Dependência não é medida pela permanência online

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PIONEIRO
| 20 |
SÁBADO E DOMINGO, 26 E 27 DE MARÇO DE 2011
ESPECIAL
Dependência não é medida pela permanência online
Após um dia exaustivo, o sujeito
resolve dar uma caminhada à beiramar. O tempo colabora, e o estresse
parece ficar para trás, mas logo a
busca de conforto é interrompida
por uma incontrolável vontade de
conferir e-mails. Como o celular 3G
ficou em casa, o passeio é abreviado.
Seu lazer se limita a jogos online,
motivo pelo qual passa horas a fio
conectado. Sozinha, a pessoa apela
para as redes sociais para fazer amigos. Com o tempo, a ansiedade toma
conta. Junto vêm a depressão e a dependência cada vez maior da rede.
A história acima é fictícia, mas se
você se identificou com qualquer
um de seus passos, fique atento:
pode estar viciado em internet. É
bom ressaltar que o mal não é medido pelo tempo de uso.
– A pessoa é dependente quando
há um prejuízo, quando aquele comportamento atrapalha os estudos e
as relações interpessoais – explica o
psiquiatra da infância e adolescência
Daniel Tornaim Spritzer, mestre em
Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
coordenador do Grupo de Estudos
sobre Adições Tecnológicas.
Conforme o psiquiatra, a necessidade de estar online não vem sozinha. É comum que o dependente
sofra de depressão ou ansiedade
intensa e procure a internet na tentativa de encontrar alívio. Não há
medicação específica. Geralmente,
o tratamento é direcionado para os
problemas que vêm junto. E diferentemente de outros vícios, não é recomendado ao paciente se afastar da
internet completamente.
– A tentativa é tornar o uso moderado. E o processo é a terapia, para
tratar junto aos demais problemas
– esclarece.
Tratamento em São Paulo – A parcela de dependentes entre os usuários de internet ainda é pequena no
Brasil. Spritzer acredita que o núme-
ro fique em torno de 5%. Mesmo assim, o problema ganhou atenção especial no Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas de São Paulo,
onde desde 2006 funciona o Núcleo
de Dependência de Internet. A psicóloga Sylvia Van Enck, uma das coordenadoras do grupo, explica que o
paciente passa por uma avaliação. O
tratamento ocorre por meio de tera-
pia de grupo, que dura 18 semanas.
Conforme o caso, é feito individualmente. A crescente busca faz com
que o centro tenha fila de espera.
– O problema pode aumentar.
Os atrativos passam a ser cada vez
maiores e ficam disponíveis 24 horas. Se não houver um trabalho de
consciência, as proporções podem
ser absurdas – acredita a psicóloga.
Tempo perdido
‘Quatro anos de loucura total’
De Viamão, um jovem de 18
anos, que pediu para não ser identificado, relata uma luta de quatro
anos contra o vício em internet. O
problema foram os jogos online. O
rapaz precisou buscar ajuda psicológica e hoje frequenta um grupo
de Jogadores Anônimos. Acompanhe trechos da entrevista:
Ciências da Computação. O computador pode ser uma ferramenta
boa, de trabalho. A proposta é me
reeducar.
Pioneiro: Sofreu depressão nesse período?
Jovem: Várias vezes. Nunca tive
coragem de me matar, mas já tive
vontade. Eu chorava muito e me
Pioneiro: Quando você percebeu perguntava: por que eu não conque estava viciado em internet? sigo parar com isso, por que não
Jovem: Quando comecei a parar de consigo ser uma pessoa normal?
fazer as coisas. Deixava de tomar
banho, comia muito rápido e mal, Pioneiro: Você já cometeu algudeixava de lado coisas básicas. E ma loucura para jogar?
não por pouco tempo. Foram qua- Jovem: Eu dizia: mãe, estou indo à
tro anos de loucura total, todo dia escola. Aí me escondia, via o carro
jogando, matando aula. Repeti o dela saindo e voltava para casa. Ela
primeiro ano (do Ensino Médio) e colocava senha no computador,
aí decidi mudar. É um vício, uma mas eu sempre soube burlar. Teve
compulsão, uma doença. O grupo uma vez que eu estava sozinho.
está me ajudando bastante. Por Meu pai tinha trancado a porta
mais que não tenha ninguém com para eu não mexer no computador.
o mesmo problema (o grupo é de Tive a ideia de entrar pela janela.
viciados em apostas), as doenças Quase entrei, e me dei conta que
são iguais, levam à mentira, à en- estaria mentindo. Isso depois de
muitas brigas. O caso foi decisivo.
ganação, a deixar de viver.
Pioneiro: Hoje você consegue fazer uso moderado?
Jovem: Evito o computador, mas
no futuro pretendo trabalhar com
isso. Quero prestar vestibular para
O jovem Brayan Loss, 20 anos, que
atua fazendo assistência técnica na
área de informática, precisa da rede
para trabalhar, mas não esquece
dela nas horas de lazer. E admite: é
um viciado na web que aos poucos
tenta desconectar.
– Às vezes é um pouco menos,
mas acho que fico online umas 18
horas por dia. Não consigo ficar
muito tempo longe – conta.
Loss começou a acessar a internet
em 2004. Foi na rede que ele aprendeu – sozinho – a exercer sua profissão. O lado ruim é o preço pago pela
rotina virtual.
– Passei a ficar isolado, a perder
o contato com amigos. Nem saía
de casa. Muitos diziam que era depressão. Eu não conseguia largar o
computador. Até desenvolvi uma
gastrite, em função de tomar muito
cafezinho e chimarrão enquanto estava conectado – conta o rapaz.
Foi na metade do ano passado que
Loss percebeu o quanto isso estava
atrapalhando sua vida.
– A internet é como um poço sem
fundo. Se descobre um assunto, e depois outro, e depois outro. Boa parte
do trabalho da empresa eu adianto
em casa, e fico em sites de relacionamento. Esses tempos encontrei
quatro amigos da escola na rua, com
quem só falava pela internet, e percebi como é importante o contato
pessoal – avalia.
Agora, reconhecendo que permanece muito tempo conectado, Loss
procura sair mais de casa e divertirse de outras maneiras. No fim de semana, tenta ficar longe da internet.
– Não tenho namorada, me afastei de vários amigos. Foi um tempo
perdido, acho que deixei de viver
– avalia.
TATIANA CAVAGNOLLI
Pioneiro: O que você diria a alguém com o mesmo problema?
Jovem: Diria para procurar ajuda.
Tentar resolver sozinho é o pior jei- CONECTADO
to. A gente não se educa sozinho.
Após afastar-se de amigos, Loss percebeu que fazia uso exagerado da rede de computadores
MAIS
Frequência
Estudo mostra
que 38%
das pessoas
acessam a web
diariamente;
10%, de quatro
a seis vezes por
semana; 21%, de
duas a três vezes
por semana;
18%, uma vez por
semana.
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