desse mechanismo assombroso, ou ante dessa organização pujante, cujas funções múltiplas se apresentam por meio de um número tão limitado de apparelhos. (RIBEIRO, 1884, p. 57) 1.1 Delimitação do objeto e justificativa Nas trilhas de gramáticos da envergadura de Said Ali (1969, 1971) e em oposição a certos autores contemporâneos, Perini (1985, 1989, 1995, 1997, 2004), um de nossos lingüistas mais empenhados em descrever o português à luz de novos modelos teóricos, ou seja, suscetíveis de apresentar “maior responsabilidade teórica, maior rigor de raciocínio” e “libertação do argumento da autoridade”(cf. PERINI, 1985, p. 7-8), defende, com a maior veemência, a necessidade e a importância da categorização para melhor conhecimento, e descrição mais eficaz das línguas. Desse modo, baseando-se no exemplo dos zoólogos, que têm, como uma das molas mestras de seus procedimentos investigatórios, a separação dos animais em classes, ordens, espécies, etc., esse autor vem tentando levar à frente a tarefa, nada fácil, de classificação dos vocábulos constitutivos do acervo lexical português. Certo dessa premência, ele nos aponta as seguintes vantagens do recurso a esse instrumental de análise: A primeira vantagem de se definir classes é que se torna possível fazer afirmações gramaticais com o máximo de economia. (...) . A economia, no caso [ da subclassificação de substantivos], pode parecer pequena, (...) mas as descrições gramaticais se ocupam de línguas inteiras, e aí a economia pode ser muito grande. Há outras razões (...) que têm a ver com fatores tais como: a depreensão dos grandes 13 traços da estrutura da língua, ou o estudo da organização da memória para elementos lingüísticos. (PERINI, 1995, p. 307, 309) Corroborando tal idéia, em sua obra Sofrendo a gramática, datada de 1997, esse lingüista salienta que, na realidade, a tarefa de classificação, além de promover diálogos entre os cientistas, nada mais é do que o reflexo de um procedimento comum aos usuários da língua, que, com base nas propriedades relevantes das palavras, por exemplo, identificam a espécie a que pertencem. Além de Perini, vale lembrar que lingüistas como Dubois et al (1993, p.108-109) já defendiam a idéia de que “a noção de classe distribucional (...), frutífera em lingüística estrutural em diversos níveis...”, tem o mérito de esclarecer “certas ambigüidades dos enunciados realizados”. Prova disso, afirmam eles, é a dupla interpretação do elemento vou, em frases como “Eu vou ver.”, em que esse item “pode indicar movimento (“Vou lá para ver”) ou um futuro (“Eu verei dentro de pouco tempo”). No primeiro caso, o item verbal “ver”, explicam eles, é interpretado como um item pertencente à classe dos verbos denominados “plenos” pela tradição gramatical; no segundo, como integrante do grupo dos auxiliares, que apresentam maior grau de gramaticalidade. Apesar de toda uma tradição voltada para a taxonomia lexical − inaugurada, no século IV a.C., nos Diálogos (Crátilo e Sofista) de Platão (séc. IV a. C) e reformulada, posteriormente, por Aristóteles (séc. IV a. C) e outros sábios que o sucederam − , os seus defensores sempre tiveram, e ainda têm, diante de si, problemas mais, ou menos, complexos a enfrentar e a resolver. De natureza variada, essas dificuldades podem explicar a descrença de tantos estudiosos na eficácia do recurso a procedimentos classificatórios, na descrição das línguas. Dentre várias “aflições”, saliente-se, aqui, a que diz respeito à própria determinação das espécies vocabulares. Dessas temos como uma das “vilãs a interjeição, nem sempre considerada no mesmo nível das demais. Se, para manter o quadro de oito classes de palavras, 14 proposto pela primeira vez por Aristarco, os gramáticos latinos não hesitaram em inserir o “bloco das interjeições” em substituição ao do “artigo”, presente na língua grega, mas ausente na latina, o mesmo não se verifica em taxonomias postuladas por autores como Silva Júnior e Andrade (1913, p. 127), que vêem na “interjeição” uma “forma rudimentar, instinctiva”, que não exprime “como as outras palavras, idéias ou relações”. Buscando explicar esse tipo de “desencontro” entre os autores, Vilela (1999, p. 52) nos adverte que, como “há concepções e categorias diferentes de acordo com determinados critérios (...), a divergência de concepção na classificação pode ser profunda”, e que “o número de categorias gramaticais admitidas e mencionadas não é um sinal menor dessa divergência”. No estudo que faz do termo “categoria”, Abbagnano, em seu Dicionário de filosofia (edição de 2000), reconhece o caráter intrinsecamente aberto de qualquer taxonomia. Em suas palavras, ... cientistas, filósofos e pesquisadores em geral sempre exerceram o direito de propor novas C. [ = categorias], isto é, novos instrumentos conceituais de investigação e de expressão lingüística. Donde a necessidade de formular a noção de categoria exatamente como a de tal instrumento: noção que, além de tudo, tem a vantagem de caracterizar igualmente bem a função efetiva de todos os conceitos de C. historicamente propostos. (ABBAGNANO, 2000, p. 124) Um problema que vem desafiando os interessados em identificar e alistar os diferentes grupos vocabulares pertencentes ao acervo lexical das diversas línguas decorre da dificuldade de delimitação peculiares a cada um deles, feita de um modo mais generalizado possível. Consciente de que a Lingüística, tal como a Zoologia, “também tem seus ornitorrincos” (animais australianos que têm características de mamífero e réptil), Perini (1997, p. 42) reconhece, dentre outras coisas, que a separação tradicional entre “substantivos” e “adjetivos” não é fácil de sustentar. Prova disso são ocorrências como a de abaixo, que, transcrita desse autor (1997, p. 45), ilustra a possibilidade de “adjetivação” de substantivos, no caso, representado pelo termo cabeça: 15 (1) “Ontem fui ver um filme muito cabeça.” Acrescentando o “pronome” à sua lista de “termos problemáticos”, Perini (1997, p. 45) aponta que “não se conseguiu, até hoje, uma definição que separasse com clareza essas três classes”, − substantivo, adjetivo e pronome −, que, na verdade, constituiriam, no seu modo de ver, “uma grande classe, dentro da qual se distinguem muitos tipos de comportamento gramatical” (PERINI, 1997, p. 45). Também alocados por Perini (1997) no bloco dos ornitorrincos, os “adjetivos” traziam dificuldades para autores antigos, que optavam por arrolá-los na mesma classe dos “substantivos”, ou, então, na dos itens verbais. Confirme-se isso no seguinte excerto, transcrito do Dicionário de lingüística de Zélio dos Santos Jota: Para os antigos, os adjetivos eram capitulados entre os substantivos, porquanto com estes concordam aqueles em gênero, caso, etc.; outros os incluíam entre os verbos, por isso que ambos têm a função de predicado, ao passo que o substantivo tem a de sujeito. (JOTA, 1981, p. 65) Feitas essas considerações gerais, é chegada “a hora e a vez” de voltar a atenção para o famigerado grupo dos advérbios, espécie lexical escolhida como objeto do estudo metalingüístico aqui realizado. Para começar, indaguemos, antes de qualquer coisa, se, do mesmo modo que o “adjetivo” ( e outras classes de palavras) de Perini (1997), seria esse elemento também um “ornitorrinco” da gramática do português? Obviamente, essa pergunta é inteiramente retórica, uma vez, que, desde os tempos de “antanho” até os de hoje, as formas adverbiais, conforme se comprovará posteriormente, têm se constituído numa verdadeira “dor de cabeça” para os lingüistas, que insistem em identificá-las como um bloco homogêneo, procurando descobrir e apresentar os traços – morfológicos, sintáticos e semânticos – que lhes seriam peculiares. Comprovam-nos essa preocupação a maneira com que autores como Elia 16 (1980, p. 254) analisa enunciados como os de abaixo, colhidos de nossa conversa espontânea. No seu modo de ver, itens como felizmente, em situações como essa, não se configuraria como um advérbio (no caso, de “modo”), mas, sim, como um elemento pertencente a uma outra classe: a dos modalizadores, que atuam em outro nível da língua. Diferentemente dos advérbios propriamente ditos, essa espécie – de modalizadores – constitui-se em “meios pelos quais um locutor manifesta a maneira por que encara o seu próprio enunciado” (ELIA, 1980, p. 254): (2) “ Felizmente, a Marta perdeu a eleição. Não dava mais prá continuar agüentando aquela perua botoxeada, que nada fez por São Paulo.” (Exemplo coletado informalmente; destaque meu.) A propósito desse empenho em identificar o advérbio como uma classe autônoma, cumpre-nos lembrar que a sua inclusão entre as “partes do discurso”, se deu no século II a.C., por iniciativa de Dionísio da Trácia (séc. II a. C.), que, conforme nos mostra Elia (1980, p. 223), intitulou-o epírrema e o definiu como “parte do discurso invariável, que modifica o verbo ou a ele se ajunta” (destaques nossos). Por outro lado, pode-se testemunhar, no correr dos séculos, a tentativa de alguns gramáticos - especialmente na Idade Média - de estabelecer uma relação mais próxima entre o adjetivo e o advérbio, dada a capacidade comum aos dois de exercerem um mesmo papel (sintático e semântico) de determinantes e modificadores, respectivamente. Todavia, o parentesco entre “advérbio” e “adjetivo”, acima mencionado, não é visto consensualmente por todos os estudiosos. Tanto é que muitos buscam comprovar a distância entre os dois, apontando, dentre outras coisas, a maior flexibilidade do primeiro, relativamente à formação de novos itens lexicais. Evidenciam isso enunciados como (3), (4) e 17 (5) abaixo, em que há, respectivamente, casos de “adverbialização” de adjetivos tomados numa forma neutra – masculina singular – ; de “adverbialização” de adjetivos por acréscimo do sufixo –mente e, por fim, casos de “desadverbialização” – por gramaticalização e discursivização –, de locuções como de repente, que, conforme demonstrado por Bittencourt (1999) e Carvalho (2000), vem assumindo, pelo menos no português brasileiro oral espontâneo, outros significados e funções , nos diferentes domínios – gramatical, discursivo, conversacional, textual – onde passou a atuar: (3) a- “Jogue limpo no trânsito.” (Língua escrita, excerto de publicidade.) b- “Esta tartufada é uma receita tradicional italiana. Fatie duas trufas negras bem fino.” (Língua escrita, excerto de receita.) c- “João Leite perdeu feio em Belo Horizonte.” (Língua oral, comentário feito em programa televisivo.) (4) a- “Eu queria, assim... ser como o Ciro Gomes, que fala tão bonitamente!’ (Língua oral espontânea) b- “Eu sei que me visto-me felomenalmente, mas o barão falou que o meu charme está em eu ser eu mesmo.” (Fala do persongagem Giovanni Improtta, da novela “Senhora do Destino”, da Rede Globo de Televisão) c- “ Ela pensou que, falando interessantemente, ia me convencer em votar na tal de Pacífico”. (Língua oral espontânea) (5) a- “...trabalhar paráfrase nessa perspectiva, de repente... pode ser interessante.” (Exemplo de CARVALHO, 2000, p. 75; destaque nosso) 18 b- “... eu não sei o grau de ferimento do homem... de repente a opinião dele é muito importante.” (Exemplo de CARVALHO, 2000, p. 109; destaque da autora). c- “... o celular... de repente o celular do homem ... a mulher tava rezando... eu vi que ela tava rezando... o celular dele toca...” (Exemplo de CARVALHO, 2000, p. 91; sublinhado nosso) Diante disso e de outros problemas ainda não resolvidos, veio-nos o desejo de mostrar, de um modo mais pontual e sistemático, a complexidade dessa questão e, a partir dela, comprovar a importância da categorização, no âmbito dos estudos lingüísticos. A fim de atingir essa meta, optamos por apresentar e discutir, num estudo longilíneo, das soluções propostas por gramáticos voltados para a descrição do português, para tanto foi necessária uma “viagem” no tempo com duas grandes “paradas”: às primeiras “lições” gramaticais acerca de nossa língua e outra, a “lições” mais recentes. Assim procedendo, pudemos rastrear os problemas, as limitações e os avanços da análise preconizada por nossos autores, de ontem e de hoje, relativamente à classificação de palavras, em especial, à do advérbio, que, no dizer de Sílvio Elia (1980, p.221), uma das categorias mais “controvertidas” e difíceis de delimitar. Tomando a afirmação desse autor como uma espécie de desafio para os que, como nós, ainda acreditam na importância do estudo do enunciado, dispusemo-nos a enfrentá-lo, buscando oferecer, com isso, alguma contribuição para a historiografia dos estudos lingüísticos, campo ainda pouco valorizado entre nós. Essa contribuição, conforme mencionado acima, compreende, basicamente a discussão da procedência, ou não, das lições contidas em compêndios gramaticais tidos, na literatura corrente, como representativos de sua época − pretérita (séculos XVI e XIX) ou mais recente (séculos XX e XXI). Criticadas, 19 muitas vezes injustamente, essas lições apresentam problemas que, de acordo com Perini (1985, p. 13), se resumiriam na “ausência de conscientização adequada do importe teórico das afirmações” feitas pelos autores. Apesar disso, como não podia deixar de ser, reconhecendo, como Langacker (1972), a grande contribuição dada por nossos gramáticos − antigos, ou não − , apontam-se as idéias, as soluções, que, alicerçados na tradição gramatical, se revelam precursoras de propostas de análise comprometidas com a Lingüística Moderna. Ademais, esperamos que a opção por um estudo de caráter metalingüístico, possa repercutir no modo de condução do processo de ensino/aprendizagem da nossa língua, uma vez que serve para evidenciar a complexidade do sistema lingüístico, que, por vezes, banalizado em sala de aula, tira do aluno a oportunidade de vê-lo como é, e, portanto de conhecer melhor como o usamos em nossas interações. A partir do exame crítico das taxonomias lexicais estabelecidas pelos gramáticos selecionados, e, sobretudo, do modo como analisam a espécie adverbial, procuramos, de nossa parte, sempre que possível, nos posicionar a respeito dessa questão, tomando como base − e como ponto de referência −, para o confronto aqui efetuado, dados que, embora colhidos de um modo assistemático, refletem a situação real vigente no português brasileiro hodierno. Em suma, tentamos aqui oferecer a nossa parcela de contribuição, com a esperança de dirimir a queixa de Perini (1995, p. 338), quanto à pouca atenção que se tem dado entre nós às formas adverbiais tomadas em seu conjunto. 20 1.2 Objetivos Tendo em mente os inúmeros e diferentes tipos de desafios impostos aos que se interessam em delimitar, com o máximo possível de coerência e precisão, as diferentes classes de palavras que compõem o acervo lexical de uma língua, o presente trabalho teve como objetivo geral, examinar, crítica e comparativamente, o modo como alguns de nossos gramáticos, situados em tempos mais antigos e mais recentes, procuraram, e ainda vêm procurando, levar a termo essa tarefa de categorização de nosso acervo lexical e de apontar (e justificar) a posição do advérbio em suas taxonomias. De um modo especial, o nosso propósito foi: a) mostrar, através de comparação intergramatical os critérios utilizados pelos autores selecionados, na categorização das palavras no português; b) indicar o(s) critério(s) tido(s) como de maior relevância pelos gramáticos na identificação e subclassificação das formas adverbiais; c) apontar os problemas que mais comprometeram a credibilidade da análise por eles defendidas; d) traçar um quadro que nos forneça uma idéia geral do percurso evolutivo de “lições” em torno das formas adverbiais, contribuindo, assim, para a historiografia dos estudos da linguagem entre nós; e) apontar as soluções que, ancoradas numa visão tradicional, já assinalam avanços que as aproximam da Lingüística Moderna; f) resgatar, através do confronto entre o pensamento antigo e o moderno, o respeito às lições de nossos gramáticos de linha tradicional, injustamente subestimados em nosso meio acadêmico. Subjacente a essas intenções, o fim último deste trabalho foi mostrar aos Professores 21 de Português as vantagens da tarefa de categorização para a análise linguística, bem como para a necessidade de efetuá-la em coerência com a natureza dos fatos obsevados e do uso real da lingua. 1.3 Metodologia 1.3.1 Seleção dos compêndios gramaticais As “lições” taxonômicas aqui apreciadas não foram escolhidas aleatoriamente, mas selecionadas a partir de propostas analíticas defendidas por gramáticos que, consagrados pela tradição, postulam soluções diferentes tanto para a classificação geral das palavras de nossa língua, quanto para a caracterização dos itens adverbiais. Abaixo, detalham-se os critérios que orientaram essa escolha. 1.3.1.1 Critérios adotados Fundamentada em compêndios gramaticais diversos (fonte secundária) e, quando possível e pertinente, em dados do português em uso no Brasil (fonte primária), a análise metalingüística aqui apresentada foi desenvolvida a partir de dois grandes recortes temporais: um, pretérito (séculos XVI e XIX) e outro, presente (séculos XX e XXI). Esse último, por abrigar maior número de publicações dessa natureza, foi dividido em três fases (ou gerações, conforme preferimos nomeá-las), mais ou menos correspondentes às etapas de evolução dos estudos lingüísticos, na época moderna. Assim a escolha das gramáticas se norteou por critérios relativos ao tempo, à diferença de concepção de linguagem por parte dos autores e o tipo de proposta analítica por eles defendida. 22 1.3.1.2 Compêndios selecionados Com vistas a trazer à tona o pensamento dominante entre os gramáticos das diferentes épocas enfocadas, acerca do advérbio no conjunto das espécies vocabulares por eles discriminadas, optamos por fazê-lo em amostragem, consultando os mais conceituados no meio acadêmico e, dentre esses, os defensores de soluções mais coerentes e/ou mais avançados para questão tão intrincada. Para tanto, valemo-nos das edições a que tivemos acesso, dando preferência às que eram complementadas por comentários de especialistas devidamente abalizados, ou, então, às que eram ampliadas por novos prefácios, lições, comentários ou notas. Para o seu registro no corpo do trabalho, procuramos indicar, antes da data da versão consultada, a data de sua primeira edição; excetuando, obviamente, os casos dos manuais mais recentes, ainda sem reedição. Eis, abaixo, a lista das obras examinadas, cujos dados bibliográficos completos são fornecidos na parte das Referências. 1.3.1.2.1 De tempos pretéritos A Século XVI i- Gramática da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira (1536) Edições aqui utilizadas: 1933, 1975. ii- Gramática da língua portuguesa, de João de Barros (1540). Edições aqui utilizadas:1957, 1971. 23 B Fase intermediária a) Século XVII i- Methodo grammatical para todas as linguas, de Amaro de Roboredo (1619/1623) ii- Ortografia da lingua portuguesa, de João Franco Barretto (1671). b) Século XVIII i- Verdadeiro metodo de estudar, para ser util a republica e igreja: proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal, de L. A. Verney (1747). ii- Compendio de orthografia, de Frei Luiz do Monte Carmelo (1767). C Século XIX i- Grammatica philosophica da língua portuguesa, de Jeronymo Soares Barbosa (1803). Edição aqui utilizada: 1881. ii- Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro (1882). Edição aqui utilizada: 1884. 1.3.1.2.2 De tempos recentes: séculos XX e XXI a) Primeira “geração” Manual de análise, de José Oiticica (1919). Edição aqui utilizada: 1923. b) Segunda “geração” Gramática fundamental da língua portuguesa, de Gladstone Chaves de Melo (1968). Edição aqui utilizada: 1970. 24 Iniciação à filologia portuguesa, de Gladstone Chaves de Melo (1951). Edição aqui utilizada: 1981 c) Terceira “geração” Gramática da língua portuguesa; gramática da palavra; gramática do texto; gramática do discurso, de Mário Vilela e Ingedore Villaça Koch ( 2001) – 1ª edição. . 1.3.2 Caminhos de análise A pesquisa que aqui procuramos desenvolver implicará, conforme já mencionado, o acompanhamento longitudinal de “lições” fornecidas, no passado e no presente, acerca da classificação das palavras do português, em especial, sobre o enquadramento, ou não, do advérbio entre os grupos considerados autônomos. Em vista disso, a análise aqui levada a termo foi conduzida a partir dos seguintes procedimentos: a) levantamento dos problemas vigentes até hoje na literatura específica, quanto às vantagens, ou não, da tarefa de categorização de elementos/fatos lingüísticos, bem como quanto aos critérios utilizados pelos gramáticos na delimitação do “advérbio” como uma classe específica, ou não; b) apresentação e comentário crítico dos conceitos, critérios e tipologias defendidos por eles ao categorizar os vocábulos em geral, e mais especificamente o advérbio; c) confronto das diferentes “lições” apreciadas, para a devida indicação dos pontos convergentes e divergentes entre elas; d) notificação do caráter inovador soluções propostas pelos autores mais antigos; e) referência, quando possível, à situação vigente no português atual – vertente brasileira –, quanto ao uso real dos advérbios. 25 4 Plano do trabalho Além desta parte introdutória, na qual se procurou confirmar a validade ou mesmo a necessidade da compartimentação conjunto lexical das línguas, delimitar o objeto de estudo, justificar o tipo de investigação proposta, definir as metas desejadas e mostrar o caminho metodológico seguido, o presente trabalho conta, ainda, com três capítulos, a que se seguem, como fecho, as Considerações Finais e as Referências. No capítulo subseqüente, de caráter mais teórico, procura-se averiguar até que ponto se aplica ao advérbios a qualificação metafórica de “ornitorrinco”, emprestada por Perini (1997) a outros autores, com vistas a traduzir as dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores na tarefa de definição da classe dos adjetivos. Com base em dados do português brasileiro atual, recolhidos quase sempre de conversas informais, discute-se a pertinência, ou não, dos diferentes traços – morfológicos, sintáticos, semânticos e até discursivo-textuais – que, indicados pelos autores aqui apreciados, deveriam, em princípio, servir para identificar, com a devida precisão, o grupo dos “advérbios”. No terceiro capítulo, de exame propriamente dito das lições gramaticais pretéritas, focalizam-se, inicialmente, as duas primeiras gramáticas da língua portuguesa, que, datadas do século XVI, integralmente ou não, a nova maneira de pensar instaurada no Renascimento. A primeira, de Fernão de Oliveira (1536), por fixar-se, preferencialmente, em estudos da fonética/fonologia do português da época, não fornece informações mais explícitas sobre os critérios de classificação das palavras – referida na parte destinada à Morfologia − , e nem mesmo sobre a concepção de “advérbio” adotada por ele. Com isso, as “lições” desse estudioso, aqui registradas e comentadas, foram obtidas de um modo indireto, a partir de referências esparsas encontradas ao longo de sua gramática. Diferentemente, a segunda, de autoria de João de Barros (1540), avaliada no meio acadêmico como inferior à primeira, 26 oferece maior contribuição nessa esfera, apresentando lições tanto a respeito da classificação de palavras de um modo geral, quanto do estudo do “advérbio” per se. Em prosseguimento à “viagem” feita no passado, faz-se breve referência a gramáticas dos séculos XVII e XVIII, “portos de passagem” que, situados no que chamamos de “fase intermediária”, procuramos examinar com o objetivo de evitar uma ruptura brusca entre as lições concernentes aos séculos XVI e XIX, fases do período pretérito aqui apreciado. Para finalizar a visita ao passado, examinam-se dois compêndios gramaticais do século XIX, compostos, respectivamente, por Jeronymo Soares Barbosa (1803), que segue de perto a perspectiva filosófica da Grammaire générale et raisonée, de Port-Royal (século XVII- XVIII), e por Júlio Ribeiro (1882/1884), que constrói a sua gramática com base na crença de que “o estudo da linguagem diz-nos muito sobre a natureza e a história do homem.” (RIBEIRO, 1884, p. 2). Também dedicado ao exame crítico das “lições” de nossos gramáticos acerca do “advérbio” e da sua inserção, ou não, no quadro tipológico de palavras do português, o quarto capítulo faz incursões em tempos mais recentes, examinando manuais do século XX e, até mesmo, do começo do XXI. Nesse recorte temporal, examinam-se as “lições” de autores – lusitanos e, sobretudo, brasileiros – mais recentes, distribuindo-os, conforme anunciado anteriormente, em três grupos, rotulados de “primeira”, “segunda” e “terceira” gerações. Dando fecho à pesquisa, segue-se a parte reservada às Considerações Finais, na qual se busca pontuar os aspectos mais relevantes das análises investigadas, bem como delinear um quadro-síntese, no qual se destacam os encontros e desencontros entre as “lições” fornecidas pelos diferentes gramáticos aqui apreciados. 27 2 O ADVÉRBIO: UM “ORNITORRINCO” DA GRAMÁTICA? Todos sabemos ser o advérbio uma das categorias léxicas mais controvertidas. Ora recebe em demasia, ora quase tudo se lhe tira. Isso revela que se trata de categoria mal definida, conquanto indispensável. (ELIA, 1980, p. 221; destaques nossos) 2.1 Introdução No intento de apontar, de um modo mais fiel possível, as dificuldades enfrentadas pelos estudiosos na tentativa de definir e de indicar os diferentes tipos do famigerado bloco dos advérbios – ou “tribo dos advérbios”, no dizer da boneca Emília, de Monteiro Lobato, quando em visita ao mundo da gramática –, valemo-nos, no título acima, de um termo que, emprestado à Zoologia, tem uma conotação de algo desconhecido e indefinível. Utilizado por autores mais antigos com essa intenção, e retomado por Perini (1997), com vistas a mostrar os “custos” do trabalho de identificação de outra classe de palavras, a dos adjetivos, o vocábulo ornitorrinco tem aqui também o papel metonímico de expressar as dificuldades dos investigadores da linguagem, em geral, frente aos “mistérios” que envolvem não só as formas adverbiais e adjetivas, como os demais tipos de palavras de nossa e de outras línguas. A propósito das formas adverbiais, objeto central de nossa investigação, pode-se dizer que o próprio recorte analítico que alguns autores fazem, fixando-se em apenas um ou alguns de seus traços, ou de sua distribuição em diferentes e numerosos subgrupos, configurase como prova testemunhal da dificuldade que se tem em delimitar tal categoria, em sua abrangência e em seus desmembramentos. Dessa forma, nota-se que são muito mais numerosos trabalhos como os de Parisi (1977), Saraiva (1978, 1983), Ilari (1993a, b), Pontes (1992), Neves (1993), Martelotta (1993), e outros autores mais, que vêm concentrando o seu olhar em apenas alguma(s) de suas subespécies. Assim, as duas primeiras autoras, Laura 28 Parisi e Maria Elizabeth Fonseca Saraiva, se concentram, especificamente, nos “advérbios de “modo”, tido por muitos como o “elemento adverbial por excelência”. Por outro lado, o terceiro autor, Rodolfo Ilari, se volta para os que atuam como “aspectuais” e “focalizadores”, ao passo que a quarta e a quinta, Eunice Pontes e Maria Helena Moura Neves, para os de “lugar” e “tempo” (também apontados na literatura corrente como “advérbios propriamente ditos”, por seu caráter circunstanciador), e o sexto autor, Mário Eduardo Martelotta, para os de “tempo”. Ao contrário, repita-se, são bem mais raros trabalhos mais abrangentes, que focalizam, com o maior apuro possível, o conjunto dos itens adverbiais de nossa língua. Fogem à regra, porém, alguns estudos como os de Macedo (1954), Elia (1980), Martelotta (1986), Bomfim (1988) e até mesmo de alguns de nossos gramáticos, que se preocupam em examinar mais detidamente esse tipo vocabular. Ilustram isso obras gramaticais como as de Perini (1985, 1995), Vilela (1999), Neves (2000), Vilela e Koch (2001), dentre outras. Encarando o “advérbio” português sob os dois ângulos, mais e menos abrangentes, no presente capítulo − preparatório para os dois subseqüentes, que enfocam as “lições” dos gramáticos aqui levados em conta −, buscamos, aqui, arrolar e comentar alguns dos problemas que, desde “antanho”, vêm desafiando os que se dispõem a enfrentá-los. Tratados em seções diferentes, o primeiro problema tem a ver com a própria definição de “advérbio”, que, alicerçada, tradicionalmente, no critério semântico e/ou morfológico, deixa a desejar, não só em relação ao número e tipos de traços apontados, como em relação ao próprio grau de abrangência desses traços. Acresçam-se a isso a pouca atenção conferida aos papéis exercidos por essa espécie de palavra em outras instâncias da língua, e a ausência de explicação para a inclusão de certos termos e/ou expressões no rol dos advérbios. Concernente à caracterização do “advérbio”, outro problema, de ordem gramatical e discursiva, discutido na segunda seção, é abordado em quatro sub-seções distintas, 29 correspondentes a níveis lingüísticos diferentes: uma primeira, na qual se questiona seu estatuto morfológico; uma segunda, na qual se enfoca seu estatuto sintático; uma terceira, em que se apontam traços de caráter semântico, tidos como próprios a essa espécie de palavra, e numa última, em que se indicam propriedades relativas ao nível extrafrásico ou exofrásico, no qual o “advérbio” pode atuar, nível esse que extrapola o âmbito da sentença, unidade de análise da gramática tradicional. Por fim, em seção conclusiva, procede-se a uma síntese avaliativa dos problemas arrolados, pontuando-se aqueles que continuam sem solução, ou cuja solução não é a mais adequada. Encaremos, então, esse terreno ainda inquietante. 2.2 Problemas de definibilidade Qualquer que seja o campo de estudos, uma das dificuldades com que se esbarra é a definição do objeto/fato em estudo. No caso em pauta, as mesmas incertezas e perplexidades observadas na categorização das palavras que compõem o “macroconjunto” lexical das línguas costumam incomodar os interessados em determinar as diferentes espécies próprias de cada uma delas. Já na década de vinte, um de nossos grandes lingüistas, Sapir (1921, p. 117), reconhecia essa dificuldade, afirmando que “assim que testamos nosso vocabulário, descobrimos que as classes de palavras estão longe de corresponder a uma análise da realidade tão simples”. Componente desse macroconjunto, nem mesmo o “advérbio”, assim como os demais tipos vocabulares, foge à regra, continuando a desafiar, até hoje, os cientistas da linguagem. Tanto é que, em tempos mais recentes, ao empreender sua análise acerca dos “circunstanciadores de tempo”, Martelotta (1993, p. 21) reconhece que “o rótulo advérbio designa um conceito fluido, que tende a se adaptar às intenções comunicativas envolvidas no 30 discurso” (negrito nosso). Comprova-nos essa assertiva o próprio título que esse pesquisador confere ao seu trabalho – Os circunstanciadores temporais e sua ordenação: uma visão funcional − , reunindo, sob a designação única de “circunstanciadores”, a função semântica tida pelo autor como a mais apropriada para identificar os advérbios – oracionais ou não –, bem como o papel de modalizadores, que podem exercer no discurso, conferindo-lhes, com isso, maior carga de subjetividade. Um mergulho no passado, particularmente na Antigüidade Clássica − fase caracterizada por Câmara Jr, (1975, p. 15), como de estudos “paralingüísticos” −, também nos revela a complexidade da tarefa de classificação, tanto no âmbito do vocabulário como um todo, quanto no de uma de suas classes formantes, conforme se pode constatar em investigações longitudinais como a realizada por Sílvio Elia (1980). Num enfoque prático-teórico, Platão (século IV a.C.), um dos primeiros a propor um quadro distributivo das palavras, arrola apenas dois grandes tipos: ónoma (substância) e rhema (ação). Ampliando essa divisão, Aristóteles (século IV a.C.) acrescenta-lhe mais uma classe, syndesmoi (conectivos), a que cabe expressar as relações entre os vocábulos. Desmembrada em duas subsespécies pelos estóicos, essa classe abarca doi subtipos: preposição e conjunção. Somente no século II a. C., é que se tem, por proposta de Dionísio da Trácia, a inclusão de uma nova classe, a do epírrema, definida por ele como parte do discurso que, de caráter invariável, modifica o verbo ou a ele se ajunta. O primeiro emprego do termo “advérbio” por Donato, no século IV, não trouxe novidades que alterassem a concepção até então vigente desse espécie de palavra. Por sinal, o próprio Donato sequer faz referência ao papel semântico como uma das propriedades passíveis de identificar os itens adverbiais. Apesar dos diferentes tipos de pensamento que nortearam as análises subseqüentes – de base metafísica, com os gramáticos especulativos na Idade Média e de base filosófica, no 31 período renascentista e pós-renascentista (séculos XVI e XVII) –, a definição do “advérbio” permaneceu confusa e parcial. Herdeira e continuadora da linha de estudos greco-latinos, a gramática tradicional, com algumas exceções, acabou por acatar e repetir as lições deixadas pelos antigos, definindo o “advérbio” sob um ponto de vista semântico, dando proeminência ao seu papel de “circunstanciador”. Estendendo o olhar para os componentes morfológico e sintático, alguns estudiosos levam em conta o seu estatuto formal de “palavra invariável” e de modificadora/determinadora do verbo, do adjetivo e até mesmo de outro advérbio. Independentemente do maior ou menor porte da matriz de traços apresentada, os autores, na verdade, acabam deixando para o leitor o trabalho de interpretar, com a devida propriedade e certeza, o que esses “atributos” significam e que tipos de advérbios abarcam. Alguns sequer têm o cuidado de justificar a inclusão, em suas propostas taxonômicas, de vários itens adverbiais que não se enquadrariam na definição que advogam. Ilustram isso enunciados como os de abaixo, colhidos aleatoriamente, em que os itens grifados, tidos como advérbios pela tradição gramatical, não indicam “circunstância”, se entendermos como tal, as informações relativas a tempo, lugar, causa, etc.: (1) a- “Aquela Elisa do 8º Período de Letras é fabulosamente a melhor aluna da turma.” b- “Certamente, o Bush, agora, está com a corda toda para guerrear qualquer país que lhe der na telha.” (2) a- “Esse menino é tão prodígio que começou a falar bem cedinho.” b- “Ela é o tipo de professora que, além de falar muito depressa, vai cuspindo por tudo quanto é lado.” 32 Do mesmo modo, têm ficado sem explicação ocorrências como as de abaixo, tão comuns no português, nas quais, um mesmo item adverbial pode atuar em níveis diferentes – frásicos e exofrásicos –, aí assumindo valores semânticos e discursivos diferenciados – o que nos leva a supor que não se trata de um mesmo item lexical, mas de vocábulos distintos pertencentes a grupos ou subgrupos, também distintos entre si: (3) a- “Esses políticos nunca falam francamente.” b- “Francamente, esses políticos mentem demais.” (4) a- “Mesmo ferido, ele conversou normalmente comigo.” b- “Normalmente, os bebês só choram quando estão com fome.” Outro fato empírico que causa transtornos à empresa da delimitação de uma “classe adverbial” é a impossibilidade de ocorrência de alguns “advérbios de modo” também terminados em –mente, como os de acima, em contextos como o de (3b) e (4b), conforme mostrado por Saraiva (1978): (5) a- “Depois da cirurgia, Adriana mudou o seu modo de vida completamente.” b- (?) Completamente, Adriana mudou o seu modo de vida depois da cirurgia. (6) a- “Infelizmente, ele morreu. (= Ele morreu, infelizmente.) b- (?) Ele morreu infelizmente. 33 Um último obstáculo a uma definição mais apropriada do “advérbio”, a lembrar aqui, tem a ver com os próprios termos empregados pelos autores na identificação da “classe adverbial”, a partir do(s) papel(éis) que as formas adverbiais podem assumir. Assim é que não se tem, por exemplo, uma idéia segura da distinção entre “circunstanciadores” e “qualificadores”, ou entre “restritivos” e “modificadores”, ou, ainda, “qualificadores” e “determinadores”. Optando por essa última dupla, Elia (1980) divide essa espécie lexical em dois subgrupos: o dos “advérbios de modo”, de “quantidade” e de “intensidade”, a que rotula como modificadores , uma vez que a determinação do significado do verbo é interna, ou seja, incidente “sobre o núcleo sêmico do vocábulo”; e o dos demais advérbios, cuja “determinação é externa ou circunstancial”. (cf. ELIA, 1980, p.253; destaques nossos). Diferentemente, outros autores preferem qualificar como “circunstanciadores” apenas as formas indicadoras de tempo e lugar, considerando os restantes como “qualificadores”, ou, então como “modificadores”. Vistos alguns dos problemas semânticos que demandam delimitação menos “flutuante” e imprecisa de uma possível classe adverbial, investiguemos, a seguir, as dificuldades concernentes à sua caracterização formal. 2.3 Problemas de caracterização e de subclassificação 2.3.1 De natureza morfológica Também insatisfatória é a definição do “advérbio” a partir de seu estatuto morfológico de “palavra invariável”, critério tomado, às vezes, como único e absoluto em alguns de nossos compêndios gramaticais, embora não se restrinja aos itens adverbiais e se estenda ao macroconjunto conectivo, formado por conjunções e preposições. 34 Numa tentativa de classificar as palavras do português com base exclusiva no seu estatuto morfológico, Schneider (1974), divide-os, primeiramente, em dois grandes grupos: vocábulos passíveis de flexão (substantivo, adjetivo, numeral, pronome e verbo) e vocábulos não sujeitos a flexão (advérbio, preposição, conjunção). Ao examinar no segundo grupo, estabelecendo os limites entre cada um de seus formantes – advérbio, preposição e conjunção - , a autora (p. 70) recorre a outro traço morfológico, de caráter derivacional, que ela assim justifica: “a flexão, não podendo mais ser um elemento distintivo, cede lugar à derivação”. (SCHNEIDER, 1974, p. 70). Com base em dados empíricos como: perto/pertinho, cedo/cedíssimo x a, de, com e que, e, nem, essa lingüista acredita ter, com isso, dado solução definitiva à delimitação do grupo adverbial, único que pode resultar de processos de sufixação. Todavia, a nosso ver, o problema não é resolvido satisfatoriamente, uma vez que a possibilidade de acréscimo sufixal não é extensiva a todos os itens adverbiais, mesmo que alguns deles, especialmente os de “modo”, tenham resultado – e ainda resultem – da anexação de um sufixo (-mente, no caso dos indiciadores de modo) a um “adjetivo”. Prova disso é a impossibilidade de derivação sufixal de itens como: hoje(zinho), onten(zinho), depois(inho) e outros mais. Com isso, endossamos o pensamento de Perini (1985, p. 27-28), quando afirma que a “classificação formal das palavras segundo sua variação morfológica é muitas vezes impossível”. 35 2.3.2 De natureza sintática No que tange às propriedades sintáticas do “advérbio”, também detectamos, na literatura corrente, vários dissensos entre as obras examinadas. Dentre eles, focalizam-se, aqui, os que nos pareceram mais perturbadores, ou pouco explorados (quando não mencionados) pelos autores. São eles: os níveis de atuação dos itens adverbiais; sua extensão funcional (segundo nomenclatura de Elia, 1980), ou escopo; seu grau de integração com o verbo; sua força de recção, e, por fim, sua suscetibilidade a deslocamentos variados. Começando pelo nível lingüístico em que pode atuar, constatamos que a idéia mais comum entre os gramáticos é a de que as formas adverbiais se circunscrevem ao interior da frase, configurando-se, pois, como componentes intrafrásicos, isto é, como modificadores de determinados constituintes-núcleo da oração. Contudo, vários estudiosos – mais antigos, ou não - fazem menção, mais ou menos breve, de papéis assumidos por certos “advérbios” na instância extrafrásica, ou discursivo-textual, onde se configuram como modalizadores. Essa alternativa de análise, entretanto, não é imune a críticas, sendo, por exemplo, rejeitada por autores como Sílvio Elia (1980, p. 254), que, além de conferir um espaço diferente para os modalizadores, em seu quadro taxonômico, inclui, dentre estes, os tradicionais advérbios de negação, dúvida e afirmação, bem como os de modo, quando referentes à oração. Do mesmo modo, no que diz respeito ao escopo do “advérbio”, fogem ao consenso as opiniões dos lingüistas de ontem e de hoje. Prova disso é a cisão entre os que, restritos ao nível intrafrásico, apontam o verbo como o único constituinte passível de ser modificado pelo “advérbio”, e outros que entendem ser essa possibilidade extensiva a outros elementos da oração. A própria listagem desses elementos nos remete a novas divergências de pensamento entre os estudiosos, o que nos leva à sua distribuição em, pelo menos, dois blocos distintos: um constituído pelos que não só apontam o verbo, o adjetivo e outro advérbio, como também 36 nomes substantivos como suscetíveis de modificação adverbial; outro formado pelos autores que não admitem essa possibilidade. A nosso ver, esse último grupo não deixa de ter certa razão, uma vez que a determinação adverbial não incide pura e simplesmente sobre os substantivos como um todo, mas, sim, sobre os substantivos que apresentam uma certa força adjetiva, conforme ilustrado nos enunciados abaixo, coletados de fala espontânea, sendo o último exemplo um numeral: (7) a- “Ele se diz muito homem, para ser dominado por mulheres.” b- “Esse cara é muito cachorro, completamente cara de pau, pensando que pode me enganar desse jeito. Ele que se cuide!” c- “A Raissa, sim, é uma aluna muito dez, dez até demais.” Outro tipo de problema - nem sempre levado em conta por nossos gramáticos correlacionado com a delimitação do escopo do “advérbio”, isto é, com o tipo de vocábulo que lhe cabe modificar, é o seguinte: não são todos os advérbios que podem figurar como modificadores de todos os tipos de constituintes oracionais apontados pelos gramáticos como suscetíveis disso. Consciente dessa restrição, Vilela (1999), por exemplo, procura nos mostrar que o tipo de modificação adverbial varia de acordo com a espécie de palavra modificada. Assim, se, por um lado, o verbo pode ter como modificadores advérbios qualitativos (ou modo), circunstanciais e intensivos, por outro, os adjetivos só admitem modificação adverbial de caráter intensivo. Como argumento comprobatório disso, Vilela se vale de dados empíricos como os de abaixo, ocorrentes no português lusitano (e também no brasileiro): (8) a- “Ele é verdadeiramente inteligente.” b- “Ela é particularmente inteligente.” 37 Segundo esse mesmo autor, “mesmo os advérbios derivados de adjectivos que não se situam no domínio do ‘intensivo’ são arrastados para a intensificação (como largamente, profundamente, altamente)”. (VILELA, 1999, p.243). Também relacionada com o tipo de escopo admitido pelo “advérbio” é a questão a que denominaremos grau de adverbialidade, que aparece implícita nas lições de gramáticos.do presente e do passado. Segundo pudemos deduzir de afirmações como a de Mário Vilela, transcrita abaixo, as formas adverbiais podem ser dispostos numa ordem escalar crescente, que começa com as formas [- adverbiais] e termina com as [+ adverbiais]: Os advérbios modificadores do verbo (e portanto dele dependentes) são os advérbios propriamente ditos: são os que caracterizam o acontecer verbal em si, como se fossem complementos ‘inerentes’ do próprio verbo. Isto é, o advérbio fica a fazer parte do próprio predicado, acrescentando-lhe algo de novo, algo referencialmente novo: ‘Ela falava maliciosamente com o namorado. (VILELA, 1999, p. 244; destaque nosso) Em face da exemplificação fornecida pelo autor na página 244 dessa mesma obra, na qual o tipo de “advérbio” ocorrente é o de “modo”, concluímos que é essa subespécie que, a seu ver, apresenta uma carga adverbial mais forte. Anteriormente à Vilela, Elia (1980, p. 252253) já asseverava que os advérbios de “modo”, ou “qualidade”, bem como os de “quantidade/intensidade” têm uma relação de natureza interna com o verbo, uma vez que incidem sobre o núcleo sêmico do lexema; diferentemente, os “circunstanciais” mantêm com o verbo uma relação de natureza exocêntrica, uma vez que, de acordo com esse autor, não pertencem ao mesmo sintagma. Em suma, segundo nossa interpretação, tanto para Sílvio Elia quanto para Mário Vilela, o “advérbio de modo” seria o de maior força adverbial. No tocante ao nível de integração das formas adverbiais com o verbo, constatamos que, embora a NGB estipule que os verbos transitivos se distribuam em três grupos – direto, indireto e direto e indireto –, autores como Kury (1970), Luft (1979), Bechara (1976/1999), Saraiva (1983), dentre vários outros, acreditam que, na verdade, a situação do português é 38 mais complexa do que essa. No seu modo de ver, existem verbos de predicação incompleta que, semanticamente caracterizados como indicadores de movimento ou de situação, “exigem”, ou selecionam, um complemento de natureza adverbial, capaz de integralizar a sua significação, tal como ocorre em enunciados como os de abaixo: (9) a- “Acontece que ele não agüentou ficar nesta cidade maluca e deu um jeito de ir morar no interior.” b- “ Você não viu que o seu filho, mal chegou em casa, já tratou de ir para aquele maldito boteco?” O seguinte excerto, transcrito de Kury (1970), primeiro autor supracitado, nos dá uma noção mais precisa desse modo de pensar: ... há verbos cuja idéia, em princípio, só se completa com a adjunção de um objeto direto (fazer, vender), de um objeto indireto (pertencer a, servir-se de, pensar em, concordar com), ou de um adjunto adverbial de lugar (ir a, vir de, ficar em): são verbos de significação relativa, de predicação incompleta. (KURY, 1970, p. 44; negrito nosso) Procurando fugir da incoerência terminológica de autores que analisam como “adjuntos” constituintes em função sintática completiva, Luft (1979) sugere que se incluam os termos adverbiais de natureza completiva na classe dos “objetos indiretos”, que, segundo ele, abarcaria, também, o “agente da passiva”. Uma proposta diferente é difendida por Bechara (1976, p. 44), que, em nota de rodapé, sugere que se acresça ao quadro de recção verbal do português, uma nova espécie, constituída por verbos transitivos adverbiais, que, de acepção locativa ou direcional, selecionam incoerentemente, por ele como “adjuntos adverbiais”. complementos adverbiais, rotulados, 39 Acreditando que essa questão é ainda mais complicada, Saraiva (1983 ) nos mostra que o rol dos “complementos adverbiais” não se restringe aos itens de acepção locativodirecional, mas se estendem a “advérbios de modo”, segundo nos comprovam dados como os de abaixo, que, coletados por ela de nossa língua oral, deixam claro que a presença do constituinte adverbial é de caráter obrigatório: (10) a- “Esse aí é um daqueles sonsos que procedem bem em casa e fazem miséria na rua.” b- “Afinal, o que você quer dizer quando fala em ‘mulheres que procedem mal’ ?” (11) “Eu aceito ir à excursão com vocês, desde que todos procedam corretamente.” Paralelamente a essa dificuldade (ou omissão) dos gramáticos em precisar os papéis sintáticos que certos advérbios assumem por determinação da regência verbal, temos uma outra, relativa à possibilidade de recção manifestada por alguns elementos (poucos) do grupo adverbial. Menos lembrada do que a de acima, essa propriedade, registrada no uso real do português (pelo menos em sua vertente brasileira) costuma gerar formas adverbiais como as de abaixo, ainda não abalizadas oficialmente por nossos lexicógrafos: (12) a- “Independentemente de sua aprovação pelo Congresso e Senado, essa medida entrará em vigor mais dia, ou menos dia. b- “Só de pirraça, ele usa roupa velha preferentemente às novas que as voluntárias dão.” 40 c- “Diferentemente de outras cantoras, a Marisa Monte não aceita nunca aparecer na televisão.” Ancorada, teoricamente, na Gramática Gerativo-transformacional, Lemle (1984) é uma das poucas a fazer referência a essa possível carga de transitividade de alguns itens adverbiais. Com base na crença de que a classificação de palavras de uma língua se mostra mais consistente e menos problemática, se alicerçada no princípio da rotulação categorial, segundo o qual, a nomeação dos sintagmas deve ser feita com base na classe lexical de seu núcleo, essa lingüista afirma que: Um advérbio pode ter complementos e um advérbio mais os seus complementos perfaz um sintagma adverbial. Portanto, se nos exemplos [abaixo] (...) os termos em a são advérbios, os sintagmas em b são sintagmas adverbiais: a. b. dentro dentro da caixa a. depois b. depois da festa (LEMLE, 1984, p. 130; destaques nossos). Contrariamente a essa autora, Vilela (1999), gramático lusitano, defende a idéia de que: Os advérbios são dependentes e intransitivos. Dependentes porque estão sujeitos à compatibilidade semântica de outro elemento, verbo, adjectivo, grupo nominal, aliás, sempre em dependência dos elementos que modificam. (...) Diz-se que os advérbios são intransitivos, por nenhum elemento depender do advérbio. (Vilela, 1999, p. 240-241; destaque nosso) Outro fato sintático ainda no “limbo” nas lições de nossos gramaticos é o da mobilidade ou deslocamento dos “advérbios” no interior da oração ou do período. Embora alguns estudiosos o incluam no rol das propriedades passíveis de identificar a “espécie adverbial”, preocupados em arrolar um traço mais abrangente aplicável a todos os itens adverbiais, acabam cometendo algumas impropriedades. Uma delas é a inclusão de itens 41 adverbiais que se deslocam para poucos interstícios da oração, ou que têm uma posição fixa; outra é a falta de associação entre a mobilidade dos advérbios e o tipo de constituinte de que faz parte: SV (Sintagma Verbal), SPred (Sintagma Predicativo), ou S (Sentença). A falta de correspondência semântica precisa entre as orações arroladas em (13 a), abaixo, e as arroladas em (13 b, c e d), e, ainda, a “estranheza” (para não dizer a “agramaticalidade”) de enunciados com advérbios de lugar deslocados, como os de (14 b e c), já demonstradas por Bittencourt (1979), atesta o comportamento diferenciado dos itens “adverbiais” quanto à possibilidade e/ou tipo de deslocamento a que estão sujeitos – o que compromete a eficácia de sua análise na identificação desse grupo vocabular: (13) a- “Umas novecentas mil pessoas estiveram em Aparecida do Norte ontem.” b- Umas novecentas mil pessoas estiveram ontem em Aparecida do Norte. c- Umas novecentas mil pessoas ontem estiveram em Aparecida do Norte. d- Ontem umas novecentas mil pessoas estiveram em Aparecida do Norte. (14) a- “Muitos professores têm caído desta escada. b- (?) Muitos professores desta escada têm caído. c- (?) Desta escada têm caído muitos professores. Essa diferença de comportamento, vale dizer, não se restringe aos advérbios de tempo e de lugar, mas se estende a outros tipos semânticos. No estudo que faz dos advérbios de modo, Saraiva (1978), por exemplo, mostra a desigualdade que se verifica entre eles quanto à admissão, ou não, de deslocamentos, ou, mesmo, quanto ao tipo de transporte a que estão sujeitos. Os dados a seguir, transcritos dessa autora sob nova numeração, comprovam essa diferença de comportamento entre advérbios de um mesmo naipe, no caso, modais: 42 (15) a- “João modificou completamente o horário.” b- “João modificou o horário completamente.” c- (?) Completamente João modificou o horário. (Exemplo nosso) (16) a- “O negócio fracassou totalmente.” inteiramente b- (?) “O negócio totalmente fracassou.” inteiramente c- “(?) Totalmente o negócio fracassou.” Inteiramente Além desses problemas (e, certamente, de outros mais) de ordem sintática, que dificultam a tarefa de identificação não só da “espécie adverbial” como a das demais classes de palavras, os gramáticos têm se deparado com outras “pedras no caminho”, alocadas, no caso, no território da semântica, que abordamos a seguir. 2.3.2 De natureza semântica Do mesmo modo que os traços morfológicos – flexional e/ou derivacional - , o critério semântico não é suficiente para identificar, com a devida precisão e abrangência, o conjunto dos termos e expressões adverbiais, provocando, também, desentendimentos entre os lingüistas. Começando pela própria conceituação de “advérbio”, tomado no conjunto geral de suas formas, detectamos vários tipos de dissenso, alguns dos quais, aqui já referidos. Um primeiro desacordo diz respeito ao(s) traço(s) semântico(s) que, considerado(s) pelos autores como peculiares à “classe adverbial”, dariam conta de distingui-la das demais espécies de palavras de nossa língua. Dentre as propostas mais correntes, identificamos, pelo menos, 43 quatro blocos distintos: a) o de autores , como Câmara Jr. (1964, p. 53), que indicam um papel semântico único mais geral, qual seja, o de servir de acréscimo à significação do constituinte que determina; b) o de gramáticos, como Rocha Lima (1998), que vêem o “advérbio” como palavra circunstanciadora; c) o de mestres, como Torres (1973), que acreditam que o papel semântico do “advérbio” é de modificador; e, finalmente, d) o de estudiosos que, como Jota (1981), entendem que os itens adverbiais se distribuem, semanticamente, em dois subgrupos: o dos “circunstanciadores”, que expressam idéias de tempo, lugar, afirmação, negação, dúvida, instrumento, etc., e o dos “modificadores”, que traduzem a idéia de “modo”, ou, então, de modo e “intensidade”, como preferem, dentre outros, Cunha (1970, p. 499) e Kury (1970, p. 163). Para complicar ainda mais esse quadro, cumpre lembrar aqui que os próprios autores costumam criticar e rejeitar, em sobreposição metalingüística, várias soluções defendidas por seus pares. Comprova-nos isso, a opinião de autores como Elia (1980), que, integrante do quarto grupo, qualifica como inadequada a indicação da propriedade [+circunstancial] – defendida pelo segundo grupo – como suscetíveis de delimitar todo o conjunto das formas adverbiais. Entendendo “circunstância” como “determinadas condições ou particularidades que caracterizam o conteúdo expresso pelo termo ao qual o advérbio se refere”, esse autor condena, nos seguintes termos, essa opção de análise: “Parece-nos (...) que há uma tendência para identificar advérbio com circunstância, o que se nos afigura prejudicial” (ELIA, 1980, p. 242; destaques do autor). Conseqüentemente, para esse autor, apenas os advérbios codificadores de idéias relativas a tempo, lugar, freqüência e ordem se caracterizariam como “circunstanciadores”. Os demais, de qualidade e de quantidade ou intensidade integrariam o bloco distinto, dos modificativos. Por sua vez, as formas codificadoras de dúvida, afirmação, negação, avaliação e outras que servem para expressar uma atitude ou posicionamento do falante em relação ao que diz comporiam outra classe lexical, diversa da adverbial. Os dados 44 abaixo exemplificam essa diferença semântica entre os dois subconjuntos de advérbio e o conjunto de modalizadores tidos por Sílvio Elia (1980) como uma classe lexical que atua num plano lingüístico diferente: (17) a- O Presidente Lula viaja amanhã. b- O Presidente Lula veio a Ouro Preto. c- O Presidente Lula viajou de helicóptero. (18) a- Ele foi muito louco de saltar lá de cima. b- Os cardeais escolheram esse novo Papa conscientemente. c- Aquele segundo examinador foi bem severo em seu julgamento. (19) a- Talvez o presidente Lula viaje amanhã. b- Certamente, a protagonista de “Menina de Ouro”, fez jus ao Oscar que recebeu. c- O Presidente Lula não viajou de helicóptero. Visto isso, cabe-nos advertir: os problemas, de ordem mais geral, aqui apontados não são os únicos a desafiar os pesquisadores. De caráter mais específico, imposto aos interessados no assunto, é o que concerne à subcategorização das diferentes formas adverbiais. Dentre os desacordos de análise mais correntes, relevem-se, aqui, os seguintes: a) o número e os tipos de “circunstâncias” que os itens adverbiais que exercem esse papel podem assumir. Prova inequívoca disso é a diversidade qualitativa e numérica das listas constantes de nossos compêndios gramaticais; b) a determinação do subgrupo a que pertencem certos elementos tidos como de natureza adverbial – como, por exemplo, os classificados como 45 denotativos, ou como palavras de classificação à parte; c) a possibilidade – nem sempre indicada pelos autores – que certas formas adverbiais têm de exercer dois ou mais papéis semânticos; d) as incertezas dos mestres consultados quanto ao enquadramento, ou não, de determinado(a)s termos/locuções no grupo dos advérbios, como, por exemplo, os de caráter dêitico (aqui, cá, ali,lá, acolá, etc.), os de caráter anafórico (assim, então, etc.), e outros mais, como os de afirmação, negação, dúvida, ou, então, de exclusão, inclusão e apresentação, presentes ou ausentes na lista dos compêndios apreciados; e) o nível lingüístico – gramatical, semântico, discursivo, textual – em que os diversos tipos de advérbio podem atuar, ou não, dificuldade comprovada, por exemplo, no reconhecimento dos modalizadores (atuantes na dimensão discursiva e índices de subjetividade) como constituintes adverbiais, ou não. Cientes do tanto que ainda ficou por apontar e comentar, encerremos esta etapa de “preparação de viagem”, com uma síntese do que foi visto. 2.4 Conclusão Neste capítulo destinado aos preparativos para a viagem aqui realizada, procuramos arrolar e, na medida do possível, comentar os inúmeros e diferentes problemas “infligidos” aos pesquisadores que se dispõem a identificar, através de traços próprios e globais, o “advérbio” como uma classe, ou não, distinta das demais que são encontradas no português. A partir de uma metodologia de análise que considera separadamente os diversos componentes da gramática das línguas, pudemos mostrar que a tentativa de delimitar um grupo adverbial uno e coeso constitui-se, metaforicamente, uma verdadeira “luta”, cujas “batalhas” se realizam em territórios diferenciados como: o fonológico, morfológico, sintático, semântico e o discursivo-textual. 46 Lembrando, à guisa de síntese, alguns deles, vimos que, do ponto de vista morfológico, a primeira “batalha” (de cunho mais geral) a vencer é a própria comprovação de que estamos diante de uma “classe” autônoma de palavras, com traços peculiares, passíveis de distingui-la dos demais grupos vocabulares. A divergência de opiniões entre os autores quanto ao fato de que estaríamos diante de um conjunto de palavras com identidade própria, ou, então, de um subtipo da classe dos “adjetivos”, ou, até mesmo, de uma série de termos/locuções que não formam um conjunto unitário, constitui-se numa das provas do quão complexa é a questão em si mesma. Outro tipo de batalha, mais geral, ainda a enfrentar, desta vez, no campo da sintaxe, diz respeito à delimitação do escopo do advérbio, que nos desafia a responder questões como: a) o nível de atuação do advérbio seria apenas intrafrásico, ou se estenderia ao extrafrásico? b) no plano intrafrásico, todos os itens adverbiais seriam licenciados para funcionar como determinante de qualquer um dos constituintes oracionais a que se pode ligar? Não haveria uma distribuição complementar quanto a isso e uma restrição dos tipos de constituintes passíveis de serem determinados por eles? c) na dimensão extrafrásica, seriam classificados como “advérbios” os elementos que atuam no processo enunciativo, indicando, dentre outras coisas, vários tipos de modalização? Uma terceira e última batalha, também de caráter mais abrangente, é a que, efetuada no terreno da semântica, nos incita a apontar um traço, cujo grau de extensão seja suficiente para abarcar todos os itens adverbiais. Assim, quem sabe terminariam as divergências entre os autores que: a) ou se valem de um critério único que não dá conta de incluir todos os itens que arrolam; b) ou partem, de antemão, de uma diferença entre formas circunstanciais e formas modificadores; c) ou consideram um desses dois tipos – circunstanciais e modificadores – como o único que pode ser verdadeiramente classificado como “advérbio”. 47 Certamente, as dificuldades enfrentadas quanto à identificação e à distribuição dos “advérbios” na nossa língua, bem como nas demais línguas em que figuram, não se restringem às que se apontaram aqui. Contudo, tendo em vista a intenção deste capítulo, as que foram indicadas e comentadas parecem-nos suficentes como preparadoras para o exame feito, a seguir, das “lições” de alguns de nossos grandes “mestres da gramática” a respeito dessa espécie lexical “ornitorrinca”. 48 3 LIÇÕES DE ANTANHO: O TRATAMENTO DO ADVÉRBIO EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XVI E XIX Assi que tem o averbio este poder, acrecenta, diminui e totalmente destruí a obra do verbo a que se ajunta e ele é o que dá aos verbos cantidade ou calidade acidental, como o ajetivo ao substantivo. E a cada um dos avérbios acontece estes acidentes: espécie, figura, significação. (BARROS, 1971, p. 39; destaques nossos) Advérbio não é outra coisa mais do que uma reducção, ou expressão abbreviada, da preposição com seu complemento em uma só palavra indeclinável. Chama-se advérbio porque, bem como a preposição com seu complemento se ajunta a qualquer palavra de significação ou vaga ou relativa, para a modificar, restringindo-a ou completando-a, o mesmo faz o advérbio com mais concisão e brevidade.” (BARBOSA, 1881, p. 234; destaques do autor) 3.1 Introdução Arrolados e discutidos alguns dos problemas que vêm desafiando os estudiosos interessados na determinação dos traços identificadores do advérbio como uma das nossas classes de palavras, ou não, neste capítulo, preocupamo-nos em descobrir e mostrar o modo como esse desafio foi enfrentado por gramáticas relativas a dois momentos do recorte temporal pretérito aqui examinado: os séculos XVI e XIX. Rompendo com a perspectiva metafísica adotada pelos gramáticos especulativos do período medieval, os autores dessas duas fases – renascentista e pós-renascentista –, resguardadas as diferenças entre seu tempo e suas idéias, procuraram estabelecer bases filosóficas para a investigação lingüística, propiciando, com isso, certa continuidade do pensamento norteador dos estudos gramaticais realizados na Antigüidade greco-romana. No que diz respeito às gramáticas (e tratados ortográficos) voltadas, especificamente, para o português, uma das línguas vernáculas originadas do latim, o século XVI constitui-se num marco da publicação das primeiras obras dessa natureza, cujos autores, conforme dito acima, já se achavam muito mais comprometidos com o antigo modo de conceber a linguagem do que com o pensamento em voga no medievo. Esse novo-velho modo de 49 abordagem lingüística, vale lembrar, sofre desvios ainda mais radicais, no final do século XIX e princípio do século XX, sobretudo a partir da inauguração e expansão das idéias estruturalistas propugnadas pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1916 – obra póstuma), considerado um dos fundadores da Lingüística Moderna. Na tentativa de rastrear o percurso evolutivo das “lições” apresentadas por nossos gramáticos – quinhentistas e oitocentistas – quanto à delimitação, ou não, do advérbio como uma classe autônoma, bem como quanto aos seus possíveis desdobramentos em novos subgrupos, fazemos, aqui, uma primeira “parada” em nossa “viagem lingüística”, a fim de apreciar e comentar os ensinamentos de alguns de nossos autores de “antanho”. Para melhor realização dessa tarefa, procuramos observar o seguinte roteiro: a) num primeiro passo, apresentamos, à guisa de contextualização, uma síntese do pensamento lingüístico em voga no século XVI, primeiro “tempo” visitado por nós, além de notícias acerca do quadro sociocultural e lingüístico vigente na época; b) num segundo momento, buscamos enfocar, com o devido espírito crítico, as “lições” dos dois primeiros gramáticos da língua portuguesa – Fernão d’Oliveira (1536) e João de Barros (1540) – sobre a distribuição geral das palavras do português e a posição nele conferida ao “advérbio”. A escolha desses dois autores, em detrimento de outros como Pero Magalhães de Gândavo (Regras que ensinam a maneira de escrever e ortografia da língua portuguesa, 1574) e Duarte Nunes de Lião (Ortografia e origem da língua portuguesa, 1595) deveu-se, como já dito, ao fato de os primeiros apresentarem uma descrição – parcial ou mais completa – da gramática do português, diferentemente, pois, dos dois últimos, mais preocupados com aspectos de natureza ortográfica; c) no intuito de evitar uma passagem abrupta para os compêndios do século XIX, segundo momento pretérito aqui contemplado, buscamos enfocar, ainda que de passagem, numa terceira etapa, as propostas analíticas de alguns gramáticos do século XVII, entre os quais, Roboredo (1619) e Barreto (1671), Argote (1721), Verney (1746) e Monte Carmelo 50 (1767), do século XVIII, a respeito do “advérbio” como uma possível classe vocabular autônoma. Para tanto, norteamos-nos, quando necessário, em estudos que, como o de Hackerott (1989), também fazem esse percurso por compêndios gramaticais portugueses produzidos no passado; d) procedendo, em seção subseqüente, ao estudo dos ensinamentos em torno dessa questão, advindos do século XIX, último ponto de parada num passado mais distante, enfocamos, primeiramente, um dos maiores representantes, senão o maior, de sua fase inicial, Jeronymo Soares Barbosa. Conhecido autor da Grammatica philosophica da língua portugueza, esse estudioso do português mostra ter aí absorvido “lições” da Gramátca de Port-Royal (edição brasileira de 1992), ou Grammaire general raisonée, de Arnauld (1612-1694) e Lancelot (1615?-1695). Aportando-nos, em sub-seção posterior, no final desse mesmo século, buscamos apreciar a solução dada à questão – de classificação de palavras e do destino dado ao “advérbio” – pelo gramático lusitano Júlio Ribeiro (1882), cujas “lições” se perpetuam entre nós; e) como fecho dessa primeira parte da “viagem”, feita em tempos de antanho, apresentamos um breve balanço das análises aqui apreciadas, salientando os pontos de consenso e de dissenso entre seus proponentes e relevando os avanços detectados. 3.2 Lições primeiras: gramáticos do século XVI 3.2.1 Panorama lingüístico geral No intuito de compreender melhor as lições fornecidas pelos nossos mestres quinhentistas, é imprescindível que tenhamos antes uma idéia do contexto histórico, sociocultural e, sobretudo, lingüístico prevalecente na primeira metade do século XVI, quando foram publicadas as duas primeiras gramáticas de língua portuguesa. 51 Apesar da manutenção de alguns vínculos com a vertente filosófica humanista dos séculos XIV e XV, esse período já apresentava inovações próprias à nova maneira de pensar dos renascentistas, que, retomando os modelos artísticos da Antigüidade Clássica, complementaram-nos, alteraram-nos e imprimiram neles a sua marca própria. Tal retorno à Antigüidade, segundo nos mostram os historiadores, adveio, dentre outras coisas, da necessidade da burguesia – então, cada vez mais crescente de se munir de conhecimentos que a habilitassem não só a gerir como a aumentar a fortuna que ia adquirindo. Nesse contexto, em que um dos objetivos de maior peso era facilitar a aquisição de conhecimentos profissionais e a adoção de atitudes mais “terrestres” e menos “celestiais” que a do homem medieval, o homem renascentista deu novo rumo aos seus estudos, orientando-se pela leitura de autores antigos e bebendo-lhes os ensinamentos de gramática, retórica, história, filosofia, ética, etc. No caso específico de Portugal, percebe-se que, paralelamente ao ensino e ao uso mais constante da língua latina, havia uma preocupação pedagógica dos intelectuais em propiciar aos alunos o contato com textos na nova língua – emergente daquela –, conhecida como “vulgar” ou “vernácula”. Esse desejo foi concretizado através da publicação de cartilhas, que, escritas em português, aproveitavam o conhecimento que os estudantes já tinham da língua materna. Tais publicações, saliente-se, segundo os especialistas, buscavam tornar o aprendizado da escrita mais acessível não só aos homens como às mulheres, menos consideradas socialmente, provocando, assim, um novo e mais acentuado interesse pela literatura, nas rodas sociais da época. Diante da valorização da “língua vulgar” (extensiva às demais línguas românicas), era natural o surgimento de gramáticas, que, por apresentarem uma descrição da língua nativa, configuravam-se como um dos instrumentos por excelência de exaltação da grandeza de 52 Portugal e como material pedagógico facilitador da imposição do português aos povos dos diferentes territórios conquistados. Contudo, esse quadro se altera com os reveses que sofre a partir da implantação da Santa Inquisição, pelo rei Dom João III, em 1536. Um deles é a censura imposta à imprensa, e outro a entrega do sistema educacional português nas mãos dos jesuítas, por volta da segunda metade do século XVI. Era de se esperar que os efeitos dessa nova situação atingissem o quadro lingüístico vigente, uma vez que passa a imperar o temor ao poder eclesiástico, que perseguia ou até mesmo mandava para a fogueira quem ousasse desrespeitar a rigidez de suas normas. Revigoram-se, então, o emprego e o ensino do latim e condena-se o uso da língua “vulgar”, diminuindo-se, assim, a força dos meios de propagação do movimento da Reforma, iniciado por Martin Lutero. Esse estado de coisas se agrava ainda mais com a morte do rei D. Manuel I e a assunção ao trono, na qualidade de regentes, da sua viúva, rainha D. Catharina e, depois, do seu filho, Cardeal D. Henrique (1512-1580), que, acatam, servil e totalmente, as decisões do Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563. Dentre as várias deliberações tomadas por seus partícipes, uma delas dispunha que a missa fosse celebrada em latim e o uso da língua vulgar se restringisse às pregações. Em conseqüência disso, as lições dos gramáticos humanistas, já então, marginalizados, deixaram de compor o conjunto de disciplinas ministradas nas escolas. Apresentados, ainda que sucintamente, alguns dados contextuais relativos ao século XVI, procedamos, a seguir, ao exame propriamente dito das “lições” deixadas por nossos dois primeiros gramáticos, pioneiros, muitas vezes, de idéias desenvolvidas sob uma orientação lingüística mais moderna. 53 3.2.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas 3.2.2.1 Fernão de Oliveira (1536) Adepto do pensamento humanista próprio ao Renascimento, o padre Fernão de Oliveira (ou Fernão d’Oliveira), em sua Grammatica da lingoagem portuguesa, publicada em 1536, e aqui estudada principalmente através da edição preparada por Buescu (1975), mais do que uma descrição, apresenta-nos um verdadeiro manifesto de valorização da língua portuguesa. Esse ato encomiástico, “praticado” por outros gramáticos e ortógrafos da época, contribuiu para que se valorizassem as línguas modernas, denominadas “vulgares”, até então consideradas meros instrumentos de evangelização da massa iletrada. Nesse contexto, os lingüistas lusitanos como o Padre Fernão, sobressaíam em seu ufanismo lingüístico, já que consideravam a sua língua, portuguesa, bem superior às demais. No que diz respeito ao caminho de descrição lingüística adotado por nosso primeiro gramático, pode-se dizer que, embora, mantivesse alinhado ao pensamento tradicional, ele possuía e seguia idéias próprias, cujo valor, ainda hoje, é reconhecido em nosso meio acadêmico. Um dos muitos exemplo de sua independência de pensamento é a sua posição contrária à situação (paradoxal) em vigor no Renascimento, na qual vários intelectuais estimulavam o recrudescimento do uso e do ensino do latim, justamente numa fase em que as línguas modernas, ou “vulgares”, dele originadas iam atingindo a sua maturidade. Concebendo a linguagem como figura do entendimento e acreditando que: “os homens fazem a língua, e não a língua os homens” (OLIVEIRA, 1975, p. 43), esse religioso presenteou alguns de seus compatriotas com um compêndio gramatical (datado de 1536), com o qual procurava, segundo palavras próprias, mostrar que “nossos homens também sabem falar e têm concerto na sua língua” (OLIVEIRA, 1975, p. 102). 54 Na obra gramatical desse autor, somos agraciados com “lições” primorosas a respeito, sobretudo, do sistema sonoro do português em uso em seu tempo, “lições” essas qualificadas pelos entendidos como um verdadeiro tratado de fonética e fonologia. Conquanto privilegie esse componente, o Padre Fernão não se esquece de fazer, ao longo do seu texto, comentários de ordem morfológica, ou morfossintática. Isso sem falar na sua argúcia sociolingüista, revelada, por exemplo, nos registros que faz de casos de variação e mudança em curso no português em uso em sua época. Em razão dessa sensibilidade, a que se acresce seu empenho em valorizar a língua oral, nosso primeiro gramático é considerado por vários autores contemporâneos como um dos precursores da Sociolingüística, que somente no século XX seria definida e sistematizada em seus princípios, postulados e procedimentos metodológicos pelo lingüista americano William Labov (1972), inaugurador da linha Quantitativa ou Variacionista. Qualificando a sua gramática como “uma primeira anotação”, esse autor, em operação autocrítica reveladora de sua humildade, reconhece, no trecho reproduzido abaixo, suas faltas, das quais procura se desculpar: Ser eu curto em meu escrever e não ser mui ordenado com bons exemplos, e a falta de algumas coisas que devera escrever e não fiz, e a dissonância de alguns termos novos nesta arte que pus, usando vozes próprias da nossa língua, tudo ante quem não folga de dizer mal terá escusa com olhar a novidade da obra, e como escrevi sem ter outro exemplo antes de mim.(OLIVEIRA, 1975, p. 125-126) Embora, conforme já dito, invista mais na descrição do componente fonéticofonológico, esse autor não deixa de se referir, mesmo que superficialmente, ao problema da classificação de palavras, dentre as quais, o próprio “advérbio” – o que é de lamentar, pois, com sua capacidade de percepção lingüística, evidenciada no tratamento do sub-sistema sonoro, poderiam advir lições, que, contemplando outros componentes da gramática portuguesa, certamente, seriam de grande proveito para todos nós. 55 Resta-nos, pois, contentarmo-nos com o que é ensinado por nosso padre gramático relativamente ao assunto aqui pesquisado, assunto esse que ficou apenas na promessa que fez, em sua primeira obra gramatical, de aborda-lo, juntamente a outros deixados para trás. Apesar dessa lacuna, examinemos o material que ele nos oferece na gramática que escreveu, concentrando-nos, inicialmente, na questão relativa à distribuição das palavras do português. Em notícias dadas em forma de flashes, detectamos ensinamentos breves, como os constantes no segmento abaixo, que, transcrito do Capítulo XXX de sua Grammatica, contém as primeiras reflexões desse autor a propósito de sua concepção acerca de palavra, dicção ou vocábulo, e, ainda de sua distribuição em três grupos distintos, segundo se refiram a coisa, acto, ou modo: Dicção, vocábulo ou palavra, tudo quer dizer uma coisa. E podemos assim dar sua definição: palavra é voz que significa coisa ou acto ou modo: coisa, como artigo e nome; acto, como verbo; modo, como qualquer outra parte da oração... (OLIVEIRA, 1975, p. 81; negrito nosso) Embora nos advirta de que, nessa parte de sua Grammatica, dedicada ao estudo da Morfologia, tratará apenas de questões relativas à formação das palavras e à suas origens e data de surgimento, deixando para enfocar, em outra parte do compêndio, aspectos de natureza semântica, o mestre Fernão, no próprio trecho acima, deixa claro que toma como base esse tipo de critério para classificar as palavras de nossa língua. Valendo-se desse componente, ele apresenta, conforme entrevisto acima, uma taxonomia composta de três grupos lexicais: os que se referem a coisas, os que codificam atos e os que expressam modo. Contudo, se por um lado, ele se dedica, em capítulo especial (nº XLIII), a explorar um pouco mais os conjuntos de palavras indiciadores de coisa e de acto, por outro, com exceção do “artigo’, alocado no primeiro grupo, ele pouco fala dos grupos vocabulares que, a seu ver, expressam modo (termo que não é devidamente explicado). A despeito do caráter incompleto da taxonomia estabelecida por nosso padregramático, atrevemo-nos a sintetizá-la aqui, em formato de esquema, que foi, na medida do 56 possível, acrescido das informações que, embora apresentadas de um modo esparso ao longo do texto, conseguimos colher e ajuntar. Para melhor identificação desse tipo de coleta, obtida de uma forma descontínua, os dados que a ela concernem são apresentados entre parênteses: 1- TERMOS ALUSIVOS 2- TERMOS ALUSIVOS 3- TERMOS ALUSIVOS A “COISAS” A “ACTOS” A “MODO” ( Variáveis ) (Variável) Artigo (Pronome) Nome (Subst.) (Adj.) FIGURA 1- Demais Partes da Oração Verbo Pessoal Impessoal (Invariáveis) (Advérbio) (Preposição) “PARTES DA ORAÇÃO”, SEGUNDO FERNÃO DE OLIVEIRA (1536/1975) O envolvimento de Fernão de Oliveira com a descrição fonético-fonológica do português usado em seu tempo também deve explicar a pouca atenção dada ao grupo dos advérbios, que, de acordo com seu quadro taxonômico, integraria a classe das palavras indicadoras de modo. Apesar dessa lacuna, deparamo-nos, também de uma forma esparsa, com algumas referências a esse tipo lexical, em comentários de natureza ortográfica, ou às vezes, morfológica. Ilustram-nos isso observações como as transcritas abaixo, em que, preocupado em mostrar a pronúncia correta da letra “h”, nosso gramático nos deixa entrever uma das subclassificações semânticas do conjunto adverbial: Mas (...) hi e ahi, advérbios de lugar (...), só de costume os escrevemos, sem mais outra necessidade. (OLIVEIRA, 1975, p.57; destaques nossos). Do mesmo modo, ao discorrer, em capítulo dedicado à Morfologia, sobre o significado e as regras de uso de prefixos formadores de novas palavras no português, Fernão de Oliveira 57 (1536/1975) volta a fazer alusão ao “advérbio”, quando notifica a variação de pronúncia – até e té – do termo “até”, entre os falantes e até mesmo escritores de sua época. Nesse contexto, ele deixa claro que considera tal vocábulo – até – como elemento adverbial, opinião da qual divergem autores mais atuais. Alguns desses últimos, pautando-se pela NGB, incluem esse tipo de palavra e outros similares no grupo dos termos de classificação à parte, e outros como Elia (1980), que, conforme referido no capítulo anterior, prefere incluí-lo numa classe especial, que denomina de “termos denotativos”. Eis, abaixo, o trecho que nos mostra a posição defendida por Fernão de Oliveira: Este advérbio [até], digo, alguns o pronunciam conform ao costume da nossa língua, que é amiga de abrir a boca, e dão-lhe aquela letra a, que digo, no começo. Mas outros lhe tiram esse a e não dizem até, mas dizem te, não mais, começando em t. (OLIVEIRA, 1975, p. 91; sublinhado nosso) Nessa mesma passagem, temos, ainda, a oportunidade de testemunhar a “veia sociolingüística” desse gramático, que, além de valorizar a língua oral, se mostra interessado em detectar e apontar casos de variação como a de acima, chegando, muitas vezes, a nos dar informações acerca do grau de extensão do uso das variantes – antigas e inovadoras – em coocorrência no português de seu tempo. A par dessas “lições” de caráter indireto, encontramos, na Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira ensinamentos diretamente relacionados com o advérbio per se. Atentemos, então, para o que nos foi dado colher a respeito de sua caracterização e distribuição. No tocante ao componente morfológico, nosso autor faz algumas considerações – de ordem derivacional – sobre a formação dos itens adverbiais, separando as formas primeiras (‘primitivas’) das formas tiradas (‘derivadas’). Nas trilhas do gramático latino Varrão, que divide as declinações em dois tipos, voluntárias – produzidas segundo a vontade de cada usuário – e naturais – sujeitas a regras e leis –, o Padre Fernão assim se refere ao “advérbio’: “Na declinação natural, onde falamos 58 das dicções tiradas [‘derivadas’], podemos também meter os advérbios, os quais, quando são tirados, pela maior parte ou sempre acabam em mente, como compridamente, abastadamente e chãmente” (OLIVEIRA, 1975, p. 108; negrito nosso). Indo um pouco mais além, ele nos lembra a existência de itens adverbiais não derivados, ou cuja história derivacional já não é mais percebida, como: antes, depois, asinha, logo, cedo e tarde, que diferem dos reconhecidamente derivados. Além dessas subcategorizações de ordem morfológica, o nosso gramático lusitano faz breve alusão a outra possibilidade de subagrupamento, que envolve, desta vez, traços de natureza semântica. Tal desmembramento nos remete à distribuição morfológica dos advérbios nos dois subtipos acima apontados: o dos advérbios terminados em mente e o das demais formas : ... e quase podemos notar que os advérbios acabados em mente significam qualidade, e não todos os que significam qualidade acabam em mente, porque já agora não diremos prestesmente, como disseram os velhos, nem raramente , os quais velhos também foram amigos de pronunciar uns certos nomes verbais em mento, como comprimento e aperfeiçoamento, e outros que já agora não usamos.” (OLIVEIRA, 1975, p. 108; destaques nossos) Nesse trecho, tal como no anterior, podemos, mais uma vez, testemunhar uma abordagem “pancrônica” nas lições do nosso primeiro gramático. Assim é que, quando se refere a certos termos adverbiais em uso no seu tempo, também traz à tona formas resultantes de uma operação derivacional, que, continuada, acabou culminando na gramaticalização do substantivo –mente, cuja carga referencial, nesse contexto, já se encontrava em franca obsolescência. Essa preocupação com o fenômeno da variação e mudança lingüísticas é manifestada, ainda, no quadragésimo nono capítulo da Grammatica de Fernão de Oliveira, dedicado à “composição ou concerto que as partes ou dicções da nossa língua têm entre si” (OLIVEIRA, 1975, p. 123). É nesse componente de nossa gramática, de construição, ou sintaxe, que, segundo nosso autor, “mais que em alguma outra guardamos nós certas leis e regras” 59 (OLIVEIRA, 1975, p. 123). Avaliando positivamente essa tendência do português à “retenção”, esse autor interpreta-a como um dos elementos comprobatórios da superioridade da língua portuguesa relativamente à latina e à grega. Essas línguas “mui gabadas” segundo afirma em tom irônico, trocam e mudam, muitas vezes, advérbios por preposições e outras partes da oração – processo que, a seu ver, “... se não faz na nossa língua: ao menos tão ameude ... “ (OLIVEIRA, 1975, p. 124) Todavia, ao levar em conta o uso real do português de sua época, ao qual sempre procura dar atenção, esse estudioso não deixa de reconhecer a possibilidade que alguns advérbios e preposições têm de assumir ofícios superpostos entre si, ou “duplo ofício” – sintático e semântico. Em termos morfológicos, verifica-se, nesses casos, o deslizamento de uma classe vocabular para outra. Como evidência empírica disso, Oliveira nos lembra de certos vocábulos que “.. se servem em dois ofícios, como esta parte por, a qual às vezes é preposição e às vezes advérbio e outro tanto esta antes, depois e até e outras muitas que têm dois ofícios.” (OLIVEIRA, 1975, p. 124; destaques nossos). Em suma, pelo que pudemos constatar, o primeiro gramático da língua portuguesa, embora não nos forneça “lições” que enfoquem de um modo específico o “advérbio”, acaba fazendo alguma referência a ele, em passagens diversas e breves de sua obra. Admirador de sua língua, no legado gramatical que nos deixou, ele faz referência a várias modalidades do português, encontradas em sua época, valorizando sobretudo, a língua oral, relegada a segundo plano, em favor da escrita, até pouco tempo atrás. Outro aspecto interessante (e precursor) de seus estudos gramaticais é a importância que dá tanto ao enfoque sincrônico quanto ao diacrônico, de que se vale quando necessário e pertinente. Essa proposta “pancrônica”, vale lembrar, tem sido defendida, em tempos modernos, por correntes como a da Gramática Funcional, tanto de linha americana quanto européia. 60 3.2.2.2 João de Barros (1540) Em edição comentada (aqui seguida, juntamente com a edição simplificada de Rodrigues de Sá Nogueira, 1957) da Grammatica da língua portuguesa, de João de Barros, Buescu (1971, p. I do Prefácio) assim se manifesta a seu respeito: “encerra um imenso valor intrínseco, porque define o âmbito da gramática renascentista entre nós, e porque cria uma perdurável tradição gramatical portuguesa, que vai manter-se até ao século XIX”. Com vistas a confirmar o valor das “lições” desse nosso segundo gramático da língua portuguesa, valemo-nos, aqui, tanto da edição preparada por José Pedro Machado, datada de 1957, quanto da edição elaborada por Buescu (1971), que, a par do texto atualizado e dos comentários que faz, apresenta uma versão em fac-símile do compêndio gramatical desse autor. Para facilitar o contato da instância receptora com esse material, lavrado em português mais antigo, optamos por transcrever os trechos aqui citados, em português moderno. Disputando com Fernão de Oliveira o posto de primeiro gramático da língua portuguesa, João de Barros (1540), que, no ano anterior trouxera a público a sua Cartinha para aprender a ler (1539), na opinião dos entendidos, segue, com mais fidelidade, o modelo gramatical greco-latino, procurando destacar, como o primeiro, algumas das particularidades do seu idioma pátrio, ausentes das línguas clássicas. Para tanto, limita, segundo suas próprias palavras o corpus que se dispõe a examinar ao “modo certo e justo de falar e escrever colheito do uso e autoridade dos barões doutos” (BARROS, 1957, p.1; grifos nossos). Com uma obra gramatical mais completa, Barros (1540) divide suas “lições” em cinco partes: ortografia, prosódia, etimologia, sintaxe e figuras de linguagem. No que se refere à classificação dos vocábulos portugueses, assunto que nos interessa mais de perto, esse autor (1957, p.1), em metáfora retomada, posteriormente, por Saussure 61 (1916/1970), compara as “linguagens” a um jogo de xadrez, no qual identifica nove tipos de “peças”, “postas”, segundo ele, “em casas próprias e ordenadas, com leis do que cada uma deve fazer (segundo o ofício que lhe foi dado). São elas: o “nome”, o “verbo”, o “pronome”, o “advérbio”, o “particípio”, o “artigo”, a “preposição”, a “conjunção” e a “interjeição”. Com base no “ofício que lhes foi dado” e numa comparação metafórica com o jogo de xadrez, esse autor (1957, p.1) distribui os vocábulos do português em três grandes conjuntos.Expostos abaixo, eles aparecem, aqui, numa ordem que leva em conta a relevância e a espécie de papel que exercem na oração: a) vocábulos reis: “nome” e “verbo”, que, “concordes em ofício”, diferem quanto ao gênero; b) vocábulos damas: “pronome” ( dama do “nome”) e advérbio (dama do “verbo”); c) vocábulos peões, que servem aos dois poderosos reis – “nome” e “verbo” – , quais sejam: o “particípio”, o “artigo”, a “conjunção”, a “preposição” e a “interjeição”. A partir dessa comparação figurativa, podemos deduzir que esse gramático, além de de considerar tal “officio”, ou função sintática, como traço passível de identificar as diferentes classes de palavras, o vê como condição necessária (e primeira) para o prosseguimento do “jogo” da linguagem. Para fornecer uma visão global da taxonomia estabelecida por João de Barros (1540), completando-a com as subdivisões que ele aponta, quando examina, de um modo localizado, cada uma das classes em particular, apresentamos abaixo, em forma esquemática, as “lições” do autor a esse respeito: 62 1- VOCÁBULOS “REIS” Variáveis Nome Verbo 2- VOCÁBULOS “DAMAS” Do Nome Do Verbo Variável Invariável Pronome 3- VOCÁBULOS “CAPITÃES” Variáveis Advérbio Particípio Artigo Invariáveis Preposição Conjunção Subst.Adj. Ativo Neutro Impessoal Interjeição FIGURA 2- “PARTES DA LÍNGUA PORTUGUESA”, SEGUNDO JOÃO DE BARROS (1540/1971) Confrontando essa lição com a de autores que o sucederam, constata-se um dissenso da parte desse gramático quinhentista, que entende como sendo dama do “nome” o “pronome”, e não o “adjetivo”, como aqueles. Por outro lado, fazendo coro a muitos desses estudiosos, João de Barros classifica o “advérbio” como uma dama do verbo, restringindo, com isso, de um modo mais indireto, o seu escopo a um único constituinte. Ainda que de forma breve, esse estudioso de nossa língua, diferentemente de Fernão de Oliveira, apresenta, em sua Grammatica, um capítulo dedicado especialmente ao estudo do advérbio, capítulo esse que leva o seguinte título: “Do avérbio e suas partes”. Introduzindo-o com uma “lição” acerca da etimologia do termo, ele deixa mais explícita a definição acima mencionada, defendendo, através de dados empíricos, a importância dessa espécie lexical no quadro de palavras da nossa língua, conforme nos revela o segmento abaixo transcrito: 63 Avérbio é uma das nove partes da oração que sempre anda conjunta e coseita com o verbo e daqui tomou o nome, porque ad quer dizer “cerca” e composto com verbum fica adverbium, que quer dizer “acerca do verbo”. Foi esta parte muito necessária, ca por ela se denota a eficácia ou remissão do verbo, porque quando digo eu amo a verdade demonstro, que simplesmente faço esta obra de amar, mas dizendo eu amo muito a verdade, per este avérbio muito denota a cantidade de amor que tenho à cousa. E se disser amo pouco a verdade desfaço toda a obra de amar. (BARROS, 1957, p.39; negritos nossos) Nesse mesmo capítulo, Barros (1957, p. 39), fundamentado em critérios morfológicos e semânticos, procura distribuir as diferentes formas adverbiais em subconjuntos variados. Assim, como traços (ou “acidentes”) morfológicos próprios ao “advérbio”, ele aponta a espécie, que tem a ver com o estatuto derivacional dos itens – primitivos ou derivados – , e as figuras, que concernem ao seu estatuto configuracional – simples ou composto. Como exemplos de formas primitivas, ele arrola os itens muito e pouco, e de advérbios derivados, apenas o vocábulo bem, que “se deriva de bom”, e mal , que “se deriva de mau” . Por sua vez, como exemplos de forma simples, o autor aponta o vocábulo ontem, e, como forma composta, o vocábulo “antontem, que quer dizer ‘ante de ontem’.” (BARROS, 1957, p. 39) Num confronto entre essa “lição” de morfologia adverbial com a de Fernão de Oliveira (1540/1975) e outros estudiosos vistos no capítulo anterior, podemos constatar, pelos dados fornecidos por João de Barros (1540/1957), que a distribuição morfológica que propõe não coincide com a daqueles, que preferem distribuir os itens adverbiais em dois grupos distintos, segundo tenham recuperada, ou não, pelos usuários de hoje sua história derivacional. Outro critério apontado por esse gramático como suscetível de delimitar a “classe” dos advérbios é o que diz respeito ao seu estatuto semântico. Nos termos de Barros, tal tipo vocabular “acrescenta, diminui e totalmente destrui a obra do verbo a que se ajunta” O mesmo critério semântico o leva a dividir o macroconjunto adverbial em dois tipos (subgrupos) distintos, em que o primeiro é “o que dá aos verbos cantidade”, e o segundo, “o que lhe dá “calidade acidental, como o ajetivo ao substantivo” (BARROS, 1957, p.39). 64 Deduz-se daí que nosso segundo gramático se insere no grupo dos autores que, conforme visto no capítulo anterior, distinguem, com maior ou menor rigidez, o advérbio de modo dos demais, que atuam como circunstanciadores. Nesse mesmo território da significação, João de Barros também faz alusão à diversidade de sentido que alguns itens adverbiais podem expressar. Contudo, em face do emaranhado resultante dessa possibilidade de deslizamento semântico, reconhece que “não podemos compreender todas pera as reduzir a regras gerais”, e “põer em ordem” alguns deles, “conformando-se”, pois, em seguir “a ordem dos latinos” (BARROS, 1957, p. 39). Se, por um lado, tal opção o afasta do modelo de estudo vigente no Renascimento, por outro, contenta os membros da Inquisição, que já haviam reduzido, através de cortes não explicados, as “lições” dadas por João de Barros em seu compêndio gramatical. Com base, pois, nos parâmetros da gramática latina, nosso estudioso identifica os seguintes subgrupos semânticos, que integram, segundo ele, o quadro geral dos advérbios de nossa língua (BARROS, 1957, p. 40): a) De lugar: aqui, aí, ali, cá lá acolá, algures; b) De tempo: anteontem, ontem, hoje, agora, depois, cedo, tarde, nunca; c) De qualidade: bem, mal; d) De afirmar: certo, si; e) De negar: não, nen; f) De duvidar: quiçá, per ventura; g) De demonstrar: eis, ei-lo, ei-la; h) De chamar: ó, olá; i) De desejar: ose (sic), Oxalá; j) De ordenar: idem, depois; 65 k) De perguntar: como, porque; l) De ajuntar: juntamente, em soma; m) De apartar: àparte, afora; n) De jurar: certo, em verdade; o) De despertar: eia, sus, asinha; p) De comparar: assi, assi como, bem como; q) De acabar: em conclusão, finalmente. Num primeiro exame dessa extensa lista apresentada por Barros (1957), podemos perceber uma incoerência em sua análise, uma vez que, embora tenha proposto uma divisão binária, arrolando em grupos diferentes os advérbios indiciadores de qualidade e os advérbios codificadores de circunstância, ao arrolar os diferentes tipos semânticos do grupo adverbial, ele acaba colocando os dois tipos num mesmo e único bloco. A par disso, enquadra ainda, no grupo dos advérbios, itens que, hoje, a NGB prefere qualificar como de “classificação à parte”, tais como: eis, ei-lo, ei-la (formas de “demonstrar”) e afora, aparte (formas de “apartar”, ou “excluir”). Opta também por incluir, entre os membros dessa classe, termos de caráter vocativo/interjetivo como ó e olá e eia e sus, de grande relevância para processo de interação verbal em si. No mesmo quadro taxonômico, chama-nos a atenção, ainda, uma referência – única – feita por esse autor a formas possivelmente relacionadas a fases distintas do português , tais como: assim como e bem como, que, embora não tivessem perdido de todo a sua acepção adverbial, já deviam ter se cristalizado, formalmente, na língua, por meio do processo de gramaticalização (sintatização → morfologização), como “locuções conjuncionais”, configurando-se, pois, como marcadores de nexo interoracional. 66 Naturalmente, essa opção classificatória repercute no componente sintático, no qual, os advérbios assumem dois papéis distintos: o de “adjunto” e o de “conectivo”. Nesse mesmo plano gramatical, podem-se detectar outros problemas enfrentados ( e nem sempre resolvidos a contento) por João de Barros, alguns dos quais relativos ao próprio escopo do advérbio, que, segundo ele constitui-se numa “ das partes da oração que sempre anda conjunta e coseita com o verbo” (BARROS, 1957, p. 39; destaques nossos). A deduzir de sua classificação semântica, porém, constata-se que vários subtipos referidos e exemplificados pelo autor não correspondem a esse padrão sintático. Que o digam os advérbios “discursivos”, apontados acima, e outros como bem e mal, ou como em verdade e certo, que expressam juízos, avaliações e opiniões do falante acerca do que diz. Do mesmo modo, itens como finalmente, em conclusão, idem e depois, classificados pelo nosso gramático como advérbios “de acabar” e de “ordenar’, respectivamente, não se limitam a determinar o núcleo verbal. Além de atuarem como marcadores textuais, ajudando, metalingüisticamente, a construir/manter a coesão do discurso – oral ou escrito –, eles servem para organizar ou colocar em ordem o fluxo informacional ou argumentativo de um texto. Ainda que não comentado pelo autor, no caso específico de depois, “relativo ao curso dos eventos”, no dizer de Ilari (1991, p. 68), verifica-se uma possibilidade dupla de “extensão funcional”, a saber: a de delimitar a acepção verbal, ou a de se referir a toda a oração, expressando não só “tempo” como “lugar”, conforme nos ilustram os seguintes enunciados colhidos do português atual: (1) a- Ele jantou, comeu a sobremesa e morreu depois. b- Sabe aquela notícia dos tsunamis? Eu não consegui dormir depois. (2) a- Aqui ficam a praça e depois o palácio do governador b- Essa rua fica logo depois da Santa Casa. 67 Da mesma maneira, o subgrupo rotulado pelo autor como “de jurar”, ilustrado por formas como por certo e em verdade, nos remete à instância do enunciador. Tanto é que o próprio autor aloca o item adverbial certo também no conjunto dos advérbios que traduzem o ato de fala “de afirmar”. Outra propriedade (ou acidente, nos termos do autor) sintática referida por esse mestre em capítulo subseqüente, diz respeito ao “regimento do avérbio” (BARROS, 1957, p. 45-46). Além de mencionar as possibilidades de associação de formas adverbiais com outras classes de palavras, ele nos mostra que “alguns têm força de regerem casos como: assaz de dinheiro; muito disto, pouco de proveito” (BARROS, 1957, p. 46; destaques nossos) – possibilidade essa nem sempre lembrada pelos estudiosos, segundo observado no capítulo anterior. Apontados e comentados esses ensinamentos de nosso segundo gramático de língua portuguesa, façamos, a seguir, a fim de evitar uma ruptura intertemporal, e à guisa de continuum, uma breve parada nos séculos que separam os gramáticos quinhentistas dos gramáticos oitocentistas, último grupo de “antanho” a ser enfocado. 3.3 Lições intermediárias: gramáticos dos séculos XVII e XVIII Durante os séculos XVII e XVIII, a forte censura imposta pela Inquisição prejudicou a produção/publicação de compêndios gramaticais, em detrimento de tratados ortográficos, que, não obstante o seu valor, contêm um número bem menor de descrições das línguas modernas que se iam firmando na Europa. 68 Como “porto de passagem” para o estudo das lições em torno do “advérbio”, focalizamos, aqui, alguns dos compêndios que conseguiram, nesse contexto de ameaças e perseguições, trazer à tona estudos relativos ao sistema lingüístico português. 3.3.1 Século XVII Entre os gramáticos do século XVII, tem merecido destaque a obra Amaro de Roboredo, que, no seu Methodo gramatical para todas as línguas (1619), no qual nos concentramos, deixa patente o seu comprometimento com as idéias lingüísticas grecoromanas, defendendo, por exemplo, a necessidade e a vantagem de ensinar o latim e sua gramática, através do estudo da própria língua “vernácula”. Questionando, pouco tempo depois a relevância do estudo da gramática, no processo de ensino-aprendizagem da língua nativa, Roboredo reconhece, em sua obra Portas de línguas (1623), que se tratava de uma estratégia de grande valia, capaz de influir positivamente no desempenho dos alunos em termos de escrita e leitura, bem como de treinálos no bom uso de sua própria língua e na aprendizagem de outros idiomas distintos do seu. Tal preocupação com a relação interlingüística e a linha teórica adotada, aproximam as idéias desse estudioso das de lingüistas que, alicerçados em princípios formalistas, levam em conta a equivalência lógica entre as línguas. Com isso, além de distingui-lo de seus pares coevos, as idéias lingüísticas aplicadas e apregoadas por esse mestre sinalizam seu avançar em direção a uma gramática de cunho mais formal. Restringindo-nos, no caso em questão, ao tratamento conferido ao advérbio − objeto específico do presente estudo − por Roboredo (1619.), aproveitando o estudo desenvolvido por Hackerott (1989), mencionemos algumas das “lições” que ele nos deixou acerca dessa 69 espécie lexical. Começando pelo plano semântico, constatamos que esse autor concebia as formas adverbiais como elementos que servem para alterar o significado dos termos a que se podem ligar. Apesar de ampla e vaga, esta definição contém embutida, uma das características sintáticas desse tipo lexical, qual seja o seu escopo. Embora não discrimine os tipos vocabulares que pode determinar, deduz-se de suas palavras que eles não se limitam aos itens verbais. O mesmo critério semântico prevalece na subclassificação dos diferentes itens adverbiais apresentada por Roboredo (1619). Similar à taxonomia de outros autores, ele faz referência aos subconjuntos indiciadores de tempo, lugar, modo, etc. dentre os quais inclui o elemento que, quando subseqüente ao verbo, e às formas interjectivas. Ainda no século XVII, enfocado por Hackerott (1989), Fávero (1996), Bastos & Palma (2004) e outros estudiosos mais, contamos, ainda, com as “lições” de autores como João Franco Barreto, que, em seu trabalho intitulado Ortographia da lingua portugueza, datado de 1671, considera os advérbios como palavras que se juntam aos “verbos” e aos “adjetivos”, a fim de conferir maior perfeição à sentença. Em sua primeira parte, vê-se que a caracterização dos advérbios é feita com base em seu escopo (critério sintático), que compreende, no caso, o “verbo” e o “adjetivo”. Na segunda parte, essa caracterização é de cunho estilístico-normativo, uma vez que prevê os efeitos expressivos do advérbio e seu papel na produção de sentenças-modelo. Em trecho subseqüente, Barreto (1671) complementa as suas “lições”, repartindo o macroconjunto de advérbios em dois blocos semanticamente distintos: o dos advérbios de modo, que, representados por bem e mal se constituem, segundo ele, em advérbios propriamente ditos (ou prototípicos, em terminologia mais moderna); de outro, as demais formas. Com este tipo de lição, Barreto se aproxima de uma boa parte dos gramáticos que o 70 sucedem, mas se afasta de muito deles ao incluir, no segundo subgrupo – de advérbios não modais − os itens que expressam negação, ou seja, que privam o verbo de significação, como, por exemplo, o vocábulo não. Polêmica em tempos passados, a definição da classe que abrigaria as formas negativas, afirmativas, dubitativas, etc. continua até hoje provocando cisão entre os gramáticos. Fornecida uma idéia geral (e superficial) do pensamento de gramáticas do século XVII, vejamos, a seguir, também de uma forma sintética, o que nos ensinam alguns mestres do século XVIII. 3.3.2 Século XVIII No século XVIII, marcado, em Portugal e outros países por problemas de toda a natureza, o enfraquecimento da autoridade do poder real e da hegemonia eclesiástica, até então vigentes, levou à implementação de ações que culminaram na diminuição dos rendimentos da Coroa. Ascendendo ao trono português em 1750, D. José I, na tentativa de resgatar o velho poder do Estado absolutista, nomeou, como primeiro-ministro, Sebastião José Carvalho e Melo, mais tarde, Marquês de Pombal. Figura de importância inconteste na história de Portugal e até mesmo do Brasil, o Marquês de Pombal via, nos jesuítas, até então responsáveis pela catequização dos índios e pelo ensino do português, um empecilho para a realização de seus intentos. Com vistas a tirarlhes o poder e a credibilidade, ele passa a acusá-los de vários crimes, conseguindo, tempos depois, expulsá-los das terras de Portugal e de suas colônias. Não satisfeito, para justificar seus impulsos de perseguição e obter o aval do povo, ele acusou os membros da Companhia de Jesus de se fecharem às novas idéias em ebulição na Europa, atribuindo-lhes, por causa dessa omissão, a responsabilidade pela decadência do ensino vigente no país. 71 Nesse clima de efervescência política e cultural, são publicados alguns manuais de gramática, uns de linha mais tradicional, outros de caráter mais ousado. Nesse cenário, a obra intitulada Verdadeiro methodo de estudar, de autoria de Verney, é publicada em 1746, sendo vista como um dos marcos da ruptura definitiva dos gramáticos com as idéias lingüísticas e pedagógicas dos padres jesuítas. Nas diferentes “lições” encontradas nessa e em outras obras, como as de Argote (1721) e Figueiredo (1752), ressentimo-nos da pouca ou nenhuma atenção dada ao problema da classificação das palavras, em especial, à delimitação da classe dos advérbios. Concentrando-nos, particularmente, nessa espécie, constatamos que a maioria dos autores setecentistas consultados caracteriza o “advérbio” a partir do(s) papel(éis) semânticos que assume, relativamente ao termo que determina. Além dessa delimitação, assim como outros estudiosos, não se preocupam em esclarecer o significado dos termos que empregam em suas definições, do mesmo modo que não se importam em ilustrar suas “lições” com exemplos que elucidem e comprovem suas conclusões. Parcimoniosos como os demais, Argote (1721) e Verney (1747), supracitados, definem, semântica e sintaticamente, o “advérbio” como uma palavra que serve para determinar e clarear outras palavras, deixando, pois, a cargo do leitor a tarefa de interpretar o que querem dizer com “determinar” e “clarear outras palavras”, cuja classe não especificam. Esse mesmo tipo de lacuna é encontrado na definição de “advérbio”, defendida por outro renomado mestre desse período, Frei Luiz do Monte Carmelo. Em seu Compêndio de Ortographia, publicado em 1767, esse mestre conceitua o advérbio como um modo de significar o “nome”, o “verbo” e o “conceito” (as demais classes de palavras). Quanto à caracterização sintática, esse autor, pelo que se pode ver, se atém ao escopo do “advérbio”, que, além de incidir sobre o “verbo”, se estende ao “nome” e a uma categoria vaga, dita “conceito”, que torna a definição ainda mais obscura. 72 Pelo que se pode perceber o traço semântico – “modo de significar” - que esse autor aponta como próprio ao “advérbio” não nos diz nada, a não ser que o autor estivesse se referindo aos “advérbios de modo” – o que não passa de mera suposição. Em suma, dos ensinamentos que recebemos dos gramáticos dos séculos aqui considerados por razões didáticas, de um modo mais superficial, releve-se o seguinte: a) embora façam alusão à heterogeneidade – semântica e sintática – das formas adverbiais, os autores consultados nos fornecem definições muito vagas e difíceis de interpretação; b) nenhum deles apresenta um quadro classificatório que dê pelo menos uma idéia das possibilidades distribucionais desse tipo de vocábulo; c) a dificuldade de depreensão dos traços peculiares ao advérbio pode ser comprovada pela inclusão, em seu quadro geral, de componentes de outras classes de palavras, como a dos “pronomes”, “preposições”, “conjunções”, “interjeições”, mencionados de novo nos capítulos em que se estuda, separadamente, cada uma delas. Efetuada, mesmo que de passagem, a travessia da fase quinhentista para a oitocentista, cabe-nos, agora, enfocar esta última examinando o que nos dizem seus autores a respeito da classificação de palavras e do advérbio. 73 3.4 Lições finais: gramáticos do século XIX 3.4.1 Panorama lingüístico geral No século XIX, último dos “tempos de antanho” aqui enfocado, recebemos lições preciosas de gramáticos expoentes como Jeronymo Soares Barbosa e Júlio Ribeiro, cujas obras, Grammatica philosophica da língua portuguesa (1803) e Grammatica portugueza (1882), respectivamente, foram aqui selecionadas como representativas desse período. O primeiro, Soares Barbosa, é tido, na literatura corrente, como o grande representante de uma era em que predominavam compêndios gramaticais de linha mais filosófica; o segundo, Júlio Ribeiro, nos leva de volta a uma abordagem mais tradicional do português, menos arrojada, pois, mas tão valiosa quanto a de Barbosa, que segue de perto as idéias lingüísticas defendidas na Gramática de Port-Royal (1992, ed. brasileira). Com base nas edições datadas de 1881 (gramática de Jeronymo Soares) e de 1884 (gramática de Júlio Ribeiro), apresentamos e comentamos, a seguir, as “lições” que ambos nos deixaram. 3.4.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas 3.4.2.1 Jeronymo Soares Barbosa (1803) Como era de esperar, Jeronymo Soares Barbosa (1803/1881) tem uma concepção mais racionalista de linguagem, que faz coro tanto com alguns de seus pares coevos, quanto com a de Arnauld e Lancelot, autores da Grammaire générale et raisonée, traduzida para o português com o título de Gramática de Port-Royal (1992). 74 Defensor, pois, dessa linha de pensamento, Barbosa (1881) acredita que exprimimos as nossas percepções do real por meio do discurso, o qual, por sua vez, pode ser atualizado de dois modos distintos. O primeiro deles, natural e sumário, serve para expressar por intermédio de palavras interjectivas, o estado de espírito do ser humano; o segundo, dito artificial e analítico, codificado pelas outras espécies vocabulares, traduziria as demais funções da linguagem. Na maneira de ver desse gramático-filósofo “destes dois modos contrários de dar a conhecer pela linguagem os nossos pensamentos, nasce a divisão a mais geral das palavras em classes” (BARBOSA, 1881, p.70). Pelo que se pode ver, transparecem nessa divisão de ordem mais abrangente, alguns dos critérios que lhe pareciam adequados para a delimitação das classes de palavras integrantes do acervo lexical do português. E mais: por intermédio dessas idéias, e de outras que vão sendo expostas nas “lições” específicas a cada grupo vocabular, ficamos a par do modelo de gramática adotado por esse autor, que, por exemplo, assim se manifesta a respeito das “interjeições”: “ao sentimento pois pertence o proferil-as a proposito, e à Gramática o recel-as do uso, contal-as, e notar algumas differenças mais geraes que as distinguem” (BARBOSA, 1881, p. 71; destaques nossos). Nessa passagem, em que nosso autor se mostra afinado com o pensamento de estudiosos de seu tempo, fica patente o seu projeto de “gramática”, a que cabe, segundo ele, no que diz respeito ao estudo do conjunto vocabular das línguas, “descrever, a partir do uso, o comportamento das palavras, para, então, distingui-las, enumerá-las e classificá-las” (BARBOSA, 1881, p. 71). Para melhor compreensão de seus ensinamentos sobre o “advérbio”, apreciemos antes o seu quadro distributivo do conjunto vocabular do português, tarefa que ocupa um bom espaço de sua Grammatica. Alicerçado na idéia de que existem “modos contrários de dar a conhecer pela linguagem os nossos pensamentos” – um, que representa “todas estas 75 percepções e sentimentos que a nossa alma experimenta tulmutuariamente”, e outro, que representa as percepções que temos dos objetos, “separando-as e fazendo-as succeder umas às outras” , esse mestre acredita que disso deriva uma “divisão a mais geral das palavras em duas classes: uma, das palavras interjectivas ou exclamativas, e outra das discursivas ou analyticas” (BARBOSA, 1881, p.70; destaques nossos). Em seu ponto de vista, as “interjeições” configuram-se como “partículas desligadas do contexto da oração”, que, expressões da “linguagem primitiva que a natureza mesma ensina a todos os homens logo que nascem”, servem para indicar “o estado ou de dor ou de prazer interior em que sua alma se acha, e por isso mesmo devem ter o primeiro lugar na ordem das partes da oração” (BARBOSA, 1881, p. 70). Por outro lado, as “discursivas”, ou “analíticas”, servem para exprimir as duas “coisas” que o nosso espírito, tal como a natureza, contém: as idéias, que nada mais são do que reflexos da primeira operação – de percepção ou concepção – do nosso entendimento, e, também suas diferentes combinações, reflexos da segunda operação do nosso entendimento, qual seja, o juízo. Tem-se, aí, pois, uma nova subdivisão, que, atinente às palavras “discursivas”, nos remetem a duas grandes subclasses, correspondentes às duas operações supracitadas que o pensamento pode realizar: as palavras nominativas e as palavras combinatórias (ou “conjunctivas”, nos termos do autor), conforme exposto abaixo: as palavras discursivas que os exprimem, de necessidade se devem também reduzir a duas classes geraes, como nos methodos analyticos do calculo; umas que caracterizam e nomeiam as idéias, e outras que as combinam entre si. (BARBOSA, 1881, p. 74; destaques nossos) Todavia, conforme reconhece o próprio gramático, essa bipartição não é a única que se verifica no acervo lexical das línguas, uma vez que “as idéias que se nomeiam e as suas combinações são de diferentes espécies” (BARBOSA, 1881, p. 74). Assim sendo, tanto os termos nominativos quanto os combinatórios se desmembram em outros tipos vocabulares. 76 Ciente de que: a) a distribuição dual acima – de palavras nominativas x palavras combinatórias (ou conjunctivas) – não dá conta de mostrar, com a devida precisão, as diversas possibilidades de “nomeação” e as diferentes espécies de “combinação”; b) a determinação dessa tipologia é essencial “para se saber quaes são exactamente as partes elementares e indispensáveis do discurso; c) “n’este ponto [classificação de palavras] tem havido quasi tantas opiniões quanto são os grammaticos”; d) uma palavra só pode ser considerada como elemento de uma oração, desde que: 1º - “seja simples e irresolúvel”, ou seja, que apresente traços inerentes que as distingam de outras palavras; 2º - “seja necessária e indispensável à enunciação dos nossos pensamentos, de tal sorte que não haja lingua alguma que a não tenha”; 3º - exerça no discurso uma funcção essencialmente differente da(s) que cabe a outras palavras exercer (BARBOSA, 1881, p. 74), esse autor, diversamente de outros que não explicitam os critérios norteadores de seu quadro taxonômico, aponta e identifica as seguintes sub-espécies concernentes às duas grandes classes de palavras nominativas e combinatórias acima referidas: A - Palavras nominativas (de número infinito e de massa fônica mais extensa) : a) nome substantivo – a que cabe expressar as idéias principais; b) nome adjetivo – a que cabe exprimir “as idéias acessórias como objeto dos nossos discursos para se combinarem e se compararem” (BARBOSA, 1881, 74) B – Palavras combinatórias: ( de número reduzido e de pouca massa fônica): a) verbo substantivo – a que cabe combinar e ajuntar idéias acessórias com a principal; 77 b) preposição – a que cabe combinar “entre si duas idéias principaes, fazendo de uma complemento da outra” (BARBOSA, 1881, p. 74); c) conjunção – a que cabe combinar, ligar e ordenar as orações. Paralelamente a essa distribuição de ordem mais cognitiva, semântica e sintática, o autor faz menção de outros tipos em que se podem reunir, de forma cruzada, palavras de caráter discursivo e exclamativo. Quanto ao estatuto morfológico, o autor faz referência aos dois conjuntos vocabulares, que apresentados abaixo, se distinguem um do outro, segundo admitam, ou não, variação flexional de gênero, número e pessoa (no caso do verbo): A) Palavras Variáveis B) Palavras Invariáveis Substantivo Interjeição Adjetivo Preposição Verbo Conjunção Para uma idéia mais completa e detalhada do quadro classificatório proposto por esse gramático, veja-se o esquema abaixo, no qual procuramos deixar claros os critérios cognitivos, semânticos, sintáticos, morfológicos, fônicos e quantitativos, tidos pelo autor como pertinentes para determinar “quaes são exactamente as partes elementares e indispensáveis do discurso” (BARROS, 1881, p. 74; destaque do autor). 78 1- PALAVRAS DISCURSIVAS VARIÁVEIS (“Partes”) 2- INVARIÁVEIS (“Partículas”) Nominativas Adjetivo Interjeição Combinatórias [ + numerosas ] [ + extensas ] [ + polissêmicas ] Substantivo PALAVRAS NÂO DISCURSIVAS OU EXCLAMATIVAS [ - numerosas ] [ - extensas ] [ - polissêmicas ] Verbo (subst.) Art . Pron. Part. Preposição Conjunção Advérbio FIGURA 3- “SISTEMA COMPLETO DOS ELEMENTOS DA ORAÇÃO”, SEGUNDO JERONYMO SOARES BARBOSA (1803/1881) O exame do Quadro acima nos revela problemas mais ou menos sérios de várias naturezas, relativos não só à identificação das “formas adverbiais”, como à das demais espécies vocabulares. Um deles, por exemplo, diz respeito ao verbo, que, por figurar no bloco das palavras conjuntivas, portar os traços [ - numerosos ], [- extensos ], [+ monossêmicos ], peculiares a esse grupo. Deixando para outra oportunidade, ou para outros estudiosos, a tarefa de avaliar, com o devido apuro, a pertinência, ou não, dos traços apontados pelo nosso filósofo-gramático como identificadores dos diferentes tipos de vocábulos do português, apreciemos, a seguir, 79 as “lições” de Jeronymo Soares Barbosa (1803/1881) acerca da caracterização do advérbio, espécie vocabular que constitui o objeto desta pesquisa. Pelo que nos é dado ver na Figura nº 1 acima, esse tipo de palavra é tida pelo autor como um dos subgrupos do “macroconjunto” das preposições. Com tal distribuição, Barbosa (1881) deixa claro que as formas adverbiais não formam uma “classe” autônoma de palavras, independente, pois, das demais. Do mesmo modo, não está livre de questionamentos a concepção de “advérbio” defendida por esse autor, exposta no Capítulo V de sua Grammatica (ed. de 1881, p. 218 a 243), dedicado ao estudo da “preposição”. Naquele capítulo, depois dos ensinamentos a respeito da classe das “preposições”, nosso mestre se volta, de um modo particular, para o advérbio, que, na sua opinião, nada mais é do que o resultado de uma redução ocorrida no interior dos Sintagmas Prepositivos (SPreps), ou seja, de um processo de abreviação do conjunto formado pela “preposição” e seu complemento em uma única palavra, morfologicamente, indeclinável. Essa associação, afirma-nos o autor (1881, p. 235), está inscrita no próprio nome advérbio (termo originado do latim adverbium), que significa ‘adjunto ao verbo’, entendendo-se, no caso, o termo verbo em seu sentido lato de “qualquer palavra capaz de modificação”. Dessa maneira, segundo esse estudioso, não só advérbios de acepção locativa ou temporal, como: de cima, acerca, abaixo, debaixo, acima, etc, mas também os advérbios de qualidade terminados em –mente se mostrariam ainda preposicionados, tal como no seu passado latino. O excerto abaixo, transcrito de Soares Barbosa, nos dá uma idéia mais clara do alcance dessa relação “Advérbio” – “Sintagma Prepositivo”, que ele se preocupa em apontar: Quer eu diga pela preposição com o seu complemento: obrar com prudencia; quer reduzindo a coisa a menor expressão diga: obrar prudentemente; a significação vaga do verbo obrar fica egualmente modificada e determinada pelo advérbio, como pela preposição com seu complemento. (BARBOSA, ed. de 1881, p. 234-235; destaques do autor) 80 Aqui, Barbosa, fazendo jus à sua idéia de que uma palavra, para que possa ser considerada como elementar à oração, deve exercer no discurso uma função diferente das exercidas por outras palavras, mostra que esse não é o caso do advérbio. Antes, a função adverbial é perfeitamente desempenhada, segundo o autor, por uma preposição combinada a um substantivo. Com tal proposta analítica, evidencia-se mais uma vez a ligação desse gramático português com os mestres de Port-Royal, cujas “lições foram retomadas e revistas, em tempos modernos pelo lingüista americano Noam Chomsky, com sua proposta de uma gramática gerativo-transformacional. Para este autor, os “advérbios” nada mais seriam que formas resultantes da ação do Princípio da Economia, explorado de outra maneira, nos nossos dias, por adeptos da Gramática Funcional. A par do recurso a esse critério de cunho mais etimológico − que serve para justificar o caráter invariável dos “advérbios” e revelar diferenças entre eles e a classe dos “nomes adjetivos” (declináveis) − registram-se, em seu compêndio gramatical, casos de subagrupamento de itens adverbiais, que, dependendo dos traços que portam, se entrecruzam uns com os outros, dando, assim, origem a vários tipos de distribuição. Explorando tais possibilidades, Barbosa (1881) aponta várias subespécies de advérbios, distintas umas das outras não só em termos semânticos e formais, como em termos discursivos, numéricos, etc. Com base na “estrutura subjacente” das formas adverbiais – simples ou funcionais – esse gramático identifica três grandes subgrupos adverbiais: o dos advérbios propriamente ditos, o dos nomes adverbiados e o das fórmulas adverbiais. Todavia, se levarmos em conta os próprios traços que aponta, poderíamos reduzir esses três blocos a dois, diferenciados um do outro por sua configuração estrutural, a saber: um, que abarca as formas adverbiais com preposição subentendida e outro, que contém as formas adverbiais com preposição expressa. 81 Paralelamente a essa distribuição bipolar que sugerimos, detectamos ramificações e subramificações de menor porte. Dentre elas, mencione-se, aqui, o desmembramento do que chamamos formas com preposição subentendida em dois subtipos: um, designado pelo autor como advérbio propriamente dito, no qual o termo (único) que o compõe é, flexionalmente, invariável – o que restringe o seu uso a um único contexto; correspondente aos outro, nomes adverbiados, nos quais o termo único de que é formado, contrariamente ao que se dá com o grupo anterior, caracteriza-se como variável, (ou declinável), como prefere o autor, sendo, assim, “susceptível de outro emprego na enunciação do pensamento” (BARBOSA, p. 235). Como ilustração do primeiro subtipo, esse autor aponta o advérbio locativo “indeclinável” aqui, que, segundo ele, “comprehende em si a preposição em, e seu complemento é, este logar, como se disséssemos: n’este logar“ (BARBOSA, 1881, P. 235). Por sua vez, como exemplo de itens adverbiais do segundo subtipo, ele menciona o vocábulo certo, que, embora sujeito à variação de gênero e número, em contextos em que funciona como adjetivo se caracteriza como invariável no exercício de função adverbial, ilustrada, pelo autor, em enunciados como: “Certo sei.” “Certo que isto é mal feito”, nos quais, o vocábulo certo equivale a certamente. Outra ramificação mencionada por Barbosa (1881) incide sobre o conjunto composto por formas com preposição expressa, que se subdivide em duas subespécies: as que apresentam preposição incorporada ao seu complemento, e as que não apresentam; como exemplo de fórmulas adverbiais com preposição incorporada, o gramático em pauta arrola, na página 236, itens como d’aqui, d’alli, d’aquem, d’além, equivalentes, no seu modo de ver, a: d’este logar, d’aquelle logar, da parte de cá, da parte de lá. Por outro lado, locuções como: às avessas, à direita, às claras, às escondidas, são apontadas por ele como casos ilustrativos do subconjunto fórmulas adverbiais com preposição separada. 82 Esquematizando essas “lições” a respeito da (sub)categorização dos “advérbios”, tudo temos o seguinte resultado: A- Formas com preposição subentendida a) advérbios propriamente ditos b) nomes adverbiados B- Formas com preposição expressa a) itens aglutinados ao termo determinado b) itens separadas do termo determinado Ao insistir na idéia de que “o advérbio, propriamente dito, é uma palavras só, e essa indeclinável, e destinada pelo uso para exprimir com mais brevidade uma preposição com seu complemento”, Soares Barbosa (1881, p. 236-237), de certa maneira, nos remete a outro tipo de rearranjo do conjunto adverbial, decorrente do tempo de entrada dos termos adverbiais em nossa língua. A partir desse critério cronológico, ele separa, de um lado, as formas adverbiais que vieram, como tais, do latim. Rotuladas, nas gramáticas históricas, como formas hereditárias, esse bloco, de acordo com o nosso mestre, abarcaria, predominantemente, os advérbios de lugar, tempo e quantidade. Por sua vez, os advérbios de modo e qualidade, que, formados, segundo o autor por analogia, constituiriam vocábulos mais novos, ou formações românicas (no caso, portuguesas). No esquema abaixo, em que se reproduz a exemplificação fornecida por nosso gramático, temos uma síntese dessa redistribuição cronológica dos itens adverbiais vigentes em nossa língua: A - Formas hereditárias Constituídas, preferentemente, de advérbios de: a) de lugar: onde, algures, alhures, nenhures, aqui, ahi, dahi, aquém, além, cá, lá,acolá, arriba, cerca, dentro, fora, diante, traz (sic), longe, perto; 83 b) de tempo: quando, sempre, nunca, então, agora, avante, antes, depois, hontem, hoje, logo, já, ainda, cedo, azinha. c) de quantidade (registrado, por engano, como de “qualidade”): tão, quão, mui, mais, quase, cerca,apenas. B – Formações românicas (portuguesas) Advérbios de modo e qualidade: sim, não, assim, como, talvez, eis. Como fecho a este exame das “lições adverbiais” dadas por Jeronymo Soares Barbosa (1881), transcrevemos, a seguir, um excerto no qual critica os demais gramáticos pela incoerência da taxonomia que apresentam: Esquecendo-se (...) das definições que dão do advérbio, que dizem ser uma voz indeclinável, [nossos gramáticos] mettem nesta conta expressões que nada tem de adverbiaes; porque são ao meros complementos com suas preposições, que não há mais razão para pôr na classe dos advérbios do que qualquer outro substantivo com a sua preposição junta; o que seria uma estranha confusão.(BARBOSA, 1881, p. 236 ) Isso posto, salientem-se, aqui, os seguintes pontos da proposta analítica desse expoente no campo dos estudos da língua portuguesa, que, independente em seu modo de ver, aponta solução próprias para os inúmeros problemas que enfrenta. Mesmo que não os tenha resolvido inteiramente, ou que não os tenha resolvido a contento, conforme avaliação de Elia (1980), esse mestre da gramática deixou abertos novos caminhos, que nos desafiam a prosseguir nessa viagem por terras “adverbiais”. Assim, no que tange à classificação das palavras, ressaltem-se os seguintes ensinamentos: a) a distribuição das palavras em duas dimensões lingüísticas distintas: palavras discursivas x palavras exclamativas (não discursivas); b) a subdivisão do primeiro bloco em subtipos também desmembráveis em outras subespécies, a saber: i) o desmembramento das palavras discursivas, em variáveis (substantivo, adjetivo, 84 adjetivo e verbo) e invariáveis (preposição e conjunção); ii) a repartição (diferente da primeira) dos termos discursivos em: palavras nominatiavas (variáveis) versus palavras conjunctivas (invariáveis); iii) o desdobramento do subgrupo: o nominativo em nomes substantivos e adjetivos, e do combinatório, ou conjuntivo, em verbos, preposições e conjunções; iv) a distribuição do subconjunto de conjuntivas em dois subgrupos, segundo passíveis ou não, de variação e flexão: o das formas invariáveis (conjunção e preposição) e o das variáveis, do qual faz parte o verbo, tido por nosso autor como nominativo e conjuntivo, ao mesmo tempo; v) outro tipo de subcategorização incide sobre o conjunto dos adjetivos, que podem se desdobrar em: particípio, artigo e pronome. Embora atraente pelas novidades que apresenta, o quadro de Jeronymo Soares Barbosa, não deixa de suscitar questionamentos e contraposições, decorrentes, muitas vezes, de sua despreocupação com o esclarecimento de certas noções, emprestadas de outros, ou não, e de justificativas teórica e empiricamente mais seguras. Com isso, o modelo de análise sugerido por Soares Barbosa não raro se mostra confuso e até mesmo inadequado, conforme nos demonstram críticas como a que faz Sílvio Elia, para quem, “o gramático-filósofo antes escureceu que iluminou a questão” (no caso, a delimitação do escopo do advérbio). (ELIA,, 1980, p.23). No que concerne às lições sobre o advérbio, nosso gramático de novo se destaca por suas idéias inéditas, dentre as quais pontuamos: a) a definição do “advérbio” com base no estatuto configuracional que apresenta em sua Estrutura Profunda, e/ou com base na sua forma analítica vigente em fases pretéritas; b) a alocação do advérbio no rol das palavras “invariáveis”, o que leva ao seu deslocamento para o subgrupo das palavras conjuntivas; c) a 85 visão sintática do advérbio como elemento configuracionalmente similar ao Sprep; d) o reconhecimento de uma abrangência maior do escopo dos itens adverbiais; e) a apresentação de vários tipos de subdivisões a que estão sujeitas as formas adverbiais, tanto no plano semântico quanto no formal. Vistas essas “lições” advindas do início do século XIX, encerremos este capítulo, voltado para os tempos de antanho, com o exame das idéias “adverbiais” de Júlio Ribeiro, que se propõe, em sua Grammatica portugueza (1882/1884), afastar-se das antigas, que, a seu ver, “eram mais dissertações de metaphysica do que exposições dos usos da língua”, e mostrando “com clareza as leis deduzidas dos factos e do fallar vernáculo (RIBEIRO, 1884, p. I; destaque nosso). 3.4.2.2 As lições de Júlio Ribeiro (1882) Afirmando, na Introdução de sua obra, que “a grammatica não faz leis e regras para a linguagem”, mas “expõe os factos della, ordenados de modo que possam ser aprendidos com facilidade” Júlio Ribeiro (1884, p. 1; grifos nossos), revela-se, de antemão, um defensor da idéia (de cunho pedagógico) de que “o estudo da grammatica não tem por principal objecto a correção da llinguagem”, embora possa contribuir para isso. (RIBEIRO, 1884, p.1). Embora mais envolvido com as idéias gramaticais da tradição greco-latina do que Jeronymo Soares Barbosa, esse gramático brasileiro sofre influências do cientificismo predominante em sua época, conforme nos comprova o seguinte excerto, transcrito da “Secção Primeira” (Taxeonomia) do “Primeiro livro” em que se divide o seu compêndio: A linguagem, interprete da intelligencia, é um instrumento de analyse: com effeito, as palavras servem para distinguir os seres, os objectos, as qualidades, as substancias reais ou abstractas, as açções, os estados diversos das pessoas, das cousas, todas as manifestações da vida, todos os phenomenos, até mesmo os que caem sob o domínio da imaginação e do futuro, o contigente, o absurdo, o impossível. (RIBEIRO, ed. de 1884, p.57) 86 Em consonância com a linha darwinista, esse autor (1884, p. 57) concebe a linguagem como uma “expressão do pensamento” e defende a idéia de que a distribuição das palavras em grupos, só pode ser feita a partir dos “grupos de idéias que compõem o pensamento”. Com base nisso, Júlio Ribeiro (1884, p. 57) identifica, na nossa língua, oito categorias de vocábulos, que, em termos da propriedade sintática [±dependência], podem ser distribuídas em três grandes grupos, aqui apresentados em forma de esquema: A- Formas independentes – que correspondem às palavras “capazes de formar sentenças por si e entre si”: o “substantivo”, o “pronome” e o “verbo”. (RIBEIRO, 1884, p.57). B- Formas qualificadoras – que se caracterizam como dependentes de outra palavra que descrevem ou limitam: o “artigo”, o “adjetivo” e o advérbio. C- Formas conectivas – que englobam as palavras que servem para juntar um termo com outro, ou uma oração com outra: a “preposição” e a “conjunção”. Pelo que se pode ver acima, Ribeiro não inclui em seu quadro a interjeição, atitude também assumida por alguns autores da atualidade, considerando-a como um simples “grito involuntario, instinctivo, animal”, que não tem nenhuma ligação com o pensamento. Em outras palavras, para ele, essa espécie vocabular não deve ser tomada como parte do discurso, mas, sim, como mera expressão do sentimento humano. Embora de um modo menos radical, essa idéia coincide com a de vários autores, entre os quais, o próprio Soares Barbosa (1803/1881), que, conforme vimos, arrola as interjeições, num grupo especial, de palavras não discursivas, ou seja, não passíveis de engendrar as idéias contidas no pensamento. Outro tipo de distribuição de palavras encontrado no manual de Júlio Ribeiro (1884), leva em conta o traço morfológico [ ± flexão ], que dá origem ao seguinte subquadro: 87 A- Formas variáveis B- Formas invariáveis Substantivo Advérbio Adjetivo Preposição Verbo Conjunção Artigo Pronome Dividido em dois subtipos, esse “conjunto”, lembra-nos esse gramático, já foi “unitário” no passado, uma vez que as “palavras invariáveis”, integrantes do segundo grupo, “já gosaram de vida, já tiveram fôrmas móveis nas línguas matrizes: são (...) organismos inferiores (...), cujas partes fluidas se solidificaram por uma como crystallização lingüística”(RIBEIRO, 1884, p. 57). A título de síntese e para melhor visualização dessa taxonomia, apresentamos o seguinte Quadro: 1- PALAVRAS 2- INDEPENDENTES Variáveis PALAVRAS DEPENDENTES Variáveis Substantivo Pronome Verbo Artigo Adjetivo Advérbio 3- PALAVRAS CONECTIVAS Invariáveis Preposição Invariáveis Conjunção FIGURA 4 – “TAXEONOMIA” DAS PALAVRAS DO PORTUGUÊS, SEGUNDO JÚLIO RIBEIRO (1882/1884) 88 No que tange, particularmente, ao advérbio, as lições de nosso gramático brasileiro, embora se ressintam de maior sistematicidade, contêm novidades e interpretações pessoais, ainda a confirmar. Examinemos algumas delas, começando pela definição que o autor nos fornece, na primeira seção (intitulada “Taxeonomia”) do “Livro Segundo” do seu compêndio: “advérbio é uma palavra que modifica um verbo, um adjetivo ou um outro advérbio” (RIBEIRO, 1884, p. 70; destaque do autor). Ainda que sintética, essa definição, corrente na literatura, se baseia em dois traços de natureza distinta: um semântico, concernente ao papel de modificador do “advérbio”. outro, sintático, relativo ao seu escopo, que além de abarcar o “verbo”, atinge, também, o “adjetivo” e mesmo outro “advérbio”. A par desse traço sintático de delimitação do escopo do “advérbio”, no “Livro Quarto” de sua Gramática − reservado, exclusivamente, ao estudo da Sintaxe −, temos uma alusão a outro traço próprio ao “advérbio”, nem sempre lembrado pelos autores, qual seja, a sua posição ocupada na oração “ junto da palavra por elle modificada”. Como comprovação empírica disso, seu proponente arrola os seguintes exemplos: Homem muito illustrado; Pedro escreve rápido; César escreveu muito concisamente (RIBEIRO, 1884, p. 314). Quanto à caracterização semântica do advérbio, além do papel de modificador do termo a que se liga, referido na definição, o gramático menciona outros, mais esporádicos, já que restritos a determinados itens. Um deles é o de indiciador de intensidade, que as formas locativas cá e lá, por exemplo, podem exercer (em decorrência de um processo de metaforização), quando ligadas, respectivamente, à primeira e às demais pessoas do discurso. Como exemplo, o autor arrola os seguintes dados: Eu cá julgo que elle não vem; Nós cá queremos; Tu lá sabes; Vós lá podeis; Elle lá tem; Elles lá são ricos (RIBEIRO, 1884, p. 315; destaques nossos). Além desse tipo de ocorrência – encontrado até hoje na nossa língua –, esse mesmo estudioso nos lembra a possibilidade de emprego do locativo lá com valor dubitativo, 89 reforçado por entoação própria. Exemplos: “Eu lá sei; Nós lá queremos isso” (RIBEIRO, 1884, p. 315; destaques nossos). Revolvendo estágios passados de nossa língua, esse mestre faz alusão, ainda, à mudança de sentido de “advérbios pronominais” como onde, que, afastando-se de seu significado original – latim unde, ‘lugar de onde’ – acabou se fixando no português como índice de “lugar onde”. Isso sem falar em outros resultantes de gramaticalização ou de discursivização, verificadas em diferentes estágios de sua evolução, conforme mostrado por Bittencourt (1999, 2003, 2004), Marinho (1999) e outros. No tocante aos traços morfológicos do “advérbio”, investigados com maior apuro por Júlio Ribeiro, contamos com ensinamentos tanto de natureza sincrônica quanto diacrônica. Assim é que, em outra parte de seu compêndio, à luz dessa última perspectiva, diacrônica, ele mostra que, em termos flexionais, essa espécie vocabular tida como invaríavel, na verdade, “marca a transição das palavras variáveis para invariáveis” (RIBEIRO, 1884, p. 152). Prova disso, nos diz ele, é “o fato de [o advérbio] admitir graus de comparação (lindamente, mais lindamente, lindissimamente, boamente, melhormente, optimamente)” o que “evidencia ter sido o advérbio palavra flexional nas antigas línguas indo-germânicas, fontes da portuguesa” (RIBEIRO, 1884, p. 152). Vistos os traços que esse mestre considera como peculiares do “advérbio”, investiguemos, agora, os tipos de subclassificação adverbial apontadas por ele. Um deles, já referido acima, é a que concerne à expressão de grau. Com base nesse traço, Ribeiro (1884, p. 152) distingue dois conjuntos distintos: a) o constituído por itens que admitem graus de comparação x o constituído por advérbios que não o admitem; b) o integrado por itens que, em forma diminutiva, exprimem grau superlativo x o integrado por itens que não assumem forma diminutiva. 90 O grau comparativo, esclarece-nos esse autor, é expresso principalmente por advérbios de modo terminados em –mente, ao passo que o superlativo é indicado por adjetivos adverbiados e por locuções adverbiais: “Levantei-me cedinho; Falou baixinho” (RIBEIRO, 1884, p.152-153; grifos nossos). Levando em conta “a natureza da modificação que exprime” Ribeiro (1884, p. 70-71) identifica dez subtipos diferentes em termos semânticos: a) de tempo: agora, ainda, nunca, jamais, etc.; b) de lugar: onde, aqui, aí, ali, cá, lá, etc; c) de ordem: primeiramente, ultimamente, depois; d) de modo: bem, mal, assim, como, acintemente, e os terminados em mente; e) de conclusão lógica: conseguintemente, conseqüentemente; f) de quantidade: muito, pouco, assás, mais, menos, quase, etc.; g) de afirmação: sim, verdadeiramente, efetivamente, realmente, certamente, etc.; h) de negação: nada, não, menos, nunca, jamais; i) de dúvida: talvez, acaso, quiçá; j) de exclusão: só, somente, apenas, unicamente, sequer, senão; l) de designação: eis. Outro traço responsável por novos tipos de desdobramento do “advérbio” é, segundo nosso autor, o que diz respeito à origem dos diferentes itens e locuções que integram esse grupo. Conjugando sincronia com diacronia, ele chega ao seguinte quadro, que, organizado à nossa maneira, fornece uma visão mais abrangente da subcategorização, apresentada por ele: a) formas adverbiais hereditárias b) formas adverbiais vernáculas; c) formas adverbiais importadas. 91 Como parte do conjunto de advérbios herdados da língua latina – constitutivos da camada hereditária, o autor arrola cerca de cinqüenta e três itens, acompanhados de suas respectivas formas latinas, fornecendo-nos, assim, dados para uma pesquisa nessa área. Dessa lista fazem parte termos como: acaso, acima, acolá, alhures, bem, cedo, dentro, donde, eis, então, fora, hoje, hontem, já, jamis, lá, logo, mais muito, não, nunca, onde, ora, quão, quando, sim, só, tão, tanto, etc. Quanto aos itens de constituição vernácula, admitem, segundo esse mestre, em termos morfológicos, um desdobramento em subgrupos, dos quais o primeiro comporta nova subdivisão. Abaixo, temos, em forma de esquema, esses dois quadros distributivos: a) adjetivos adverbializados (i) em sua forma invariável, isto é, masculina. Exemplos do autor (p. 219): Fallar alto; gostar immenso. (ii) por acréscimo do sufixo –mente à sua forma feminina. Exemplos do autor (p. 220): primeiramente, pudicamente. b) locuções constituídas por aglutinação de palavras do cabedal próprio do português. Exemplos do autor: outrora, talvez, tampouco. No tocante aos advérbios importados, último subconjunto alistado, sob o ponto de vista da formação lexical, Ribeiro (1884) cita, como exemplo, apenas o vocábulo quiçá, originado do italiano chi sa (‘quem sabe’). A par desses tipos de formação, nosso gramático faz referência às seguintes possibilidades: i) a adverbialização de adjetivos em função predicativa, como em: Ella soffre calada; Os turcos atacaram resollutos. (RIBEIRO, 1884, p. 314; destaques nossos); ii) os deslizamentos de sentido, aqui já mencionados, que atingem itens, como cá e lá, ou não e nem, que de locativos e negativos, respectivamente, passam a intensificadores, conforme se pode ver nos seguintes exemplos: “Nós cá queremos”, “Eles lá são vivos” ; “Quantos a estas 92 horas não estão mortos?” “Por ventura, a necessidade será lá tamanha, nem esmola tão bem empregada?” (RIBEIRO, 1884, p.315). Para encerrar o exame aqui efetuado acerca das “lições categoriais e adverbiais” de Júlio Ribeiro, apresentamos uma síntese, na qual se pontuam aquelas que traduzem o seu modo de pensar e/ou suscitam polêmica: a) do ponto de vista morfológico, mais especificamente, da possibilidade de flexão, esse gramático considera os advérbios como elementos intermediários, entre as palavras variáveis e invariáveis. Apesar de a sua justificativa pautar-se no fato diacrônico, segundo o qual, “no admittir graus de comparação (lindamente, mais lindamente) (...) revela o advérbio ter sido palavra flexional nas antigas línguas indo-germânicas...” (RIBEIRO, 1884, 152), ao reconhecer a existência de formas adverbiais “intermediárias”, ele estaria, prospectivamente, defendendo a idéia da existência de um continuum entre os diferentes tipos de categoria lingüística, idéia essa que se constitui num dos pilares das análises de linha funcionalista; b) em coerência com a concepção de palavra defendida pelo autor, segundo a qual, como reflexo da inteligência humana, serve para distinguir os seres, as coisas, as ações, os processos, etc., bem como as inumeráveis relações e correlações de tudo o que existe, o advérbio se caracteriza, semanticamente, como palavra modificadora − traço que, extensivo ao “adjetivo”, ao “artigo”, “aos pronomes adjetivos”, se mostra, a nosso ver, incapaz de identificá-lo como classe autônoma; c) no mesmo território da semântica, detectamos possíveis equívocos de interpretação por parte de nosso gramático. Em nosso entender, as formas que ele arrola, sob a letra (e), como componentes do subgrupo indiciador de conclusão lógica (ausente da taxonomia apresentada pelos gramáticos em geral), por exemplo, se caracterizam 93 muito mais como conectivos de força argumentativa, do que como modificadores de verbos, adjetivos, ou outros advérbios, conforme ele postula. Comprova-nos isso a impossibilidade (ou, pelo menos, estranheza) do emprego de itens como conseguintemente e conseqüentemente na função de modificadores de “verbos”, “adjetivos” e até “advérbios”; d) tal como o de acima, o traço sintático relativo ao escopo, ou seja, às espécies vocabulares a que o “advérbio” pode se associar, não dá conta dessa tarefa. Embora aponte uma lista maior, que, a par do verbo, abarca o “adjetivo” e o “próprio advérbio”. Ribeiro (1884) não consegue resolver o problema, uma vez nem todos os itens tidos como adverbiais admitem esse tipo de modificação. Em outras palavras, as três classes arroladas acima – verbo, adjetivo, advérbio – “selecionam” tipos diferentes de “modificadores” adverbiais; e) um dos poucos autores a mencionar o traço sintático relativo ao posicionamento do advérbio na oração, nosso gramático não dá o devido trato a essa questão, deixando de apontar, dentre outras coisas, as formas adverbiais suscetíveis de deslocamento; os lugares onde elas podem “pousar”; as alterações semânticas e/ou estilísticas decorrentes do deslocamento, etc; f) ainda na esfera da sintaxe, infere-se que, diferentemente de seus pares, Júlio Ribeiro analisa como complementos adverbiais, e, não, como objeto indireto, agente da passiva, ou, então, como complemento de infinitivo, os S Preps que figuram em contextos como: i) “Paulo gosta de frutas”; ii) “César foi louvado por Cícero” iii) “Farto de brincar” ( RIBEIRO, 1884, p. 226; destaques nossos). Defendida, em tempos modernos, por autores como Luft (1979), Saraiva (1983), nos estudos que empreendem sobre os advérbios de lugar e os advérbios de modo, respectivamente, 94 essa proposta de análise traz à tona não só a questão da identificação de uma classe adverbial, como a da própria definição de objeto indireto; g) ao apontar o caráter intensificador de advérbios de lugar, como cá e lá, e de negação como não e nem, esse gramático acaba contradizendo sua própria análise, que não prevê a modificação por advérbio de elementos das classes nominal e pronominal, e sim de constituintes como o verbo, o adjetivo e o advérbio. Embora aponte alguns problemas nas “lições” fornecidas por Júlio Ribeiro (1884), o balanço acima, na verdade, constitui-se num “argumento por exemplo” que serve para demonstrar/comprovar a complexidade da tarefa de categorização, relativa, no caso em pauta, ao acervo lexical do português, com ênfase nas formas adverbiais. Dito isso, encerremos esta primeira etapa de nossa viagem. 3.5 Conclusão No intuito de oferecer uma visão conjunta das “lições” pretéritas aqui examinadas, apresentamos, abaixo, um quadro-síntese, que, além de evidenciar os critérios utilizados pelos autores na categorização das palavras de nossa língua e na identificação do advérbio como uma classe autônoma independente, facilita o confronto entre as propostas analíticas aqui apreciadas. 95 QUADRO 1 LIÇÕES SOBRE A CARACTERIZAÇÃO DOS ADVÉRBIOS EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XVI E XIX SÉCULO GRAMÁTICOS CARACTERÍSTICAS DOS ADVÉRBIOS MORFOLÓGICAS FERNÃO DE OLIVEIRA (1536) Estatuto taxonômico Palavra de “declinação natural” SINTÁTICAS __ SEMÂNTICAS __ XVI JOÃO DE BARROS (1540) JERONYMO SOARES BARBOSA (1803) XIX JÚLIO RIBEIRO (1884) Estatuto taxonômico Função: Uma das nove determinante “partes” da oração do verbo. Papéis: • Acrescenta • Subtrai •“Destrui” o Escopo: o verbo. significado do verbo. Etimologia: Posição: junto ao Adverbium = ‘acerca verbo. do verbo’ Estatuto taxonômico Estatuto oracional Estatuto taxonômico das Subclasse das “Parte” Subclasse preposições Preposições elementar - Palavra discursiva Escopo: Qualquer palavra capaz de modificação Configuração formal (apellativos,verbos, Expressão abreviada adjetivos e outros de um Sprep advérbios) (preposição + seu complemento) Flexão: - Indeclinável - Invariável Estatuto taxonômico - Uma das nossas oito classes de palavras. Forma prototípica O advérbio de modo Flexão: - Forma intermediária entre as palavras variáveis e invariáveis. - Forma variável em grau [sic]. Papéis: • Modifica • Restringe • Completa qualquer palavra de significado vago ou relativo . Estatuto oracional Papel: Palavra discursiva Palavra qualificadora Função oracional: Palavra modificadora Conjuntiva Escopo: • Verbo • Adjetivo • Outro advérbio Posição: Junto do modificado. 96 QUADRO 2 LIÇÕES SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DOS ADVÉRBIOS EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XVI E XIX SEC. GRAMÁTICOS CRITÉRIOS DE DISTRIBUIÇÃO MORFOLÓGICOS SINTÁTICOS SEMÂNTICOS Estatuto formal - Papéis: “Primeiros x Qualitativos – tirados” FERNÃO DE OLIVEIRA (1536) - Formas OUTROS em formas em –mente __ “mente” x demais formas x __ Gramaticalização - Formas Passíveis Não Qualitativos x Não passíveis de se transformarem XVI em preposições. Configuração formal JOÃO DE BARROS (1540) JERONYMO SOARES BARBOS XIX (1803) JÚLIO RIBEIRO (1882) - Formas Simples x Formas Compostas - Formas Primitivas x Formas Derivadas Configuração formal -Advérbios propria – mente ditos. -Nomes adverbiados. __ __ -Fórmulas adver- Espécies de modificação: Quantitativos x Qualitativos Subespécies: de lugar, tempo, qualidade,quantidade,afirmação, negação, dúvida, demonstração, chamamento, desejo, ordem, pergunta, ajuntamento, separação, juramento, despertador, comparação, conclusão. Espécies de modificação: Tempo Lugar Qualidade e Modo Qualidade biais. Formação vernacular: - Adjetivos na forma masculina. -Adjetivos + -mente -Aglutinação de palavras do cabedal próprio da língua (locuções) __ Espécies de modificação: tempo, lugar, ordem, modo, conclusão lógica, quantidade, afirmação, dúvida, exclusão, designação. Cronologia: Formas em uso x Formas obsoletas Cronologia: Formas em uso X Formas obsoletas. Origem: Formas hereditárias X Analógicas Fonte originária -Latina -Vernácula -Importação estrangeira __ 97 4 LIÇÕES DA CONTEMPORANEIDADE: O TRATAMENTO DO ADVÉRBIO EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XX E XXI O advérbio modifica o verbo exprimindo as circunstâncias que cercam ou precisam uma acção; modifica o adjectivo ou o advérbio exprimindo o grau de intensidade do característico ou da circunstância. Assim, só modificam adjectivo ou advérbio os advérbios de intensidade...(OITICICA, 1923, p. 26; destaques do autor) O advérbio é um determinante do verbo ou do predicado, que concretiza mais a ação ou a afirmação, situando-o no tempo ou no espaço, indicando-lhe a modalidade, a gradação, a intensidade, a freqüência, a duração.Ou é um determinante do nome, do pronome ou de outro advérbio, para matizar ou enfatizar, intensificar, focalizar, destacar, incluindo ou excluindo. (MELO, 1981, p. 142; destaques do autor) Precisamente por a classe “advérbio” ser capaz de modificar elementos individuais, estados de coisas e textos, é que esta classe se torna tão difícil de enquadrar e de explicar de modo sistemático. (VILELA e KOCH, 2001, p. 255) 4.1 Introdução As “lições” gramaticais de “antanho”, focalizadas no capítulo anterior, confirmam as dificuldades impostas aos que consideram importante para os estudos lingüísticos a tarefa de subcategorização de elementos, no caso em apreço, de itens lexicais, segundo as propriedades que lhes são inerentes. Os vários pontos de divergência entre as taxonomias propostas pelos gramáticos selecionados não deixam dúvida quanto à dificuldade dessa empresa. Dentre os grupos vocabulares mais polêmicos, ressalta-se o dos advérbios, cuja definição, categorização e desmembramento tipológico costuma diferir de autor para autor. Assim é que, para alguns, trata-se de uma classe autônoma, específica, identificável através de traços próprios; já para outros, o “advérbio” nada mais é do que uma subclasse de conjuntos lexicais de maior porte, como o dos nomes adjetivos – do qual se distinguiria apenas quanto ao tipo de vocábulo que pode determinar –, ou dos Sintagmas Prepositivos (SPreps), mesmo nos casos de formas reduzidas, ou seja, em que a preposição regente não apareça mais expressa, conforme se dava em fases anteriores da língua. Outro desacordo “adverbial” diz respeito à 98 possibilidade que algumas de suas formas têm de apresentar variação flexional – o que negaria a sua caracterização como “palavra invariável”. Contudo, viu-se, é questionável essa colocação, uma vez que baseia-se na idéia equivocada de que a “variação” de grau, admitida por certos itens adverbiais, seria de natureza flexional, tal como a de gênero e número, própria dos nomes. Com a disposição de prosseguir nessa incursão por “terreno” ainda tão inóspito, procuramos, neste capítulo, aportar em época mais recente, examinando e discutindo as “lições” de gramáticos mais ou menos comprometidos com alguma das correntes da Lingüística Moderna. Para melhor realização desta empresa, observamos o mesmo plano organizacional do capítulo anterior, cumprindo o seguinte roteiro: a) num primeiro momento, de contextualização, procuramos delinear um panorama geral dos estudos lingüísticos contemporâneos, que nos mostram, de um lado, tendências renovadoras e, de outro, a persistência de uma tradição, que, conforme pudemos mostrar, já tinha sido questionada, em vários pontos, por alguns de seus adeptos; b) num segundo tempo, de enfoque metalingüístico propriamente dito, são examinadas “lições” concernentes à classificação geral de palavras do português e, de um modo particular, o tratamento conferido aos advérbios. Essas “lições”, já se esclareceu aqui, foram distribuídas, cronologicamente, em três grupos, sendo o primeiro – a que chamamos de primeira geração – constituído de compêndios gramaticais publicados no início do século XX; o segundo – de segunda geração – de gramáticas produzidas em meados desse mesmo século; o último – de terceira geração – de manuais editados no final do século XX e princípio do atual; c) numa terceira e derradeira etapa, procede-se a um confronto entre as “lições adverbiais” fornecidas pelas três “gerações” examinadas, com vistas a apontar não só os consensos e dissensos observados entre elas, como, também, os 99 problemas que restaram pendentes. Desembarquemos, pois, na estação da contemporaneidade. 4.2 Lições de gramáticos dos séculos XX e XXI 4.2.1 Panorama lingüístico geral Conforme sabemos, o século XX foi marcado por profundas modificações em todas as áreas do conhecimento humano, que, tal como a ciência da linguagem, passaram a ser consideradas à luz de novas óticas de abordagem e conduzidas através de novas propostas metodológicas, cada vez mais aprimoradas com os avanços tecnológicos alcançados em nossos tempos. No caso particular dos estudos lingüísticos, vê-se aumentada a sua credibilidade, e, por conseguinte, a sua cientificidade, pela interação que passa a ter com áreas propiciadoras de resultados mais concretos e exatos, como, por exemplo, a da Biologia, Matemática, Estatística, Informática, etc. Isso sem falar no rigor metodológico, que lhe permite, no caso das linhas de caráter empírico, uma coleta e um tratamento mais preciso dos dados, bem como a organização de material aparentemente caótico. Naturalmente, tudo isso está ligado a uma mudança de perspectiva na própria concepção do objeto de estudo, no caso, a linguagem/língua, que passa a ser focalizada muito mais em seu processamento do que em sua sistematização. Com esse novo perfil, a Lingüística de hoje se distancia da Tradicional, alicerçada no modelo greco-latino, passando a abordar a língua não tanto como produto, mas como um construto social, próprio à comunicação entre emissores e receptores, ou, conforme nomenclatura mais recente, entre enunciadores e enunciatários. A ruptura com o modelo greco-latino, sabe-se, foi oficialmente instaurada no final do século XIX e começo do XX com as lições de Saussure (1916/1970), que, diferentemente dos 100 gramáticos e neogramáticos, concebia e tratava a língua como um sistema de caráter social − o que levou autores como Tarallo (1985, p.7) a qualificá-lo como um verdadeiro sociolingüista −, a ser abordado com base na priorização do todo em relação aos elementos que o compõem (cf. BENVENISTE, 1989), e também do estágio sincrônico. Essas duas faces, contrapostas, na compilação organizada e publicada por Charles Bally e Albert Sechehaye (Curso de lingüística geral, 1916/1970), à parole e à diacronia, respectivamente, vinham sendo interpretadas de um modo radical como dicotômicas entre si – o que foi reconsiderado, posteriormente, com releituras ou leituras mais cuidadosas do Cours de linguistique e, principalmente, com a publicação das notas deixadas em cadernos por esse autor. Descobertas recentemente, elas foram ordenadas e publicadas por Simon Bouquet e Rudolf Engler (cf. SAUSSURE, 2004). O modelo de análise propugnado por Saussure, conhecido como “estruturalista”, foi complementado e modificado por muitos autores que o adotaram. Priorizando o estudo do subsistema fonético, num primeiro momento, os estruturalistas conferiram espaço próprio à língua oral, até então deixada à margem, em favor da escrita. Menos explorados nessa primeira fase, os componentes morfológico e sintático mereceram, depois, a mesma atenção e tratamento dados ao fonético-fonológico. Em versão renovada, a corrente estruturalista teve levado o seu formalismo às últimas conseqüências pela Gramática Gerativa, introduzida por Noam Chomsky, sobretudo a partir de sua obra Aspects of the theory of syntax, datada de 1965, e adotada, com diferentes tipos de reformulação, por outros lingüistas do Massachusetts Institute of Technology. Fundamentada em princípios e regras – gerativas e transformacionais – passíveis de definir as seqüências de palavras ou de sons permitidos numa língua, essa nova gramática, também centrada no estudo da frase, como a Tradicional, propunha-se descrever e explicar a geração das sentenças, a partir da conjugação dos três componentes do sistema lingüístico: sintático 101 (mais importante), semântico (de caráter interpretativo) e o fonológico (também de cunho interpretativo). Diversamente dessa linha, que defendia o inatismo da linguagem humana, o novo modelo teórico-metodológico, inaugurado pelo lingüista americano William Labov (1972), qual seja, o da Sociolingüística (Quantitativa, ou Variacionista), propõe outros caminhos de análise, embora, como os demais, guardem reminescências dos anteriores. Voltados, exclusivamente, para o vernáculo, essa linha busca associar, tal como os estruturalistas, língua e sociedade, propondo o método da quantificação, como passível de detectar as diferentes “gramáticas” de uma língua, as formas e fatos em variação, os fatores – externos e internos – que condicionam as preferências de uso nos vários estratos sociais, buscando, ainda, prognosticar as mudanças que se insinuam no quadro da variação. Também preocupados com aspectos sociais, outros modelos de abordagem lingüística, num viés distinto da Sociolingüística, ganham espaço e relevo em tempos recentes. Dando ênfase, ou exclusividade, à produção da linguagem, preferentemente ao seu produto, privilegiado pela Gramática Tradicional, as novas propostas analíticas voltam o seu olhar para o contexto externo – situacional e sócio-histórico-cultural –, tido como parte constitutiva da linguagem. Esse novo modo de conceber a linguagem e de examinar as línguas possibilita o aparecimento de novas disciplinas como: a Lingüística da Enunciação, a Lingüística Textual, a Análise do Discurso ( em suas diversas correntes), a Análise da Conversação, a Teoria dos Atos de Fala, etc., que, embora distintas quanto ao modo de olhar o seu objeto de estudos e quanto aos objetivos pretendidos, se interessam em mostrar o modo como se dá a interação humana por meio da linguagem. Numa posição que consideramos intermediária, outra linha de estudos, conhecida como Gramática Funcional, em suas diferentes versões – americana, inglesa, holandesa, etc., não descarta o estudo do sistema lingüístico em si, mas procura examiná-lo a partir da idéia de 102 que ele vai se construindo e se renovando na ação intersubjetiva empreendida por indivíduos alocados em duas instâncias: a da produção e a da recepção. Em outras palavras, os estudos funcionalistas consideram o ato interacional como inerente ao sistema lingüístico e a interação verbal como resultado de uma competência comunicativa que se realiza por meio de textos. A nosso ver, essas e outras perspectivas teóricas não anulam as “lições” gramaticais antigas, uma vez que, conforme se procurou mostrar no capítulo anterior, não só lhes oferecem subsídios para o desenvolvimento de seu projeto de análise, como deixam entrever novos caminhos, passíveis de levar a soluções analíticas mais plausíveis. Além disso, essas lições persistem nas instituições escolares, porém, no mais das vezes, de um modo conservador, que não admite a incorporação dos avanços de pensamento detectados nos próprios autores dos compêndios que adotam. Vistos esses dados contextuais preliminares, apreciemos, a seguir, o tratamento conferido ao “advérbio”, bem como à classificação de palavras em seu todo, por alguns de nossos gramáticos contemporâneos, mais ou menos receptivos aos avanços alcançados e propugnados pela “Nova Lingüística”. Nos mesmos moldes da indicação bibliográfica feita no capítulo anterior, procuramos indicar, entre parênteses, a primeira edição das obras selecionadas para estudo, e logo depois, a utilizada como fonte de consulta. 4.2.2 Exame crítico das propostas analíticas selecionadas Conforme anunciado na seção introdutória deste capítulo, as “lições” de autores da contemporaneidade são apresentadas e discutidas, abaixo, em três etapas (seções) distintas, correspondentes ao que chamamos de três “gerações” de autores escolhidos como representantes de três momentos da história dos estudos lingüísticos entre nós: uma, 103 concernente ao início do século XX; outra, à sua fase intermediária, e, uma última, ao fim do século XX e início do XXI. Comecemos, pois, pelo exame dos ensinamentos deixados pela nossa “primeira geração” de autores contemporâneos. 4.2.2.1 Primeira “geração”: José Oiticica (1919) Como representante das primeiras décadas do século XX, procuramos escolher algum autor que mantivesse fortes elos com a tradição gramatical greco-latina. Foram selecionados, num primeiro momento, Alfredo Gomes, com sua Grammatica portugueza (1913), e José Oiticica, com seu Manual de análise (1919). Confrontadas as lições desses dois gramáticos brasileiros, optamos pelo segundo, por apontar soluções próprias e pioneiras acerca do assunto aqui investigado. José Rodrigues Leite e Oiticica, mais conhecido como José (de) Oiticica, é famoso, no “país da gramática”, por suas idéias inovadoras a respeito da correlação (OITICICA, 1952), processo de articulação interoracional que, segundo ele, se distingue, em vários aspectos, da juntura por coordenação e subordinação. Concebendo a linguagem como “manifestação do pensamento ou do sentimento pela fala” (OITICICA, 1923, p. 7; destaques nossos), esse mestre identifica, em seu Manual de análise (léxica e sintática), três grandes classes de palavras em nossa língua, que, por sua vez, apresentam desmembramentos próprios. Na Figura abaixo, reproduzimos o quadro distributivo estabelecido por esse autor (OITICICA, 1923., p. 32), quadro esse que, aqui complementado segundo as alterações feitas pelo próprio autor ao longo do compêndio (quase sempre em notas de rodapé), nos mostra a posição conferida ao “advérbio”, no conjunto lexical português: 104 NOMINATIVAS Substantivo Variáveis Verbo MODIFICATIVAS 1 PALAVRAS Variáveis Adjetivo Invariáveis Advérbio IDEATIVAS Pronome Variáveis Verbo vicário PRONOMINATIVAS Invariáveis Advérbio dêitico Advérbio indefinido CONECTIVAS Preposição Invariáveis Conjunção 2 PALAVRAS INTERJECTIVAS EMOTIVAS Invariáveis Variáveis INTENSITIVAS Invariáveis 3 PALAVRAS aditivas, afirmativas, afirmativas negativas, concessivas, correctivas, DENOTATIVAS designativas, expletivas, explicativas, inclusivas, sintéticas FIGURA 5 - “TAXIONOMIA” DAS PALAVRAS DO PORTUGUÊS, SEGUNDO JOSÉ OITICICA (1919/1923) FONTE (aqui reorganizada e aumentada): Oiticica (1923, p. 32) 105 Divergindo, em vários pontos, das propostas classificatórias de seus pares – antecessores e sucessores –, nosso gramático, pelo que se pôde constatar acima, distingue, numa primeira categorização, três macroconjuntos de palavras: as ideativas (representantes de idéias), as emotivas e as denotativas. A inclusão dos dois últimos nos revela que o autor confere o mesmo grau de importância a certos elementos lexicais, considerados à parte por outros estudiosos, por incidirem em território externo à gramática. Com essa proposta, José Oiticica admite, de um modo mais categórico, o uso de critérios de natureza discursiva na classificação das palavras – o que nos mostra a sua preocupação em descrever os fatos reais da língua portuguesa considerada em seu todo. Segundo ele, “tais palavras não exprimem nenhuma idéia propriamente, mas indicam certos movimentos ou operações subjetivas e indispensáveis à compreensão do pensamento ou às suas cambiantes” (OITICICA, 1923, p. 50; destaques nossos). Completando seu pensamento, esse gramático assim critica os seus pares que preferem ignorar as interjeições: Na impossibilidade de reconhecerem idéa nas interjeições, [ os gramáticos] suprimiram-nas da taxionomia, considerando-as simples gritos da alma, sem reflectirem que há expressões interjectivas e frases interjectivas com pensamento analisável, como: raios te partam! (OITICICA, 1923, p. 31; destaques do autor) Embora não esclareça, conforme esperado, todas as categorias e subcategorias lexicais a que faz referência, ele assim define as que compõem o macroconjunto ideativo: o nome constitui-se na “palavra que resume os caracteres essenciais ou diferenciais de uma entidade, fenômeno ou acção”; o modificativo, na “palavra que indica um dos modos pellos quais consideramos um nome”; o conectivo , na “palavra que indica a interdependência de dois nomes ou duas frases”, finalmente, o pronome, na “palavra que evita um nome” (OITICICA, 1923, p. 14). 106 Em seu quadro, acima exposto com a devida complementação de nossa parte, pode-se ver que nosso autor, diversamente de outros, aloca os verbos em dois grupos lexicais distintos, segundo o seu caráter dêitico (próprio dos que substituem outros para evitar que se repitam), ou não. O primeiro tipo integra o conjunto dos vocábulos pronominativos, e o segundo, o dos nominativos. No mesmo quadro, percebe-se que também os advérbios se dividem em dois blocos, de acordo com o papel semântico ou discursivo que exercem, a saber: o subgrupo dos modificadores, integrantes do macroconjunto das palavras modificativas, e o subconjunto pronominativo (ou “dêitico”), que, composto por termos como cá, lá, aqui, aí, acolá, ali, etc., se refere às pessoas responsáveis pelo ato interlocutório (OITICICA, p. 15, Nota nº 2). No mesmo subgrupo pronominativo, esse autor (1923, p. 25) ainda inclui outra subespécie adverbial, composta, segundo ele, por formas como: comigo, contigo, consigo, conosco, convosco. No que toca, particularmente à definição do “advérbio”, objeto central de nossa investigação, nosso mestre-gramático, na mesma linha de outros, afirma que se trata de “palavra modificadora do verbo, do adjectivo ou de outro advérbio” (OITICICA, 1923, p. 25) – o que nos remete a uma caracterização da classe adverbial alicerçada em dois critérios distintos: um semântico e outro sintático. No caso específico do primeiro, semântico, percebe-se, no excerto acima, que o autor se limita a apontar sua função mais geral, qual seja, a de elemento modificador. Todavia, logo no parágrafo seguinte, ele discrimina os tipos de modificação expressos pelos itens adverbiais, distribuídos segundo o constituinte a que pode se referir: o verbo, o adjetivo ou outro advérbio. Nessa associação – função temática x escopo – , temos um avanço na análise lingüística desse autor, relativamente a outros que nos deixam entender que todas as formas adverbiais são suscetíveis de modificar qualquer um dos constituintes a que se associe. 107 Quanto ao último critério, de natureza sintática, nosso mestre se restringe a mencionar o traço relativo ao escopo do “advérbio’, ou seja, o traço que determina as classes de palavras que o advérbio pode “modificar” – verbo, adjetivo, ou outro advérbio. Esse mesmo componente sintático permite ao autor o estabelecimento de outros tipos de desdobramentos a que estão sujeitos os elementos adverbiais. Um deles resulta da conjugação entre o tipo de escopo admitido pelo advérbio – verbo, adjetivo, ou outro advérbio – e o tipo de relação semântica que mantém com cada um de seus possíveis determinados. Com base nessa inter-relação, Oiticica (1923) distingue duas subespécies de advérbios os circunstanciais, que “cercam ou precisam uma ação”, ou seja, modificam o verbo ; os intensificadores (mais, menos, tão, muito, pouco, quase, nada, etc.), que, segundo ele, exprimem “o grau de intensidade do característico [adjetivo] ou da circunstância [ advérbio]” (OITICICA, 1923, p. 26; destaques nossos). Uma ressalva a fazer quanto à exploração desse traço é que, embora o autor reconheça que as formas adverbiais que atuam como determinantes do verbo não são as mesmas que servem para determinar o adjetivo e advérbio, não chega a alistar os itens correspondentes a uma ou outra subespécie – o que, certamente, lhe serviria para comprovar, empiricamente, a distribuição que defende. O mesmo traço escopo é ainda utilizado pelo autor como um dos fatores responsáveis pela ausência, em sua lista de formas adverbiais, das palavras que indicam exclusão e inclusão, uma vez que não determinam o verbo, o adjetivo, ou advérbio, mas, sim, o substantivo – o que constitui um ponto de divergência entre ele e os gramáticos que optam por resolver a questão, estendendo o âmbito de atuação do advérbio a outras classes de palavras. No que toca ao componente semântico, tomado isoladamente ou em associação com o sintático, registram-se, num confronto com outras taxonomias, algumas novidades no 108 quadro de Oiticica (1923). Uma delas, de âmbito mais abrangente, tem a ver com a diferença de nível – gramatical ou discursivo – em que os termos adverbiais podem atuar. Tal diferença, indicada na Figura nº 5 acima, nos remete a duas subespécies adverbiais arroladas por ele: a dos modificativos, que acrescentam informações ao conteúdo de seus determinados, e a dos pronominais, ou dêitico −, que, atuantes no plano da referenciação, evitam, por anáfora ou por catáfora, a repetição de termo enunciado anteriormente, ou, então, a esclarecer, por antecipação, outro que o suceda. Mais detalhado e ilustrado, o segundo tipo de subcategorização dos advérbios mencionada por nosso mestre, assim como por seus pares, é de base semântica, isto é, determinado pelas diferentes nuances que os itens do subgrupo modificativo podem expressar. Abaixo, reproduzimos, com cortes na exemplificação, as espécies identificadas por Oiticica (1923, p. 46-49; destaques nossos): a) dúvida: talvez, quiçá, acaso, por ventura; b) freqüência: diariamente, quotidianamente, semanalmente, mensalmente, nunca, jamais, sempre, às vezes, raramente, uma vez, sucessivamente, constantemente; c) intenção: acinte, acintemente, adrede, intencionalmente, propositadamente, premeditadamente, acaso, casualmente; d) intensidade: muito, assaz, bastante, excessivamente, demais, demasiadamente, pouco, mais, menos, tão, tanto, quão, quási, meio, depressa, devagar, demoradamente.; e) lugar: abaixo, acima, arriba, aquém, além, aqui, ali, cá, lá, acolá, avante, atrás, algures, alhures, nenhures, diante, detrás, dentro fora, longe perto, onde.; f) modo: atoa, bem, certo, mal, errado, tristemente (e muitos adjetivos adverbializados com o sufixo –mente ou sem ele); g) ordem ( no tempo ou no espaço): primeiramente, anteriormente, depois, posteriormente, antes, atrás, adiante; h) tempo: ainda, agora, amanhã, dantes, cedo, então, hoje, ontem, já, logo, tarde, outrora, immediatamente, etc. 109 Um olhar mais atento dessa listagem nos leva a detectar algumas dissidências entre Oiticica (1923) e outros mestres da gramática. Dentre elas, vale ressaltar, a ausência de itens indiciadores de afirmação e negação, que, segundo ele, não devem ser classificados como de natureza adverbial. Condenando os autores que defendem tal idéia, nosso autor contraargumenta, afirmando que, na verdade, estamos diante de itens “inclassificáveis no quadro tradicional”. A sua inserção no bloco dos advérbios, acredita ele, só serviria para comprovar a “insuficiência da taxionomia fixada pelos gramáticos antigos”, insuficiência essa testemunhada por “todos os professores que se vêm atordoados, muitas vezes, com as classificações em aula, e os próprios gramáticos nas suas estranhas divergências” (OITICICA, 1923, p. 30). Apreciadas as “lições” de José Oiticica (1919/1923), finalizemos esta seção, pontuando, de uma forma crítica, os aspectos que nos pareceram mais relevantes. A) Quanto à definição do “advérbio” i- ainda que se restrinja, no enunciado em que define essa espécie vocabular (cf. OITICICA, 1923, p.26), a um único traço de natureza semântica (palavra modificadora) e também a um único de caráter sintático (o seu escopo), no correr de sua análise, esse autor, como quase todos os outros, caracteriza-a, ainda, do ponto de vista morfológico, como invariável em sua flexão, embora alguns de seus formantes lexicais sejam suscetíveis de gradação, categoria que se distingue da anterior; ii- num passo além, esse mestre faz incursões em territórios externos ao nível gramatical, apontando papéis exercidos por certos advérbios no campo da correferenciação (nível textual) e no da indiciação dos actantes do processo enunciativo (nível discursivo). B) Quanto à distribuição de palavras no português: i- como critério de identificação dos três macroconjuntos de palavras que detecta – ideativas, emotivas e denotativas –, o autor leva em conta 110 dois níveis lingüísticos diferentes: o gramatical e o discursivo, que nos remetem, respectivamente, ao sistema lingüístico em si e ao processo de sua produção; ii- no caso particular de identificação do subconjunto das palavras ideativas, ele se baseia, sem maiores explicações, em critérios de natureza distinta, tais como: o da referenciação externa (palavras nominativas), o do papel semântico-sintático (palavras modificativas), o da referenciação dêitica, ou fórica (palavras pronominais), e, ainda, o da conexão interoracional; iii- da mesma forma, no caso específico do último subconjunto – de vocábulos denotativos – Oiticica (1923, p. 26) sugere o acréscimo de uma nova subespécie, a que denomina partículas. Embora “numerosíssimas (...) e de suma importância”, essas partículas, que englobam as formas afirmativas – positivas e negativas –, segundo ele, têm sido “muito descuradas dos gramáticos” (OITICICA, 1923, p. 26), inclusive, a nosso ver ele próprio, que não esclarece e nem justifica sua proposta, contrariando, pois, a seguinte afirmação que faz em outra passagem de sua obra: “É indispensável (...) e urgente, completar o quadro da taxonomia [ das palavras do português], criando outras categorias gramaticais” (OITICICA, 1923, p. 30). Apresentados e comentados os ensinamentos de Oiticica (1923) a respeito da categorização das palavras de nossa língua, bem como da definição e subcategorização dos advérbios, estendamos um pouco mais essa viagem pelo século XX, examinando as “lições adverbiais” de outro gramático brasileiro, Gladstone Chaves de Melo (1951 e 1958), aqui selecionado como representante de um período intermediário, que vai de 1950 a 1980, mais 111 ou menos. Essa escolha, em detrimento de autores como Said Ali, Celso Cunha, Rocha Lima, Evanildo Bechara e outros expoentes dos estudos de nossa língua, se deve ao seu empenho em apresentar “lições” diversas das que seriam propostas pela NGB e, principalmente, pelo testemunho que, a partir das dificuldades que enfrenta e do número de critérios que conjuga, nos dá um testemunho inquestionável da complexidade do assunto. 4.2.2.2 Segunda “geração”: Gladstone Chaves de Melo (1951 e 1968) Embora reconheçamos a contribuição inestimável de nossos gramáticos, nessa e em outras áreas de estudos de nossa língua, dentre os quais, expoentes como Said Ali (1931, 1969), Evanildo Bechara (1963), Rocha Lima (1967), Celso Cunha (1970), e outros que tivemos o cuidado de consultar numa primeira fase da pesquisa, selecionamos as “lições” de Gladstone Chaves de Melo, (1951 e 1968), em razão da exigüidade do tempo (e da própria extensão do texto), que nos impediu de considerar todos esses nomes, bem como do nosso propósito de privilegiar a análise de autores que deflagrassem maiores discussões, permitindonos, assim, projetar os problemas a serem retomados por lingüistas modernos (3ª “geração”), a serem também contemplados aqui. A par disso, levamos em conta o caráter didático da Gramática fundamental da língua portuguesa (1968) escrita por esse nosso filólogo, que faz questão de salientá-lo, em diversas passagens de sua obra, dentre as quais, o início de seu Prefácio, em que mostra a gênese do seu compêndio: Planejado e iniciado há bastante tempo, só agora se conclui este livrinho. Deveria ele fazer parte de uma coleção didática, imaginada pela saudosa Madre Maria Adolfo de Sion, para melhorar o ensino e adequadamente compô-lo com a educação, coisas que andam dissociadas, ou mal sinonimizadas. (MELO, 1968, p. 3; destaques nossos) Conforme mencionado no capítulo introdutório, o estudo das “lições” desse autor será feito com base na segunda edição (1970) desse manual e na sexta edição – revista e melhorada – de outra produção sua, Iniciação à filologia portuguesa, datada de 1981, e 112 rebatizada na última edição com o título de Iniciação à lingüística e à filologia portuguesa. Diferentemente da primeira, de “tom extremamente didático”, essa última obra nos permite um aprofundamento de vários aspectos e fatos do português, conforme referido pelo próprio autor na sua Gramática fundamental (MELO, 1970, p.7, nota de rodapé). De nossa parte, procuramos reproduzir e comentar aqui os ensinamentos que, contidos nesses dois manuais, nos mostram o pensamento desse autor acerca da categorização dos itens lexicais de nossa língua, em especial, o “advérbio”. Tendo em conta que o problema da classificação das palavras como algo que “pertence muito mais à Lógica do que à Gramática” pelo próprio fato de “que se trata de classificação” (MELO, 1981, p.137), nosso gramático-filólogo acredita que tal empresa só pode ser bem sucedida em termos gramaticais, se norteada por um bom critério. No seu modo de pensar, o critério ideal para qualquer tipo de classificação é “aquele que atenta para a natureza da coisa”. Como, no que tange às línguas, a natureza da palavra é ser justamente portadora de uma significação, o autor deduz que o melhor critério para “se classificarem as palavras é o que tenha em vista a significação” (MELO, 1970, p. 70). Em crítica às propostas taxonômicas, que, “encasteladas na inércia” (MELO, 1981, p. 136), teimam em se pautar no modelo dos antigos, nosso mestre deixa clara, em passagens como as de abaixo, a sua pretensão de seguir caminhos mais modernos : A classificação tradicional, fundada já remotamente na especulação de Aristóteles, e estabelecida sobre as línguas clássicas, só poderia, quando muito, aplicar-se às línguas indo-européias, de estrutura mais ou menos idêntica à do grego e do latim, mas não se ajustava razoavelmente, para todos os detalhes, a outras línguas de tipo inteiramente diverso, como o chinês ou o tupi (MELO, 1981, p. 137). Levando em conta os dois aspectos que lhe parecem fundamentais em qualquer língua, quais sejam, a nomenclatura e a estrutura, ele defende, num primeiro momento de suas “lições” acerca da classificação de palavras no português, o mesmo agrupamento tripartido proposto pelo lingüista francês Vendryès (1921). À luz de uma perspectiva mais voltada para a língua em si, do que para a lógica, esse autor procurou expandir a bipartição propugnada, na 113 Antigüidade, por Aristóteles, que separava, de um lado, o conjunto categoremático e, de outro o sincategoremático, cabendo ao primeiro – também conhecido como grupo de palavras lexicográficas ou nocionais –, traduzir idéias, e ao último – constituído de palavras ou instrumentos gramaticais –, indicar “ as relações entre as palavras”, ou “traduzir situações ou conceitos puramente lingüísticos” (MELO, 1981, p. 138). Postulando uma divisão tripartida, ao invés de bipartida, Vendryès procura desmembrar o primeiro bloco apontado por Aristóteles, de palavras lexicográficas, chegando, pois, a um quadro constituído pelas seguintes classes de palavras: o nome, o verbo e os instrumentos gramaticais. Diversa, pois, do modelo greco-latino, essa proposta, segundo Chaves de Melo, tem o mérito de abarcar “não apenas as línguas da família árica mas também as de outros ramos e de diferentes estruturas” (MELO, 1981, p. 138) – o que, certamente, inclui as neolatinas e, por conseguinte, o português. Com base na classificação do lingüista francês e na conjugação (que ele não justifica) de critérios de natureza distinta, nosso gramático (1970,1981) procura, em sua segunda “lição”, reagrupar as dez partes do discurso identificadas pela gramática tradicional – substantivo, verbo, adjetivo, pronome, numeral, artigo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição (ausente em algumas taxonomias) – em apenas cinco classes, que formariam um quadro “mais simples e mais lógico” (MELO, 1981, p. 141). São elas: o nome, o determinante, o pronome e o verbo e o conectivo. Nessa subdivisão, segundo reconhece nosso gramático, “se se conservam alguns nomes, se renovam conceitos e se aproximam coisas semelhantes” (MELO, 1981, p. 141). Se relacionarmos essa redistribuição defendida por esse autor aos macroconjuntos supracitados, veremos que culminam em seis (e não cinco, como ele anuncia) classes, a saber: a) o subgrupo lexicográfico, constituído de elementos que dizem respeito à nomenclatura, quais sejam: os nomes (substantivo, qualificativo, numeral e adverbial), os pronomes (dêiticos ou fóricos) que exercem funções nominais, e os verbos; b) o 114 subgrupo gramatical, composto por itens ligados à estrutura da frase, ou seja, determinantes, os que, diferentemente dos qualitativos, “não esclarecem as idéias em si mesmas, porém indicam a relação entre elas, ou as concretizam um pouco, retirando-as da abstração pura em que se encontrariam” (MELO, 1981, p. 141); os pronomes em função relativa, ou dêitica (indiciadora de pessoa discursiva), e os conectivos, “que materializam as grandes relações sintáticas de coordenação e subordinação, ou, então, expressam uma espécie de “finca-pé para um salto que vai acabar no segundo termo”. Exemplo do autor: “Como choveu muito, as casas se destelharam.” (MELO, 1981, p. 145 e 146). Retomando cada uma dessas classes, separadamente, esse estudioso nos aponta, com base na mesma conjugação de critérios distintos, acima referida, os possíveis desdobramentos que cada uma delas admite. Na Figura abaixo, transcrevemos, com a devida inserção dos dados de natureza morfológica referidos em outras passagens de seu compêndio gramatical, o quadro distributivo desse autor. Nele, é possível atestar que as propostas renovadoras (nem sempre explicadas) de Gladstone Chaves, de certo modo, contradizem a opinião que expressa na Gramática secundária, segundo a qual, em gramáticas desse tipo – elementar e didática –, problemas como o da classificação de palavras devem ser encarados à luz de novo equacionamento, conforme veremos no quadro abaixo (Figura 6), uma vez que “ não se pode propor uma solução revolucionária em relação ao que está mais ou menos consagrado” (MELO, 1970, p. 71): 115 DICOTOMIA CLASSES SUBCLASSES FLEXÃO FUNDAMENTAL NOME 1- PALAVRAS PRONOME LEXICOGRÁ- FICAS substantivo qualificativo numeral adverbial ideativo Variáveis Invariável pessoal demonstrativo possessivo indefinido numeral Variáveis relativo Invariável VERBO DETERMINANTE Variável especificativo ( artigo) demonstrativo possessivo indefinido numeral quantitativo adverbial dêitico 2 INSTRUMENTOS PRONOME Variáveis Invariáveis relativo Invariável morfema de pessoa Variável GRAMATICAIS CONECTIVO coordenante conjunção coordenativa subordinante conjunção sub. preposição . - Invariá veis correlativo consecutivo paralelístico alternativo FIGURA 6 - AS “ESPÉCIES” DE PALAVRAS DO PORTUGUÊS, SEGUNDO GLADSTONE CHAVES DE MELO (1970 e 1981) FONTE (aqui reorganizada e complementada): Melo (1970, p. 77, e 1981, p. 147) 116 Passemos, agora, às “lições” relativas ao advérbio per se . Consciente de que, “sob o nome de advérbio se capitulam palavras de densidades diferentes”, nosso gramático (1970, p. 75) nos dá uma primeira idéia da versatilidade dessa espécie vocabular, no Quadro geral exposto acima, que abarca os demais tipos de palavras encontrados em nossa língua. Nele, constatamos a presença do “advérbio” em duas subclasses distintas: a dos nomes, que integram o macroconjunto lexicográfico, e a dos determinantes, que compõem o macroconjunto dos instrumentos gramaticais. Essa dupla categorização está associada a dois traços de natureza diferente, tidos por esse autor como peculiares aos advérbios: um, que concerne ao seu estatuto semântico – referencial e dêitico – e outro, que tem a ver com a função sintática que exercem – de determinante das palavras a que se podem associar. Essa repartição nos leva a inferir que Gladstone Chaves de Melo compartilha da opinião de outros gramáticos, segundo os quais o advérbio não constitui uma classe em si mesma, diversa das demais, mas, sim, uma subespécie de duas classes autônomas: a dos nomes e a dos determinantes. Na definição propriamente dita, Melo (1970, p. 78) se propõe seguir a NGB, buscando modificá-la e atualizá-la à luz de uma “doutrina lingüística melhor e mais acertada”. Assim sendo, ele considera o “advérbio” um determinante de natureza nominal (sàbiamente) ou pronominal (aqui, ali), que se refere, circunstanciando ou intensificando, a um verbo (dança bem), adjetivo (homem muito alto) outro advérbio (corre bastante depressa) ou pronome (até êle chorou)” (MELO, 1970, p. 79; destaques do autor). Pelo que nos é dado perceber, segundo nosso filólogo mineiro, a “doutrina lingüística melhor e mais acertada” para identificar essa espécie lexical é a que reúne três critérios correspondentes a dois módulos lingüísticos distintos: um gramatical, constituído, no caso, pelos componentes morfológico e sintático, e outro semântico. No primeiro, de caracterização morfológica, o alocamento do “advérbio” em dois macroconjuntos vocabulares – lexicográfico (subclasse dos nomes) e de instrumentos gramaticais (subclasse dos 117 determinantes) – não deve ser interpretado como índice de uma cisão em termos flexionais, uma vez que essa espécie de palavra é sempre invariável. No segundo, de caracterização sintática, os traços arrolados por Melo (1970, 1981) dizem respeito tanto à função (de determinante) exercida pelo “advérbio” relativamente ao elemento a que se refere, quanto à espécie vocabular (escopo) passível de ser determinada por ele – verbo (ou todo o predicado), adjetivo, pronome ou outro advérbio. Por último, no terceiro, de caracterização semântica, esse autor faz menção de dois papéis próprios aos “advérbios”: o de circunstanciador e o de intensificador. No seu modo de pensar, o advérbio “é um determinante, mas determinante rico, vário e sui generis, muitas vezes com conotação ideativa, freqüentemente com morfologia própria, razão por que os gramáticos acham que deve constituir classe á parte” (MELO, 1981, p. 142). Paralelamente a essas “lições”, encontramos outras, que, apresentadas ao longo das duas obras ou em capítulos diferentes de seu manual de gramática, complementam, ou, até mesmo, alteram a definição aqui discutida, conforme nos comprova o seguinte excerto: Como tal [advérbio] se tem entendido a palavra que se refere ao verbo, modificandolhe a significação, e também a palavra que intensifica ou atenua a significação de um adjetivo, de outro advérbio, de um pronome e. em certa perspectiva, de um substantivo.” ( MELO, 1970, p. 75; destaques nossos) Registradas por nós, na Figura 6, as de ordem morfológica servem para enquadrar os “advérbios”, no subgrupo (novo) das palavras invariáveis,ou seja, que não admitem flexão. Por seu lado, as de ordem sintática e semântica distinguem os papéis semânticos exercidos pelos advérbios, segundo a classe de palavra a que se liga, ou seja, o seu escopo, quais sejam: o de “modificador” do verbo (advérbios circunstanciais) e o de “intensificador” ou “atenuador” da significação do adjetivo, de outro advérbio, de um pronome, e até de um substantivo (advérbios intensificadores) – o que nos demonstra, ainda, que nosso gramático admite uma extensão maior do escopo do advérbio do que o referido na definição propriamente dita. 118 Em uma das observações (de nº 2) constantes de sua Gramática, em capítulo reservado, exclusivamente, ao estudo do “advérbio”, nosso mestre expande ainda mais o escopo do “advérbio’, mostrando que ele pode se referir a uma oração inteira, traduzindo, com isso, a “ressonância afetiva dêsse mesmo enunciado no sujeito falante”(MELO, 1970, p. 168). Dessa sorte, vemos aumentada a lista dos gramáticos que, não encontrando respostas para certos problemas que enfrentam na descrição da língua como sistema, fazem incursões no território do discurso, num prenúncio dos rumos que a Lingüística Moderna iria tomar. Naturalmente, a definição de “advérbio” que acabamos de apresentar e discutir, nos fornece subsídios para a realização da segunda tarefa que nos propusemos realizar aqui, qual seja, a de examinar as “lições” relativas à subcategorização dos itens adverbiais. Começando pelo componente morfológico, podemos constatar que o “advérbio’, palavra invariável, que, segundo Gladstone Chaves de Melo (1970 e 1981), compartilha de traços próprios aos nomes, já que dotado de conteúdo nocional, e aos pronomes, pelo caráter dêitico de algumas de suas formas, se desdobra, em termos de seu estatuto configuracional, em três subespécies: a das formas expressas num constituinte único (bem, mal, assim, também, provavelmente, muito, pouco, etc.); a das palavras adverbiadas através da cristalização de adjetivos em sua forma de masculino singular, e a das locuções adverbiais, resultantes, segundo ele, “de combinações de palavras, fixadas por largo uso” (MELO, 1970, p. 165). Outro desdobramento verificado nesse mesmo nível gramatical é o que diz respeito à possibilidade de graduação por parte de alguns itens adverbiais, ou seja, nas palavras do autor, da possibilidade que alguns advérbios têm de “exprimir modulações na maneira de circunstanciar ou de intensificar” seus respectivos determinados. (MELO, 1970, p. 170). Deduz-se daí um desdobramento adverbial em formas que admitem gradação superlativa 119 (muito claramente, fortissimamente) ou comparativa (mais/menos que; tão ... quanto), e em formas que não são sujeitas a nenhum tipo de gradação. Do mesmo modo que o morfológico, o critério semântico permite ao nosso gramático identificar outros tipos de subcategorização a que o advérbio é afeito. Um deles, concernente ao tipo de modificação expresso pelo item adverbial, permite ao nosso autor estabelecer duas subespécies de advérbio, aqui já referidas: a dos que exercem o papel de modificador ou de circunstanciador, e a dos que, de acepção dêitica, nos remetem aos actantes do discurso (aqui, aí, lá, ali, etc.). Nesse mesmo plano, Melo (1970, p. 167-168) identifica seis subtipos de formas adverbiais, diversos uns dos outros, pelas nuances semânticas que expressam: a) de lugar: aqui, cá, aí, ali, acolá, aquém, além, etc.; b) de tempo: hoje, amanhã, ontem, agora, depois, cedo, tarde, etc.; c) de modo: bem, mal, assim, também e quase todos os advérbios em –mente; d) de dúvida: talvez, acaso, provavelmente, possivelmente, etc. e) de intensidade: muito, pouco, assaz, bastante, mais, menos,etc.; f) de afirmação: sim, certamente, indubitavelmente, etc. Procedendo, agora, a uma avaliação geral dos ensinamentos fornecidos por Gladstone Chaves de Melo, em suas duas obras – de 1970 e de 1981 – frisemos os seguintes aspectos: a) escritas em meados do século passado, as “lições” fornecidas pelo lingüista-filólogo aqui examinado, nos revelam um estudioso em conflito, sobretudo, em sua Gramática fundamental, que, conforme ele próprio anuncia, é de natureza didática. Esse conflito, certamente o mesmo vivenciado por muitos de nossos Professores de Português, provoca um estado de tensão nesse gramático, que, dotado de idéias próprias, de espírito crítico, de uma visão mais ampla dos fatos lingüísticos, de uma ânsia de buscar soluções mais plausíveis e concordes com novos modelos de análise, ainda se 120 sente obrigado a acatar e a repetir certas “lições” da NGB, das quais discorda, por sua distância em relação ao uso real de nossa língua. No segmento transcrito abaixo, o autor confessa, explicitamente, a difícil situação “lingüística” por que ele e alguns de seus pares passam, situação essa que não lhe tira a força de combate em favor de uma gramática que busque sistematizar “ os fatos contemporâneos de uma língua” (MELO, 1970, p. 8): Quando rapidamente discutimos o problema da classificação das palavras, vimos que sob o nome de “advérbio” se abrigam valores significativos diversos (...) Atendendo, porém, à natureza didática deste livro, resolvemos adotar a NGB, desde que ela não fira doutrina por nós considerada indiscutível, desde que, em suma, não deixe de ser “nomenclatura” para ser teoria. (MELO, 1970, p. 167) b) um dos exemplos de desobediência à NGB, a classificação de palavras estabelecida por esse autor expressa, iconicamente, se se pode dizer assim, a complexidade imposta por qualquer tipo de classificação de elementos, no caso em pauta, dos que compõem o acervo lexical das línguas. Uma das provas das dificuldades enfrentadas por nosso gramático se mostra patente na sua taxonomia, acima aqui transcrita e complementada com informações dadas em outras passagens de seus estudos na Figura nº 6. Embora preocupado em apresentar uma distribuição mais geral, passível de reunir os vocábulos que têm propriedades comuns a outras, a nosso ver, ele não consegue fazê-lo, uma vez que prefere alocar, sem uma justificativa convincente, uma mesma espécie vocabular, como o “advérbio” e certos tipos de pronomes em duas subclasses distintas – de nome e de determinante, no caso do primeiro, e de pronome e determinante, no caso do segundo. Subclasses essas que, por sua vez, integram dois macroconjuntos vocabulares diferentes: o das palavras lexicográficas e o dos instrumentos gramaticais, ao invés de observar o mesmo procedimento de identificar os possíveis desdobramentos de cada um desses tipos lexicais, nos moldes dos critérios – de natureza morfológica, sintática, semântica e até 121 discursiva – que aplica na subcategorização de outras espécies de palavras, dentre as quais, o próprio “advérbio”; c) esse modo de proceder nos deixa em dúvida, no caso específico do “advérbio’, se o autor o considera uma classe autônoma e distinta das demais, como nos deixa entrever na parte descritiva de sua análise, ou se acata a opinião dos gramáticos que, de certo modo, critica, e que preferem analisar o advérbio como outra classe; d) no entanto, se considerarmos esses ensinamentos sob outra perspectiva, que projeta novos rumos de pensamento, é possível perceber, em meio ao caos, o reconhecimento por parte de Melo (1970, 1981) da importância de estratégias de referenciação como a dêitica e a fórica; da impossibilidade de uma delimitação rígida entre as diferentes classes de palavras, ou, em outras palavras, da existência de um continuum (um dos princípios básicos do Funcionalismo) intercategorial; e da versatilidade morfológica, sintática, semântica e discursiva da espécie adverbial, tomada nos diferentes itens que a integram, etc. e) igualmente, no que tange aos advérbios per se, se, por um lado, não temos uma caracterização mais precisa e nem igual nas duas obras de nosso mestre, por outro, recebemos dele “lições” que nos levam, dentre outras coisas, a: i- constatar, tal como o fazem outros autores, que a heterogeneidade dessa espécie vocabular, na verdade, se constitui numa das evidências de que não deve ser identificado como uma classe autônoma; ii- perceber que a alocação dos “advérbios” na classe dos nomes e, ao mesmo tempo, dos determinantes, exprime uma distinção entre as formas que se configuram como ideativas, ou seja, como nocionais, e as que funcionam como dêiticos, já que atuam no plano discursivo, 122 enunciativo – fato que tem levado autores como Ilari (1993) a concluir que se trata de elementos tipologicamente distintos um do outro; iii- enfim, nos conscientizar da necessidade de revisão de nossas idéias acerca da operação classificatória, admitindo, como Perini (1995), que ela varia de acordo com o(s) objetivo(s) pretendido(s) por quem dela se vale. Examinadas, dentro de nossas possibilidades , as “lições” de Gladstone Chaves de Melo (1970, 1981), a respeito da categorização lexical e, sobretudo, do modo como vê o “advérbio”, finalizemos, a seguir, nossa viagem, apresentando e comentando, em sua última etapa, as idéias defendidas a respeito dessas duas questões por autores mais comprometidos com a Lingüística Moderna. 4.2.2.3 Terceira “geração”: Mário Vilela e Ingedore Villaça Koch (2001) A título de contraposição entre as “lições” que dão continuidade a um modelo mais tradicional de abordagem da língua e as “lições” que encampam o pensamento vigente nos diversos quadros da Lingüística Moderna, selecionamos, como representante da época contemporânea, ou de “3ª geração”, um compêndio gramatical, que, datado de 2001 e escrito a “quatro mãos”, reúne ensinamentos de “nacionalidades” diferentes: lusitanos, da parte de Mário Vilela, e brasileiros, da parte de Ingedore Villaça Koch. Com o olhar que ultrapassa o sentencial, privilegiado pela “gramática de palavras”, esses estudiosos, conforme anunciado no subtítulo de sua obra, não só o enfocam sob novas luzes teóricas – da gramática de valências, por exemplo – como constroem uma “gramática do texto” ou do “discurso”. Obviamente, tal escolha teve o seu custo, uma vez que nos impediu de examinar, conforme programamos, propostas de análise reconhecidamente valiosas como as de Mateus 123 et al. (1983), Bechara (1999), Perini (1989, 1995), Neves (2000), etc., que, embora não apresentem soluções definitivas sobre o tema aqui abordado, conseguem acenar com idéias capazes de diminuir a nebulosidade decorrente da própria complexidade da tarefa de categorização e dos fatos da língua. Começando pelo quadro mais geral, vejamos o que pensam esses dois lingüistas a respeito da classificação de palavras no português: A maior parte das palavras do português são enquadráveis, mesmo fora do discurso, em classes formais e em classes funcionais, que designamos por categorias gramaticais ou partes do discurso. Há assim categorias lingüísticas diferentes, quer no sentido amplo, quer no sentido estrito. Contudo, há concepções e categorizações diferentes de acordo com determinados critérios, e a divergência de concepção na classificação pode ser profunda ... (VILELA e KOCH, 2001, p. 56). Embora afirmem que a maior parte das palavras de nossa língua é suscetível de enquadramento em classes e subclasses distintas, esses dois mestres acabam reconhecendo que, na realidade, isso não é assim tão fácil, uma vez que os traços tidos como peculiares a algumas delas não se aplicam a todas as formas tidas, em princípio, como seus membros. Assim sendo, se, de uma parte, os verbos, os substantivos e até mesmo os adjetivos constituem classes mais bem definidas e delimitadas, por outra, elementos como os artigos, os pronomes, os numerais “acarretam problemas e surgem sob diferentes designações consoante as escolas ” que os examinam (VILELA e KOCH, 2001, p. 61). Integrantes desse último grupo, os advérbios, afirmam os autores, “constituem a classe mais heterogênea e mais difícil de caracterizar” (VILELA e KOCH, 2001, p. 61). Certos de que o melhor critério para a classificação das “categorias gramaticais” é o que conjuga traços sintáticos (ponto de partida) aos formais e semânticos, esses autores, diferentemente de outros que, como Perini (1995), levam em conta apenas um deles (no caso desse último autor, o sintático), distribuem os vocábulos de nossa língua, conjugando os seguintes aspectos: 124 A – Quanto ao “significado categorial”: a) Palavras representantes de “objetos”; b) Palavras representantes de “processos”; c) Palavras representantes de “propriedades”; d) Palavras representantes de “relações” B - Quanto ao estatuto “formal” a) Palavras variáveis x palavras invariáveis; b) Palavras conjugáveis; c) Palavras “graduáveis” C- Quanto ao estatuto “sintático” a) Função própria a cada categoria; b) Distribuição c) Posição na frase d) Regência, etc. No esquema a seguir, procuramos reunir e organizar a proposta classificatória desses dois estudiosos, completando-a com outras informações pertinentes, recolhidas ao longo da de sua obra: 125 1- CARACTERIZAÇÃO SEMÂNTICA CARACTERIZAÇÃO FORMAL Substantivo (objeto) Palavras CARACTERIZAÇÃO SINTÁTICA Núcleo de SN Passível de determinação De grande mobilidade posicional Verbo (processo) Conjugável Variáveis Núcleo de SV Passível de Determinação Graduável Qualificador Passível de Determinação Lexicais Adjetivo (propriedade, qualidade) Palavras Relacionais Pronome Advérbio pronominal Núcleo de SN Determinante de N Relacionador dêitico Relacionador anafórico Advérbio frásico Invariáveis Palavras Intrapredicativo Intrafrásico Conjunção de Ligação coord. subord. Preposição Partículas Modais Capacidade de regência Advérbio extrafrásico Do dictum Avaliativos Assertivos De enunciação Do dizer ordenação distribuição analogia oposição operação metalingüística Do querer dizer ligados a atos ilocutórios FIGURA 7 – “CARACTERIZAÇÃO DAS CATEGORIAS GRAMATICAIS” DO PORTUGUÊS, SEGUNDO VILELA E KOCH (2001) FONTE (aqui organizada e complementada): Vilela e Koch (2001, p. 55-64 ) 126 Quanto ao advérbio per se, é caracterizado pelos dois gramáticos de um modo mais detalhadamente possível e em coerência com a idéia defendida por ambos de que o melhor critério é o que combina características semânticas, formais e sintáticas. Cientes, como muitos dos autores aqui apreciados, de que “não há nenhum traço que delimite de modo claro e definitivo qualquer classe”, Vilela e Koch (2001, p. 60) buscam obter maior sucesso de análise, cruzando os critérios em que se apóiam. Contudo, reconheça-se, apesar dos avanços obtidos em sua análise, nem todas as idéias defendidas por eles são inéditas. Olhando para trás, deparamo-nos, por exemplo, com “lições” (muitas vezes apresentadas em notas de rodapé) de autores mais antigos, que têm vários pontos em comum com as deles, dentre os quais, salientamos: o reconhecimento de uma possível atuação do “advérbio” no plano da enunciação (elementos dêiticos), a relação de Sintagmas Adverbiais com Sintagmas Prepositivos, a percepção da diferença de papéis semânticos entre os “advérbios” associados a verbos e “advérbios” associados a adjetivos, etc. Esse “diálogo” inter-autoral se manifesta na própria definição de “advérbio” propugnada por Vilela e Koch (2001), que ora transcrevemos: “os advérbios acompanham e determinam verbos, substantivos, adjetivos, pronomes e outros advérbios” (VILELA e KOCH, 2001, p. 62). Embora admitam que certos substantivos possam ser modificados adverbialmente (como em “Só Deus é justo”), esses dois autores deixam claro que a marca categorial do “advérbio” é a de modificar o verbo, a frase, o adjetivo, o próprio advérbio, ou a enunciação Pelo que nos é dado ver, nessa definição, os mestres, aqui em apreço, não foram tão felizes quanto nas “lições” subseqüentes, nas quais, apontam várias características do “advérbio”, vistas separadamente umas das outras, ou, então, cruzadas entre si. Na definição acima, é o critério sintático que norteia, quase de um modo absoluto, a identificação do “advérbio”, através da exploração de três de seus traços: um, concernente ao escopo – verbo, 127 adjetivo, substantivo, pronome, advérbio –, outro, ao papel de determinante do elemento a que se ajunta, e um terceiro, à posição que ocupa em relação ao termo que determina. Em face dessa restrição, procuramos nos enveredar por outras partes da Gramática, desses autores, em busca de outras “lições” a respeito do “advérbio”. Nelas, pudemos constatar que, do ponto de vista morfológico, Vilela e Koch (2001), da mesma forma que os gramáticos de linha tradicional, consideram o “advérbio” uma subespécie do grupo de palavras invariáveis, única, por sinal, passível de gradação e derivação. Outra característica morfológica diz respeito ao estatuto configuracional dos itens adverbiais, que, segundo observam nossos dois mestres, correspondem, de um modo geral, a formas compostas ou a locuções, como: anteontem,doravante, lado a lado, à toa, pouco a pouco, etc. Acresça-se a isso a menção dos dois autores ao fato – diacrônico – de que os poucos advérbios simples encontrados na nossa língua, e em outras línguas românicas, derivam, quase sempre, de formas compostas, tal como se verifica em : in tuc > então; admane > amanhã; hoc die > hoje, etc. (VILELA e KOCH, 2001, p. 245). Em complementação às informações de ordem sintática constantes da definição, Vilela e Kock (2001) nos chamam a atenção, em outras passagem de sua obra, para a mobilidade dos termos adverbiais no interior da oração, processo que não incide sobre os demais “elementos de ligação”. Outra propriedade, também sintática, é a que concerne à força de recção verificada em certos itens adverbiais, força essa referida no Capítulo 2 desta dissertação e mencionada em algumas das “lições” de “antanho” aqui examinadas. Contudo, vale ressalvar, essa força, no modo de ver de nossos autores, na verdade, é muito mais de natureza semântica que sintática, ou seja, os advérbios se constituiriam em formas sintaticamente intransitivas e semanticamente dependentes dos elementos que modificam. Assim sendo, em frases como: (1) a- “Votou contrariamente ao que se havia estabelecido.” 128 b- "Manifestou-se favoravelmente à absolvição.” Vilela e Kock (2001, p. 246; destaques nossos) nos mostram que, na realidade, estamos diante de casos de persistência da “valência” dos adjetivos-fonte contrário a e favorável a, respectivamente. Quanto à caracterização semântica, é referida pelos autores (2001, p. 245) na definição acima reproduzida, segundo a qual “a marca categorial do advérbio é a de modificar o verbo, a frase, o adjetivo, o próprio advérbio ou a enunciação” e, em alguns casos, o substantivo (como em: “Só Deus é justo.”). Contudo, a extensão desse papel a tantos constituintes oracionais é revista por eles, quando, em outro excerto de seu compêndio, afirmam que os verdadeiros advérbios são os que se referem ao verbo, ou seja, os que se referem ao “acontecer verbal em si”, configurando-se, pois, como uma espécie de complemento que, inerente ao verbo, faz parte do todo predicativo. Em outras palavras, os conjuntos formados por “verbo + advérbio” constituem um SPred, sendo o item adverbial selecionado pelo verbo. Exemplos fornecidos pelos autores (VILELA e KOCH, 2001, p.249): (2) a- “Ela falava maliciosamente com o namorado.” b- “A serpente deslizava sorrateiramente à procura do seu almoço.” Com base nessas propriedades – e em outras de caráter discursivo –, tomadas individualmente ou cruzadas entre si, nossos lingüistas estabelecem diversos tipos de subagrupamentos adverbiais, correspondentes a níveis lingüísticos diferenciados. Em termos morfológicos, por exemplo, pudemos ver que eles os subdividem, do ponto de vista configuracional, em dois subconjuntos: o das formas simples (menos numerosas e, em geral, herdadas ao latim) e o das formas compostas de elementos que 129 figuram integrados, ou não, entre si. Exemplos do primeiro tipo: hac hora > agora; hoc die > hoje. Exemplos do último: anteontem, doravante, formalmente, intensamente, lado a lado, a tempo e hora, etc. (VILELA e KOCH, 2001, p. 245). Num nível mais baixo dessa distribuição hierárquica, os dois pesquisadores identificam, na subespécie constituída pelos adjetivos adverbializados, um novo desmembramento, que tem a ver com o modo de formação dos advérbios, a saber: os que se originam de adjetivos cristalizados no masculino singular e os que resultam da aposição do sufixo –mente a itens adjetivos (processo mais produtivo), conforme ilustrado abaixo: (3) a- “Mãe e filha falavam tão alto que se ouvia do outro lado da rua.” – Adjetivo cristalizado como advérbio. b- Ele fala javanês correntemente. – Adjetivo adverbializado por aposição do sufixo –mente. Similarmente às propriedades morfológicas, as sintáticas permitem outros tipos de distribuição dos itens adverbiais. Num nível mais abrangente, por exemplo, nossos gramáticos detectam, no nível da gramática dois grandes grupos: os advérbios frásicos, que atuam dentro do domínio da frase, e os advérbios extrafrásicos, que não participam da referência frásica, mas, sim, do processo discursivo, no qual atuam como modalizadores, ou seja, como índices do sentimento, da emoção, da avaliação, etc. apresentados pelo locutor. Exemplos (VILELA e KOCH, 2001, p. 249 e 251): (4) a- “Ela falava maliciosamente com o namorado”. – Advérbio frásico, modificador do verbo. 130 b- “Ele é verdadeiramente / realmente inteligente.” – Advérbio frásico, modificador de adjetivo. (5) a- “Francamente, nunca mais aprendes!” – Advérbio extrafrásico. b- “Brutalmente, ela veio e desfez tudo.” – Advérbio extrafrásico. Restringindo-se ao primeiro tipo, de advérbio frásico, esses lingüistas mostram que pode se distribuir em dois subtipos, de acordo com o seu escopo: se incidem sobre o verbo, como no exemplo (4a) acima, configuram-se como “advérbios intrapredicativos”; se afetam o verbo juntamente com algum de seus argumentos – verbo e sujeito” (indiciadores de “vontade”, ou “causa”), ou “verbo e complementos ”–, constituem-se em “advérbios intrafrásicos. Vejamos alguns dos exemplos fornecidos por esses autores (cf. VILELA e KOCH, 2001, p. 250): (6) “O tiro feriu-o mortalmente. “ (7) a- “Ele abdicou voluntariamente.“ (Advérbio intrapredicativo) (Advérbio intrafrásico, voltado para o verbo e o SN sujeito) b- “ Ele escreve legivelmente as coisas.” (Advérbio intrafrásico, voltado para o verbo e seu objeto) A par dos critérios de natureza morfológica e sintática, o de cunho semântico propicia diferentes desmembramentos do “macroconjunto” adverbial. Um primeiro, mais amplo, é o que leva em conta o papel (semântico) básico exercido pelos diferentes itens adverbiais, que se repartem em dois blocos: o dos advérbios intensificadores – ligados, mais 131 comumente, a adjetivos – e o dos advérbios propriamente ditos, que, conforme mencionado acima, caracterizam o acontecer verbal em si, conforme exemplificado abaixo: (8) a- Essa nova atriz da Globo é bem feinha, não? (Dado de coleta informal) b- “Ela gritava desalmadamente no meio da noite. “ (Dado dos autores, 2001, p. 249) Focalizando o processo referencial, nossos gramáticos fazem menção ao caráter pronominal de certos itens adverbiais, que podem, anafórica ou cataforicamente, atuar como pró-palavras, pró-frases e, até mesmo, pró-textos. Exemplos dos autores (2001, p. 254): (9) a- “A filha foi passar dez dias no Algarve. Só então, os pais foram para férias”Advérbio pró-frásico. b- “Cá no Porto, lá em Lisboa,(...) cá dentro!” – Advérbios pró-sintagmáticos. Visto como “categoria gramatical”, o “advérbio”, segundo nossos dois gramáticos, admite, ainda, uma subclassificação de ordem semântica, de que resultam numerosos e variados subtipos, sujeitos a se superpor uns aos outros. São eles: a) advérbios de tempo: agora, ainda, hoje, amanhã, já, nunca, cedo, tarde, etc. b) advérbios de lugar: abaixo, acima, adiante, atrás, cá, defronte, dentro, fora, etc c) advérbios de afirmação: sim, certamente, realmente, efetivamente, etc. d) advérbios de dúvida: acaso, porventura, talvez, quiçá, possivelmente, etc. e) advérbios de intensificação: bastante, bem, mais, menos, muito, pouco,etc. f) advérbios de modo: assim, mal, melhor, pior, etc. g) advérbios de negação: não, nunca h) advérbios de inclusão: até, mesmo, também i) advérbios de exclusão: só, apenas, somente, salvo j) advérbios de designação: eis 132 k) advérbios de interrogação: por que (causa), como (modo), onde (lugar), quando (temporal) (VILELA e KOCH, 2001, p. 247-248). Para finalizar, mencionemos, outra subdivisão detectada por esses dois gramáticos (2001, p. 251-253), com base no nível lingüístico em que as formas adverbiais podem atuar. No plano gramatical, já vimos, temos o subgrupo dos advérbios frásicos, que, por sua vez, abarcam duas subespécies: a dos advérbios intrapredicativos (exemplo nº 6), relacionados a “verbos”, e a dos adverbiais intrafrásicos (exemplos sob o nº 7), associados ao verbo e, ao mesmo tempo, a algum de seus argumentos. Fora do domínio da frase, encontramos os advérbios extrafrásicos, ou de enunciação, que, de sua parte, também podem se desdobram em novos subtipos, conforme incidam sobre: o dictum, o dicere, ou o querer dizer. Em desdobramento próprio, o primeiro deles, de advérbios relacionados ao dictum, admite a seguinte subdivisão (VILELA e KOCH, 2001, p. 252): a) os avaliativos, que expressam o sentimento de apreciação do enunciador acerca do conteúdo da proposição. Exemplo: “Infelizmente, ela não veio.”; b) os assertivos, que dizem respeito ao valor de verdade da proposição, indicando possibilidade, probabilidade, certeza, etc. Exemplo: “Certamente, eles virão às sete da tarde.” O segundo, que, constituído de advérbios ligados ao dicere, ou seja, ao agenciamento do discurso, pode implicar: a) uma ordenação discursiva: primeiramente, finalmente, antes, depois, etc.), analogia (igualmente, simultaneamente, etc.; b) uma distribuição: respectivamente, sucessivamente, etc.; c) uma analogia: igualmente, paralelamente, etc.; d) uma oposição: contrariamente; e) uma operação metalingüística: literalmente, textualmente, mais exatamente, etc. (VILELA e KOCH, 2001, p. 252). 133 Por fim, o terceiro subgrupo é formado por advérbios que incidem sobre a intenção comunicativa, isto é, sobre o querer dizer, expressando algo acerca do ato ilocutório em si. Exemplos: confidencialmente, francamente, sinceramente, pessoalmente, honestamente, seriamente, etc. (VILELA e KOCH, 2001, p. 253). Vistas essas “lições”, apresentemos, agora, uma síntese da proposta analítica defendida por nossos dois gramáticos sobre o “advérbio” no português: a) mais detalhado, o estudo empreendido por esses gramáticos, ultrapassa, conforme já referido, os limites da gramática, estendendo-se ao discurso e ao texto (visto como resultado da ação desenvolvida naquele); b) esse detalhamento não os impede de fazer algumas generalizações, que nos remetem a distribuições de alcance mais amplo, que, de caráter morfológico, sintático, semântico, ou, então, discursivo-textual, nos remetem a blocos mais compactos em que se distribuem seus componentes adverbiais; c) os critérios adotados e os traços próprios a cada um deles são apontados explicitamente e examinados um a um; d) a complexidade da operação classificatória pôde ser detectada a partir das dificuldades que os autores enfrentaram na resolução de problemas que não resolveram adequadamente, ou que deixaram de resolver. A par de tudo isso, chamou-nos especial atenção o fato de esses dois autores, adeptos de correntes lingüísticas mais modernas, não desmerecerem, em momento algum, as “lições” deixadas pelos nossos “velhos” gramáticos, cujo valor reconhecem, segundo nos comprova o seguinte excerto, transcrito de sua Gramática da língua portuguesa: Como vemos, os critérios sintáticos, semânticos e morfológicos são usados, ou de modo exclusivo, ou em complementaridade. O método greco-latino tem-se mostrado funcional e pedagogicamente correto. O uso dos diferentes critérios – em exclusivo ou em complementaridade – é lingüística e cientificamente correto. (VILELA e KOCH, 2001, p. 64) 134 4.3 Conclusão Conforme anunciado na seção introdutória deste capítulo, cumpre-nos, agora, o cotejo entre as “lições” dos gramáticos aqui escolhidos como representantes das três gerações da contemporaneidade. Vimos que, mesmo hoje, no início do século XXI, a discriminação das classes de palavras e a identificação do advérbio como um grupo autônomo, continuam problemáticos. As dificuldades enfrentadas por nossos lingüistas continuam, na verdade, a esbarrar nos critérios passíveis de definir as diferentes classes como autônomas e independentes umas das outras. Isso porque, como se viu, as taxonomias apresentadas não se concentram num objetivo, que é o que determinará o ponto de vista a ser priorizado na operação classificatória de qualquer elemento ou fato. Assim, pudemos ver que, no começo do século XX, José Oiticica (1919/1923), em completo descompasso com seus coevos e mesmo com mestres mais antigos, ultrapassa as fronteiras da frase, mostrando que certos itens adverbiais podem atuar em instâncias extrafrásicas, dentre as quais a da enunciação. Pena que nosso mestre tenha deixado de sistematizar e justificar suas propostas, deixando para os leitores a tarefa de inferi-las. Com a visão abrangente de Oiticica (1923) acerca da classificação de palavras, Gladstone Chaves de Melo (1951 e 1968), também ultrapassando os limites da “gramática da frase”, tenta buscar, em outras esferas, soluções para fatos ainda não explicados nesse território. Com esse objetivo, esse autor propõe um reagrupamento das dez classes de palavras estabelecidas pela tradição gramatical, considerando, por exemplo, o o advérbio não como uma classe autônoma, mas subespécie de outras com que coincide em alguns traços. Por fim, as “lições” conjuntas do português Mário Vilela e da brasileira Ingedore Kock (2001) nos deixam entrever os avanços propiciados, sobretudo, por um trabalho mais sistematizado. Ao se estender, conscientemente, a planos extrafrásicos – discursivo e textual 135 – consegue trazer alguma luz para a solução de problemas lingüísticos, de que o advérbio é um exemplar mínimo. Com base em objetivos mais específicos, critérios mais bem definidos e em dados da língua oral e escrita de hoje, eles acabam nos fornecendo um quadro mais preciso, embora ainda sujeito a muitos questionamentos. Para que tenhamos uma visão conjunta das “lições” dos gramáticos contemporâneos aqui examinados, apresentamos a seguir, tal como feito no final do Capítulo 3, dois quadrossíntese, que nos dão uma idéia do pensamento de três “gerações” de lingüistas a respeito do estatuto do “advérbio”, no conjunto vocabular do português (Quadro 3) e de suas possibilidades distributivas (Quadro 4). 136 QUADRO 3 LIÇÕES SOBRE A CARACTERIZAÇÃO DOS ADVÉRBIOS EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XX E XXI SEC./ GRAMÁTICOS GER. JOSÉ DE OITICICA (1919/1923) CARACTERÍSTICAS DOS ADVÉRBIOS MORFOLÓGICAS SINTÁTICAS SEMÂNTICAS Estatuto taxonômico: - subclasse dos termos modificativas - subclasse das palavras prominativas Flexão: palavra invariável. Função: - determinante do verbo. - indiciador de grau de adjetivos e advérbios. Escopo: o verbo Função: exprimir as circunstâncias verbais. Estatuto taxonômico: - Natureza: nominal e pronominal. - Flexão: palavra invariável Função: determinante do verbo, adjetivo e pronome. Escopo: verbo, adjetivo, advérbio, pronome, substantivo, oração inteira Estatuto taxonõmico: subclasse dos nomes e dos determinantes. Papéis: 1ª geração XX GLADSTONE CHAVES DE MELO (1970/1981) 2ª geração MÁRIO VILELA E XXI INGEDORE V. KOCK (2001) 3ª geração Estatuto taxonômico: - Subespécie do grupo de ligação. - Partícula modal Flexão: - Subespécie do grupo vocabular invariável - Passível de gradação e derivação Função: determinante de verbo, substantivo, adjetivo, pronome, outro advérbio, frase. Posição: passível de mobilidade na frase. Regência: intransitivo (força de recção ligada à valência do adjetivo que determina) - modificadores (circunstanciadore s) de verbo; - intensificadores de adjetivos, advérbios, pronomes e substantivos Papéis: modificadores de verbo, adjetivo, advérbio, substantivo, SPred., frase e enunciado Valência: dependente dos elementos que modica (a aparente capacidade de regência deve-se à valência dos adjetivos que determina) 137 QUADRO 4 LIÇÕES SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DOS ADVÉRBIOS EM GRAMÁTICAS DOS SÉCULOS XX E XXI SÉC./ GER. GRAMÁTICOS JOSÉ DE OITICICA (1919/1923) 1ª geração XX GLADSTONE CHAVES DE MELO (1970/1981) 2ª geração XXI MÁRIO VILELA E INGEDORE V. KOCK (2001) 3ª geração CRITERIOS DE DISTRIBUIÇÃO MORFOLÓGICOS SINTÁTICOS SEMÂNTICOS Estatuto formal: Intensificadores: de adjetivo e de advérbio Papéis: - termo nuclear; - palavras adverbiadas (adj. + -mente; adj. gênero masc. plural); - expressões e locuções adverbiais; -orações adverbiais (des./red.) Estatuto formal: - termo nuclear; - termo derivado de adj. + mente; - palavras adverbiadas (adj. gênero masc. plural); - formas passíveis de gradação superlativa e comparativa X locuções não passíveis de gradação comparativa e superlativa Estatuto formal: - Formas simples X Formas compostas Formação: -Adjetivos adverbializados (adj. + –mente ou adj. no gênero masc. plural) OUTROS Plano da referenciação: - Modificativo de alguns itens fóricos verbo - Pronominais elemento dêitico Subespécies: dúvida, freqüência, intenção, intensidade, lugar, modo, ordem e tempo ___ Papéis: Modificadores (circunstanciais) X termos relacionais (dêiticos) Subespécies: de lugar, tempo, modo, dúvida, intensidade e afirmação. Frásicos: -intrafrásicos -intrapredicativos. Extrafrásicos: - referentes ao todo sentencial - referentes à enunciação Dois tipos: -Circunstanciadores: ligados ao verbo. -Intensificadores ligados a adj. e advérbios. Subespécies: de tempo, lugar, afirmação, dúvida, intensificação, modo, negação, inclusão, exclusão, designação, interrogação. Plano referencial: alguns itens fóricos Plano discursivo: alguns itens dêiticos Processamento referencial: atuam como: pró-palavras; pró-frases; pró-textos. Extrafrásicos: Discursivos quanto ao dictum – avaliativos, assertivos quanto ao dicere – ordenação, distribuição, analogia, oposição, operação metalingüística quanto ao querer dizer – expressões e ato ilocutório em si. 138 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: “DECIFRAR O ADVÉRBIO É PRECISO” A chamada gramática tradicional, tal como a concebemos, um corpo organizado de princípios lingüísticos, só pode ser entendida e avaliada se examinarmos o caminho por ela percorrido através do tempo, já que suas características principais são fruto não só de um longo processo de reflexão teórica e de vivência, mas também de adequação ou resposta a acontecimentos sociais, políticos, econômicos e culturais que enfrentou. (FÁVERO, 1996, p. 19; destaque da autora). É mais do que tempo, reconhecemos, de dar fecho a esta viagem, retomando, para tanto, o nosso “diário de bordo”, a fim de procedermos ao acerto final necessário. Antes de fazer isso, contudo, cumpre-nos ressaltar que essa foi uma aventura deveras enriquecedora, ao longo da qual, pudemos colher “lições”, que, dentre tantas outras coisas, nos deram um testemunho vivo do quanto de perspicácia, paciência, bom senso, conhecimento e boa vontade nos impinge a tarefa de categorização – lingüística, ou não. No estudo aqui em pauta, voltado para a classificação de palavras, um dos maiores exemplos dessa exigência é, com toda a certeza, a identificação e subcategorização do “famigerado” grupo dos advérbios, sabidamente tinhoso, escorregadio, malandro, camaleônico, que nem ele só. Correndo o risco de sermos mal interpretadas, ou até mesmo mal vistas pelo tipo de trabalho de compilação crítica, aqui empreendido, decidimos “enfrentar as intempéries”, buscando nos “feitos lingüísticos” de nossos lingüistas – antepassados e contemporâneos – alguma luz que nos pudesse ajudar na compreensão de fatos lingüísticos como o da distribuição vocabular – o que, sem dúvida, nos permitiria uma melhor condução do processo de ensino/aprendizagem do português. Como esse problema já nos vinha “atormentando” e, conseqüentemente, dificultando nossa atividade docente havia algum tempo, não tivemos dúvida em elegê-lo como objeto de estudo. Buscando enfrentar face a face a questão, procuramos, num primeiro momento, registrar e analisar as ocorrências adverbiais (que sempre nos desafiaram) a partir da coleta de 139 dados reais da nossa língua. Durante a realização dessa empresa, percebemos que precisávamos, o quanto antes, nos munir de lições alheias que nos permitissem saber um pouco mais sobre o estatuto – gramatical, ou não - desse tipo de vocábulo, bem como do seu uso real em nossa língua e, assim, quem sabe, encará-lo posteriormente com olhos próprios e com maior consciência do grau de sua heterogeneidade. Numa consulta preliminar às gramáticas a que tivemos acesso, nos surpreendeu o esforço de nossos autores em decifrar seus mistérios, seus deslizamentos semânticos, sua atuação no âmbito frásico e extra-frásico. Enquanto apreciávamos as propostas de análise apresentadas por autores do passado e do presente, percebemos que, na verdade, já tínhamos em mãos o início de uma pesquisa, que, de caráter metalingüístico, poderia trazer alguma contribuição para a historiografia lingüística, nem sempre valorizada em nosso meio acadêmico. Estava, pois, decidido: a pesquisa que nos cabia realizar passou a ser considerada como uma primeira etapa de outra que, de nossa própria responsabilidade, nos levará a encarar de frente uma espécie vocabular tão “camaleônica” como a adverbial. Disposta a levar em frente esse tipo de trabalho, independentemente de opiniões contrárias, começamos a executá-lo, procedendo, primeiramente, à seleção de gramáticas pretéritas e contemporâneas, e, posteriormente a recortes que deveriam ser feitos nesses dois períodos. Dessa sorte, começamos pelo exame das “lições” fornecidas por nosso “primeiro gramático”, Fernão de Oliveira (1536), e terminamos com o estudo das lições de dois lingüistas contemporâneos, Vilela e Koch (2001). Com isso, passamos de uma “gramática de palavras” a uma “gramática de palavras”, “de frases” e “de textos”, realizando uma viagem longilínea, que, recortada, por limitação do tempo que tínhamos e do acesso aos compêndios gramaticais/ortográficos mais antigos, acabou privilegiando os ensinamentos gramaticais de autores do século XVI (fase pretérita) e dos séculos XIX, XX e XXI (fase contemporânea). 140 Como bons viajantes, rememoremos, agora, o que mais nos impressionou nessa viagem, retomando o título dado à Introdução - parte destinada aos preparativos da viagem na qual nos perguntamos: “Categorizar é preciso?”. Pelos tempos visitados, pelos autores contatados, pode-se deduzir que a resposta a essa questão é positiva. A própria discussão do assunto, a apresentação de quadros classificatórios específicos, ou não, do “advérbio”, bem como o tratamento especial conferido a esse tipo lexical pelos autores consultados, mesmo com poucos consensos e muitos dissensos, constituem uma prova da importância dessa tarefa e da sua repercussão pedagógica. Com um título em forma de interrogação (“O advérbio: um “ornitorrinco da gramática?”), que, verdadeiro ato de fala, interpela diretamente o leitor e exige dele uma resposta, o capítulo seguinte, de preparação de bagagem teórica, além de delimitar explicitamente o nosso objeto central de pesquisa, qual seja, o advérbio, nos dá uma idéia das inúmeras e diferentes dificuldades enfrentadas pelos que se aventuram a “decifrá-lo”. Em face de problemas como: desencontros das taxonomias estabelecidas pelos diversos autores; as soluções insatisfatórias; os problemas ainda em pendência; a falta de uma indicação mais precisa dos critérios suscetíveis de definir a espécie adverbial, em seu todo e em sua rede distributiva, bem como a inadequação e/ou ausência de exemplos representativos do uso real de nossa língua, a resposta à pergunta inserida no título, sem dúvida alguma, é, mais uma vez, sim. “Camaleônico’, polissêmico, sintaticamente volúvel, extremamente “gramaticalizável” e invasor de instâncias extra-gramaticais, o advérbio, tal como outros tipos de palavras, é tido pelos lingüistas como um verdadeiro ornitorrinco, tanto no sentido denotativo do termo quanto no conotativo. Contudo, o verdadeiro viés, a partir do qual essa afirmação deve ser feita, não é tanto o das “lições” a seu respeito, mas o do seu próprio estatuto formal, funcional e semântico, de grande maleabilidade. Tanto é que o critério semântico, considerado pelos estudiosos como o 141 mais adequado e abrangente para defini-lo, não é nem uno, nem absoluto. Prova disso é que nem todos os itens adverbiais têm valor “qualificativo”, “intensivo” ou “circunstancial”, segundo admitido pelos próprios autores aqui consultados. Do mesmo modo, o critério sintático, considerado por autores como João de Barros (1540/1971) como o de maior eficiência e amplitude, não é suficientemente forte para abarcar todas as formas ditas adverbiais. Que o diga o seu próprio escopo, que varia segundo o tipo de vocábulo a que as diferentes formas adverbiais podem se associar. Nem mesmo o critério morfológico, único utilizado por Schneider (1974), tem condições de resolver o problema. Evidência disso é a idéia defendida por gramáticos como Jeronymo Soares Barbosa (1803/1881) ou Alfredo Gomes (1913) – consultado num primeiro levantamento bibliográfico – , que enquadram, configuracionalmente, todos os termos adverbiais - de constituição simples ou composta (locuções adverbiais) - no rol dos SPreps. Todavia, um dos dissensos mais comuns e marcantes entre os estudiosos é o que diz respeito às diferentes possibilidades de desdobramento do “advérbio” em subtipos diversificados e alocados em níveis hierárquicos distintos. Um dos exemplos prototípicos desse desencontro de idéias, pôde-se ver, é o que diz respeito ao seu desmembramento semântico, distinto, tanto em termos quantitativos quanto em termos qualitativos dos demais tipos. Um deles, por exemplo, tem a ver com a diferença numérica dos critérios taxonômicos utilizados pelos gramáticos para defini-lo, e, mais ainda, pela extensão – maior ou menor – da lista referente aos traços semânticos que lhe são peculiares. Outro é detectado no desencontro da opinião dos gramáticos quanto aos componentes dos vários grupos e subgrupos, desencontro esse mais marcante na análise das formas negativas, afirmativas, inclusivas, exclusivas, etc., tidas por uma boa parte de nossos mestres como de natureza não adverbial. Confirmada a idéia de que o advérbio é, sim, uma espécie de “ornitorrinco” lingüístico, respondamos, agora, se, além de comprovar a complexidade própria a operações 142 classificatórias, os nossos mestres-gramáticos, rastreados num percurso temporal iniciado no século XVI e terminado nesse início do XXI, demonstraram avanços na sua tentativa de deciframento dos enigmas contidos na “esfinge adverbial”. Começando pelos mestres de antanho, ressaltem-se as seguintes “novidades”, que, muitas vezes criticadas por outros estudiosos, representam alternativas de solução para os problemas constantes do modelo gramatical greco-latino, além de indicar, prospectivamente, soluções, retomadas, revistas, exploradas, ou complementadas, posteriormente, por adeptos de correntes da Lingüística Moderna: a) o reconhecimento da inexistência de limites fixos e absolutos entre as diversas espécies vocabulares, dentre as quais, os advérbios; b) a preocupação, por parte de alguns autores, em apresentar quadros distributivos mais generalizantes, em que se evidenciam os laços, mais, ou menos frouxos, entre os macroconjuntos e seus subconjuntos, como, por exemplo, o paralelismo funcional entre o advérbio e o adjetivo; c) a associação entre o significado do constituinte determinado e o tipo de advérbio passível de determiná-lo; d) o registro da multifuncionalidade de um mesmo item adverbial, tanto num mesmo nível da lingüístico, quanto em níveis diferentes – gramatical, semântico e discursivo; e) a indicação, ainda que implícita, de casos de gramaticalização/ discursivização de algumas formas adverbiais, que de caráter modalizador, são vistas por alguns autores como uma classe à parte. No que toca às “lições” dos gramáticos contemporâneos, mais, ou menos ligados à tradição greco-latina, podem-se salientar “avanços” como: a) maior consciência da complexidade de operações de natureza classificatória; b) uma insistência em demonstrar a importância e a eficácia da categorização de elementos e fatos lingüísticos àqueles que negam o seu valor; c) a preocupação de alguns desses mestres, em apresentar, preferentemente, taxonomias parciais, que reflitam o ponto de vista, o objetivo da classificação pretendida, que, por exemplo, se for o de descrever o estatuto morfológico das palavras de nossa língua, deve 143 levar em consideração aspectos de ordem lexical (processos de formação de palavras e seu grau de produtividade, tipos de formantes que compõem os vocábulos, etc.) e aspectos de ordem flexional (categorias de gênero, número, pessoa, tempo, etc.); d) a separação, sobretudo por parte dos seguidores de correntes modernas, entre advérbios propriamente ditos e termos modalizadores, restritos à dimensão do discurso, da enunciação; e) o reconhecimento da existência, no universo lingüístico, de um continuum entre seus diferentes componentes, o que, no caso do objeto de estudo em pauta, significa admitir que o advérbio é uma classe intermediária entre várias outras, embora Júlio Ribeiro (1884), prefira vê-la como uma transição entre o grupo de palavras variáveis e o de palavras invariáveis; f) o fornecimento de uma exemplificação mais rica e elucidativa, que passou a incluir dados de língua oral; g) a proposta de quadros distributivos mais funcionais e orgânicos, como, por exemplo, os de Vilela e Koch (2001) e de Neves (1999), em que a explicitação dos diferentes critérios utilizados e a indicação de seus desdobramentos servem para colocar certa ordem no caos observado em taxonomias mais antigas. A partir deste sumário, destinado a frisar alguns dos pontos relevantes das “lições” aqui apreciadas, cumpre-nos a obrigação de responder se houve, ou não, ao longo do tempo, algum avanço nas “lições taxonômicas” de nossos gramáticos, relativamente ao acervo lexical do português como um todo, e, de um modo especial, ao advérbio. Para não fugir à regra, podemos, mais uma vez, dizer sim. A par das deficiências, algumas das quais aqui apontadas, cumpre-nos fazer justiça a nossos mestres – de “ontem” e de “hoje” –, reconhecendo a contribuição que deram para esclarecer problemas lingüísticos tão intrincados. Contudo, reconheça-se, ainda estamos longe de ver solucionados, a contento, esse e outros problemas que vêm, de longa data, fustigando nossos lingüistas – o que, de certo modo, nos ajuda a repensar as exigências feitas aos alunos, no processo de ensino-aprendizagem de nossa língua. 144 Por fim, numa remissão ao título destas Considerações Finais, deixamos no ar a seguinte indagação: as formas adverbiais constituem um grupo lexical autônomo, ou não? Independentemente da resposta, a grande lição que se pode tirar desta viagem metalingüística por compêndios gramaticais de tempos distintos é a seguinte: mesmo que detectemos todos os traços suscetíveis de identificar uma determinada classe de palavras, é o nosso ponto de vista, e o objetivo que pretendemos alcançar que determinarão a sua relevância, ou não. À guisa de despedida, gostaríamos de esclarecer que, por menor que tenha sido a contribuição que procuramos dar para a historiografia lingüística, o trabalho aqui realizado nos demandou grandes esforços, ao mesmo tempo que acirrou o nosso desejo de estreitar, cada vez mais, os laços entre a academia e as instituições de ensino, principalmente as públicas, que, embora sejam, ainda, hoje, responsáveis pela educação da maior parte dos nossos jovens, são as que menos acatam os avanços alcançados pela ciência. Para selar o fim desta dissertação, retornemos, num movimento circular, ao nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, fazendo nosso o pedido que ele faz em sua famosa frase: “Antes peço a quem conhecer meus erros que os emende...” (OLIVEIRA, 1975, p. 125). 145 REFERÊNCIAS 1 GRAMÁTICAS SELECIONADAS PARA ANÁLISE 1.1 SÉCULO XVI BARROS, João de. Gramática da língua portuguesa. 3 ed. Org. de José Pedro Machado. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1957. BARROS, João de. 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