Corpo e alimento na poesia satírica de Gregório de Matos Claude G. PAPAVERO Doutoranda em Antropologia Social Departamento de Antropologia Social: FFLCH- USP Título do trabalho proposto: Resumo A obra satírica de Gregório de Matos Guerra, poeta do século XVII nascido em Salvador, então capital do Brasil, recorreu aos alimentos consumidos na colônia para dar substância a diversos pontos de vista do autor sobre a sociedade lusa transplantada no Brasil. Nos versos compostos, o poeta ridicularizou a aparência física de seus desafetos, criticou as condutas inadequadas dos conterrâneos, fustigou vícios como a gula, a cobiça ou a vaidade e descreveu o teor alegre de festejos, danças e banquetes da vida soteropolitana. Referências ocasionais aos manejos dos corpos permitem inferir a importância dada às práticas alimentares para a conservação da saúde e a aquisição de um status social respeitável. A análise das idéias vigentes no período sobre a fisiologia dos corpos humanos, bastante distanciadas dos conhecimentos atuais, possibilita uma compreensão interessante dos vínculos estabelecidos entre modos de pensar o corpo e modos de agir sobre ele. Corpo e alimento na poesia satírica de Gregório de Matos Claude G. Papavero Doutoranda em Antropologia Social FFLCH- USP. Bolsista do CNPq. Objeto da pesquisa: O tema investigado: “Os ingredientes de uma identidade colonial portuguesa no Brasil em meados do século XVII”, me levou a considerar o rol dos alimentos consumidos em Salvador (então capital da colônia), como um objeto de pesquisa capaz de ilustrar os modos de agir, de pensar e de sentir dos colonos, durante o último quartel do século XVII. Escolhi examinar as práticas alimentares referidas na obra poética de Gregório de Matos. O autor, natural de Salvador, era um autêntico mazomba (português nascido no Brasil) versado nos procedimentos da sociedade local, não obstante seus estudos em Coimbra e o exercício da profissão de advogado em Portugal. Os versos satíricos, burlescos ou líricos, que escreveu a partir de 1681 quando, já viúvo e quinqüagenário, voltou à terra natal, destinavam-se a ouvintes soteropolitanos, subentendiam eventos locais, um universo amplo de fofocas e recorriam freqüentemente a metáforas de cunho alimentar. A obra foi interrompida abruptamente em 1693, quando sátiras endereçadas às principais autoridades da colônia lhe valeram um período de exílio em Angola. Método de Trabalho: Observei as menções a procedimentos de alimentação colonial contidas nos poemas do autor, cujas metáforas de intenção moral e descrições de usos costumeiros da população soteropolitana são interessantes e procurei identificar o contexto histórico e literário da produção poética. Num segundo momento da pesquisa, comparei os dados coletados com informações sobre a produção de alimentos na colônia proporcionadas pelas Atas da Câmara Municipal de Salvador e com textos de cronistas dessa época. Finalidade do Trabalho: Recorrendo à arte poética de Matos, me proponho examinar os argumentos que deram forma aos procedimentos materiais e ideais da subsistência, organizando a vida no cenário colonial. I O uso simbólico dos alimentos na obra poética do autor Muitas metáforas e metonímias engenhosas ornamentaram as sátiras de Gregório de Matos. Provérbios e frases feitas, como: “a casca é prisão das fruitas”, paródias cômicas e trocadilhos insultuosos se misturaram em seus versos. O autor utilizou de modo recorrente as figuras de estilo usuais na arte poética barroca. Segundo Hansen, Matos operou muitos recortes metonímicos de partes do corpo sugerindo mudanças extravagantes de função (como “olhos cagões” para desqualificar seus inimigos) e fez uso também de um amplo acervo de metáforas para criar trocadilhos caricaturais. Percebi, de fato, um número conseqüente de recursos metafóricos a alimentos em sua escrita. Facilmente interpretados pelos ouvintes, o efeito cômico advinha de alusões jocosas aos hábitos da vida cotidiana, como, por exemplo, menções ao transporte de colonos abastados em redes carregadas por escravos: “eu na rede um cação”. Mas foram sobretudo os duplos sentidos chulos que predominaram nos poemas. Ironizando uma moça, que pretendeu tomar banho antes de se entregar a seus braços, Matos versejou: “Lavar a carne é desgraça / em toda a parte do Norte / porque diz, que dessa sorte / perde a carne o sal, e graça...” Outras metáforas de cunho alimentar obedeceram a intenções mais nobres. Referências a gêneros comestíveis serviram a Matos para criticar vícios tão reprovados quanto praticados em Salvador, como a avareza, a gula ou a ambição: “Que tais com gula que espanta, / se o mundo fôra guisado / o comeram de um bocado ”. “O ladrão mata a porcada e o Fisco come os presuntos” “Sendo ignorante sabe / mais que galinha”. II Uma etnografia do abastecimento e do consumo colonial Os versos de Gregório de Matos evidenciam o teor das idéias que regiam a vida social, pois, foi em nome de um estilo de vida nobre, estabelecido por décadas de experiência, que o poeta, conhecido pela alcunha de “Boca do inferno ”, criticou mudanças nos procedimentos instituídos. Observava-se estritamente os preceitos religiosos. Sacrifícios de prazeres corporais como a abstinência de carne nos dias magros e a ingestão de peixes (menos substanciosos) comprovavam o enquadramento colonial dos corpos numa afirmação de identidade católica da mesma forma que as celebrações alegres das principais festas do calendário religioso: “Vem chegando-se a Páscoa, e se eu me empasco, Os lombos de um Tatu é o pão, que busco ”. No plano da vida social, certos alimentos importados de Portugal afiguravam-se fundamentais. A aquisição por preços elevados de gêneros europeus tais como: vinhos, aguardentes, paios, presuntos ou queijos, (que anfitriões de prestígio social reconhecido faziam questão de oferecer aos hóspedes), sublinhava o impacto das idéias vigentes sobre as condutas alimentares. De modo que coube a alimentos lusos transformados em iguarias emblemáticas um papel de marcadores simbólicos das diferenças sociais. Os versos de Matos confirmam o valor atribuído a essas iguarias e um repúdio crescente a preparos indígenas, que os colonos lusos do início do século XVII saboreavam sem problema. Atestam a emergência de preconceitos, antes inexistentes, contra os nativos. Encontrei também nos poemas diversas menções ao caráter nobre ou rústico dos ingredientes comestíveis. As escumas purificadas de caldo de cana (ditas claros) se opunham à garapa fermentada dos escravos - ainda carregada de impurezas. Tampouco os feijões que, diziam, provocavam flatulências eram tidos como alimentos nobres. III A medicina humoral hipocrática revelou-se fundamental O respeito dos colonos aos preceitos da medicina humoral, herdados de Hipócrates e de Galeno, revelou-se preponderante na compreensão das condutas de consumo alimentar adotadas no Brasil. Percebi muitas alusões a procedimentos destinados a manter a saúde corporal dos moradores da colônia. Fundamentavam-se nas crenças que a medicina européia propalou até chegar a novos conhecimentos sobre a fisiologia humana, a partir do século XVIII. O equilíbrio adequado dos humores corporais: sangue, bílis amarela ou negra e muco (ou fleuma), preocupava os convivas. Procuravam evitar a viscosidade excessiva dos humores, bem como sua fluidez nefasta. Humores equilibrados equivaliam a corpos protegidos contra as doenças. As contingências climáticas locais e as estações do ano, além de fatores como idade, sexo, temperamento natural dos indivíduos, e atividades profissionais exercidas eram ainda levadas em conta. Temperamentos Temperamentos MELANCÓLICOS Temperatura regulada: COLÉRICOS Frios e secos alimentos temperados com Quentes e secos Precauções usuais: especiarias e umedecidos (efeito perigoso de humores alimentos amornados e excessivamente viscosos) com água ou gorduras umedecidos Precauções: evitar doenças Equilíbrio humoral perfeito: Precauções: evitar doenças de causas frias Corpos imunes às doenças Temperamentos de causas quentes Temperamentos FLEUMÀTICOS Temperatura regulada: Frios e úmidos alimentos temperados com Quentes e úmidos (perigo da fluidez excessiva especiarias dos humores) SANGÜÌNEOS e umedecidos Precauções usuais: alimentos frios comidos com água ou gorduras antes dos ingredientes ditos quentes O distanciamento no tempo da sociedade colonial, me permitiu estudar melhor as articulações entre as diferentes fontes lógicas de ação, que incidiram sobre os manejos alimentares dos colonos lusos. Os conselhos dos médicos sobre os parâmetros de uma alimentação saudável não impediram a livre expressão dos gostos por sabores. Percebi, portanto, nos versos de Gregório de Matos, uma curiosa combinação de preceitos científicos e de elementos gastronômicos apontando para a existência de um estilo de vida colonial perfeitamente definido. Por outro lado, diversos argumentos intrincados de natureza religiosa ou de cunho social também contribuíram a compor o universo cultural das condutas alimentares adequadas, delineando um plano referencial de âmbito filosófico. Bibliografia ANTONIL, André João. (João Antonio Andreoni). Cultura e opulência do Brasil. 2ª ed., (Texto da ed. de 1711), São Paulo, Ed. Nacional, 1967. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2ª ed., São Paulo, Atelier Editorial / UNICAMP., 2004. HIPPOCRATE l’art de la médecine. Traduction Jacques Jouanna, et Caroline Magdelaine, Paris, Flammarion, 1999. MATOS, Gregório de. Crônicas do viver baiano seiscentista. Obra completa de Gregório de Matos, 7 Vol., Amado, James (Org.). Bahia, Ed. Universitária, sem data. RABELO, Manuel Pereira de. “Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos Guerra”, in MATOS G, Crônicas do viver baiano seiscentista: obra completa de Gregório de Matos, Vol. VII, pp. 1689 – 1721.