ISSN 2316 2953 fator vida Prevenção é saúde Publicação da federação Brasileira de hemofilia • Ano 03 • Edição 10 • abril-junho 2014 Longe das complicações Com a terapia de indução de imunotolerância, pessoas que desenvolvem o inibidor contra o fator, voltam a ter uma vida plena fatores cenário saúde Dra. Maria de Fátima Montoril, à frente da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do MS Eventos do Dia Mundial da Hemofilia relembram a importância da profilaxia A relação entre pacientes e médicos é essencial para um tratamento efetivo NESTE NÚMERO 12 tratamento Conheça a terapia de indução de imunotolerância, que possibilita eliminar o inibidor e voltar a fazer profilaxia 04 08 16 editorial Fatores Exemplo Com a palavra, a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) Entrevista com Dra. Maria de Fátima Montoril, à frente da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do MS Pedro Henrique, 10 anos, desenvolveu inibidor ao fator e vem vencendo a batalha com o apoio da família 22 26 30 cenário SAÚDE NA REDE Eventos do Dia Mundial da Hemofilia reforçam a importância da profilaxia e os avanços alcançados A relação entre médicos e pacientes é fundamental para que o tratamento seja efetivo Confira como foram os eventos que tiveram a participação da FBH e associações estaduais © Ana Paula de Paula / Arquivo pessoal abril - junho 2014 3 editorial Seguir em frente Enquanto me preparava para escrever o editorial da revista, surgiu uma discussão sobre o significado de uma palavra pouco usada em nosso dia a dia, mas bastante representativa no contexto em que vivemos. A palavra? Renitente. O significado? Persistente, obstinado, teimoso. É interessante observar o quanto a persistência – a tal renitência – de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas, é o principal combustível e um fator decisivo na conquista de objetivos e realização de grandes feitos. Celebramos em 17 de abril o Dia Mundial da Hemofilia, sempre com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a existência dessa desordem hemorrágica e ampliar o conhecimento sobre a hemofilia e os tratamentos disponíveis. E é com esse mesmo foco que a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) reconhece os avanços conquistados, mas segue na busca por melhores condições de tratamento e qualidade de vida para as pessoas com hemofilia e demais coagulopatias. Leia a entrevista com a nova coordenadora-geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Dra. Maria de Fátima Montoril, sobre os desafios relacionados ao tratamento das coagulopatias hereditárias. O assunto principal desta edição é a imunotolerância. Entenda melhor o que é e como é realizado o tratamento que deve ser feito pelos pacientes que desenvolvem inibidor. O importante é que existe tratamento, e ele é relativamente simples e faz com que pessoas que desenvolvem o inibidor contra o fator possam negativá-lo e voltem a realizar a profilaxia. A chance de eliminar o inibidor é em torno de 80%, e para isso é necessário o comprometimento dos profissionais, pacientes e familiares. Confira também o exemplo de pais e filhos que convivem com a situação e a cobertura dos eventos para marcar o Dia Mundial da Hemofilia e do Congresso da Federação Mundial de Hemofilia, realizado em maio na cidade de Melbourne, na Austrália. Tenham todos uma boa leitura! Tania Maria Onzi Pietrobelli Presidente da Federação Brasileira de Hemofilia ISSN 2316 2953 FATOR VIDA é uma publicação trimestral da Federação Brasileira de Hemofilia distribuída gratuitamente para pessoas com hemofilia, von Willebrand e outras coagulopatias hereditárias e profissionais da saúde. O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade de seus autores e não representa necessariamente a opinião da FBH. Jornalista responsável Roberto Souza (Mtb 11.408) Editor Rodrigo Moraes SUBEditorAS Samantha Cerquetani e Tatiana Piva Reportagem Olga Defavari e Vinícius Morais REVISÃO Paulo Furstenau Projeto Editorial Rodrigo Moraes Projeto Gráfico Luiz Fernando Almeida Designers Felipe Santiago, Leonardo Fial, Luiz Fernando Almeida e Willian Fernandes Tiragem 6.000 exemplares IMPRESSÃO Companygraf Av. Itália, 325, Sl. 204, São Pelegrino, Caxias do Sul – RS – 95010-040 54 3224.1004 [email protected] www.hemofiliabrasil.org.br 4 abril - junho 2014 Rua Cayowaá, 228, Perdizes | São Paulo - SP | CEP: 05018-000 11 3875-6296 | [email protected] www.rspress.com.br fatores abril - junho 2014 5 fatores “Manter conquistas é necessário, assim como é preciso ampliá-las” À frente da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do MS, Dra. Maria de Fátima Montoril destaca os desafios de sua gestão e melhorias previstas para as pessoas com coagulopatias POR Samantha Cerquetani Em dezembro, a hematologista Dra. Maria de Fátima Pombo Montoril assumiu a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde (CGSH/MS). Formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em gestão de hemocentros pela Universidade de Pernambuco (UPE), ela passou boa parte de sua vida profissional na Fundação Centro de Hemoterapia e Hematologia do Pará (Hemopa). Colaborou como médica e gestora, atuando como coordenadora do ambulatório de hematologia e diretora técnica, assumindo a presidência entre 2007 e 2011. Em entrevista à Fator Vida, a atual coordenadora-geral da CGSH/MS destaca quais serão os projetos e 8 abril - junhO 2014 melhorias para as pessoas com coagulopatias que deverão ocorrer nos próximos anos e como a parceria com a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) é importante para assegurar os direitos dos indivíduos com distúrbios hemorrágicos hereditários. Leia a seguir: Quais foram as principais conquistas no período em que atuou no Hemopa? Quando estive à frente da Fundação Hemopa, o órgão teve o reconhecimento pela excelência em gestão, com a certificação da Hemorrede Estadual nas normas da Organização Nacional de Acreditação (ONA/Ciclo 2009) e conquistou a Faixa Prata nos anos de 2007, 2008 e 2009 pelo Programa Estadual de Qualidade (PEQ/Pará). Além disso, foi reconhecido na categoria Faixa Ouro no mesmo programa, em 2010, ano em que também levou a Faixa Prata no Programa de Qualidade e Gestão do Governo Federal (PQGF). Quais os projetos e melhorias previstos para a hemofilia, von Willebrand e outras coagulopatias hereditárias no País que a senhora pretende implantar? Durante minha gestão promoveremos a atualização e consolidação das políticas relacionadas à atenção hematológica e hemoterápica, incluindo hemofilia e von Willebrand. Avançaremos também na construção e implementação dos sis© Ministério da Saúde / Divulgação fatores Na nova gestão, Dra. Maria de Fátima pretende consolidar as políticas relacionadas à atenção hematológica e hemoterápica temas de informações para a Hemorrede Pública Nacional, além de fomentar sua melhoria na qualidade técnica e gerencial, com reflexos no aumento da qualidade e segurança transfusional. A senhora pretende manter as políticas conquistadas na última gestão? Não se trata de conquistas de gestão, mas do alcance de metas políticas necessárias à melhoria da atenção à saúde das pessoas com coagulopatias, em uma luta contínua de médicos e demais tratadores, pacientes e governos. Manter conquistas é necessário, assim como é preciso ampliá-las. Qual a importância da parceria entre a FBH e a CGSH/MS? É uma parceria tão importante que pretendemos ampliá-la, pois neste ano haverá uma ampla discussão social referente à regulamentação da estrutura do Programa Nacional de Coagulopatias. A participação da FBH no processo é fundamental para estruturar e legitimar a proposta voltada à população com coagulopatias. Em sua opinião, qual a importância do controle social para a melhoria das políticas públicas? A participação da sociedade organizada tende sempre a ampliar a discussão sobre a assistência à saúde da população, não apenas em termos técnicos, mas principalmente abril - junhO 2014 9 fatores Dra. Maria de Fátima destaca a importância da parceria com a FBH “Durante minha gestão promoveremos a atualização e consolidação das políticas relacionadas à atenção hematológica e hemoterápica, incluindo hemofilia e von Willebrand” Dra. Maria de Fátima Montoril 10 abril - junhO 2014 na percepção da necessidade dessas populações. A consequência é a melhoria da assistência em níveis local e nacional, e o aperfeiçoamento da administração e regulamentação dessa assistência. A pressão social coopera com a efetivação de ações sistêmicas de governo, seja no fortalecimento de políticas públicas para o setor, seja na articulação parlamentar para a garantia de recursos necessários à ampliação da assistência, ou, ainda, na demanda para ajustes pontuais e correção de distorções na busca do direito à saúde. O Brasil avançou de 1 UI per capita para 3 UIs de fator VIII nos dois últimos anos - uma grande vitória, reconhecida inclusive internacionalmente. Sua gestão pretende aumentar ainda mais essas UIs per capita, visto que, pelos parâmetros da Federação Mundial de Hemofilia, a plena integração à sociedade ocorre quando se utiliza entre 5 UIs e 7 UIs per capita? É o próximo desafio. Alcançadas as 3 UIs per capita, é possível evitar o dano articular da artropatia hemofílica, evitando que as pessoas com a doença tenham deficiências motoras, fazendo uso de procedimentos como a profilaxia primária e secundária. É preciso manter o abastecimento dos fatores de coagulação. Com a ampliação do acesso das pessoas com coagulopatias a outras políticas assistenciais de saúde (odontologia, ortopedia, cirurgias etc.), seguirá o aumento de consumo, com a consequente maior necessidade de aporte orçamentário e capacidade de fornecimento de hemoderivados. Como a senhora acredita que estará o tratamento da hemofilia e outras desordens hemorrágicas em quatro anos no Brasil? Com a consolidação dos tratamentos profiláticos em todo o País, as pessoas com hemofilia tendem a ter uma vida plena para o exercício de suas atividades sociais. É prevista a expansão da indústria de hemoderivados, e com a queda de patentes, outros medicamentos deverão competir no mercado, promovendo a redução do custo de aquisição, por meio da maior competitividade em licitações. Além disso, é provável a expansão do uso de medicamentos pró-coagulantes de origem recombinante, garantindo maior disponibilidade de fatores e segurança ao tratamento. © Hemopa / Divulgação tratamento Alguns pais ficam apreensivos ao saber que o filho está com inibidor do fator de coagulação. A boa notícia é que atualmente o Brasil dispõe da terapia de indução de imunotolerância. O tratamento faz com que as pessoas com hemofilia que desenvolveram o inibidor contra o fator voltem a ter uma vida sem complicações após erradicá-lo. Cerca de 20% das pessoas com hemofilia A e 2% a 5% das pessoas com hemofilia do tipo B podem desenvolver anticorpos contra o fator VIII ou IX. Não é conhecido o motivo pelo qual alguns organismos desenvolvem o inibidor, mas sabe-se que ele surge mais comumente entre as 50 ou 100 primeiras infusões de fator administradas no paciente, seja no tratamento de demanda ou de profilaxia. Esses anticorpos inibem a atividade do fator utilizado para 12 abril - junhO 2014 Longe de complicações Terapia de indução de imunotolerância, indicada para pessoas que desenvolvem o inibidor contra o fator, tem chance de sucesso em torno de 80% © Shutterstock tratamento normalizar a coagulação. O nível ou título do inibidor é medido em unidades Bethesda (UB), e é considerado baixo, se for menor que 5 UB, e alto quando maior que 5 UB. A dose do fator e a frequência do tratamento podem aumentar dependendo da oscilação do título do inibidor. “Para estancar os sangramentos dos pacientes que desenvolvem o inibidor do fator, existem medicamentos conhecidos como agentes de bypass, mas o tratamento adequado e de primeira opção para esses pacientes é a imunotolerância, cujo objetivo é erradicar o inibidor”, explica a hematologista Dra. Sandra Sibele, responsável técnica pelo Hemocentro da Paraíba. Os agentes de bypass são medicamentos que agem de maneira diferente na cadeia de coagulação. São eles o CCPA, de nome comercial FEIBA®, ou o fator VII ativado, de nome comercial NovoSeven®. Alguns pacientes têm resposta de coagulação mais efetiva com um e outros com o outro medicamento - a resposta depende de cada organismo. O medicamento usado em cada paciente deve ser aquele que traz a melhor e mais rápida resposta de coagulação. Com o tratamento de imunotolerância, o paciente tem 80% de chance de erradicar o inibidor e voltar a utilizar o fator de coagulação para controlar os sangramentos, passando a realizar o tratamento de profilaxia, para prevenir quaisquer sangramentos e sequelas. De acordo com a hematologista pediátrica Dra. Clarissa Barros Ferreira, do Hemocentro do Estado do Rio Grande do Sul (HEMORGS), o tratamento consiste na reposição, três vezes por semana, de doses mais elevadas de fator do que as do tratamento de profilaxia. Se necessário, em determinado momento, a dose e a frequência das infusões podem ser aumentadas, conforme o protocolo brasileiro. “O tratamento tenta produzir tolerância ao fator por meio da exposição regular e contínua, por um mecanismo de ‘insistência’, como se dissesse ao sistema imunológico: ‘se esse fator está sempre presente no meu corpo, ele deve me fazer bem, então não devo produzir anticorpos contra ele’. Esse tratamento deve ser seguido por um período de pelo menos 33 meses, e a avaliação do inibidor é feita mensalmente ou a cada dois meses”, relata Dra. Clarissa. Durante esse período, quando o paciente tiver sangramentos, o tratamento é realizado com um dos agentes de bypass e o uso do fator de coagulação continuará presente para erradicar o inibidor. Dessa maneira, o tratamento da imunotolerância consiste no uso dos dois medicamentos em alguns momentos: um para erradicar o inibidor e outro para conter o sangramento. Não há limite de idade para a realização do tratamento, mas ambas as especialistas destacam que é melhor iniciar a imunotolerância o quanto antes, ou seja, assim que descoberto o desenvolvimento do inibidor, pois isso aumenta a chance de sucesso do tratamento. Logo depois de erradicado o inibidor, a pessoa com hemofilia volta a utilizar o fator e realizar a profilaxia com o fator de coagulação como os demais pacientes, tendo uma vida independente e autônoma. Desde 2011, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a oferecer a terapia de indução de imunotolerância para tratamento da hemofilia do tipo A. abril - junhO 2014 13 tratamento Acima, Matheus, sete anos, realiza terapia há nove meses. Ao lado, Ryan, três anos, está com inibidor quase 'zerado' As Dras. Sandra e Clarissa reforçam a importância do Centro de Tratamento de Hemofilia (CTH) para detectar o inibidor por meio de exames periódicos e informar e explicar aos pais e pacientes a necessidade, importância e benefícios deste, afim de estimular a adesão do tratamento. “É preciso investir no treinamento de profissionais, para proporcionar o melhor diagnóstico e o melhor tratamento. Atualmente, é possível identificar a hemofilia na criança quando ela ainda é um bebê, o que facilita o tratamento. O panorama atual é totalmente diferente em relação ao de alguns anos atrás, e hoje podemos fazer a diferença na vida dessas pessoas”, expõe Dra. Sandra. Já Dra. Clarissa destaca a atuação dos pais: “O principal obstáculo é o fato de os pais ficarem com pena ou receio de realizar a infusão nas crianças, dificultando a adesão ao tratamento em algumas situações. Por isso, é 14 abril - junhO 2014 de extrema importância que sejam explicados todos os detalhes do tratamento e os benefícios deste, a fim de estimular a adesão”. Vale ainda destacar que, para o tratamento ser bem-sucedido, não pode ser suspenso sem recomendação médica, pois isso pode acarretar o aumento do título do inibidor, o que é bastante prejudicial à saúde dessas pessoas. O paciente e seus familiares devem ter um relacionamento de confiança com os profissionais que realizam o tratamento, tirando dúvidas sempre que surgirem, procurando se informar sempre mais sobre como realizar o tratamento de modo saudável e com qualidade de vida. O vínculo entre os profissionais e o paciente e seus familiares é fundamental para que o tratamento transcorra sem intercorrências e de modo tranquilo. Após um amplo estudo, que contemplou mais de 10 trabalhos © Ana Paula de Paula / Arquivo pessoal © Luciane França / Arquivo pessoal tratamento “Esse tratamento deve ser seguido por um período de pelo menos 33 meses, e a avaliação do inibidor é feita mensalmente ou a cada dois meses” Dra. Clarissa Barros Ferreira, hematologista do HEMORGS científicos, a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) contribuiu neste ano com o Protocolo de Indução à Imunotolerância para pessoas com hemofilia A no Brasil, solicitando a inclusão de todos os pacientes no documento, independentemente de idade e de há quanto tempo tenham desenvolvido o inibidor. O tratamento da imunotolerância é uma chance de não acontecer essa complicação da hemofilia, uma oportunidade de curar essa resposta imunológica equivocada do organismo. É um tratamento com elevadíssima chance de sucesso, além de curto. Afinal, o que são três anos em relação a uma vida inteira de profilaxia, independência e liberdade? Além disso, é comprovado que pacientes sem inibidor têm menos riscos de morte e de sequelas, e ainda custam menos aos cofres públicos. Tão importante quanto esse tratamento, a FBH solicitou que os pacientes que não obtiverem sucesso com a imunotolerância sejam tratados com profilaxia com agentes de bypass, pois todos têm direito à profilaxia, sobretudo aqueles que não puderam erradicar o inibidor após o tratamento da imunotolerância. Convivendo com o inibidor Ana Paula de Paula, mãe de Ryan, de três anos, conta que aos quatro meses o menino apresentou alguns hematomas e foi encaminhado ao hematologista do Hemocentro de Porto Alegre, que identificou a hemofilia A grave, após vários exames. “Foram tempos difíceis, ele era muito pequeno, teve algumas internações com grandes sangramentos e dificuldade nas punções, e aos dois anos foi diagnosticado com inibidor.” Antes de iniciar o tratamento de imunotolerância, foi cancelado o uso do fator VIII por alguns meses para que baixasse o inibidor, enquanto o menino fazia uso de agentes de bypass. Depois que começou a imunotolerância, Ryan teve um sangramento no pescoço, começando a utilizar o agente de bypass três vezes por semana, juntamente com o fator VIII, relembra a mãe, moradora de Capela de Santana (RS). O uso do bypass junto com o fator VIII é para evitar sangramentos, já que estes podem prejudicar o resultado da imunotolerância. “O tratamento requer muita disciplina e dedicação. As punções foram mais difíceis no começo, mas com muita calma, carinho e dedicação tudo foi melhorando com o tempo. Ele entendeu que tudo o que fazemos é para seu bem.” O inibidor está bem baixo, quase zerando, e ele tem uma rotina normal. Utiliza o medicamento às segundas, quartas e sextas-feiras, em casa. Nesses dias, aproveita para jogar bola, deixando para o resto da semana atividades mais leves. Ana Paula acrescenta que os centros de tratamento e a equipe multidisciplinar são fundamentais em todos os sentidos da saúde física e psicológica tanto das pessoas com hemofilia quanto dos familiares. “São eles que fornecem os medicamentos, tiram todas as nossas dúvidas e fornecem instruções necessárias para uma vida de qualidade.” Já Luciane França conta que seu filho Matheus, sete anos, foi diagnosticado com hemofilia aos dois anos, quando surgiram manchas roxas e os machucados demoravam a cicatrizar. “Como tenho um irmão com hemofilia, logo descobrimos que meu filho também tinha o distúrbio”, diz. O menino iniciou o tratamento de imunotolerância há nove meses, quando os pais foram avisados de que o fator não estava fazendo efeito na contenção das hemorragias. “Hoje vamos ao CTH uma vez por semana, e três vezes por semana realizamos o tratamento em casa com a ajuda de um enfermeiro”, relata Luciane. Para ela, o tratamento adequado tornou os sangramentos menos frequentes. “Confesso que temia que o inibidor não baixasse, mas hoje ele tem uma rotina quase como à de qualquer criança. Realizamos exames com frequência e quando viajamos levamos a medicação para não ter risco de o tratamento regredir”, completa. abril - junhO 2014 15 EXEMPLO Com hemofilia tipo A grave, o garoto desenvolveu inibidor contra o fator VIII, mas está vencendo a batalha com o apoio da família POR Vinícius Morais Fã do Corinthians, Pedro Henrique Vieira Maia, 10 anos, tem como um de seus ídolos o melhor jogador de futebol do mundo em 2013, o português Cristiano Ronaldo. Admirador do esporte mais popular do planeta, o garoto sonha em ser jogador e assiste às partidas entre Real Madrid, time do português, e Barcelona, de Lionel Messi e Neymar Jr., além de acompanhar com frequência os principais campeonatos nacionais e internacionais. Diagnosticado com hemofilia A grave, Pedro Henrique desenvolveu inibidor, por isso faz o tratamento de imunotolerância para erradicar o inibidor do fator VIII, que atualmente se encontra ‘zerado’ graças à eficiência do tratamento, para alívio dos pais, a dentista Laura Maria Vieira Maia e o empresário Carlos Eduardo Maia, ambos com 39 anos. 16 abril - junho 2014 A partida do menino Pedro Henrique contra a hemofilia começou quando os médicos suspeitaram do distúrbio hemorrágico hereditário ainda durante seu parto. Isso porque após o corte no cordão umbilical, o recém-nascido apresentou um sangramento contínuo na região do umbigo, sem razão aparente. Entretanto, o tratamento foi iniciado apenas quatro meses depois, quando os pais perceberam o surgimento de grandes hematomas nos locais onde seguravam o bebê. “No Centro de Tratamento de Hemofilia (CTH) fui bem instruída e amparada, e meu filho teve um atendimento multiprofissional com psicólogas, enfermeiras e fisioterapeutas, além dos médicos, o que me ajudou a compreender a importância do comprometimento com o tratamento para termos resultado positivo”, recorda Laura. © Paulo César de Souza/Arquivo pessoal EXEMPLO Complicações e cuidados No entanto, pouco tempo depois da descoberta da hemofilia, ocorreu um segundo susto para a família: o garoto foi identificado com inibidor, situação em que o corpo produz anticorpos contra o fator VIII, prejudicando o tratamento da hemofilia (veja detalhes na seção Tratamento, na página 12 desta edição). “Esse diagnóstico foi ainda mais chocante para mim, nos deixou mais preocupados, pois não sabíamos o que poderia acontecer com ele a partir daquele momento”, conta Laura. A mãe do garoto relembra que ele estava com dois anos e meio quando aconteceu um sangramento na panturrilha, e após aplicação do fator, o quadro piorou. Esse tipo de sangramento é considerado grave porque pode lesionar os nervos. Como não aconteceu o controle do sangramento, no segundo dia os pais retornaram ao hospital, onde foi cogitada pela primeira vez a possibilidade do surgimento do inibidor. O teste que comprovou a suspeita dos médicos foi realizado no terceiro dia de internação. O tratamento de imunotolerância começou imediatamente. Os testes realizados mostraram índices de inibidor na faixa de 38 UB/mL (Unidade Bethesda, que mede a quantidade de anticorpos que atacam o fator). A partir da contagem e análise da quantidade de anticorpos, foi introduzido tratamento específico chamado de imunotolerância com o objetivo de eliminar os anPedro Henrique desenvolveu inibidor, mas graças ao tratamento se encontra ‘zerado’ ticorpos que o organismo de Pedro Henrique desenvolveu contra o fator VIII. No período de tratamento, a remissão do inibidor foi bastante eficiente, caindo progressivamente para índices de 12.4 UB, 1.68 UB e zerando logo em seguida. A remissão do inibidor ocorreu em um ano e quatro meses após o início do tratamento de imunotolerância. “Depois que aumentamos a dosagem do fator para todos os dias, ele ficou nove meses sem sangramento”, diz Laura. Para controle dos índices, ele realiza a medição do inibidor mensalmente. O tratamento é realizado diariamente, durante a semana, às 6h30, pois ele frequenta a escola no período da manhã. Esse tratamento, como qualquer outro, exige comprometimento dos pacientes e familiares. “O importante é não desistir. Eu realizo a infusão do fator dele todos os dias e sabemos que estamos fazendo o melhor para que ele tenha qualidade de vida”, explica. Além do apoio dos pais, ele conta com a ajuda da irmã mais nova, Maria Eduarda Vieira Maia, de oito anos, chamada carinhosamente de Duda, a ‘mãezinha’ que vigia e cuida dele. A mãe comenta que se sente até surpreendida com a dedicação de Duda ao irmão. “Talvez isso se deva à segurança e naturalidade com que lidamos com a hemofilia e o tratamento, que só a boa informação pode trazer.” O grito da torcida De rotina ativa, o estudante é falante e está sempre rodeado de amigos, que respeitam os seus limites e colaboram para que ele tenha uma vida mais saudável. Entre os melhores amigos estão os garotos Gustavo, Dudu, Vinícius e Vitor. © Laura Maria Vieira Maia/Arquivo pessoal abril - junhO 2014 17 EXEMPLO A família de Pedro o incentiva na realização de diversas atividades Em 2012, pais e filhos desse grupo viajaram para conhecer Ilhéus (BA) e se divertiram bastante. Pedro pratica semanalmente atividades físicas: uma sessão de hidroterapia, indicada por um fisioterapeuta do CTH, e duas aulas de futebol de salão. Seus parentes fazem de tudo para não impedi-lo de participar de qualquer atividade por causa do distúrbio. “O futebol tem feito muito bem para ele e ajudado no desenvolvimento. Um cuidado que eu e meu marido temos é de nunca frustrar um sonho dele por causa da hemofilia. Esta faz parte de sua identidade e não é um bicho de sete cabeças, desde que tomadas as precauções”, diz Laura, ao se lembrar do receio da família ao perceber o gosto do menino pelo esporte. O menino acredita que, após erradicar o inibidor, sua vida ficará 18 abril - junho 2014 “O importante é não desistir. Eu realizo as infusões do fator dele todos os dias e sabemos que estamos fazendo o melhor para que ele tenha qualidade de vida” Laura Maria Vieira Maia, mãe de Pedro Henrique completa: “Vai melhorar em tudo, nas brincadeiras, na escola, na possibilidade de realizar meu esporte preferido, o futebol, sem medo de nada, sem medo de ser feliz. E para outros companheiros digo que não desistam – o caminho é cansativo, mas vale muito a pena, o futuro compensa”. O pai de Pedro Henrique se diz animado com as perspectivas para seu filho mais velho: “O futuro será brilhante, precisamos lutar sempre, e esperamos de verdade oferecer ao nosso filho uma qualidade de vida plena”. Havia também o medo de que Pedro, ao crescer, não se desenvolvesse bem ou tivesse problemas de autoestima e segurança. Sendo assim, ele faz acompanhamento psicológico e isso colaborou para que ele lide bem com a situação e se desenvolva bem emocionalmente. Sua mãe comenta que hoje o menino lida muito bem com a situação: “Ele tem uma vida normal para a idade, e precisa apenas das infusões de fator; eventualmente ocorre alguma intercorrência, mas é resolvida rapidamente”. Questionada sobre o desenvolvimento de novos tratamentos para a hemofilia, a família de Pedro se mostra muito esperançosa. “Essa é a grande expectativa de todas as mães de pessoas com distúrbios hemorrágicos hereditários. Acredito sim, que teremos grandes evoluções no futuro. Meu filho brinca que poderia tomar um comprimido de manhã e outro à noite e tudo estaria resolvido. Quem sabe um dia?” Pensando no amanhã, a mãe também diz que “os pais sempre esperam que as crianças realizem todos os seus sonhos sem medos, e principalmente sem quaisquer limitações”. © Laura Maria Vieira Maia/Arquivo pessoal cenário Conscientização e conquistas FBH participa de eventos no Dia Mundial da Hemofilia para relembrar a importância da profilaxia e os avanços alcançados POR Samantha Cerquetani Desde 1989, o Dia Mundial da Hemofilia é celebrado em 17 de abril nos mais de 100 países em que a Federação Mundial de Hemofilia (WFH, sigla em inglês) possui representação. Neste ano, para conscientizar sobre a necessidade de acesso das pessoas com coagulopatias ao tratamento profilático, a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) realizou um evento junto à Fundação Hemocentro de Brasília (FHB) com a participação das 26 associações estaduais. A profilaxia é o tratamento preventivo conquistado no País por intervenção da FBH, em parceria com o Ministério da Saúde, Ministério Público e Tribunal de Contas da União, porém, menos de 50% das pessoas com coagulopatias têm acesso a esse tratamento até o momento. O evento teve a palestra da presidente da FBH, Tania Maria Onzi Pietrobelli, sobre os avanços no tratamento da hemofilia no Brasil e direito à vida plena. Ela relatou as 22 abril - junho 2014 conquistas quanto ao aumento na aquisição de fatores de coagulação, estando disponíveis no Ministério da Saúde (MS) 3.9 UIs per capita, que possibilitam os tratamentos de profilaxia primária, secundária, imunotolerância e dispensação de 12 ou mais doses domiciliares para que as pessoas com hemofilia e familiares possam ter uma vida autônoma e independente, bem como exercer seus direitos à cidadania. Por outro lado, a presidente da FBH foi incisiva ao demonstrar as diferenças entre os Centros de Tratamento de Hemofilia: “Enquanto a Fundação Hemocentro de Brasília tem a utilização de 7.22 UIs per capita, comparável a países como França e Alemanha, temos estados com menos de 0.50 UIs, ainda com tratamento de sobrevivência”. Conclamou a todas as associações para exercerem seu papel de controle social e cobrarem de seus CTHs e governos a estruturação física e de recursos humanos e a implantação imediata dos tratamentos disponibilizados pelo MS. “O Brasil é o único país em que o Ministério disponibiliza a medicação em quantidade para as pessoas terem uma vida plena, sem sequelas e dores, mas os CTHs não a utilizam.” Enquanto isso, os pacientes estão desenvolvendo sequelas e convivendo com as dores provocadas pela falta de tratamento, pois a única forma de preservar as articulações é com a profilaxia. Vale lembrar que tais tratamentos estão disponíveis há três anos. A coordenadora-geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Maria de Fátima Pombo Montoril, apresentou dados sobre as melhorias alcançadas pelo MS e destacou que continuará avançando com a parceria do controle social. A diretora-presidente da Fundação Hemocentro de Brasília, Dra. Beatriz Mac Dowell Soares, explanou sobre os avanços no Distrito Federal, a importância da estruturação física, © Mariana Battazza Freire / Arquivo pessoal cenário e recursos humanos do CTH e colocou-se à disposição para multiplicar com os estados esse modelo de gestão e destacou também que é o único Centro onde é realizada a entrega domiciliar dos fatores de coagulação. Já o chefe do Núcleo de Laboratórios Especiais da FHB, Marcus Araújo Xavier, falou sobre o novo paradigma no DF. Em seguida, os presentes realizaram um debate e visitaram o ambulatório. Mariana afirma que o evento de 17 de abril em Brasília e todos os outros que aconteceram no Brasil tiveram o propósito de conscientizar a população em geral sobre a hemofilia e seus tratamentos. “Assim como trazer ao conhecimento das pessoas a importância do diagnóstico adequado e do tratamento profilático, mudando conceitos ou paradigmas, já que hoje as pessoas com tratamento preventivo têm uma vida saudável e plena e com oportunidades como todos os cidadãos”, completa. Após o evento, 500 balões coloridos foram soltos na frente do Hemocentro. “A iniciativa representou a esperança de uma vida plena, autônoma e livre a todas as pessoas com hemofilia, por meio da profilaxia”, explica Mariana. Para Tania, Acima, construção da portaria de coagulopatias; FBH e Sonia Guimarães entregam prêmio “Leandro Guimarães” para Dra. Beatriz Mac Dowell; FBH libera 500 balões no Dia Mundial da Hemofilia. Ao lado, Ministério da Saúde e FBH recebem premiação da WFH. Abaixo, federações de todo o mundo se reúnem no Congresso da WFH abril - junhO 2014 23 cenário Tania Pietrobelli recebe prêmio do presidente da WFH, Alain Weill o Brasil tem muito a comemorar, pois se destaca pelo rápido avanço no aumento do quantitativo de fatores de coagulação, que possibilitou a implantação dos tratamentos de profilaxia e imunotolerância, e aumento na dispensação das doses domiciliares. “Neste ano tivemos muitas ações cobrando maior compromisso dos estados, e todas as associações do Brasil puderam participar. Hoje sabemos que quando o gestor quer fazer a mudança, é possível.” Nos dias 15 e 16 de abril, a FBH e representantes de 21 associações estaduais também participaram, junto à Comissão de Assessoramento Técnico (CAT) do Ministério da Saúde e vários profissionais de todo o Brasil, da discussão sobre a Portaria que institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Programa Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Coagulopatias Hereditárias, a fim de avançar nas melhorias do tratamento aos pacientes junto aos estados. “O fato de as políticas públicas poderem ser construídas em parceria com os gestores, profissionais da saúde e controle social foi um exemplo para o País. As associações deram suas contribuições a partir de sua vivência, e foi formado um grupo de trabalho para a finalização da Portaria. Por isso, o tratamento da hemofilia, von Willebrand e outras coagulopatias avançou tanto”, afirma Tania. Ela também destaca que essa política dará ferramentas para que a FBH possa cobrar compromisso dos estados na efetivação dos tratamentos implantados pelo MS nos últimos anos, e que estes cheguem a todos os pacientes, independente de onde residam e da condição social. 24 abril - junho 2014 Congresso Mundial de Hemofilia Entre 11 e 15 de maio, ocorreu o Congresso da Federação Mundial de Hemofilia (WFH World Congress 2014), em Melbourne, na Austrália. Durante o evento, a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) – representada pela presidente, Tania Maria Onzi Pietrobelli, e a vice-presidente, Mariana Battazza Freire –, a Comissão de Assessoramento Técnico em Coagulopatias do Ministério da Saúde e a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados, representadas respectivamente pelos hematologistas Dr. Guilherme Genovez e Dra. Maria de Fátima Pombo Montoril, foram premiadas pelo grande avanço ocorrido no tratamento da hemofilia no País. Por meio da intervenção da FBH, o Ministério da Saúde triplicou a aquisição dos fatores de coagulação, o que permitiu a implantação dos tratamentos da profilaxia primária e secundária, da imunotolerância e da dispensação de fatores de coagulação para tratamento domiciliar, possibilitando que as pessoas com hemofilia tenham uma vida plena, autônoma e independente. Porém, apesar dessa disponibilidade de medicamentos pró-coagulantes do Ministério da Saúde, © WFH / Divulgação © Mariana Battazza Freire / Arquivo pessoal cenário “Em reconhecimento à excepcional contribuição por promover o cuidado e o tratamento das pessoas com hemofilia e outras desordens hemorrágicas no Brasil.” a maioria dos Centros de Tratamento de Hemofilia (CTHs) ainda não está proporcionando o tratamento adequado para as pessoas com hemofilia. A ação conjunta da FBH com o Ministério Público e Tribunal de Contas da União comprovou ao Ministério da Saúde que a distribuição dos fatores de coagulação para uso preventivo proporciona economia tanto para os cofres públicos como para pacientes e familiares, devido à redução de aposentadorias por invalidez e gastos com cirurgias de alta complexidade para tratamento de artroses e outros problemas ortopédicos e articulares causados pelas hemorragias quando não há um tratamento preventivo. “Muitos pacientes ainda não têm acesso ao tratamento adequado, apesar da disponibilidade. Esperamos que essa premiação seja um estímulo às equipes multiprofissionais que ainda não aderiram à prescrição do tratamento profilático, e que, assim como conquistamos grande avanço junto ao Ministério da Saúde, que nos torna uma referência para muitos países, alcancemos os mesmos resultados junto aos CTHs. Para isso necessitamos do comprometimento dos tratadores e das pessoas com hemofilia”, esclarece Tania. Para Mariana, o reconhecimento internacional trará mais visibilidade para a hemofilia no cenário nacional, e todos os atores envolvidos na melhoria do tratamento das pessoas com coagulopatias – controle social, comunidade médica e Governo – trabalharão com mais empenho, certos de que o trabalho traz bons resultados e que as conquistas sempre valem a pena. Para Mariana, essa foi uma grande oportunidade para que todos pudessem expor suas experiências em relação ao tratamento atual, suas necessidades, dificuldades e demandas necessárias para que sejam incluídas na Portaria de Atenção às Pessoas com Coagulopatias. “Foi uma excelente oportunidade de participar democraticamente de uma ação histórica, que determinará na legislação quais as atribuições do Governo nas esferas federal, estadual e municipal”, relata. Após as apresentações do MS e da FBH, as discussões foram realizadas em cinco grupos heterogêneos pré-programados e dirigidos por profissionais experientes na área de criação de Portarias de patologias para o Ministério. Todas as discussões e propostas geraram um documento a todos os presentes posteriormente. Um grupo de trabalho foi eleito e este trabalhará em um único documento com sugestões de alterações da Portaria para enviar ao MS. “Todas as sugestões e discussões foram muito produtivas e enriquecedoras, de modo que tanto o Governo quanto os tratadores, gestores e o controle social foram beneficiados, e, no final de todo o processo, os maiores beneficiados serão as pessoas com coagulopatias”, explica Mariana. abril - junhO 2014 25 saúde Relação essencial Para um tratamento efetivo, o convívio entre médicos e pacientes pode fazer a diferença em muitas vidas POR Olga Defavari A rotina de exames e idas aos Centros de Tratamento de Hemofilia (CTHs) é frequente na vida das pessoas com coagulopatias. E a relação entre médicos e pacientes é fundamental para que o tratamento funcione da melhor maneira. Esse vínculo envolve confiança e responsabilidade de ambos os polos. Para a hematologista pediátrica Dra. Ana Paula Marques, do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti (Hemorio), o papel dos profissionais de saúde em relação aos pacientes que têm hemofilia e seus familiares é acolher, educar e construir uma relação de confiança. “A quantidade de informação a ser transmitida em uma primeira consulta é grande. Quando pacientes e familiares são bem acolhidos pelo médico e demais membros da equipe, essas informações vão sendo reforça- 26 abril - junhO 2014 das e absorvidas pouco a pouco e de forma menos traumática, e acredito que a sensação de acolhimento e confiança vai aumentando com o tempo.” Ana Paula reforça ainda que a equipe precisa trabalhar em conjunto e passar informações semelhantes para evitar a sensação de insegurança perante a indicação da profilaxia ou qualquer outro tratamento. O hematologista e ex-coordenador da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Dr. Guilherme Genovez, concorda: “A motivação do paciente em aderir ao tratamento está diretamente ligada ao nível de conhecimento que ele tem de sua condição de saúde, tanto do tratamento quanto das complicações do não tratamento”. Especializada em lidar com os pequenos, Ana Paula lembra a importância da clareza quanto ao que pode ou não acontecer durante o tratamento no período em que os pais descobrem que o filho tem qualquer coagulopatia. “São muito importantes o momento do diagnóstico e os primeiros anos do tratamento, para sedimentar uma boa relação da família e do paciente com o distúrbio hemorrágico hereditário no futuro.” Ela também reforça que é nesse momento que o profissional pode semear uma mensagem positiva, mostrando os avanços no tratamento e a possibilidade de uma vida plena, com a profilaxia primária, por exemplo. Ainda pensando nas crianças, a especialista lembra que nas pri© Shutterstock saúde meiras aplicações de fator, o ambiente humanizado favorece muito uma experiência positiva. “Em um ambiente acolhedor, pais e crianças se sentem mais à vontade, e o carinho e a paciência da enfermagem, principalmente com crianças pequenas e de difícil acesso venoso, atenuam o sofrimento das primeiras aplicações.” Outro ponto importante nessa relação é o incentivo à profilaxia por parte dos médicos. “Deve-se incentivar o conhecimento sobre o distúrbio e estimular a infusão de fator por familiares e futuramente pelos adolescentes”, lembra Ana Paula. Para Genovez, é a relação de credi- bilidade e confiança que ajudará o paciente a ser mais independente: “O contato físico e afetivo entre o paciente e as equipes envolvidas é crucial. Logicamente isso não será uma política assistencialista, mas um encaminhamento para o autocuidado e a libertação do paciente, dando-lhe autonomia para se cuidar com responsabilidade”. Além de transmitir as informações necessárias e incentivar a profilaxia, é de extrema importância nessa relação o olhar atento dos especialistas também às demandas psicológicas. “Precisamos nos atentar a questões relacionadas à autoestima e sentimentos de culpa, que podem indicar necessidade de suporte psicológico para pais e pacientes”, alerta Ana Paula. Percalços no caminho Uma das principais dificuldades apontadas pelos médicos para estabelecer essa relação de proximidade é o curto tempo de duração das consultas, causado pela sobrecarga de pacientes. Ambos os profissionais entrevistados concordam que para estabelecer esse elo é preciso que o médico disponha de tempo para explicar, esclarecer e ouvir pacientes e familiares. Ana Paula acrescenta que, além da disponi- abril - junhO 2014 27 saúde bilidade, é necessário encontrar o tom adequado para cada caso: “Há famílias com dificuldade de adesão ao tratamento por questões puramente socioeconômicas e outras em que se percebe clara negligência familiar. Esses casos merecem atenção redobrada, e a atuação de assistentes sociais ou psicólogos pode fazer toda a diferença”. Também é um desafio para os profissionais lidar com pacientes adolescentes, período de natural contestação pelo qual todos os jovens passam, e quando eles apresentam maior resistência ao tratamento – na infância, quando os pais são os responsáveis pelo tratamento, a adesão é maior. Genovez acredita que as limitações em algumas atividades, como futebol, skate e lutas marciais, são os principais motivos que levam à resistência e 28 abril - junhO 2014 “Deve-se incentivar o conhecimento sobre o distúrbio e estimular a infusão de fator por familiares e futuramente pelos adolescentes” Ana Paula Marques, hematologista do Hemorio negação. Por isso, é tão importante um vínculo forte entre o paciente e o tratador, e a compreensão do médico em relação ao seu paciente e suas possíveis limitações, descobrindo juntos maneiras mais saudáveis de lidar com elas. “A educação desde a infância, tanto dos pacientes como dos familiares, reforçando uma relação positiva com a hemofilia e evitando a superproteção, resulta em menor resistência ao tratamento”, pontua. Por se tratar da necessidade de um tratamento contínuo e ininterrupto, a relação médico-paciente deve ser constantemente cuidada e alimentada, e a responsabilidade cabe a ambos. A adesão e o sucesso do tratamento dependem do quanto o médico e o paciente estão dispostos a investir na relação e fazer com que ela seja promissora. © Thiago Teixeira / RS Press © Cynthia de Souza Meyrelles / Arquivo pessoal © Allan Luiz S. de Araújo / Arquivo pessoal saúde O outro lado A dermatologista Cynthia de Souza Meyrelles, 38, descobriu que o filho Bernardo tinha hemofilia aos seis meses, depois de uma vacina intramuscular na coxa que causou um grande hematoma de difícil resolução. Ela lembra com gratidão o encontro com a especialista Ana Paula. “Iniciamos a consulta com choro e terminamos com muita esperança. Deus é perfeito, colocou em nossa vida uma pessoa muito especial, que nos ajuda a encarar nossa realidade de forma clara e com muito amor.” Ela se diz bastante segura em relação à profilaxia primária domiciliar que o pequeno iniciou aos dois anos, e afirma que sempre que os pais têm dúvidas, Ana Paula atende prontamente. “Mesmo sendo médica, com prática de nove Da esquerda para a direita: o hematologista e ex-coordenador da Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Guilherme Genovez; Rubens, três anos, e Allan Luiz, 13, que tiveram apoio da Dra. Ana Paula anos de profissão e conhecimento técnico, minha relação com a doutora Ana Paula é estritamente de uma mãe com suas preocupações e receios. Ela me dá um ótimo retorno, nossa relação é a melhor escolha”, conta. A dona de casa Lucilia Lourenço, 35, é mãe do Rubens, que hoje tem três anos. A hemofilia foi identificada também aos seis meses, após ele bater a cabeça. A mãe aposta em uma relação de proximidade com a médica para oferecer o melhor ao filho. “O mais importante é a relação de amizade – a qualquer horário ela me atende para esclarecer as dúvidas com a maior paciência.” Lucilia também destaca a confiança transmitida pela profissional: “Eu tinha medo de deixá-lo ir pra escola, de sair na rua, mas ela me disse que ele deveria ter uma vida normal, bastante ativa. A lealdade nessa relação é essencial”. Adolescente, Allan Luiz Souza de Araújo, 13, concorda que realmente hoje é mais difícil conviver com a hemofilia, e justifica: “Para mim é mais difícil, porque meus amigos ficam me chamando para jogar bola e andar de skate, e às vezes tenho que recusar, porque meu braço e cotovelo doem”. O jovem faz a aplicação sozinho em casa e conta que melhorou muito quando começou a se tratar com Ana Paula. “Ela sabe explicar a importância do fator e o que é o melhor para mim.” E o garoto já tem opinião formada sobre os atributos de um bom médico: “Tem que dar atenção, carinho e respeito, além de saber explicar o que está acontecendo e me escutar – não chegar e jogar na cara, como muitos fazem”. abril - junhO 2014 29 NA REDE Celebrando o Dia Mundial da Hemofilia No Dia Mundial da Hemofilia, 17 de abril, várias associações da FBH aproveitaram a data para relembrar os avanços no tratamento no País e a importância da profilaxia para manter a qualidade de vida. Confira nas próximas páginas algumas imagens de encontros realizados em todo o País. 1 2 3 1- Associação dos Hemofílicos do Estado do Ceará (AHECE) 2- Associação dos Hemofílicos de Alagoas 3- Associação das Pessoas com Hemofilia do Interior do Estado de São Paulo (APHISP) 4- Centro dos Hemofílicos do Estado de São Paulo (CHESP) 5- Sociedade de Hemofílicos da Paraíba 4 30 abril - junhO 2014 5 © Imagens enviadas pelas respectivas associações NA REDE 6 7 8 6- Centro dos Hemofílicos do Estado do Acre (CHESAC) 7- Associação dos Hemofílicos do Estado do Piauí (AHEPI) 8- Associação Paraense de Portadores de Hemofilia e Coagulopatias Hereditárias (ASPACH) 9- Associação dos Hemofílicos e Pessoas com Doenças Hemorrágicas Hereditárias (AHPAD) 10- Associação dos Hemofílicos do Estado de Santa Catarina (AHESC) 11- Associação dos Hemofílicos do Rio Grande do Sul 9 10 11 32 abril - junhO 2014 © Imagens enviadas pelas respectivas associações NA REDE 12 13 12 – Associações participam de portaria de coagulopatias 13- Fundação Hemocentro de Brasília 14-Associação Baiana dos Hemofílicos (ABHE) 15- Centro dos Hemofílicos do Estado de Minas Gerais (CHEMINAS) 16- Associação Paranaense dos Hemofílicos (APH) 17- Associação de Pernambuco 14 16 34 abril - junhO 2014 15 17 © Imagens enviadas pelas respectivas associações