Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras Anderson Ulisses dos Santos Nascimento A expressão da futuridade verbal no espaço da lusofonia: Brasil, Portugal e Moçambique v. 1 Rio de Janeiro 2015 Anderson Ulisses dos Santos Nascimento A expressão da futuridade verbal no espaço da lusofonia: Brasil, Portugal e Moçambique v.1 Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação stricto sensu em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. André Crim Valente Rio de Janeiro 2015 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B N244 Nascimento, Anderson Ulisses dos Santos. A expressão da futuridade verbal no espaço da lusofonia / Anderson Ulisses dos Santos Nascimento. – 2015. 2 v.: il. Orientador: André Crim Valente. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. 1. Língua portuguesa – Tempo verbal – Teses. 2. Língua portuguesa – Gramática comparada e geral – Gramaticalização – Teses. 3. Mudanças linguísticas - Teses. 4. Língua portuguesa – Brasil – Teses. 5. Língua portuguesa – Modalidade – Teses. I. Valente. André Crim. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título. CDU 806.90-541.45 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese desde que citada a fonte. ____________________________________ Assinatura _________________ Data Anderson Ulisses dos Santos Nascimento A expressão da futuridade verbal no espaço da lusofonia: Brasil, Portugal e Moçambique Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Língua Portuguesa. Aprovado em 26 de março de 2015. Banca examinadora: _________________________________________ Prof. Dr. André Crim Valente (Orientador) Instituto de Letras - UERJ _________________________________________ Prof. Dr. Claudio Cezar Henriques Instituto de Letras - UERJ _________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo Instituto de Letras - UERJ _________________________________________ Prof. Dr. Afranio Gonçalves Barbosa Universidade Federal do Rio de Janeiro _________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Stavola Cavaliere Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro 2015 DEDICATÓRIA À minha mãe, Gessy, maior construtora de todos meus futuros. Ao meu pai, Pedro Ulisses, que, por pretéritos perfeitos e imperfeitos, deu-me um futuro no presente. Ao querido e muito saudoso Francisco de Assis Moura Sobreira, grande parceiro e companheiro de toda a trajetória de pósgraduação presente neste trabalho. AGRADECIMENTOS À Andrea, Música, pelo apoio, pelo companheirismo, pelo carinho, pelo amor e pelos futuros, futuridades e futurismos, no presente, nascidos de longínquo passado. Ao Instituto de Letras da UERJ, especialmente aos Programas de Mestrado e Doutorado em Língua Portuguesa, na figura de seus professores, servidores técnicoadministrativos e estudantes, pelo encorajador e afetuoso acolhimento, desde 2008. Ao meu caro orientador André Valente por toda a paciência, apoio, parceria e crença em meu trabalho. Ao amigo Zé Carlos de Azeredo, sem o qual todo este trajeto não se teria iniciado. Agradecimentos especiais pelo afável percurso ainda em desenvolvimento. Ao muito querido André Conforte, companheiro em tantas esferas, pelas mais diversas formas de apoio e de troca vivenciadas. Aos trabalhadores do Estado do Rio de Janeiro, os verdadeiros possibilitadores desta universidade e desta pesquisa. À Lise Sedrez pelo carinho e sempre gentil assessoramento em traduções anglófonas. À população moçambicana, que tem grandes desafios a enfrentar neste século. Ao Clube de Regatas do Flamengo, o maior assegurador de exitosas certezas futuras que conheci na vida. A D’Artagnan, Lullubelle IV e Thomas, companheiros em carinho omnitemporal. Ao bom futuro de Elisa, Alice, Bia e Miguel. À língua portuguesa, meu arrebatamento e meu existir. Ao futuro, enfim, já que, segundo o futurista Maikóvski, é dele que precisamos arrancar alegrias. Time (David Gilmour, Nick Mason, Roger Waters e Richar Wright) Ticking away, the moments that make up a dull day You fritter and waste the hours in an offhand way Kicking around on a piece of ground in your home town Waiting for someone or something to show you the way Tired of lying in the sunshine Staying home to watch the rain You are young, and life is long And there is time to kill today And then one day, you find Ten years have got behind you No one told you when to run You missed the starting gun And you run and you run to catch up with the sun But it's sinking And racing around to come up behind you again The sun is the same in a relative way But you're older Shorter of breath and one day closer to death Every year is getting shorter Never seem to find the time Plans that either come to naught Or half a page of scribbled lines Hanging on in quiet desperation is the English way The time has gone, the song is over Thought I'd something more to say Home, home again I like to be here when I can When I come home cold and tired It's good to warm my bones beside the fire Far away, across the field The tolling of the iron bell Calls the faithful to their knees To hear the softly spoken magic spells Lusofonia (Martinho da Vila) Eu gostaria de exaltar em bom Tupi As belezas do meu país Falar dos rios, cachoeiras e cascatas Do esplendor das verdes matas e remotas tradições Também cantar em guarani os meus amores Desejos e paixões Bem fazem os povos das nações irmãs Que preservam os sons e a cultura de raiz A expressão do olhar Traduz o sentimento Mas é primordial Uma linguagem comum Importante fator Para o entendimento Que é semente do fruto Da razão e do amor É sonho ver um dia A música e a poesia Sobreporem-se às armas Na luta por um ideal E preconizar A lusofonia Na diplomacia universal Tempos de existir [Poema-tese] Conjuguei minha vida Pois, qualquer em tantos paradigmas irregulares. incerto futuro, quanto mais futuro em futuridade, Abri, tantas vezes, mão é caminho mais possível da concordância mais esperada. do que o malfadado mais-que-imperfeito pretérito, Assim, construí meu pretérito plenamente inexistente. mais que imperfeito! Às futuridades Do alto de meu presente, por que, afinal, diviso passado e futuro existimos! em horizontes divergentes... Resoluto, a meu existir, lego o futuro que não mais pode ser do pretérito; se possível sequer do efêmero presente, mas do próprio futuro. Houve um tempo em que não existia o tempo. O tempo sabido, conhecido! Mas ele estava intrínseco no dia a dia de cada ser… A vida seguia um ciclo: todos os seres nasciam, cresciam, reproduziam-se e morriam; mas nenhum ser se importava com o início ou o fim das coisas. Nem mesmo havia percepção disso! A vida era só viver, e ponto! Um dia o homem contemplando a natureza ao seu redor, se distanciando da posição de existente e passando a um observador da existência, percebe que a morte, apesar de inerente à vida, é o ponto final, é a interrupção do processo. E que coisa alguma escapa desse fim… O medo invade seus pensamentos, pois nesse momento, quando deixa de ignorar a questão do tempo como vivente, ele sai da posição de observador e volta à condição de existente. E uma pergunta lhe atordoa, lhe angustia “Quanto tempo ainda tenho?”. Andrea Barbosa de Oliveira, vulga, afetuosamente, Música. Em blogue Transversos, 04/11/14. Disponível em: http://transversos.wordpress.com/2014/11/04/daimortalidade-ao-infinito-e-alem-ou-matematicalizando-a-vida-parte-i/ Nunca soube por que tanta gente teme o futuro. Nunca vi o futuro matar ninguém, Nunca vi o futuro roubar ninguém, Nunca vi nada que tivesse acontecido no futuro. Terrível é o passado ou, pior, o presente! Millôr Fernandes “A criação da linguagem é o primeiro ato poético do homem." José Carlos de Azeredo (21/10/2014) RESUMO NASCIMENTO, Anderson Ulisses dos Santos. A expressão da futuridade verbal no espaço da lusofonia: Brasil, Portugal e Moçambique. 2015. 2 v. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. O futuro verbal caracteriza-se por uma conformação cognitiva e semântica bastante distinta da verificada nos demais tempos verbais, distintos do tempo cronológico. Tal fato apresenta-se abrangente nas línguas e traz consequências morfossintáticas apreciáveis na constituição de tal tempo verbal em português, tanto em perspectiva sincrônica quanto em diacrônica. Hoje, em língua portuguesa, presenciamos uma nova mudança na manifestação desse futuro verbal, com a crescente difusão da forma perifrástica composta por ir e infinitivo, como gramaticalização da expressão de futuro. Tal processo de mudança ainda se encontra em curso na língua, fato atestável em vários usos. Objetivamos aqui a descrição dos tempos verbais futuros da língua portuguesa, que não se confundem com a simples expressão de futuridade, bem como o estabelecimento de um estudo comparativo entre três variedades do português, a brasileira, a europeia e a moçambicana, quanto a usos e valores do futuro do presente, tempo verbal prototípico dos futuros. Palavras-chave: Futuro. Futuridade. Tempus. Modalização. Mudança linguística. Gramaticalização. Lusofonia. ABSTRACT NASCIMENTO, Anderson Ulisses dos Santos. The expression of verbal futurity within the lusophone space: Brazil, Portugal and Mozambique. 2015. 2 v. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. The future verb tense is characterized by a cognitive and semantic conformation that is quite distinct from other tenses, distinct from time. Such fact is widely verified among human languages and brings significant morphosyntactic consequences to the constitution of this tense in Portuguese language, both in synchronic as in diachronic perspective. Presently, in Portuguese, we see a new change in the verbal future, by the increasing use of the periphrastic form composed by “ir” (to go) and the infinitive, as grammaticalization to express the future. This change is still in progress in the language, which can be confirmed by many different uses. In this paper, we describe the future tenses of the Portuguese language, which are not the same as the simple expression of futurity, and we establish a comparative study among the three varieties of Portuguese, that is, the Brazilian, the European and the Mozambican ones, regarding the uses and values of present future, prototypical verb tense for the future tenses. Keywords: Future. Futurity. Tense. Grammaticalization. Lusophony. Modalization. Linguistic change. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Comparação entre futuro e condicional ................................ 34 Quadro 2 – Perfectum e infectum latinos ................................................... 35 Quadro 3 – Futuro verbal, do latim arcaico ao português contemporâneo . 46 Quadro 4 – Quadro 5 – Quadro 6 – Evolução do futuro do pretérito, do português arcaico ao moderno ................................................................................. O mundo da narração e o mundo do discurso ........................ Distribuição dos tempora portugueses pela narração e pelo discurso ................................................................................... 46 95 96 Quadro 7 – Radicais de perfectum e infectum latinos ................................ 108 Quadro 8 – Perfeito e imperfeito em esse ................................................. 109 Quadro 9 – Visão bidimensional dos tempora .......................................... 119 Quadro 10 – Os tempora na tridimensionalidade de Reichenbach ............. 120 Quadro 11 – Perspectiva de enunciação do conjuntivo ................................ 140 Quadro 12 – Exemplos de gramaticalização ................................................ 148 Quadro 13 – Comparação dos usos das formas de futuro do presente ...... 160 Quadro 14 – O modo temporal futuro .......................................................... 167 Quadro 15 – A terminologia temporal de Bello ............................................. 176 Quadro 16 – Valores do futuro do pretérito .................................................. 184 Quadro 17 – Formas de futuro em diversas línguas europeias ................... 203 A expressão do futuro verbal nas línguas do projeto 204- GRAMCATS ............................................................................ 208 Quadro 18 – Quadro 19 – Quadro 20 – População e situação da língua portuguesa nos países da CPLP ...................................................................................... Demonstrativo de comparação linguística entre português, galego e mirandês .................................................................... 222 223 Quadro 21 – Percentuais de fala da língua portuguesa em Moçambique .... 235 Quadro 22 – Falantes de português em Moçambique em 2007 ................... 236 Quadro 23 – Colocação pronominal em PE, PM e PB ................................. 244 Quadro 24 – Traços prototípicos de escrita e de fala ................................... 255 Quadro 25 – Escolaridade dos informantes portugueses, corpus oral ......... 260 Quadro 26 – Composição dos corpora de língua portuguesa ...................... 263 Quadro 27 – PB escrito ................................................................................ 268 Quadro 28 – Quantitativo de textos com ocorrências de futuro do presente 275 Quadro 29 – PB escrito, por gênero textual ................................................. 275 Quadro 30 – Percentuais das formas de futuro no PB por gênero textual .. 276 Quadro 31 – PB oral ..................................................................................... 282 Quadro 32 – Distribuição de verbos funcionais por formas do futuro do presente .................................................................................. 286 Quadro 33 – Ocorrências por gênero, no PE ............................................... 288 Quadro 34 – PE escrito ................................................................................ 289 Quadro 35 – PE oral .................................................................................... 292 Quadro 36 – Valores funcionais de formas verbais do corpus ................... 295 Quadro 37 – Quadro 38 – Quadro 39 – Comparação entre propriedades do sujeito de formas de futuro desinenciais e perifrásticas ........................................... PM escrito ............................................................................... Formas de futuro por condição do falante moçambicano em relação ao português .............................................................. 296 303 305 Quadro 40 – PM oral .................................................................................... 306 Quadro 41 – comparativo de PB, PE e PM escritos e orais gerais .............. 309 LISTA DE FIGURAS Esquema 1 – Transferências cognitivas do mundo à língua .................................. Esquema 2 – Inter-relação dos modos verbais ...................................................... Esquema 3 – Graus de factualidade dos tempora indicativos ................................ Esquema 4 – Valores do presente do indicativo ..................................................... 104 Esquema 5 – Representação gráfica para perfeito e imperfeito ............................ 112 Esquema 6 – Escala de formalidade para o mais-que-perfeito .............................. 115 Esquema 7 – Representação unidimensional dos tempora ................................... 116 Esquema 8 – Representação bidimensional dos tempora, a partir do passado ..... 118 Esquema 9 – Representação bidimensional dos tempora, a partir do presente .... 118 Esquema 10 – Os tempora do subjuntivo ................................................................. 138 Esquema 11 – A transição semântica de ir .............................................................. 146 Esquema 12 – O circuito cognitivo ........................................................................... 150 Esquema 13 – O trajeto cognitivo de ir ..................................................................... 155 Esquema 14 – O futuro do presente temporal .......................................................... 165 Esquema 15 – O futuro do presente modal ............................................................. 165 Esquema 16 – Locuções de futuro e nível de comprometimento do enunciador ..... 193 Esquema 17 – Gêneros de fala e de escrita, em termos de protipicidade ............... 256 Esquema 18 – Esquema 19 – Fala e escrita, gêneros prototípicos e periféricos, segundo Marcuschi .......................................................................................... Nível de formalidade dos gêneros escritos ...................................... 65 99 102 257 276 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Miguel Paiva, gerundismo ..................................................... 189 Ilustração 2 – Bandeiras do mundo ............................................................. 212 Ilustração 3 – A língua portuguesa no mundo .............................................. 220 Ilustração 4 – Os percentuais da língua portuguesa por país ...................... 221 Ilustração 5 – Membros e observadores da CPLP ....................................... 224 Ilustração 6 – Províncias de Moçambique .................................................... 236 Ilustração 7 – Composição e distribuição do CRPC ..................................... 264 Gráfico 1 – As formas de futuro do presente nas variedades escritas do português ............................................................................... Gráfico 2 – 311 As formas de futuro do presente nas variedades faladas do português ............................................................................... 311 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................... 20 1 PERCURSO HISTÓRICO .......................................................... 29 1.1 Antes do latim ........................................................................... 29 1.2 Do latim ao português ............................................................... 34 1.3 A trajetória do verbo ir .............................................................. 49 2 O LOCUS TEMPORAL DO FUTURO VERBAL ........................ 62 2.1 Futuro e futuridade ................................................................... 62 2.2 Modo, modalidade, modalização ............................................. 65 2.3 Modos verbais portugueses ..................................................... 72 2.4 Considerações sobre tempus e tempo ................................... 91 2.5 Modo indicativo ......................................................................... 96 2.5.1 Presente ...................................................................................... 103 2.5.2 Pretérito perfeito e pretérito imperfeito ........................................ 107 2.5.3 Pretérito mais-que-perfeito .......................................................... 114 2.5.4 Perspectiva de locus em continuum modo-temporal para os futuros portugueses ..................................................................... 116 2.5.5 Formas compostas .................................................................... 122 2.6 Modo subjuntivo ........................................................................ 131 2.7 Modo imperativo ....................................................................... 140 3 FUTUROS PORTUGUESES ....................................................... 144 3.1 Futuridade gramaticalizada ...................................................... 144 3.2 Futuro do presente do indicativo ............................................. 169 3.3 Futuro do pretérito do indicativo ............................................. 170 3.4 Futuros do subjuntivo .............................................................. 187 3.5 “Gerundismo” ........................................................................... 188 4 CONCEPTUALIZAÇÕES DE FUTURIDADE, EM PERSPECTIVA LINGUÍSTICO-COMPARATIVA ....................... 197 5 O FUTURO DO PB, PE E PM ..................................................... 210 5.1 Português ou brasileiro? ....................................................... 210 5.2 A questão da lusofonia ......................................................... 219 5.3 Dialetos portugueses: o português moçambicano ............. 231 6 OS CORPORA ......................................................................... 251 6.1 Língua escrita e língua oral ................................................... 252 6.2 Metodologia, identificação e seleção de corpus ................. 263 7 ANÁLISE DOS CORPORA ...................................................... 267 7.1 PB ............................................................................................. 268 7.2 PE ............................................................................................. 288 7.3 PM ............................................................................................ 299 7.4 Visão geral dos dialetos lusófonos ......................................... 309 CONCLUSÕES ............................................................................ 314 REFERÊNCIAS ........................................................................... 317 ANEXO A - PB escrito .................................................................. 331 ANEXO B - PB oral ...................................................................... 366 ANEXO C - PE escrito .................................................................. 474 ANEXO D - PE oral ...................................................................... 496 ANEXO E - PM escrito .................................................................. 550 ANEXO F - PM oral ...................................................................... 582 20 INTRODUÇÃO O tempo é a substância de que sou feito. Jorge Luis Borges. Há muitos traços que resguardam, ao homo sapiens, caracterização distinta e ímpar frente a outros espécimes. Um decisivo, para o êxito de nossa história de dominância no planeta, foi a consciência da futuridade. Foi por ela, associada à própria consciência da morte, que desenvolvemos mecanismos de proteção e recursos para maior longevidade. A constatação e projeção do futuro permitiram ao homem ser, em toda a sua plenitude. Citando Jean-Paul Sartre, “existimos em função do futuro”.1 O futuro, grande anseio da humanidade, é, ao mesmo tempo, momento e fase vindoura, torcida, expectativa, anseio. Já delineado ou por construir, está na própria base do conceito de civilização. O homo sapiens sapiens passa a constituir suas sociedades em diálogo com a construção de perspectivas futuras. Assim, a consciência do futuro está, portanto, na base da própria humanidade. Em termos do mundo concreto e físico em que vivemos, há uma única dimensão de tempo2. Assim, o futuro nos é unidirecional, o que muito acaba por afetar, invariavelmente, toda a nossa interpretação acerca do tempo, em geral, e do futuro, em especial. A partir da vivência física e da reflexão filosófica, o futuro nos é alcançável, mas, simultaneamente, distante, num movimento de permanênciaafastamento (in)tangível. Esse futuro a nós se dispõe como objeto de manipulações e expectativas várias. Sem dúvida, o futuro tem reservado indagações, prognósticos e reflexões inúmeras, em toda a nossa história, como bem atestam, sobretudo, a Filosofia, a Metafísica e a Física (além, claro, das religiões institucionalizadas e áreas de “paraconhecimento” especulativo de toda ordem, ao longo da história). Entretanto, em que pesem tais contribuições, nosso enfoque, aqui, precisa ser o linguístico. 1 SARTRE, 2005. Referimo-nos aqui apenas às ditas dimensões clássicas: três de espaço e uma de tempo, tal qual estabelecidas por Einstein, em suas Teoria da Relatividade Restrita, de 1905 e Teoria da Relatividade Geral, em 1915. Há na Física atual, diversas teorizações, amalgamadas sob o rótulo Teorias de Cordas, que pressupõem dimensões adicionais de tempo e de espaço, até um total de doze, não perceptíveis em nosso universo, pois que seriam infimamente comprimidas. 2 21 Nossa motivação advém da intuição de que o futuro verbal seja um campo de peculiaridades, dentre os tempos verbais portugueses. Mais que isso, intuímos que, possivelmente, tais peculiaridades ultrapassem o campo da língua portuguesa e se instituam como base cognitivo-linguística da própria concretização do futuro como tempo verbal. Tal concretização será investigada prioritariamente no plano morfossintático, que cremos ser um estrato bastante básico de qualquer língua, estruturado num nível mais profundo do que o puramente sintático3. Óbvio que não se trata de investigar a origem genética do futuro verbal em termos cronológicos nas línguas, até porque isso nos seria, de todo, impossível. Contudo, é bastante plausível especular que o futuro seja um tempo verbal de existência mais tardia nas línguas, a partir do parâmetro mesmo cognitivo. Seja a base comunicativa das línguas narrativa ou argumentativa, encontramos aí, respectivamente, assentados os pretéritos e o presente− ainda que, nesse caso, estejamos pensando mais diretamente na língua portuguesa e em algumas outras que mantenham essa mesma correlação. No senso comum, pensa-se no tempo tripartite em presente, passado e futuro4: o agora, antecedido pelo antes e sucedido pelo depois. Como dissemos acima, aí está a própria percepção do tempo físico unidirecional5. No entanto, as línguas humanas reservam ao (recorte de) tempo visão mais complexa: o que exatamente é o presente? Existe um futuro ou este é um conjunto de possíveis e impossíveis futuros? Quais os limites do passado? A visão por nós aludida como simples e senso comum sobre o que seja o tempo, em princípio, corresponde à intuição dos falantes, o que não pressupõe que o mesmo se dê no campo cognitivo nem mesmo no linguístico. Parece-nos factível que, sob ótica estritamente cognitiva, a noção de futuridade seja posterior às decorrentes da percepção do passado e do presente. Assim, o futuro seria, como tempo verbal, distinto do passado e do presente, o que se dá, inclusive, em termos de realização morfológica. 3 Óbvio que reconhecemos que os limites entre morfologia, morfossintaxe e sintaxe em si são um tanto quanto artificiais, diluindo-se no próprio dinamismo do uso linguístico, seja em perspectiva sincrônica ou diacrônica. Assim, a aludida divisão tem fins, muito claramente, vinculados a objetivos de estudo. 4 Jespersen (1951, p. 254) lembra-nos de que há línguas em que os verbos não realizam distinção de tempo verbal. Ainda nos adverte de que, mesmo em inglês, encontramos um verbo como must que se comporta de tal maneira. 5 É importante registrar que, no postulado relativístico de Einstein, tempo é indissociável de espaço. As quatro dimensões formam um uno indivisível. Portanto,a percepção individualizada de tempo já é de nossa leitura construída, portanto cultural. 22 Essa última reflexão põe-nos diante da necessidade de distinguir o tempo conceito universal e o tempo conceito gramatical. Seguindo CÔROA (2005), precisamos desfazer a ambiguidade que, em geral, ocorre nas línguas neolatinas6 quanto à palavra tempo, usada para a designação do tempo cronológico e para a metalinguagem gramatical. A autora propõe as formas tempo para a primeira acepção e tempus (do latim) para a segunda. Concordando com a necessidade de distinção, adotaremos tal terminologia. Portanto, doravante, tempus e tempo verbal são sinônimos. A abordagem da futuridade, aqui, não ignora que tal noção se viabilize por meio também de advérbios7, como amanhã, depois, em breve, daqui a pouco, dentre outros8. E o português apresenta, em alguns adjetivos, vestígios de sufixação latina que trazem agregada a noção de tempo: corrente, vivente, etc. (derivados do particípio presente); vindouro, nascituro, etc. (derivados do particípio futuro). Já em outros, como estudante ou duradouro, a noção temporal parece ter se perdido. E nos advindos do particípio passado, o que parece restar é a noção aspectual perfectiva9. No entanto, voltar-nos-emos à expressão verbal, já suficientemente ampla e especialmente arenosa, em nossas descrições linguísticas, tanto em nível de ensino quanto de pesquisa. É preciso, neste ponto, elucidarmos, enfim, o que temos por intento nesta tese. A esse respeito, esclarecemos que temos por objetivos principais: a descrição dos futuros verbais em língua portuguesa e a comparação entre usos verbais de futuro do presente do indicativo em português brasileiro, português europeu e português moçambicano10, denominados, doravante, respectivamente PB, PE e PM. 6 Confrontando as formas neolatinas ambíguas temps(francês), tiempo(espanhol), tempo (português, galego e italiano) com time e tense (inglês) ou Zeite e Tempus (alemão), sendo, nas duas últimas línguas, o primeiro vocábulo relativo ao tempo universal cronológico e o segundo ao tempo verbal. 7 Jespersen (1951) apresenta-nos exemplos de línguas em que a expressão do tempo compete a substantivos, como no inuit, língua esquimó nativa da Groenlândia, e atapascano, língua também nativa da América do Norte. Em inuit, por exemplo, o substantivo equivalente a frio, ningla, apresenta as formas correlatas, ninglithluk e ninglikak, respectivamente, aquilo que foi frio e aquilo que será frio. 8 Para maior detalhamento da expressão adverbial de futuridade, ver Fiorin (2005, p. 163). 9 Quanto a isso, procederemos a maiores detalhamentos em nossa tese, especialmente no capítulo 2. 10 Das variedades africanas, dado o percentual de população lusófona, consideramos a moçambicana e a angolana como, efetivamente, produtivas a nossos objetivos. Em Moçambique, o percentual de população que fala português é de 39,6%, segundo dados oficiais do governo, coletados no endereço eletrônico www.ine.gov.mz. Isso resulta em uma população com acesso à língua portuguesa de mais de 8 milhões de habitantes, embora apenas uma parcela reduzida se valha do português como língua materna. Já dados não oficiais, coletados fora do domínio gov.ao, dão conta de que, aproximadamente, 60% da população angolana utilizam o português, como primeira ou segunda língua, perfazendo um volume de mais de 10 milhões de 23 A par desses objetivos principais, temos por objetivos secundários e compósitos aos supracitados, não necessariamente em ordem hierárquica: o contraste das principais construções de futuridade verbal em português com as ocorridas em outras línguas11; levantamento, por meio de corpus, das frequências de uso de tempora de futuro simples e perifrásticos, bem como o uso do presente com valor de futuro do presente; investigação de matrizes cognitivas envolvidas na conceptualização e realização do futuro verbal português; descrição do futuro verbal português em termos históricos; discriminação de verbos que contribuam para a formação de perífrases de futuridade em português; identificação do nível de gramaticalização dos verbos auxiliares que concorrem para a formação da futuridade verbal portuguesa; reflexão sobre a natureza temporal ou modal do futuro verbal; problematização da discussão acerca do status do futuro do pretérito como tempus do modo indicativo; Quanto ao último ponto, ainda nos cumpre dizer que partimos de uma premissa, até então intuitiva, de que o assim denominado futuro não é tempus nem modo verbal, plenamente, mas se encontraria num ponto escalar no continuum tempo-modo verbal português12. Essa será a hipótese sobre a qual pretendemos discorrer em busca de comprovações em nosso trabalho. Para a consecução de nossos objetivos aqui apontados, trataremos, ao longo dos capítulos: capítulo 1: do percurso histórico do futuro verbal, desde o indoeuropeu, com especial atenção à passagem do latim ao português e, por fim, do percurso histórico do verbo ir em língua portuguesa, dado o falantes. As proporções são, portanto, equivalentes. Nossa opção por Moçambique será devidamente elucidada no capítulo 5. 11 Em princípio, indo-europeias. 12 Concentrar-nos-emos nesse ponto, especialmente, nos capítulos 2 e 3 de nossa tese. 24 protagonismo que ora assume na conformação do futuro verbal português; capítulo 2: do locus temporal dos futuros verbais portugueses, em que analisaremos a malha temporal verbal portuguesa, de forma a situar as correlações e o próprio lugar do futuro em meio a tais inter-relações de tempus e de modo; capítulo 3: da própria descrição dos futuros verbais portugueses, no qual dissecaremos os tempora gramaticalizados de futuridade verbal portuguesa em forma e em conteúdo; capítulo 4: de um breve mostruário comparativo da futuridade verbal em outros idiomas; capítulo 5: de apresentação, em síntese, do português moçambicano, bem como de problematização de questões pertinentes à temática da lusofonia; capítulo 6: de apresentação dos corpora para análise em nosso estudo; capítulo 7: da análise em si de usos e de valores de futuro verbal dos corpora e capítulo 8: das considerações finais de nossa tese. Na verdade, podemos compreender esta tese como composta por dois grandes blocos: um de caracterização abrangente da futuridade e do futuro verbal, recobrindo os capítulos de 1 a 4 e outro dos capítulos 5 a 7, voltada à questão dos usos desse tempus no espaço lusófono comparado, bem como da caracterização de tal espaço, com especial atenção ao PM. Em outras palavras, no primeiro conjunto de capítulos, pretendemos desenvolver a fundamentação teórico-descritiva que nos servirá de suporte à aplicação da segunda parte. Faz-se necessário esclarecer também o viés metodológico e de referencial teórico em que nos calcamos, afinal, as questões aqui levantadas não são poucas e se inter-relacionam intimamente. O ponto de visagem que adotaremos sobre a língua, nesta tese, é de que ela deve ser entendida prototipicamente, ou seja, empreendemos nossa investigação sob uma ótica de língua com estrutura, funcionamento e dinâmica escalares. Tal princípio é tomado por funcionalistas e cognitivistas como um alicerce descritivo. 25 Pensamos que não se trata de nos filiarmos a tais correntes, mas tão somente de continuarmos a fazer aquilo a que nos dispomos desde o início, descrever um dado objeto da língua, em nosso caso, a expressão da futuridade verbal a qual, posteriormente, situaremos no espaço lusófono tripartite citado. Nossa opção por seguir com esse aparato descritivo, portanto, deve-se ao reconhecimento de sua justeza e utilidade, representando a língua como um sistema de modus operandi profundamente crível a nós. Nosso primeiro contato com a Teoria dos Protótipos deu-se de forma indireta, por meio de Pontes (1986), por ocasião de nossos estudos que redundaram na dissertação de Mestrado Descrição da oração sem sujeito em língua portuguesa: função, caracterização e uso. A opção por uma visão prototípica permite-nos distinguir de forma muito categórica a natureza de uma ciência que lida com objetos imersos na cultura e na sociedade como é o caso, por excelência, da língua. Como nos afirmam Cuenca & Hilferty (1999, p. 35), protótipo corresponde a: [...] el ejemplar que mejor se reconoce, el más representativo y distintivo de uma categoria, puesto que es el que comparte más características con el resto de membros de la categoria y menos con los membros de otras categorias. Esta ideia se une a la concepción de las categorias como entidades difusas, no como compartimentos estancos claramente delimitados y definidos: el passo de uma categoria a outra es gradual y viene marcado por membros periféricos.13 Assim, podemos postular protótipos às mais diversas categorias apreensíveis. Um urso ou um tigre seriam exemplares bem mais prototípicos da categoria mamífero do que golfinhos e, ainda mais, que ornitorrincos, por exemplo. Um substantivo concreto é mais prototípico da categoria substantivo do que um abstrato; um sujeito agente, [+ humano] é o elemento mais prototípico da categoria sujeito. A identificação de um protótipo é de natureza cognitiva, correspondendo à própria apreensão da realidade. Ao citar os pesquisadores Rosch e Mervis14, Pontes afirma que “... as crianças aprendem primeiro os membros típicos de cada 13 “o exemplar que melhor se reconhece, o mais representativo e distintivo de uma categoria, já que é ele que compartilha de mais características com o restante de membros da categoria e menos com os membros de outras categorias. Esta ideia se une à concepção das categorias como entidades difusas, não como compartimentos estanques claramente delimitados e definidos: a passagem de uma categoria a outra é gradual e vem marcada por membros periféricos. 14 ROSCH & MERVIS, apud SMITH & MEDIN, apud PONTES: 1986. 26 conceito...”15. Assim, o protótipo corresponde a um verdadeiro ponto de referência cognitiva. Segundo Duque (s. d.), parafraseando Rosch: a) Os membros prototípicos são categorizados mais rapidamente que os membros não prototípicos; b) Os membros prototípicos são os que as crianças aprendem primeiro; c) Os membros prototípicos são os primeiros mencionados, quando solicitamos aos falantes que listem todos os membros de uma categoria; d) Os protótipos servem de ponto de referência cognitiva. Por exemplo, uma elipse é quase um círculo, em que círculo é tomado como referência; e) Geralmente, quando o que se pede é a enumeração dos primeiros membros de uma categoria, os protótipos aparecem mencionados em primeiro lugar. Como bem caracterizam a nós Cuenca & Hilferty (1999), a Teoria dos Protótipos é o que permite lidar com a língua em perspectiva na qual a distinção entre diacronia e sincronia não se pode estabelecer rigidamente, possibilitando assim, um estudo pancrônico real que supera essa dicotomia não obrigatória. Nesse esteio, trataremos também de conceitos correlatos, ao longo da tese, como conceptualização/ cognição, gramaticalização, mudança e variação linguísticas. Partiremos de estudos que nos possibilitem situar o tempus futuro, em termos de caracterização linguística, correlacionando sua descrição sincrônica à transformação histórica, tendo por meta, portanto, a perspectiva pancrônica. Os estudos cognitivos servirão para a identificação ou mudança de hipóteses acerca de consequências linguísticas da possível forma de conceptualização do tempo futuro e de sua decodificação em tempora futuros. Tratar do futuro verbal em língua portuguesa é tratar, necessariamente, de mudança linguística. Afinal, essa mudança talvez se dê ciclicamente em nossa língua (quiçá em outras), dada a própria constituição cognitiva de que emerge o tempus futuro. Os suportes para modalização e gramaticalização serão interferentes e voltados ao estudo dos critérios de auxiliaridade na expressão do futuro e à própria discussão sobre o valor modal do tempus em si. A comparação pretendida entre usos de futuro do presente do indicativo entre PB, PE e PM precisará, naturalmente, ser precedida por toda uma contextualização 15 Op. cit., p. 104. 27 acerca do que seja a variedade moçambicana da língua, bem como da própria questão da lusofonia em África e no mundo. Pretendemos aplicar tais dados teóricos na descrição e na análise de corpus a serem feitas. Nossa pretensão é analisar comparativamente o PB, o PE e o PM16. Nosso corpus consistirá, em princípio, de textos escritos e orais provenientes de fontes brasileiras, portuguesas e moçambicanas17. Delimitam-se, em nosso estudo, dois grandes eixos intercomunicantes: um descritivo, valendo-se de suportes variados à conformação de um painel acerca da expressão da futuridade verbal em língua portuguesa e um analítico comparativo, a partir de corpora de usos de futuro do presente do indicativo no PB, no PE e no PM. Ainda vemos a necessidade de esclarecer, mais detalhadamente, o porquê do estudo comparativo interno à língua portuguesa de suas três variedades aqui discriminadas. O interesse por tal enfoque remonta a nosso estudo de Mestrado, A oração sem sujeito em língua portuguesa: função, caracterização e uso (Nascimento, 2011), em que deparamos com grande sorte de variação entre o PB e o PE, no que concernia ao objeto em estudo, com destaque para os usos de ter e haver, em contextos impessoais, criando toda uma rede sintática apreciavelmente distinta e para as múltiplas construções ergativas do PB, inexistentes em PE e com consequências sintáticas também marcantes para a diferenciação dessas duas variedades. A partir daí, estabeleceu-se um interesse por descrição gramatical comparativa lusófona que aqui revisitamos, e a qual pretendemos ampliar. A própria pauta da lusofonia, evocada desde o título de nossa tese, receberá tratamento mais específico, com especial atenção ao contexto do português moçambicano, o que tomará curso no capítulo 5. Compete também esclarecer que não pretendemos aqui nos dedicar a aspectos de refinamento teórico dessa ou daquela linha do campo da Linguística. Nosso intento é descritivo. Pretendemos montar um painel abrangente do futuro verbal em português, valendo-nos dos necessários recursos de abordagem teórica que necessários se fizerem para isso. Assim, assumimos a identidade desta tese como de uma Descrição de Língua Portuguesa, justamente vinculada à Linha de Pesquisa de Formação, estrutura e funcionamento da língua portuguesa do Programa de Doutorado em Língua Portuguesa, do Instituto de Letras da UERJ. 16 17 Ver nota 10. No capítulo 6, explicitaremos nosso corpus. 28 Óbvio que perspectivamos, a partir de nossos estudos, desdobramentos de nossa teorização que virá a ser apresentada aqui. Esta tese vincula-se à linha de pesquisa de Formação, estrutura e funcionamento da língua portuguesa. Contudo, pensamos ser possível extrair, de nossos estudos, reflexões não só descritivas como também didáticas. A esse respeito, a própria descrição e uso dos verbos portugueses, em nossa tese, pensamos, cumprirão papel a se considerar. Em outra frente, pretendemos que nosso estudo tenha contribuições a dar a estudos lusófonos comparativos, área de nosso destacado interesse. Aqui, ater-nosemos à descrição em campo morfossintático. No entanto, pensamos que há toda uma gama de áreas e objetos a serem descritos, nessa perspectiva lusocomparativa, mormente nas variedades africanas, em processo de crescente uso do português e de afastamento da variedade europeia, como consecução do processo cultural de independência, mesmo ainda bastante recente, em termos históricos. Apresentadas nossas projeções iniciais acerca de nosso estudo de dupla vertente: descritivo e linguisticamente comparativo, lembremo-nos, por fim, de que a palavra futuro de nossa língua deriva ela mesma do particípio futuro ativo do verbo latino esse, aquilo que existirá, haverá de existir, vai existir, etc. 29 1. PERCURSO HISTÓRICO In principio erat uerbum et uerbum erat apud deum et deus erat uerbum. Óbvio que não nos é possível cogitar a investigação dos tempora futuros portugueses sem perfazer o percurso histórico dessas formas. É a esse ponto que nos dedicaremos na maior parte deste capítulo. Em verdade, aqui pretendemos também lidar com dados indo-europeus, mas nossa prioridade, de fato, é a trajetória latim-português. 1.1 Antes do latim Antes dos pontos principais de nossa trajetória, sem dúvida, na passagem do latim ao português e dentro da própria língua portuguesa, façamos um percurso muito breve pela formação do tempus futuro pelo indo-europeu, referenciados na magnífica obra de Quiles & López-Menchero (2009). Antes de prosseguir, esclareçamos o que entendemos por protoindo-europeu e suas decorrências. Primeiro, deixemos claro que estamos a tomar uma língua teórica reconstruída por cumulativos esforços descritivos desde a Linguística do séc. XIX e não uma suposta língua ancestral dos idiomas indo-europeus. Como advoga Trubetzkoy18, não se trata de uma pressuposição de língua real e concreta comum, mas da identificação de uma série de equivalências em vários níveis para efeitos descritivos, em perspectiva sincrônica e/ou diacrônica. Os períodos de datação do protoindo-europeu divergem bastante, entre dez mil anos a.C. e três mil anos a.C. Por mais que preferíssemos não necessitar aqui dizer isto, ainda é preciso afirmar e reafirmar que o (proto)indo-europeu não é uma língua inventada. Tal rotulação cabe ao esperanto, ao volapük, à interlíngua, ao klingon, ao quenya, ao na’vi19 (estas três últimas criadas para a ficção literária e/ou cinematográfica). O 18 TRUBETZKOY, apud QUILES & LÓPEZ-MENCHERO (2009). O klingon é uma criação do linguista norte-americano Marc Okrand, especialista em idiomas nativos norteamericanos extintos, para a série Jornada nas Estrelas. Quenya, também conhecido como élfico, é uma das línguas criadas pelo escritor e filólogo John Ronald Reuel Tolkien, para sua obra O senhor dos anéis. Já o na’vi foi criado para o filme Avatar pelo professor de Comunicação e doutor em Linguística Paul Frommer. Quanto às 19 30 (proto)indo-europeu é resultado de quase dois séculos já de estudos contrastivos, cumprindo o papel de importante base teórica a estudos históricos. Quiles & López-Menchero (op. cit.) tomam por base a hipótese de Kurgan de expansão do protoindo-europeu entre 4000 e 5000 a.C., em três estágios ao longo do tempo. A partir de tal referência, consideram o protoindo-europeu como remontando há cerca de 3000 a.C.. Os autores ainda pontuam vários pontos de vista sobre tal datação: meados do quarto milênio a.C., de 4500 a 2500 a.C., de 5000 a 3000 a.C. Rumando aos dados de descrição histórica, os autores estimam que o futuro surge, como expressão temporal, após presente, pretérito e aoristo, os tempora primitivos― o que nos parece, além de natural, muitíssimo justificável, cognitivamente― no protoindo-europeu tardio, não tendo se disseminado em alguns de seus dialetos. Sobre o sistema verbal, Quiles & López-Menchero (op. cit., pp. 193- 256.), oferecem-nos uma descrição bastante completa do indo-europeu reconstituído, desde seus primitivos modos indicativo e imperativo, mais tarde adotando também o subjuntivo e o optativo. Como formas verbais finitas, havia o perfeito e o aoristo, perfectivos e o presente, o imperfeito e o futuro como imperfectivos. Notemos que a gênese do futuro é imperfectiva, o que se coaduna, pensamos, à própria matriz de conceptualização primeira do que seja o próprio tempus. Afinal, a concepção de um fato acabado no futuro pressupõe duas operações de interpretação linguística, ao passo que, para a análise imperfectiva, não. Tanto é que um tempus futuro perfectivo só pode se apresentar sob a forma relativa, como veremos no capítulo 2. Também admitem, como já disséramos, que o futuro é uma criação tardia do indoeuropeu. Esse tempus seria formado a partir do presente temático acrescido de terminação em /s/20. Nas palavras dos autores: demais, o esperanto é de referência bastante difundida, proposta por Ludwig Zamenhoff, inicialmente em 1887. Foi construída para ser uma língua franca global, projeto que não logrou êxito. Apesar disso, é a língua artificial mais falada do mundo. Já o volapük, data de 1880, criada por Johann Martin Schleyer. Sua repercussão ficou muito voltada ao próprio fim do séc. XIX, quando se realizou a última convenção internacional sobre a língua, na Alemanha. Por fim, a interlíngua surge em 1951, aproveitando uma grande base lexical, de origem grega e latina, comum às línguas europeias, principalmente. Foi proposta como língua auxiliar. Para que um vocábulo seja nela adotado, é necessário que apresente um radical comum em pelo menos três línguas europeias, dentre português, espanhol, italiano, francês, inglês, alemão e russo. 20 Essa origem pode ser percebida em inúmeros idiomas apresentados pelos autores, como exemplos, dentre os quais: latim arcaico, gótico, sânscrito, báltico, grego dórico, grego clássico (ático), irlandês antigo, osco-umbro. 31 The Future comes probably from Late Proto Indo-European DesiderativeCausative stems, usually formed with extensions in Thematic –s- (and its variants), which became with time a regular part of the verbal conjugation in some dialects […] Usual resources found in Indo-European languages to refer to the future are 1) the Present as Immediate Future, 2) the Present Subjunctive or Aorist with prospective value, 3) different Desiderative formations in Present, and 4) Verbal Periphrasis. 21 22 23 Sobre isso, é interessante notar que outros autores corroboram o supracitado. Horta (1983) informa-nos que a língua grega incorporou o tempo verbal futuro, em termos morfológicos, tardiamente. O mesmo é proveniente de uma construção perifrástica com verbo no presente desiderativo no grego antigo. Tudo isso corresponde a processo, rigorosamente, similar ao com que aqui temos registrado. Jespersen (1951, p. 260) afirma: “Many languages have no future tense proper or have even given up forms which they had once and replaced them by circuitous substitutes.”24 Quiles & López-Menchero (op. cit.), ainda nos apresentam, em sua sistematização de padrões de conjugação verbal de indo-europeu reconstituído, outro aspecto bastante peculiar sobre o tempus futuro. Este seria o único a só apresentar forma de indicativo, não possuindo versões de subjuntivo, optativo ou imperativo, tanto nas formas temáticas quanto nas atemáticas, seja na voz ativa, seja na média25. Os tempora protoindo-europeus corresponderiam, após o desenvolvimento do futuro, a: 21 QUILES E LÓPEZ-MENCHERO (2009, p. 229). Nas citações em língua estrangeira, reportaremos suas traduções livres ao rodapé, preservando no corpo do texto os textos originais com suas cargas de sentido e termos e expressões específicos, tantas vezes, sacrificados nas traduções. 23 “O futuro vem provavelmente de uma forma tardia de temas causativo-desiderativos de protoindo-europeu, geralmente formados com extensões em –s- temático (e suas variantes), os quais se tornaram com o tempo parte regular da conjugação verbal em alguns dialetos [...] Recursos habituais para se referir ao futuro nas línguas indo-europeias são: 1) O presente como futuro imediato, 2) O Presente do subjuntivo ou o aoristo com valor prospectivo, 3) Diferentes formações desiderativas no presente, e 4) Perífrases verbais.” 24 “Muitas línguas não apresentam nenhum tempo verbal próprio de futuro ou abdicaram das formas que um dia tiveram substituindo-as por formas complexas.” 25 Recordemos que, ao que tudo indica, confirmado em diversas fontes, dentre elas, QUILES E LÓPEZMENCHERO (op. cit.) e BENVENISTE (2005), a voz média antecede, geneticamente, a passiva nas línguas. 22 32 Presente: desinência ō Imperfectivos Imperfeito: desinência óm Futuro: sjō Aoristo: por aumento em é Perfectivos Perfeito: por redobro O futuro teria sido formado com s temático desinencial, no protoindo-europeu tardio, oriundo do presente de valor desiderativo-causativo. Por exemplo, na forma reconstituída weid-sō (desejo ver), passando à forma weidsjō. Quiles & López-Menchero (2009, p. 195) afirmam categoricamente que o futuro verbal corresponde a uma inovação do protoindo-europeu. Segundo nosso juízo− e revisitaremos esta assertiva em vários pontos de nossa tese− o futuro verbal, com todas as suas possibilidades de estruturação morfológica, é, de fato, um tempus sui generis, em meio à grade de tempora. Nos dialetos26 protoindo-europeus, logo teriam surgido, como formas básicas de futuro: a) –s atemático ou –se/-so, sje/sjo ou ainda –sēje/-sējo também atemáticos; b) com vogal –e no radical; c) com ou sem reduplicação. Desta forma, encontramos em línguas antigas, por exemplo: -s- em sânscrito e em báltico; -sje/sjo em sânscrito, grego dórico, lituano antigo; -sēje/o ou –sje/o em grego clássico e em latim arcaico (veja-se a forma faxo, de facere, radical mais –so); -se/o em latim clássico; 26 Entendamos por dialetos indo-europeus as línguas, teóricas ou não, primitivas das atuais famílias linguísticas, assim: latim, grego, eslavo, germânico, báltico, etc. 33 com redobro, em irlandês antigo; terminações em –s no ramo indo-iraninano (-is) e osco-úmbrio (-os). O germânico e o eslavo teriam desenvolvido formas inovadoras de futuro, sem –s. Os usos atuais majoritários de futuro verbal, nas línguas indo-europeias, ainda mantêm ligação com seu nascedouro, sendo os principais: presente com valor de futuro; presente ou aoristo subjuntivo, com valor prospectivo; diferentes formações desiderativas, a partir do presente; perífrases verbais variadas. Sobre o segundo uso em especial, registre-se que há indícios de que no protoindo-europeu o aoristo subjuntivo era utilizado com valor de futuro. Já em protoindo-europeu, usar-se-iam perífrases com valor de futuridade. Compare-se, por exemplo, a forma protoindo-europeia wṛ tō (tornar-se), em construções com valor de futuridade, com a família germânica, em valores equivalentes: werpō (proto-germânico), wairpan (gótico), werthan (holandês antigo), verđa (norueguês antigo), weorđan (inglês antigo), wertha (frísio antigo), werdan (alto alemão antigo), worth (inglês), werden (alemão). Também com valor de futuridade, construções com sk(e)lō (dever, em acepção deôntica27), em protoindo-europeu. Comparem-se, mais uma vez, exemplos germânicos equivalentes: skulō (proto-germânico), skulan (gótico), sculan (sueco antigo), skola (norueguês antigo), solan (alto alemão antigo), sullen (médio holandês), shall (inglês), sollen (alemão). Atentemos para o fato de que as perífrases de valor de futuridade são, portanto, recurso antiquíssimo para a expressão e potencial gramaticalização posterior do valor de futuro verbal, como vemos, clara e ancestralmente, no caso de shall, para a língua inglesa atual. Assim também o foi com a forma protogermânica welljan (desejar), correspondente à raiz protoindo-europeia wel-, equivalente ao atual inglês will. 27 Trataremos alentadamente da modalidade deôntica em nosso próximo capítulo. 34 No ramo osco-úmbrio, desenvolver-se-ia uma perífrase de especial interesse para nós, a partir da raiz protoindo-europeia bheu- (existir), convertida no latim a desinência, resultando, por exemplo, em amabo, proveniente de amāi bhéwo, o que nos permite flagrar um movimento muito ancestral de passagem de forma analítica à sintética, como tornará a se verificar na passagem do latim vulgar ao português. A respeito da construção de futuro com perífrase de verbo existencial, registremos que, em russo atual, o verbo com que se constroem perífrases de futuro composto é быть (bit), justamente o que expressa estado permanente ou transitório nessa língua (cf. PULKINA, s.d., p. 215). Quiles & López-Menchero ainda nos informam dos valores que tomam por condicional, apontando-a como forma inovadora, sobretudo quando advinda de uma forma pretérita do futuro: Quadro 1: comparação entre futuro e condicional. Língua Futuro Condicional I will I would Ich werde Ich würde Espanhol haré haría Polonês bym, byś, by [pretérito] + bym, byś, by Inglês Alemão Na verdade, tais exemplos e a preteridade da forma de futuro para expressão do “condicional” só reforçam nosso entendimento, a ser explorado no capítulo 3, de que o concidional deva, de fato, ser tomado por futuro do pretérito. Contraste-se esses “usos inovadores” à expressão da condição, há uma geração de línguas. Em latim, valia-se, para tanto de períodos compostos com indicativo e subjuntivo; já no grego clássico, subjuntivo e optativo. Em sânscrito28, no entanto, havia uma forma própria a tal noção, tal qual nas línguas modernas: bhavisyá-m (proveniente do indo-europeu bheu-), “eu seria” (cf.: bhavi-syá-mi, “eu serei”). 1.2 Do latim ao português 28 Voltaremos a dialogar com esse dado da língua sânscrita, a partir de Camara Jr. (1951), no capítulo 3. 35 Iniciamos nossa sondagem em torno da análise do paradigma verbal latino que opunha os tempora, segundo grande simetria aspectual, nos modos indicativo e subjuntivo, assim representada: Quadro 2: perfectum e infectum latinos. Imperfectivo Perfectivo Presente Pretérito perfeito Pretérito imperfeito Pretérito mais-que-perfeito Futuro imperfeito Futuro perfeito Presente Perfeito Imperfeito Mais-que-perfeito INDICATIVO SUBJUNTIVO No imperativo, necessariamente, pela própria natureza desse modo, só lhe cabem formas imperfectivas. Já nas formas verbais infinitas, não vemos a equivalência mencionada. Temos, como formas perfectivas, o particípio passado e o infinitivo passado. E são majoritárias aqui as formas imperfectivas, sendo elas: o particípio presente, o particípio futuro, o infinitivo presente, o infinitivo futuro, o gerúndio e o supino. Retornando ao modo indicativo latino, é preciso notar que há uma clara contraposição entre presente e pretérito perfeito. Isso já é uma importante distinção em relação à língua portuguesa29. Notemos que, em nosso idioma, há uma nítida oposição entre o pretérito perfeito e o imperfeito, de consequências várias. Não afirmamos que não se desse em latim a mesma distinção aspectual. O que dizemos é que, no idioma romano, o perfeito indica, primordialmente, em que pese a terminologia adotada para esse tempo, um fato concluso no presente. Cabe convocar aqui a análise de Ilari (2008) a esse respeito: [...] percebe-se que os valores primitivos dos tempos verbais latinos eram um tanto diferentes do que sugerem suas traduções românicas. O sentido exato de vixit (apesar da tradução portuguesa “viveu”) era “o indivíduo apontado pelo sujeito da oração completou a ação de viver” ou “ele viveu até o fim” (portanto: morreu); a primeira leitura era aspectual, isto é, a ação não era representada como passada, mas como acabada no momento da fala.30 29 30 Trataremos, detidamente, da caracterização do pretérito perfeito português no próximo capítulo. ILARI (2008, p. 101). 36 A título de ilustração, talvez a esse respeito, o sistema da língua grega clássica, seja mais nítido, com o pretérito perfeito e o aoristo, este sim se referindo a um fato específico do passado. Talvez por isso, Benveniste (2006) lembre-nos de que “Constata-se que nas línguas dos mais variados tipos, nunca falta a forma do passado, e que muito historicamente ela é dupla ou mesmo tripla. As línguas indoeuropéias antigas dispõem, para esta expressão, do pretérito e do aoristo, e mesmo do perfeito.”31. Ainda sobre o aoristo, é interessante trazer aqui a observação de Quiles & López- Menchero (op. cit.): There is some confusion on whether the Aorist (from Gk. Αοριστος, “indefinite or unlimited”) is a tense or an aspect. This reflects the double nature of the aorist in Ancient Greek. In the indicative, the Ancient Greek aorist represents a combination of tense and aspect: past tense, perfective aspect. In other moods (subjunctive, optative and imperative), however, as well as in the infinitive and (largely) the participle, the aorist is purely aspectual, with no reference to any particular tense. Modern Greek has inherited the same system. In Proto Indo-European, the aorist was originally an aspect, but before the split of Late Proto Indo-European dialects it was already spread as a combination of tense and aspect, just as in Ancient Greek, since a similar system is also found in Sanskrit.32 33 Toda essa questão aspectual é, a nosso ver, indissociável da questão temporal, embora sejam essas categorias verbais distintas. Hoje, a correlação entre tempora e verbos é, aparentemente, muito íntima. Ao pensarmos no português, por exemplo, ou mesmo em tantas outras línguas modernas, é muito difícil não associar verbo a tempo. Benveniste (2005) já chama a atenção de que, há uma geração de línguas, o aspecto parecia muito mais enfático na expressão verbal do que o próprio tempo. Se tentarmos― e não é possível mais do que uma tentativa neste sentido, até pelo necessário artificialismo que recobre esta ação, uma vez que é impossível situar a exata percepção de um falante nativo, a menos que seja por relatos do 31 BENVENISTE (2006, p. 76). QUILES & LÓPEZ-MENCHERO (2009, P. 193). 33 “Há alguma confusão sobre se o aoristo (do grego αοριστος, “indefinido” ou “ilimitado”) é um tempo verbal ou um aspecto. Isso reflete a dupla natureza do aoristo no grego antigo. No indicativo, o aoristo do grego antigo representa a combinação de tempo verbal e aspecto: tempo passado e aspecto perfectivo. Em outros modos (subjuntivo, optativo e imperativo), embora, também no infinitivo e (amplamente) no particípio, o aoristo é meramente aspectual, sem nenhuma referência a nenhum tempo verbal em particular. O grego moderno herdou o mesmo sistema. No protoindo-europeu, o aoristo era originalmente um aspecto, mas antes da divisão de dialetos do protoindo-europeu tardio, já se espalhou como uma combinação de tempo verbal e aspecto, assim como em grego antigo, uma vez que um sistema semelhante também é encontrado em sânscrito.” 32 37 próprio― nos colocar no lugar de um falante latino34, parece-nos bastante plausível que a conceptualização aspectual ocorresse antes da temporal, afinal era aquela que estabelecia os radicais, de perfectum ou de infectum, a serem utilizados. Tal comportamento tornou-se menos usual em nossa geração de línguas. Como contraexemplo, temos a língua russa, profundamente aspectual (cf. PULKINA, s.d.). Pensamos que o verbo não é uma categoria morfológica, fundamentalmente, temporal, pelos motivos arrolados. Como apresentamos em nossa introdução, advérbios e mesmo adjetivos também lidam, embora de forma menos sistemática, com a categoria tempo. Mesmo o aspecto não é o que, em si, define os verbos. Costa (2002) considera, por exemplo, que embora a constituição aspectual preceda a temporal, vemo-nos aí diante de uma questão de inegável apelo cognitivo. Lembremo-nos de que, embora alcance a plenitude nos verbos, a noção de aspecto é extensível a outros grupos de vocábulos lexicais. Encontramos oposição aspectual, por exemplo, no par adverbial já e ainda. Mesmo em substantivos e adjetivos do português, é possível rastrear vestígios de conceptualização aspectual, como nos lembra Costa (2002, p. 89), em pares como: filme/ filmagem, treino/ treinamento, ajuste/ ajustamento (substantivos) e completo/ completado, concluso/ concluído, irritável/ irritante ou irritado (adjetivos). Por tudo isso, consideramos que aquilo que marcantemente define o verbo encontra-se em plano morfossintático, sendo este o papel de predicador, função de absoluta centralidade linguística, viabilizadora da oração e, a partir daí, de suma importância na própria comunicação humana em sua grande extensão. Claro que não desconsideramos que, do ponto de vista estritamente morfológico, a grande marca dos verbos é sua vasta malha flexional. É bastante interessante o fato de que o futuro latino não tenha se conservado em nenhuma língua descendente. Elia (1974, p. 235) diz-nos que, para isso, contribuíram fatores de ordem muito variada, destacando-se razões de ordem “morfológica, fonética e psicológica” que passamos a aqui resumir. O primeiro fator que o estudioso apresenta-nos é o que ele próprio denomina de “assistemática”, em meio à conjugação latina e que correspondia a dois processos de formação diferenciados, sem aparentes vinculações morfológicas, um para a 1ª e 2ª 34 Falante de latim é, reconhecemos, uma categoria bastante difícil de levar em conta, tanto em tempo quanto em espaço. Portanto, ao nos referirmos a falante de latim, consideramos todo e qualquer habitante do Império Romano que fizesse uso efetivo do latim como primeira língua. 38 conjugações, como vemos em amabo e habebo, e um para a 3ª e 4ª conjugações, por exemplo, em legam e audiam. Já na passagem ao latim vulgar e a consequente comutação de /b/ a /v/35, instituíram-se formas coincidentes entre a 1ª conjugação do futuro e o pretérito perfeito, como vemos em amabit>amavit. Ainda no campo fonético, também em latim vulgar, o /i/ breve dá lugar a /e/, estabelecendo-se uma situação de coincidência morfológica com a 3ª conjugação do presente do indicativo, como ocorre em legis>leges. Não bastassem essas razões, na 3ª e na 4ª conjugações, a primeira pessoa do singular era idêntica a do presente do subjuntivo, e.g. legam, audiam. A todos esses motivos, somam-se ainda os referidos como de ordem “psicológica” os quais tomamos como de motivação claramente cognitiva e que passamos à citação direta do autor: O futuro não é um tempo como um outro qualquer; não exprime uma realidade (como o presente e o passado) e sim uma possibilidade. Ora, as coisas possíveis têm raízes subjetivas. São havidas por desejáveis, necessárias ou mesmo inevitáveis; mas não como certas. Uma vez que o futuro passa pela subjetividade do falante, adquire caráter “modal”, pois o modo representa a interferência do sujeito no processo verbal. O não ser puramente um tempo verbal leva-o a um refazimento constante na língua viva, isto é, ali mesmo onde as línguas se elaboram.36 Coutinho (1976, p. 276) corrobora as razões apontadas por Elia (op. cit.) para a queda dos futuros latinos. Após o desaparecimento dessas formas, passam a prevalecer, já em latim vulgar, perífrases. Como comumente se dá, uma das posições da perífrase volta-se ao papel da modalização. Assim, foram profícuos no latim vulgar os auxiliares habeo, volo e debeo. A esse respeito: Na constituição da categoria de futuro românico, que se dá mais tarde, o rumeno prefere volo (voi lauda), enquanto a maior parte do Ocidente usa habeo (port. Louvar-hei, esp. loar-é, fr. Je louer-ai, prov. Lauzar-ai, it. Loderò), com formas diferentes em algumas regiões, e.g., debeo, que persiste no logudorês (depo kantare), etc.37 Além das formas habeo + infinitivo, volo + infinitivo e debeo + infinitivo, registradas pelo supracitado autor, também encontramos, no latim vulgar, a perífrase venio + infinitivo. A variedade de auxiliares aí atestados aponta para o mesmo 35 Maurer Jr. (1959, p. 140) alerta que tal mudança só ocorreu universalmente na 1ª conjugação,. Nas demais, ocorreu, irregularmente, por analogia ou mesmo se perdeu a consoante. 36 ELIA (1974, p. 236). 37 MAURER JR. (1959, 125). 39 sentido do que verificamos sobre a formação do futuro em outras línguas: inglês (will), alemão (werden), holandês (zal), a título de ilustração. Outro aspecto interessante a nos debruçarmos é o da posição do verbo auxiliar na constituição perifrástica latina. Hoje, habitualmente, lidamos com o auxiliar na primeira posição do conjunto verbal. No entanto, na locução com habere, em um ponto entre o latim vulgar tardio e o romance inicial (cf. ELIA, 1974), já havia a prevalência do infinitivo em primeira posição, em que pese contraexemplificação, inclusive, literária, como se vê no Poema Del Cid (idem). É da forma com auxiliar composto que surgem, em muitas línguas românicas, a construção de que derivará o futuro “simples” do indicativo, não só em português, mas também em espanhol, em francês, em catalão, em provençal e em italiano. Castilho (2010) vai interpretar esse auxiliar móvel, como um afixo. Cabe ainda acrescer uma reflexão de caráter morfossintático a essas nossas considerações. O latim vulgar assiste a um profundo rearranjo da oração latina. A queda do sistema de casos levou a um uso mais sistemático do quadro preposicional e a um enrijecimento da oração, vide as contemporâneas línguas de origem românica em face do latim. Porém, é bastante plausível cogitarmos que, em meio a essa reorganização oracional, tenha havido um período em que a própria constituição perifrástica verbal tornou-se parte das oscilações que ali tomaram curso. No que concerne ainda ao latim vulgar, é interessante constatar que a frisada simetria aspectual da língua clássica rompeu-se. A partir daí, o que era interpretado prioritariamente como um fato concluso ou não passou a receber uma análise de localização temporal primariamente, dentro de um sistema de referências e correferências complexo que elucidaremos no capítulo seguinte. Maurer Jr. (1959, p. 124) observa que a quebra do sistema aspectual trouxe como consequência indireta uma identidade grande― que, hoje, parece-nos, inclusive, intuitiva― entre pretérito e o aspecto perfectivo. Aliás, Maurer Jr. (op. cit., ibidem) também afirma que o presságio da perda da oposição aspectual já se iniciara pela fusão, no latim, entre os valores de perfeito e de aoristo, sob a forma do pretérito perfeito do indicativo. Foi nos tempora futuros que as mudanças de parâmetros verbais foram mais profundas. Os futuros latinos perderam-se completamente na passagem para o português– a exemplo do que ocorreu, como já dissemos, nas demais línguas românicas− sendo tardiamente reintroduzidos no idioma sob roupagem totalmente vernácula: o futuro do presente simples e o, assim convencionalmente denominado, 40 futuro do presente composto38. Já o futuro do pretérito do indicativo, em suas duas formas, simples e composta, correspondem a uma inovação ainda mais profunda de nossa língua. Isso porque, em latim, sequer existia tal tempus. Em latim vulgar, o futuro imperfeito latino assumiu a forma de locução verbal, em uma perífrase constituída pelo verbo habere antecedendo a forma de infinitivo do verbo principal. Daí advém nosso futuro do presente simples, pela posterior interpolação do verbo auxiliar em posposição ao principal. Na passagem ao português, perdeu-se o futuro perfeito que sobrevivera em latim vulgar. O mesmo foi resgatado, semanticamente, sob a forma de tempo composto, sob a perífrase ter/haver seguido pelo particípio do verbo principal. O futuro imperfeito latino, reaglutinado a partir da perífrase habere + infinitivo, sobrevive como o conhecido futuro do presente simples. Este, morfologicamente, incorpora em seu radical o que outrora era seu verbo auxiliar, apresentando como desinência modo-temporal os morfemas –ra ou –re.39 As mesmas observações sobre a formação do futuro do presente devem ser aplicadas ao futuro do pretérito, tempus inovador do sistema neolatino, com a mudança, por analogia, mais tarde, do morfema modo-temporal para –ria ou –rie, em português. Lembremos que, em termos históricos, o futuro imperfeito latino, por sua vez, já era oriundo de uma perífrase com a raiz indoeuropeia bheu- resultando na, mais tarde, desinência modo-temporal –bo, confirmando o movimento de expansão-retração na configuração morfossintática do tempus futuro, como remontando a tempos remotíssimos. Castilho (op.cit.) relata-nos o futuro verbal latino correspondendo a uma forma que herda simultaneamente as ideias de posse, futuridade e modalização. A título de exemplo, oferece-nos a frase Scribere litteram habeo (Eu tenho uma carta para escrever). Segundo o autor, há aí duas ideias interligadas: a de “possuir uma carta” e a de “precisar escrever uma carta”. Essa duplicidade de conceptualização vai ser bastante responsável e inter-relacionada a fenômenos de reorganização da grade de tempora portugueses. A forma habeo tornou-se, em latim vulgar, expressão de perfectividade, em nível panromânico, abrangendo mesmo a Dácia40. Mais tarde, junto aos verbos de 38 No capítulo 3, problematizaremos a impropriedade que identificamos na terminologia futuro do presente composto. 39 O percurso dessa forma merece registro. Aqui utilizamos a sistematização adotada por Castilho (2010, 404): amarábeo>amaráveo> *amaráeo> *amararyo>amaray> amarei. 40 Como é notoriamente sabido, a história do que fora o Império Romano do Ocidente é, a partir do séc. V, bastante desencontrada com o ainda Império Romano do Oriente. Claro que isso haveria de se refletir nas 41 movimento, se registra para tal finalidade sum. Em romeno, encontraremos o mesmo, mas não apenas com verbos de movimento, o que sugere uma analogia com línguas eslavas. Segundo Maurer Jr. (1959), na língua vulgar, o futuro era, com frequência, tomado por presente ou subjuntivo. Ainda nos declara que, até hoje, em dialetos italianos, como o calabrês e em outros do sul da Itália, o futuro não é usual. Quanto ao futuro perfeito, este sobrevive no período inicial do latim vulgar, curiosamente mais atestados nas duas extremidades do Império Romano, a Ibéria e a Dácia, o que pode denotar uma extinção do uso desse tempus, nas regiões de maior prestígio, sobrevivendo tão somente nas periferias sob menor influência direta romana. Em português e em espanhol, o referido tempus ressurge no futuro do subjuntivo, restrito aos contextos subordinados temporal, condicional e com relativas de valor condicional, mesma função que detinha em romeno antigo. No dalmático, sobrevive como futuro simples do indicativo em lugar da perífrase que vigorou nas demais línguas irmãs. Sistematizemos, enfim o quadro evolutivo, dentro do latim, do futuro, tomando por base o percurso do futuro imperfeito latino à perífrase que instauraria o futuro do presente/ simples nas línguas neolatinas. Nesse percurso, temos, em síntese: latim arcaico: futuro em /s/, derivado do indo-europeu, a exemplo do futuro sigmático grego, oriundo de presente desiderativo; formas subjuntivas que desempenhavam, cognitivamente, o papel de futuro; o típico futuro imperfeito latino, com desinência modo-temporal –bo; a perífrase com habeo, ora preposto, ora posposto ao verbo infinitivo, com valor promissivo e o particípio futuro ativo em –urus (-a/-um) junto a sum, especialmente com verbos de movimento. Sabemos que a forma que acabou por predominar e se tornar base para a maior parte dos futuros neolatinos foi a com habeo móvel, acabando por se fixar línguas. O romeno, por exemplo, afora um grandioso substrato lexical e mesmo de certas construções sintáticas de origem eslava, ainda bastante perceptível, destoa bastante de uma série de fatos descritivos que têm em comum as línguas latinas ocidentais. 42 posposto ao infinitivo. Segundo Camara Jr. (1985), a aglutinação entre habeo e o infinitivo concluiu-se no séc. XII41. Há ocorrência atestada do novo futuro românico, no séc. VII, datando do ano de 613, da Crônica de Fredegar, como nos mostra Camara Jr. (1957, p. 32): − et ille respondebat: non dabo − Iustinianus dicebat: daras. Ob hoc loco illo, ubi haec acta sunt, civetas nomen Daras fundata est iusso Iustiniano quae usque hodiernum diem hoc nomen nunc opatur.42 Nesse exemplo, trata-se da suposta etimologia popular para a cidade de Daras, no diálogo entre Justiniano e um imperador persa. Camara Jr. (1957, p. 32) afirma sobre a forma daras que “seu sentido é aí de uma volição decidida, ou antes imperativa: contrasta, na incisiva réplica de Justiniano, com o futuro clássico [na forma dabo]”. A respeito da mesma citação, Bechara (1962, p. 18) diverge da interpretação de Camara Jr., ao afirmar que “Com certeza o dabo de Fredegário é mais um exemplo desta forma como presente― aqui presente categórico― para substituir a monossilábica do”. Bechara ainda problematiza que, no séc. VII, a forma dabo, na fala, linguagem de referência da crônica, já não mais apresentaria valor de futuro. Agora, rumemos ao português arcaico. Nesse período, temos, para a expressão de futuro, estas perífrases: as com infinitivo acompanhado de aver, ou ter de, ou ainda ter a e as de ir também com infinitivo. Tanto com aver/ ter quanto com ir há um sentido de gramaticalização grande. Aliás, ambos os verbos, comumente se prestam a papéis funcionais na língua, vide seu uso para a formação de orações sem sujeito. Aqui já consideramos que avere e ter, na história da língua, apresentam o mesmo padrão de comportamento e, portanto, podem ser encarados como o mesmo caso para efeitos de análise. Os dois percorreram na língua o trajeto de indicadores de posse concreta, depois de posse abstrata e, por fim, de existência. Do mesmo modo, ambos são verbos de grande grau de opacidade, expressa, inclusive, na brevidade da sequência fônica que os sustenta. Cremos que o caminho 41 Segundo as datações de que temos conhecimento, o séc. XII corresponde ao período do galego-português. Não pretendemos problematizar aqui tal período, mas, em nosso entendimento, galego-português nada mais é do que o romance praticado nas regiões da Luzitânia e da Galícia, registrados por meio de fontes literárias. 42 “− e ele respondeu: não darei. –Justiniano disse: darás. Por esta razão, nesse local onde esses fatos se passaram, uma cidade de nome Darás foi fundada por Justiniano, cidade que até hoje é chamada por esse nome”. 43 da gramaticalização dessas formas em locuções de valor futuro passa 43 necessariamente por aí . É importante destacar que a gramaticalização de ir junto a infinitivo, como expressão de futuro, é posterior a de aver/ter de. Ir, de nossos verbos mais irregulares é resultado do entrecruzamento de três formas latinas: ire, vadere e esse, o que confirma e enfatiza a opacidade desse verbo português como operador gramatical, nesse caso, quase um verdadeiro identificador de futuridade. Note-se também que, segundo Coseriu (1957, p. 6), sobre a abrangência da mudança carreada pela forma perifrástica, amare habeo, por exemplo, não substituiu apenas amabo, mas também mihi amandum e amaturus sum, embora estas tenham desaparecido por razões outras. Para além do longo percurso de mudanças ocorridas que levaram ao surgimento da forma analítica de futuro, mais tarde sintetizada morfologicamente, há ainda o debate acerca das motivações de tal mudança. A isso, dedica-se com ênfase Coseriu (1957), em seu célebre artigo. Primeiro, o autor realiza uma recensão das duas grandes correntes teóricas a justificar a mudança do futuro clássico para o vulgar: a morfológica e a estilística ou semântica. A primeira argumentaria que o paradigma do futuro clássico apresentava-se por demais heterogêneo, formando-se distintamente na 1ª e na 2ª conjugações, em face da 3ª e da 4ª. Nas palavras do autor, a respeito dos argumentos da tese morfológica: [...] ya em latín clássico, constituía un “punto débil” del sistema. Ahora, em el latín “vulgar” se confunden a menudo [w] y /b/ y com ello surge la confusión de las formas de futuro (amabit) con las de perfecto de indicativo (amavit). Por otra parte, el pasaje de ĭ a e y la perdida de la cantidad vocálica llevan a molestas homofonías o casi-homofonías entre las formas de futuro de los verbos de 3ª y 4ª conjugación y las formas de presente de los mismos verbos (dices ~ dicis, dicet ~ dicit).44 45 43 Tanto para o percurso de aver quanto de ter para a expressão de existência, remetemos à nossa dissertação de Mestrado (NASCIMENTO, 2011) e, dela, retiramos, ainda para uma mais clara contextualização do processo de opacidade verbal a que fizemos alusão, esta passagem: Nossa hipótese [...] é que a própria conformação mórfica irregular/anômala contribui para a perda de transparência semântica da forma verbal em questão. Nesse contexto, a aderência entre significado e significante se tornaria mais frágil. Essa debilidade de dado signo verbal predisporia tal forma a papéis mais gramaticalizados na língua. Dentre esses, a própria construção impessoal, instanciada em estrato linguístico funcional que é. Em outras palavras, um maior nível de opacidade da forma verbal habilita-a a se tornar um possível instanciador gramatical de construção impessoal. Caso exemplar desse processo de gramaticalização observamos no verbo haver que se enquadra em todos os pré-requisitos por nós apresentados: esvaziou-se lexicalmente, desempenhando funções gramaticais na língua; no PB fossilizou-se, é apreensível ao falante da língua tão somente em sua esfera existencial, portanto, impessoal (NASCIMENTO, 2011, p. 158). 44 COSERIU (1957, p. 2). 45 “... já no latim clássico constituía um “ponto débil” do sistema. Agora, no latim “vulgar” muitas vezes se confundem [w] e /b/ e com isso surge a confusão das formas de futuro (amabit) com as de perfeito do indicativo (amavit). Por outro lado, a passagem de ĭ a e e a perda da quantidade vocálica levam a homofonias indesejáveis 44 O próprio Coseriu (1962) considerará tal motivação insuficiente para a mudança, uma vez que ela não traz em consideração qualquer necessidade expressiva nova agregada argumentativamente. Já Camara Jr. (1956 e 1957) tomará tal linha de teorização por “mecanicista”. A segunda grande linha teórica a tratar da motivação da mudança do futuro, a estilística ou semântica, identificada por Coseriu (op. cit.), mormente, com Karl Vossler46, atribuiria a prevalência da forma perifrástica vulgar à necessidade “afetiva” de os falantes romperem com a “logicidade” do futuro simples clássico e lhe poderem colorir a forma e expressão com valores subjetivos, modais. Assim, é que o futuro, passaria, segundo tal teorização, a ser encarado como a “expressão de um dever moral”, nas palavras de Euger Lerch47. Essa segunda vertente teórica será apontada por Coseriu (op. cit.) como também insuficiente. A suposta oposição entre o futuro clássico “lógico” e o vulgar “afetivo” é de todo frágil e insustentável. Como desenvolveremos adiante, os valores modais são bastante abrangentes e tendem à universalização. Além disso, tal teoria não considera, por exemplo, que o futuro desinencial em –bo não apresentava a mesma distribuição histórico-geográfica em todo o Império Romano, sendo vernácula, efetivamente, de Roma e circunvizinhança. O eminente linguista romeno ainda alertará para o circuito modalizaçãotemporalização cíclico das formas de futuro, flagrado desde o latim arcaico, como já aqui vimos. Por fim, Coseriu (op. cit., p. 15) vaticina como motivação à transformação perifrástica que tomou curso no latim vulgar o advento do cristianismo. Nas palavras do autor: La circunstancia historicamente determinante fue, sin duda, el cristianismo: um movimento espiritual que,m entre otras cosas, despertaba y acentuaba el sentido de la existência e imprimia a la existência misma uma genuína orientación ética. El futuro latino-vulgar, em cuanto no significa “lo mismo” que el futuro clássico, refleja, efetivamente, uma nueva actitud mental: no es ou quase homofonias entre as formas de futuro dos verbos de 3ª e 4ª conjugação e as formas de presente dos mesmos verbos (dices ~ dicis, dicet ~ dicit).” 46 Embora atribua a Vossler a maior identidade da teoria em questão, o autor traz à baila, outros nomes que também aí se identificariam, em maior ou menor grau, como: Antoine Meillet, Charles Bally, Leo Spitzer, Wilhelm Meyer-Lübke, Eugen Lerch. 47 LERCH apud COSERIU (1957). 45 el futuro “exterior” e indiferente, sino el futuro “interior”, encarado com consciente responsabilidade, como intención y obligación moral.48 Acrescenta ainda, em suas considerações, a identidade entre a nova forma de futuro verbal e o dever moral e a própria vontade em fazê-lo. A respeito da suposta relação entre difusão do cristianismo e mudança da forma verbal de futuro, pensamos que mais se trate de uma coetaneidade do que de uma motivação. A ascensão do cristianismo dá-se, pari passu, à fragmentação do Império Romano, cujos espólios serão justamente usufruídos pela Igreja Católica Apostólica Romana. O período de difusão e consolidação da forma perifrástica latina ocorre entre os séculos VI e X, mais detidamente. Em tal período, Alta Idade Média, ideologicamente, a Igreja faz as vezes de classe dominante, já não apresentando a mesma inflexão de atitude moral que marcou sua consolidação por dentro do Império. O afluxo de escritores cristãos, dentre eles, citado enfaticamente por Coseriu (op. cit.), Santo Agostinho, a difundir tal forma de futuro é posto em dúvida por Bechara (1962), ao afirmar que os principais nomes a difundir textos em latim eclesiástico faziam raro uso da forma perifrástica: S. Cipriano, S. Hilário, S. Filástrio, S. Ambrósio, Prudêncio, Lactâncio e S. Jerônimo. Segundo o autor, até o início do séc. IX a perífrase vulgar de futuro não havia ainda se generalizado em meio escrito literário e/ou eclesiástico, em situação bastante díspar do uso falado, ao que todas as fontes indicam, difundido. Após uma série de considerações divergentes da tese do advento cristão como motivador à mudança da forma de futuro verbal latino, Bechara (1962, p. 19) postula seu rol de possíveis motivações: a) A deriva do latim corrente no sentido das construções analíticas; b) resultante daí, o emprego de vários verbos como auxiliares modais (como posse, vele, coepi, incipere, habere, etc.); c) As construções perifrásticas frequentes no grego, através da linguagem bíblica. Vemos na primeira razão apontada o verdadeiro e definitivo motivo para a mudança no latim, como bem comprova o percurso histórico tanto anterior quanto posterior, já em língua portuguesa, em óbvia deriva herdada. A segunda razão não 48 “A circunstância historicamente determinante foi, sem dúvida, o cristianismo: um movimento espiritual que, entre outras coisas, despertava e acentuava o sentido da existência e imprimia à existência mesma uma genuína orientação ética. O futuro latino-vulgar, ao não significar “o mesmo” que o futuro clássico, reflete, efetivamente, uma nova atitude mental: não é o futuro “exterior” e indiferente, mas o futuro “interior”, encarado com consciente responsabilidade, como intenção e obrigação moral.” 46 passa de constatação válida também para o português e tantas outras línguas. Já a última, em princípio, não vemos como motivo a justificar a mudança na oralidade, embora possa, de fato, ter influenciado a escrita, o que, como vimos e como seria de se esperar, deu-se em ritmo muito mais lento. Assim, poderíamos traçar um percurso, desde o latim arcaico ao português contemporâneo, com as seguintes formas: Quadro 3: futuro verbal, do latim arcaico ao português contemporâneo. amāi bhéwo→ amabo→ amare habeo→ amar hei→ amarei→ vou amar Sobre o que diz respeito direto a nosso estudo, ainda cabe registrar o levantamento de Mattos e Silva (2001, p. 44) acerca do quadro desinencial modotemporal do período arcaico. Embora a autora apresente-nos o conjunto desses morfemas, ater-nos-emos tão somente aos de tempora futuros: no futuro do presente, já estavam instituídos os alomorfes –re e –ra da forma sintética; no futuro do pretérito, havia apenas a desinência –ria, sendo, portanto, a aquisição do alomorfe –rie do período moderno da língua. A respeito do último dado, registremos a evolução, nas três conjugações da forma arcaica de futuro do pretérito para a moderna. Nesse processo, simultaneamente, observamos a queda do –d- intervocálico que trará consigo consequências de assimilação (cf. Mattos e Silva, 2001: 45): Quadro 4: evolução do futuro do pretérito, do português arcaico ao moderno. FUTURO DO PRETÉRITO Português arcaico Formas intermediárias (hipotéticas) Português moderno amaríades amaríaes amaríees amaríeis deveríades deveríaes deveríees deveríeis partiríades partiríaes partiríees partiríeis 47 Já no séc. XV, verifica-se o apagamento desse -d- intervocálico. Em Gil Vicente, sua presença é tão somente marca estilística para distinção social da fala de certas personagens (cf. Teyssier, 2007 e Spina, 2008). O uso do presente do indicativo, com valor de expressão futura, já é atestável desde o séc. XIV, ao menos, retirado dos Diálogos de São Gregório, catalogados por Rosa Virgínia Mattos e Silva, como parte de corpora para o estudo gramatical do português arcaico, como podemos ver em Mattos e Silva (1989). Um dos trechos do referido documento que registra uso de tempus presente, com valor de futuro são estes: Aquesto que ora eu conto aprendi-o por testemõio d’homẽẽs muito honrados. E pera seeres certo, Pedro meu amigo, destas cousas que ti eu conto, direi-ti os nomes dalgũũs a que algũũs feitos de que eu falo acaeceron e enton poderás entender de todas aquelas cousas que ti eu conto.49 [grifos da autora] Segundo esclarecimentos da autora, esses trechos antecedem o início das narrativas de São Gregório. De maneira análoga, também no séc. XIV, temos registros de ocorrências do pretérito imperfeito do indicativo para a expressão do futuro do pretérito, como abaixo: Quando chegou ao flume Jordan e vio non podia passar, como quer que eu metesse hũa vegada o manto de Elias, seu meestre, que tragia ena agua e nonno partio de si, na segunda vegada er meteu o manto em aquela agua e disse. (Note-se nesse exemplo tragia em que se expressa o valor básico do IdPt1).50 E ele lhes deu com samãão hũũ barril pequeno de madeiro cheo de vĩho, que bevessen pela carreira, que os podia abastar a hũũ jantar. E pero beveron sempre dele ata que chegaro naa cidade de Ravena e ficaron em essa cidade e bevian sempre daquele vĩho51. E San Gregório contou ainda daqueste santo homen Florencio hũũ mirage que non era pera calar. [grifos da autora] 49 MATTOS E SILVA (1989, p. 421). Nota da própria autora em que IdPt1 corresponde ao pretérito imperfeito do indicativo. 51 MATTOS E SILVA (1989, pp. 424- 425). 50 48 Ainda dentro do português trecentista, a autora identifica, no futuro do pretérito, tanto o uso que ela denomina temporal básico52 quanto o de expressão de irrealidade, respectivamente: E, cada que avia d’ir a algũũ logar, tomava a mais desplizel besta que El podia achar e a mais enata sela que El podesse aver, naquela cavalgava. Mais quen seria ousado d’ir ao moesteiro daquelas virgẽẽs quando o abade Equiciohi non era presente, por santo monge que fosse, e, mormente, como iria Alá hũũ homen que novamente veera ao moesteirto e cuja vida ainda os monges non provaron?53[grifos da autora] Um uso estilístico que precisa ser catalogado por nós, em português arcaico, alcançando também o período clássico, apontado por Azeredo (1995), é o do maisque-perfeito do indicativo, em contextos em que esse último tempus não é utilizado em seu valor temporal ou aspectual, em lugar do futuro do pretérito ou do imperfeito do subjuntivo, em períodos compostos condicionais. Como exemplificação, o autor nos oferece: “Mais servira, se não fora/ Pera tão longo amor tão curta a vida” 54. Ainda acerca desse tema, aponta a grande identidade semântica entre o futuro do pretérito e o imperfeito do subjuntivo, dando-nos, por exemplo: “Era este corregedor muito honrado e de sua casa e estado e muito praceiro e de boa conversaçom, e seeria estonce em mea hidade.”55. Constata o referido gramático que aí caberia, sem prejuízo semântico, a forma fosse, desde que houvesse contexto sintático para tanto, como, por exemplo, se introduzido por uma conjunção integrante. Essa identidade entre futuro do pretérito do indicativo e imperfeito do subjuntivo− até hoje relacionados em construções condicionais, cabendo a apódose a este e a prótase àquele− é o que permitiu a correlação do futuro do pretérito com o mais-que-perfeito no passado da língua, o que, para o espanhol continua a ser um fato. Azeredo (op. cit.) ainda nos alerta de que a convergência entre esses tempora pode ser atestada segundo outro prisma de análise e de uso no português: ambos se põem em posição posterior ao passado, tomado como referência do evento. Propõe ele que cotejemos Ela sabia que eu viria e Ela esperava que eu viesse, em que a distinção 52 Sobre os valores do futuro do pretérito, bem como de outros tempora futuros, trataremos no capítulo 3 desta tese. 53 MATTOS E SILVA (1989, pp. 425- 426). 54 BERARDINELLI, Cleonice. Sonetos de Camões. Paris/Rio: Centre Culturel Portugais/ Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 87, apud AZEREDO (1995, p. 318). 55 LOPES, Fernão. Crônica de D.Pedro, apud AZEREDO (1995, p. 322). 49 entre as formas em questão não repousa no plano semântico, mas no morfossintático. 1.3 A trajetória do verbo ir Julgamos oportuno, neste mesmo capítulo, tratarmos do percurso histórico do verbo ir em língua portuguesa. Antes porém, uma última consideração ainda sobre o latim no que diz respeito ao verbo eo/ire. Saraiva (1927, p. 424) apresenta, sobre o verbo eo, em longo verbete, algumas abonações que nos interessam especialmente: Ire in matrimonium (Plauto): ir se casar; ire in possesionem (Cícero): tomar posse; ire in unum: reunir-se; ire in lacrimas (Virgílio): chorar; ire in corpus (Quintiliano): tomar corpo, avultar. Podemos depreender desses breves exemplos que já é possível observar no latino eo, ancestral de nosso ir, um sentido que ultrapassa a mera ideia de movimento, de deslocamento apenas, apontando para uma perspectiva de mudança de estado mesmo. Tal percepção, a nosso ver, estará no cerne que justifica o protagonismo de tal verbo na mudança que vem atravessando séculos em língua portuguesa, até o estágio avançado que ora observamos. Tornaremos a essa temática mais detidamente adiante em nossa tese. Para a trajetória de ir, no português, referenciamo-nos especialmente nos estudos de Strogensky (2013). Aqui, trataremos, fundamentalmente, do caminhar desse verbo em nossa língua. Os principais aspectos relativos a sua auxiliaridade e gramaticalização serão discutidos no capítulo 3, conjuntamente à caraterização dos atuais tempora futuros portugueses. Nossa trajetória em torno de ir, inicia-se pelo séc. XIII, marco de nascimento documentado da língua portuguesa, pelo testamento de Afonso II, em 1214. Há, sobre a periodização da língua portuguesa, posições divergentes quanto à sua classificação. Não pretendemos aqui nos ater a tal polêmica. Para todos os 50 efeitos, trataremos período moderno e período clássico, como sinônimos, abrangendo do Renascimento até o século XIX. Há os que prefiram considerar o período clássico os séculos XVI e XVII e o moderno o século XVIII. Há ponderações sobre o séc. XIX como divisor de águas na língua, afinal, segundo algumas referências (cf. AVELLAR; CALLOU, 2007)56, é no período que ocorrem importantes mudanças na sintaxe do português, a afastar o PB do PE, com contínuas repercussões até hoje. Por isso, tomamos tal século como limite do período clássico/moderno. Ainda sobre esse período, Mattos e Silva (2002) dá preferência à primeira das denominações, por julgar que clássico diz mais respeito, especificamente, à documentação literária. Feitas, enfim, tais observações, não voltados a nos ocupar de tal aprofundamento teórico, utilizaremos clássico e moderno, de fato, como sinônimos e, se necessário, distinguiremos ambos, sempre de modo explícito. Nosso verbo ir provém do latino ire, tendo recebido também, em sua malha de conjugação formas dos verbos vadere e esse, o que justifica sua ampla irregularidade morfológica, hoje, em nossa língua. Ire significava, basicamente, “deslocar-se em direção a”, podendo também significar “caminhar”. Vadere tinha por significações, além de “deslocar-se” e “caminhar”, “dirigir-se para” e “marchar”. Já esse, basicamente, significava “existir” e significações daí decorrentes, “ser”, “estar num lugar”, “morar”, “residir” e até “ir”, “vir” e “chegar”. Pelas proximidades semânticas, na passagem ao português, algumas formas de ire cederam lugar as de vadere e de esse, conformando o paradigma anômalo que hoje conhecemos. Pereira (1958) defende que nosso ir venha de ire, vadere e fugere (significando “fugir”, “evadir-se”), que, por síncope da consoante medial intervocálica, teria passado a fuere. Tal hipótese também resultará em profunda anomalia conjugacional para ir. Há toda uma contenda de posições em torno de se o terceiro verbo a suprir o paradigma de ir é esse ou fugere, mas nos furtaremos a tal questão aqui, uma vez que ela não trará maiores repercussões à nossa análise pretendida. Destaquemos que ir é um verbo que pode se associar, em auxiliaridade, às três formas nominais, o que lhe garante multiplicidade de contextos de uso e de valores aspectuais na língua. Segundo Mattos e Silva (2006), no português arcaico, tal verbo, junto a gerúndio, podia tanto ser pleno e com significação lexical etimológica 56 Ver também nosso texto de Mestrado, NASCIMENTO (2011, pp. 185- 191). 51 em que a forma nominal em questão seria uma reduzida temporal quanto admitir uma leitura como locução de aspecto durativo, construção essa já presente no latim. Como exemplo deste último valor, apresenta-nos, do período arcaico: Mais Roma ir-s’a destroindo pouco e pouco. De cincoenta anos adeante vai ja homen folgando e assessegando e quedando das tentações.57 [grifos da autora] Aos exemplos, a autora atribui-lhes a leitura de valor durativo dinâmico. Sobre construções com ir junto de infinitivo, a mesma autora infere, já no período arcaico, a expressão de intenção. Vejamos: Vau demandar outro lugar. Ia tomar o pan. Foi demandar muit’agῖ ha. [grifos da autora] A autora assinala que, no período arcaico, convivem, na língua, duas possibilidades de estruturação para sequências verbais com ir: V + Vinf ~ V + prep. + Vinf. Note-se que a última possibilidade de construção desapareceu no português contemporâneo. A título de ilustração, em espanhol, mantém-se: Voy a caminar hoy. De Strogensky (op. cit.), trazemos os seguintes exemplos: Séc. XIII58: E, se per uentuyra alguẽ contra esta nossa costetjçõ quiser hir, perça quanto der pola possisson por pẽa. Nenhῦ u omẽ, poys que for outurgado dereytamente per mandado da sancta eygreia cũ algũa molher, nos seya ousado de casar cũ outra, dementre que aquella uiuer que nõ 57 58 Mattos e Silva (2006, p. 142). Exemplos: NUNES, apud STROGENSKY (2013). 52 aia bẽeções cũella em eygreya e macar que nõ morarẽem hũu. E esto mandamos da molher que for dereytaente outurgada cũ algũ. [grifos da autora] Notemos, no primeiro exemplo, uma utilização plena do verbo. Já no segundo caso, um uso que pode ser interpretado como próximo do atual, se, de fato, tratar-se do verbo ir. Parece-nos admissível também a leitura do verbo ser, em que pese sua semântica no período tão distinta da atual. Lembremos que, em estudos históricos, é sempre preciso tomar o cuidado de não se ser taxativo, uma vez que não mais dispomos do parecer do falante para dirimir situações de aparentes ambiguidades. Já no séc. XIV, encontramos, como exemplos59: ... sementarom discórdia que os trouuerom a tal tempo que, em querendo o infante ir ahu elrey era, elrey veo a duas legoas de Lisboa... [grifo da autora] E a rrainha lhe disse que lhe fosse por ele e o trouuesse encobertamente. Vaamo-la ver. [grifos nossos] No primeiro caso, temos um uso em que percebemos uma possível raiz aos usos de finalidade que se desenvolveriam na língua, inclusive como contexto propício à posterior gramaticalização de ir. Já o segundo exemplo registramos como casos de desuso na língua. Quanto ao último, o clítico em tal contexto não compõe mais o uso corrente da língua. No mais, embora nos pareça duvidosa a semântica do verbo, por falta de maior contexto, tomamos por perceptível a noção de posterioridade no último exemplo. É de se frisar, a impossibilidade de substituição da expressão aí presente por Veremo-la. O que temos aí é o verbo ir pleno, indicando movimento e, também, modalidade de certeza. Encontramos ainda, como exemplo entre o séc. XIII e XIV: E rrey Rramiro foi-sse lá em três galles cõ fidalgos e pedio-lhe aquella moura que lha desse e fal-la-ya cristãa e casaria com ella. A elrrey Rramiro contarom este feito e foy em tamanha tristeza que foi louco hũus doze dias. 60 [grifos da autora] 59 60 Idem. Idem. 53 Já aí deparamos, na primeira frase, com ir-se, visto como reflexivo por alguns, mas que enxergamos como pronominal expletivo. Tal uso parece-nos, no português atual, ao menos em PB, cada vez mais perdido, salvo, talvez, a expressão Foi-se embora, a nosso ver, em cristalização. De todo modo, aí estamos diante de uma significação plena para ir. Verificamos o mesmo para a segunda frase, com uma regência prepositiva distinta do português atual. Por curiosidade, chamamos a atenção para as diferentes grafias das formas homônimas de ir― foy― e seer― foi. Como é bem sabido, não há, nesse período, normatização ortográfica para a língua. Isso significa que a diferente grafia fazia parte ou de um esforço de escriba de desfazer possíveis ambiguidades ou de uma convenção de alguma mínima abrangência que fosse, talvez mesmo tácita, para tais situações. Adentremos agora o último século do período arcaico, o XV. E aquela doemça era grande batalha em sua alma. De hũa parte queria morrer e hir ao paraisoo e da outra queria uiuer por guarda e aiuda dos religiosos...61 [grifo da autora] Mais uma vez, encontramos ir com preposição, agora indicando, objetivamente, lugar. Tal contexto é pleno ainda em português, sendo um dos cenários de sobrevivência da preposição a em PB. Simultaneamente, seria daí, em construções vistas, e já aqui exemplificadas, desde o séc. XIII, que eclodiria o uso de ir envolvendo finalidade. Daí, ir a/para fazer algo. E, em seguida a perda da preposição, resultando em ir + infinitivo, hoje tão produtivo. Para Epiphanio Dias (1918), sobre a semântica da preposição a com o verbo ir, nos informa que: a) podia dar a ideia de movimento direcionado a determinado ponto, voltada a um fim específico, com premissa de retorno, diferente da semântica com a preposição para; b) indicar finalidade, como ir à carne (ir buscar carne); c) especificar modo: ir a galope. Ainda do séc. XV: 61 NUNES, apud STRONGENSKY (2013). 54 Elrey levantou-se de menhãa e disse: ― Vaamos ver o cardeal. [grifo nosso] E os uassallos lhe diseron: ― Senhor, hido he já ssa uia e escumungou uós e todo uosso reino.62 [grifo da autora] Para a primeira ocorrência, Vaamos ver, por tudo o que sabemos da gramaticalização de ir, não pode a sequência ser tomada como locução nos moldes que hoje o fazemos, sobretudo, como indicador de futuridade; ir, aí, é pleno. Já a segunda― construção de ancestral sintaxe portuguesa, com o particípio antecedendo o verbo finito― corresponderia, semanticamente, ao atual já foi, em uso, obviamente, perdido na língua. Neste exemplo do séc. XV, ainda vemos o verbo pleno, com seu traço aspectual conservado, em construção que, ao longo do tempo, pressuporá finalidade. E esta dona Clarissa tinha hũu filho, e bautizarõ-no em Iherusalem; e ameude hiam honrar a Ihesu Christo, porque tiinhã grande ffee nelle.63 Agora, trafegaremos por exemplos do séc. XVI, divisor de águas que é na nossa língua. Nos primeiros exemplos ainda não depararemos com usos inovadores, mas isso se verificará ao longo do percurso por esse século e a partir daí. Antes, consideramos oportuno contextualizar que fatores serviram de base a uma mudança de rumos linguísticos tão categórica e de avaliação tão consensual em tal período. Tomamos o ano de 1536 como o marco simbólico do início do período clássico. Esse foi o ano do último auto de Gil Vicente, Floresta de enganos e da publicação da primeira obra gramatical sobre a língua portuguesa, a Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira. As mudanças do período são de uma remodelação profunda de mundo. Talvez estejamos a falar do período de ápice na crença humana em suas potencialidades e no poder de recriar o mundo. Mais do que recriar, também criar. Lembremo-nos de que, após uma eternidade de um milênio, o mundo que há pouco encerrara-se numa vasta cachoeira ampliou-se em quatro, em cinco― para a mentalidade da época, 62 63 Idem. Idem. 55 inúmeras― vezes. Portanto, trata-se de muito mais do que o maior movimento artístico da história. É um momento de reinstauração de civilização, do próprio redimensionamento dos afazeres humanos, em amplitude de significados. No período arcaico, a sociedade, grosso modo, era analfabeta. Quem mantinha contato com a escrita eram a elite dos mosteiros e alguns nobres ou seus escribas. Não havia convenção ortográfica, cada um escrevia como falava― dado muito útil a estudos fonéticos nesse período― segundo a grafia que lhe convinha. No Renascimento, a escrita sai dos muros da corte e dos monastérios. Surgem escolas de todos os tipos, não apenas eclesiásticas mais, além destas: paroquiais, palacianas, municipais, domésticas, monásticas, universidades, enfim. E, agora, havia a língua vernácula a se estudar. No período anterior, o português não era objeto de estudo, mas sim o latim. Segundo nos informa Mattos e Silva (2002, p. 34), os “mestres de ensino das primeiras letras”, em Lisboa, passaram de 30 a 34, em 1551-52 a 60 no início dos setecentos. No mesmo intervalo de tempo, a população lisboeta duplica. Em Coimbra, de 1572 a 1581, o número de juízes a saber assinar o próprio nome salta de 9% a 20%. Em 1540, é publicada outra obra que viria a ser histórica: a Gramática da língua portuguesa, de João de Barros, consolidando a perspectiva de aprendizado em moldes normativos do português, tal qual se dava com as línguas latinas irmãs. Em finais do séc. XV, verifica-se em Portugal uma revolução nos meios escritos: o pergaminho é, irreversivelmente, substituído pelo papel, na penúltima década desse século, dá-se a implementação da imprensa em Portugal. A escrita agora passa a ser publicada. Mais que isso, desponta o conceito de autoria, para o mundo das artes e da escrita convencional. As cartilhas passam a ser produzidas em volume antes impensável. E, claro, em 1572, é publicado o poema maior da língua portuguesa, os Lusíadas, de Luís de Camões, alçando a língua portuguesa a um protagonismo artístico-cultural dos mesmos patamares que o idioma de Cervantes, o de Shakespeare, o de Dante e não muitos mais línguas. A partir do séc. XVI, portanto, passa a haver mecanismos de veiculação e controle do uso linguístico escrito, e também falado, potencializados e inéditos até então, com amplo respaldo sociocultural. 56 As mudanças ocorridas em tal momento histórico mais do que justificam, pois, a posição de marco consensual de uma modificação profunda de parâmetros linguísticos64. Eis o séc. XVI. Rumemos a seu primeiro exemplário: E põee-se ho anel no quarto dedo que chãmã medicus, por quanto dizẽ que nelle he hῦ a veea de sangue que vay ataa o coraçõ. Tãto que o judeu esto disse, a serpe se deslegou dele e, hiindo-se emprouiso, desapareceo e nunca jamais a nenguẽ vio. [grifos da autora] Seendo eu, mesquinho pecador, em tal estado, hia muyto amyude andar a espaçar per hũu cãpo muy fremoso, cõprido de muytas eruas e frolles de boo odor, mais nunca se sobre partiam aquellas treeuas muy escuras que nos cercauom em derredor e dentro em a minha consciência.65 [grifos da autora, por nós ampliados] O primeiro exemplo é ainda vasta e francamente atestado em língua contemporânea. Já o segundo repete ir-se sobre o qual já constatamos o desuso crescente. No último exemplo, pela presença do verbo, também originalmente de movimento― e que, sabemos, também se gramaticalizou na língua― andar, intuímos valor modal a ir. Atentemos também para a sequência de dois circunstancializadores ao verbo, o que parece confirmar a não existência de construção locutiva aí. Do poeta satírico renascentista, contemporâneo de Camões, António Ribeiro Chiado, coletamos os exemplos: vay em quatro meses no mais [=nõ mais] (Chiado, Regat., 98 v.) como vos vay com vossoamo? (Chiado, Prat.,87)66 [grifos nossos] 64 Mattos e Silva (2002) oferta-nos visão ainda mais rica em detalhes sobre o período em questão. NUNES, apud STRONGENSKY (2013). 66 Strogensky (2013) afirma não ter encontrado referências mais precisas para tais citações em sua fonte, NUNES (1906). 65 57 Nesses exemplos da língua clássica, já vemos duas inovações em relação ao uso do verbo em estudo: o uso com preposição para indicação de tempo e com adjunto adverbial, em acepção que entendemos como de estado. Ambos os usos, embora modificados, podem ser encontrados no português contemporâneo, ou pelo menos no PB. Para o primeiro, utilizamos, hoje, mais comumente, a preposição para, como em Vai pra dois anos que não nos vemos. E o segundo é facilmente aferível na expressão fática informal Como vai?/ Vou bem. Agora, ainda no período moderno, vamos ao séc. XVII, quando se aprofundarão mudanças instauradas na sociedade portuguesa e, consequentemente, em sua língua, já contando o período com os primeiros textos efetivamente produzidos em contexto de língua portuguesa no Brasil. Comecemos pelo luso-brasileiro Antônio Vieira. Por naõ dilatar o teu defejo (o qual tanto mais te agradeço, quanto menos mo deves) iraõ faindo diante, & á desfilada, os que eftiverem mais prontos. [...] aos que vão bufcar a feara tão longe, haõs-lhe de medir a femeadura, & haõs-lhe de de contar os paffos. [grifos da autora] Primeiramente, não é possível deixar de comentar a clara troca da letra “s” por “f’, o que nos parece erro de impressão, reprodução ou o que o valha. É possível ainda considerar uma falha de transcrição por não levar em conta a antiga grafia tipográfica do s, como ʃ . O último exemplo reproduz algo já visto por nós: o uso ir com o valor latente de finalidade, aqui explicitada por buscar, em sequência verbal. Quanto ao primeiro uso, perguntamo-nos se deveríamos interpretar a preposição diante, como adiante, ou, então, uma leitura de ir em frente, embora não saibamos apontar o nível de gramaticalização para tal ocorrência no período em questão. O séc. XVIII é marcado por aprofundamento na normatização e na metalinguagem, simbolizada pela produção de Jerônimo Soares Barbosa, especialmente na segunda metade do século, autor da Grammatica Philosofica da Lingua Portugueza, obra que, na verdade, só seria publicada postumamente, em 1822. Desafortunada e curiosamente, deste século, só encontramos em Strogensky (op. cit.) uma citação: Hir por diante. 58 A esta, damos similar leitura à de Vieira acima. Por conta disso, recorremos, complementarmente, aos dados do projeto Para uma história do português do Brasil (PHPB), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de modo a termos mais alguns dados. Observe-se que, forçosamente, estamos a dar um salto transatlântico, em que pese a transição ofertada por Vieira, sujeito ao linguajar de lá e de cá, que era. Do PHPB, trazemos: [...] a fim dehir ter o gosto da sua Compa nhia [...]67 (Marquês do Lavradio, Cartas de amizade, 1773). Ah! Meu Pay que não possa eu ter o gosto de hir rever no seu retiro do baelhaco na sua amavel companhia [...]68 (Cartas particulares, 1800).69 Vai com muita diligencia/ Mandar recado âo frade E tudo o que agora vi/ Logo o vou por hi dizer.70 (Trechos de Peça popular portuguesa, 1706) [...] Selevantou Contra mim, com huâ faca, epau, Sem-Se querer emtregar ao Castigo, por ultimo SeRendeu, eopus de tronco, que foi o castigo que lhedei, enomesmo dia Soltei, epareSendo aEle que Seria por acuzação, que Semeavia feito, como esta Suspeita, nodia Sabado, foi tomar Satisfação ao escrivão dacamera, honde medizem que tiverão Rezoins [...] (Administração Pública/ Carta Oficial, 1769) No exemplário coligido, encontramos usos bastante distintos. Primeiro, uma sequência verbal, junto a outro verbo de alta gramaticalização na história da língua, em uso que interpretamos como de verbo-suporte. Nessa sequência a qual pensamos ser locutiva, o sentido de finalidade vem já manifesto explicitamente na expressão que introduz o verbo ir. Já no segundo caso, interpretamos o sema de movimento e intuímos o de finalidade. No terceiro, exemplo lusitano, deparamos com ir em uso pleno, não formando locução, como confirmado pela interpolação modal. A segunda frase desse exemplo parece ser do mesmo tipo, com valor pleno de ir atestado pelo locativo aí. O último exemplo parece-nos o mais interessante, com ir 67 Editor: RUMEU, Márcia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Arquivo Nacional. Editor: RUMEU, Márcia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional. 69 BARBOSA, Afranio ; LOPES, Célia Regina et alii. Corpus diacrônico do Rio de Janeiro: cartas pessoais – séculos XVIII-XIX. Rio de Janeiro, UFRJ/PIBIC-CNPq/ Labor-Histórico, 2003 (versão eletrônica) 70 Editor: LOPES, Célia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Arquivo Nacional de Lisboa. 68 59 no pretérito perfeito― com uso similar a atuais― em aparente locução com valor de finalidade, embora não possamos descartar aí o sema de movimento também. Eis-nos agora no séc. XIX, o da independência do Brasil e de aprofundamento da distância linguística entre Brasil, capitaneada pela literatura romântica, e Portugal, ex-metrópole, em que pese a família regente portuguesa ainda a governar o país, sendo esta epicentro de modismos no Rio de Janeiro. É também um século em que o normativismo já é postura linguística consagrada, devidamente amparada nos escritores de lá e de cá, em sólida literatura. Como diz a apresentação da gramática de Soares Barbosa, curiosamente, publicada no mesmo ano da independência brasileira, “Grammatica é a arte de fallar e escrever correctamente a própria língua”71. É de se notar a extensão que o item Ortographia ocupava nessa gramática, preocupação confirmada pela ainda falta de referenciais uniformes, como nos atestaram os trechos do século anterior. Por sinal, sobre ir, Barbosa (op. cit., p. 136) assinala que tal verbo junto a infinitivo indica futuro próximo, correspondente aos aoristos e futuros próximos gregos. Vejamos, enfim, alguns exemplos de ir já com aval e certidão de futuro ofertados por ninguém menos do que Jerônimo Soares Barbosa. Para isso, novamente, recorremos ao PHPB- UFRJ. Os exemplos do século XIX são bem variados, em nível de registro, função discursiva, trazendo usos de ir merecedores de nota. Para melhor sequência textual, em termos de visualização, mudaremos nosso modo organizativo de comentar. Vou arogar aV ossa Ex celência q ue em Manoel Gomes Ferr eira deMoura, concorrem circunst ancias assás dignas deser empregado na J unta da Faz enda dessa Cap itania [...]72 (Documentos oficiais, 1811)73. Em vou arrogar, temos um exemplo, claramente, em papel de auxiliar modalizador tanto de futuridade quanto de atenuação, segundo nosso juízo, evitando-se a forma arrogarei, possivelmente tida como mais impositiva. Já se trata de ir em suas plenitudes modais. o disgosto que tive em não encontrar aV ossa S enhoria em Casa quando fui procura-lo para me despidir, e offerecendo-lhe o meu pequeno prestimo nesta, para quanto for servir [...] 74(Cartas pessoais, 1822). 71 Barbosa (1881, p. 1). Editor: RUMEU, Márcia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional. 73 Espaçamentos neste exemplo, conforme transcrito. 72 60 Já aqui verificamos dois usos distintos para ir. No primeiro, no pretérito perfeito, temos clara sequência verbal não locutiva, com ir em sua acepção de verbo de movimento, mas com clara ideia de finalidade também. Já no segundo, vemos inequívoco uso modal, destituído da ideia de movimento. Esses dois casos dão já uma ideia da abrangência da polissemia verificável em ir a esta altura. Indo eu procurar em | algumas casas de negocio licenças para tirar, | respondeo-me um dono da casa: - meu | amigo, as minhas licenças eu as dou a um | guarda da camara para as tirar[...]75 (Jornais/ cartas de leitor, 1850). A interpolação do pronome reto faz-nos crer na não existência de locução aí, contudo o traço de finalidade é mais do que claro ainda assim. A paz sob teu véo, | Nós subiremos de vagar a escada | Que vae bater ao céo. 76 (Jornais/ Folhetim/ Crônica, 1868). No exemplo literário em questão, deparamos com uso que só conseguimos interpretar como de futuridade, já com traço de finalidade bastante obliterado e sem ideia de movimento. Por curiosidade, note-se a forma de futuro desinencial no mesmo exemplo, justamente em um verbo de movimento. ESCRAVOS FUGIDOS FUGIO no dia 9 do corrente, a rua de | S. Francisco da Prainha n.28, um pardo | escuro de nome Marcellino, com os signaes | seguintes: estatura regular, official de sapa- | teiro e bolieiro, cheio de corpo, nariz e bi- | ços grossos, boca regular, e tem um signal | de mordedura de cachorro na perna esquer- | da;levou vestido camiza e calça de brim gros- | so muito çujo, jaqueta branca e chapéo de | palha velho; suspeita-se que mudasse de rou- | pa por ter ido pedir dinheiro em nome de seu | senhor; quem o levar ao n. acima, se lhe gratificará bem.77 (Jornais/ Notícia, 1848). 74 Editor: RUMEU, Márcia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional. Editores: AVELAR, Juanito; FRANCO, Ana Luisa; PORTELA, Kate Lúcia; RUMEU, Márcia Cristina de Britto; SERRA, Carolina Ribeiro. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional. 76 Editores: ANDRADE, Fávia Costa Carvalho de & BARBOSA, Afranio G. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional. 77 Editores: BARBOSA, Afranio G. & LIMA, Alexandre Xavier. Projeto Para uma história do português do BrasilRJ. Fonte: Biblioteca Nacional. 75 61 No vergonhoso texto, parte de nossa memória, em época que muitos países de nosso continente já se haviam livrado da aviltante escravidão, encontramos um uso em locução complexa, propriedade, pensamos, de verbos já com algum nível de gramaticalização. No uso em questão, ir manifesta tanto seu sema de movimento quanto de finalidade. Claro que em construção de pretérito não poderia manifestar futuridade. Em tempus futuro, encontramos o último verbo, em formato desinencial. E que entremos na fadiga, Vamos a cuidar nesta pança. Que amor não enche barriga. Vai-se.78 (Trechos de Peça popular portuguesa, 1826). No trecho de peça portuguesa, embora popular, encontramos a velha conhecida construção com ir + a + infinitivo, talvez tendo esta sobrevivido mais em Portugal, em tom que nos soa arcaizante. Enfim, no séc. XIX, vemos a malha semântica de ir em sua máxima plenitude. Há os usos que ficaram pelo caminho do percurso da língua, como sempre se dá. No que se refere ao verbo em análise, caíram em desuso muitas construções preposicionais de que ele fazia parte. Porém, queremos aqui destacar que, apesar disso, ir mantém muitos usos ao longo dos séculos― alguns desde o período arcaico― incorporando um novo acervo de possibilidades morfossintáticas e semânticas, sobretudo, no que se refere à construção de futuridade e posterior gramaticalização como forma de tempus futuro. Não pretendemos prosseguir ao recém-findo século XX, já que nossa pesquisa passará crucialmente por ele. Assim, fechamos nossa jornada desde o indoeuropeu. 78 Editor: LOPES, Célia. Projeto Para uma história do português do Brasil-RJ. Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa. 62 2 O LOCUS TEMPORAL DO FUTURO VERBAL Poder-se-ia crer que a temporalidade é inata ao pensamento. Na realidade, ela é produzida na e pela enunciação. Da enunciação procede a instauração da categoria do presente e da categoria do presente nasce a categoria do tempo. Émile Benveniste. A seguirmos por nossa jornada no incerto espaço dos tempora futuros portugueses, consideramos forçoso percorrer o próprio quadro temporal verbal português, de modo a melhor situar o próprio locus destes tempora. 2.1 Futuro e futuridade Precisamos, antes de nos enredarmos pelos modos e tempos verbais portugueses, estabelecer a distinção entre dois conceitos que tendem a se interpenetrar, sem que isso seja necessário e, principalmente, não se podem confundir em nossa descrição aqui pretendida. Referimo-nos às noções de futuro e de futuridade. Em termos verbais, encontramos, tanto no modo indicativo quanto no subjuntivo, tempora que carregam consigo o rótulo de futuros. No modo indicativo, são o futuro do presente e o futuro do pretérito, dentre as formas simples e, dentre as compostas− que serão objeto de nossa problematização específica− também duas outras formas com as mesmas denominações. Já no modo subjuntivo, deparamos com o futuro simples, em geral assim caracterizado na tradição gramatical, sem maiores alusões a se do presente ou do pretérito e, nas formas compostas, mais um futuro, também rotulado, comumente, apenas assim, com o adendo de sua condição composta e de seu pertencimento ao modo subjuntivo. Em nossa descrição que se seguirá, aprofundaremos reflexões sobre caracterizações convenientes ou não na própria questão nomenclatural em torno dos referidos tempora. Por ora, consideraremos que esses correspondem, especialmente no modo indicativo, à gramaticalização do tempo futuro, em meio verbal. Ao clivarmos a situação do indicativo da do subjuntivo, estamos a nos 63 reportar a uma distinção que faremos em breve no que se refere à própria apreensão linguística dos modos verbais. De todo modo, essa distinção vindoura não compromete a asseveração de que os futuros verbais são a concretização gramatical em nível morfológico ou morfossintático, no caso das formas compostas, do tempo futuro conceptualizado em sua acepção cronológica plena. Já a noção de futuridade é mais abrangente na língua. Há muitas formas que podem se alistar para a consecução de tal valor semântico sem que, com isso, passem a manifestar traços morfológicos necessários. Para nos atermos apenas ao campo verbal, nosso objeto de interesse específico nesta tese, encontramos valor potencial de futuridade no presente do indicativo, em uso bastante abrangente na língua portuguesa, como descreveremos neste capítulo. Também verificamos potencial de futuridade em todos os tempora do modo subjuntivo, mesmo em seus pretéritos, simples ou composto, dada pela própria natureza desse modo que, nesse aspecto, imbrica-se bastante a uma série de possíveis sentidos que o futuro, em termos da própria conceptualização, carrega agregados consigo. Por fim, temos ainda o modo imperativo ao qual, por sua natureza discursiva mesma, só é possível expressar futuridade, ainda que de instantânea realização. Nesse ponto, caberia refletirmos se não se trata então de um valor presente− tão somente nos casos referidos como de instantaneidade− contudo, essa problematização parece-nos mais afeita à discussão filosófica em si. Portanto, ainda que consideremos aí um valor efetivo ou possível de presente, está claro que o imperativo apresenta relação muito íntima com a expressão da futuridade, sem, no entanto, morfologizar-se para tanto. Eis o painel que, nas formas verbais portuguesas, recobre o conceito de futuridade, sem expressão de futuro gramatical, gramaticalizado, morfologizado. Há ainda um conceito colateral que precisa ser aqui esmiuçado e que é de grande produtividade em nossa descrição, o de posterioridade. Em nossa sistematização das fórmulas de Reichenbach79, por exemplo, tal conceito é fundamental e fundante. Posterioridade e futuridade, da forma como vemos, apresentam diferentes escopos. Enquanto esta está na esfera da ótica absoluta de visagem dos tempora portugueses, aquela diz respeito ao plano relativo desses. Em outras palavras, estamos a falar de uma apreensão de tempora que tome ou não o presente como referência universal. Em termos discursivos, tanto o tempus quanto o tempo da enunciação, só se pode dar no presente. Aliás, é o momento da 79 Elucidaremos tais fórmulas e seu conceito adiante. 64 enunciação o ponto nevrálgico em que tempus e tempo se encontram aglutinados, comprimidos, fundidos. Ao nos valermos de um olhar que tome o presente, daí advindo, como ponto de referência, estamos no campo de uma concepção absoluta do tempo verbal. Se, por outro turno, centrarmo-nos em referenciais que levem em conta não apenas a enunciação, mas, sobretudo o acontecimento expresso pela forma verbal e própria temporalidade desse acontecimento, como veremos neste capítulo, estamos a lidar com uma concepção de tempo verbal relativo. Este, em termos de concretização linguística, proporciona um olhar mais efetivo sobre o entendimento das formas verbais. Contudo, a ótica absoluta é, por sua vez, importante, sobretudo, para lidar com a conceptualização e o cognitivo. Um bom aporte para exemplificação das fronteiras entre futuridade e posterioridade, podemos encontrar nos futuros simples do indicativo. O futuro do pretérito corresponde a um momento posterior, a partir de uma referência temporal situada no passado. Assim, esse tempus expressa, necessariamente, posterioridade, a partir de tal referencial, entretanto, não forçosamente expressará futuridade, em relação a um referencial absoluto situado no presente discursivo/ enunciativo. Não há aí contradição com nosso pressuposto de os futuros corresponderem à gramaticalização da futuridade, a não ser em nível aparente e superficial. Em primeiro lugar, não percamos de vista que a terminologia gramatical corrente estará aqui sob discussão também, uma vez que corresponde a convenções que podem ser ou não adequadas em termos descritivos e analíticos. Além disso, o futuro do pretérito é um tempus em si relativo e que só pode ser assim concebido. Logo, a sua noção de posterioridade é apreendida como futuridade relativa àquele referencial dado. Nesse ponto, é possível, então, passarmos a conceber posterioridade como futuridade relativa, sem que essa se confunda com futuridade absoluta. Esta seria, por exemplo, detectável no futuro do presente, que seria, seja absoluta ou relativamente, uma expressão de futuridade. Dessa forma, no futuro do presente, sob qualquer prisma, futuridade e posterioridade sobrepor-seiam. Embora a noção de posterioridade e a de futuridade não necessariamente se confundam, sendo aquela uma possibilidade relativa desta, simplificadamente, entendemos que podemos passar a tratá-las por sinônimas, salvo em quaisquer casos em que se faça útil a distinção, para nossos objetivos de análise e de descrição dos tempora que aqui serão arrolados. 65 2.2 Modo, modalidade, modalização Neste ponto, lidaremos com a constituição dos modos verbais, retentores que são dos tempora neles abrigados. Primeiramente, é preciso conceituar o que seja modo verbal. Este corresponde― assim como o tempus é a gramaticalização do tempo e o futuro verbal, da futuridade― à concretização gramatical da modalidade. Podemos então conceber, de antemão, um mecanismo de filtragem cognitiva que “transfere” apreensões do mundo real para a esfera da gramática das línguas a ser assim visto: Esquema 1: transferências cognitivas do mundo à língua. COGNIÇÃO Mundo real Tempo Mundo Linguístico Relativização do tempo verbal Tempus Futuro Futuridade Futuros verbais Juízo de valor Modalização Modos verbais Claro que o esquema acima proposto precisa ser entendido como uma simplificação de um processo muito mais complexo. Só a ação de cognição, que constrói o tráfego entre apreensão de mundo, categorização e concretização gramatical, corresponde a percurso e processos que, a bem da verdade, poderiam ser muitíssimo mais esmiuçados. Contudo, contentar-nos-emos, apenas para efeitos de visualização, com tal esquematização. Importa dela, para o prosseguimento de nossa discussão acerca dos tempos verbais, que há um dado acontecimento passível de ajuizamento pelo enunciador ao qual são aplicadas leituras modais, com diferentes graus de marcação e de explicitação. É o que se convencionou chamar modalidade. Ou melhor, antecedendo a modalidade em si, há uma operação linguística denominada modalização. Sua 66 concretização é a modalidade, a qual poderá aceder à categoria de modo, quando manifesta na morfologia. Nesse caso, a modalidade virá marcada, em seu formato verbal, por uma expressão, representada morfologicamente, que corresponderá ao modo verbal. Ou seja, o modo é uma das muitas estratégias disponíveis na língua para a expressão da modalidade. Sabemos da longa tradição da classificação das modalidades em deôntica e epistêmica. A última diria respeito às possibilidades de opinião, de crença, de conhecimento, ao passo que a primeira daria conta dos enunciados que poriam em cena valores como obrigação e permissão. Não restam dúvidas de que tais modalidades existam e, inclusive, com efeitos práticos na língua, seja sincrônica ou diacronicamente. Vemos a sua atuação na última esfera quando, por exemplo, remetem-nos ao percurso histórico do futuro verbal português: [+ deôntico] [+ epistêmico] Cantare habeo> cantar hei> cantarei> vou cantar Já no eixo sincrônico, observamos, nos atuais usos dos verbos poder e dever, a convivência desses dois valores: Ela pode entrar a qualquer momento. Ela deve chegar até as onze. Em ambos os casos, só recursos outros, como contexto mais amplo ou entonação, podem elucidar se, no primeiro caso, trata-se de uma possibilidade ou permissão e, se no segundo, estamos a lidar com uma especulação ou determinação. Essa oscilação epistêmico-deôntica, inclusive, tantas vezes, pode ser responsável por ambiguidades problemáticas. Assim, um aluno, em sua aula de Português, ao perguntar a seu professor se se pode falar dessa ou daquela maneira, poderá obter respostas bastantes díspares, ancoradas ou em interpretação epistêmica ou deôntica, segundo uma orientação didático-pedagógica do ensino de Língua Portuguesa, mais descritivista− correlata à leitura epistêmica do questionamento proferido− ou mais prescritivista− associada ao entendimento deôntico da pergunta. 67 Campos (1997) apresenta-nos ao conceito de sobremodalização, que corresponderia à coocorrência de marcadores modais de diferentes categorias linguísticas. A autora nota que modais epistêmicos não apresentam restrições para coocorrência. Já os deônticos necessitariam de sujeito [+ animado] e seriam incompatíveis com infinitivo perfeito e com formas progressivas. Tomando a própria exemplificação da autora: Os contribuintes devem estar a pagar os impostos. Os contribuintes devem ter pago os impostos. O João deve estar a dormir. O João deve ter feito os deveres.80 Todos os enunciados acima só admitem leitura epistêmica. Já em Os impostos devem ser pagos até o fim de fevereiro, também tomado de empréstimo à autora, habilitam-se tanto a leitura epistêmica quanto a deôntica. Recordemos agora que a primeira grande proposição de estudo descritivo às modalidades remonta às aléticas, também ditas aristotélicas. Relacionam-se à aferição de verdade e constatação da própria existência de dado estado de coisas, formuladas sob a forma de declaração. Sua abrangência reveste uma escala que vai desde o necessário ao impossível, com pontos intermediários pelo possível e pelo potencial. Silva (2002) diz-nos, a respeito das modalidades alética, epistêmica e deôntica, que: [...] as modalidades aléticas atuam no nível dos estados de coisas no qual as relações são necessárias, contingentes, possíveis ou impossíveis. As epistêmicas funcionam no nível do conhecimento e as deônticas, no nível da ação. Portanto, no nível do conhecimento que o locutor tem dos estados de coisas, uma relação necessária é vista como certa, uma relação contingente é considerada contestável e uma relação possível é tida como plausível (modalidades epistêmicas). No nível da ação, uma relação necessária é tida como obrigatória, uma relação contingente é vista como facultativa e uma relação possível é considerada permitida (modalidades deônticas). Para Travaglia (1994)81, as aléticas, na verdade, podem se fundir às deônticas e às epistêmicas. Daí que, nos estudos linguísticos, a atenção recai comumente sobre as duas últimas. Exemplifica-nos com “Com esses recursos é possível 80 81 CAMPOS (1997). TRAVAGLIA, apud SILVA: 2006. 68 resolver o problema”, em que a ideia de possibilidade se une a de certeza, apontando a fusão do nível alético ao espistêmico. E, para exemplificar o mesmo processo em relação ao alético e ao deôntico, cita “É necessário estar bem consigo mesmo”82. As modalidades aléticas, assim, acabariam por se diluir em meio às outras duas. Como, novamente, nos diz Silva (2002), sobre a modalidade alética, “O envolvimento com a verdade relacionada a mundos possíveis dificulta a sua localização no discurso, porque o conteúdo de verdade em um ato de fala vem sempre mesclado com o conhecimento e julgamento do falante.”. Pelo acima exposto, avaliamos que a identificação dessas modalidades ainda nos parece ser um tanto quanto insuficiente para a aplicação ao universo das expressões linguísticas. As modalidades, como até aqui identificadas, nascem do estudo filosófico, ancoradas na lógica, e as línguas naturais têm muito pouco a ver com pressupostos de funcionamento lógico formal. Isso não impede, outrossim, que possam servir de suporte tantas vezes à descrição linguística, sobretudo quando em meio ao discurso. Com essa compreensão, não vemos sentido em enveredarmos e tergiversarmos aqui em dissecações de proposições, em procedimentos afeitos à Lógica, mas sem maiores reverberações em nosso objeto de estudo. Chamamos atenção, contudo, justamente por seu valor pontual no que concerne à nossa investigação, de que a modalidade deôntica apresenta implicaturas com a temporalidade futura, pois que, nela, “a proposição não descreve um estado de coisas [...], apenas anuncia o estado de coisas que será obtido se o acto for realizado.”83. Retornando à relação entre modalização no nível da Linguística, notemos que, no nível do discurso, há de se considerar distinções grandes, se comparadas à análise lógica. Nesse sentido, Santos (2003) pondera que: [...] atribuir um valor de verdade a uma proposição nestes termos não é exactamente o mesmo que atribuir-lhe um valor de verdade dentro dos parâmetros da Lógica Modal. A transferência de noções implica que, na perspectiva de uma análise linguística, um falante informe sobre as condições que tornam a proposição verdadeira ou necessária, indicando de alguma maneira a fonte que lhe dá credibilidade, ou o que é necessário para a sua realização, ou ainda o grau de importância que lhe atribui [...] Daí que as línguas possuam uma série de expressões modais no verdadeiro sentido do termo, isto é, expressões que, no caso de uma proposição não 82 83 Nos dois exemplos, grifos do autor. SANTOS (2003). 69 ser verdadeira, poderão vir a ilibar o falante de responsabilidades, assinalando ao interlocutor que o conhecimento dos factos não é absolutamente seguro e que, por conseguinte, o falante também não os transmite como sendo absolutamente verdadeiros.84 A modalização, vista como operação linguística, constituiria, assim, um universo de modalidades linguísticas que expressariam nuances, alicerçadas em distintos lexemas, cada um com sua especificação de significação a distingui-lo dos demais, em recorte muito mais complexo do que a distinção taxativa em categorias modais lógicas. Santos (2003), reivindicando Bybee e Fleischmann85, aponta para a necessidade de outro esmiuçamento das modalidades em meio linguístico, concebendo uma nova sistematização, mesmo que aberta a maiores especificações, que aponta para: Modalidade epistêmica: não denotaria mais valor de verdade, mas um gradiente que iria da certeza à dúvida, sendo o próprio falante enunciador que se aproximaria mais ou não daquilo que afirma. Orientada para o agente: englobaria os valores de obrigação, desejo, capacidade, permissão e possibilidade. Modalidade deôntica Orientada para o falante: daria conta das marcas optativas, imperativas, permissivas, todas voltadas à ação do enunciador sobre seu interlocutor. Como os autores confirmam, essa primeira sistematização deve ser encarada como um primeiro esforço de ressistematizar as modalidades à realidade do uso linguístico. Santos (2003) ainda conclui, sobre a ineficácia da aplicação das modalidades lógico-filosóficas, desmedidamente, ao mundo da análise linguística que: 84 85 SANTOS (2003, p. 405.). BYBEE & FLEISCHMANN apud SANTOS: 2003. 70 [...] seriam marcas de Modalidade todas ou quase todas as formas da língua. Perante esta constatação, torna-se impossível proceder a uma sistematização clara dos meios de expressão da Modalidade na linguagem verbal [...] Além do mais, também é verdade que, dentro de uma mesma língua, nenhuma forma sustenta sozinha a expressão da Modalidade86. [grifos nossos] Faz-se necessário esclarecer que o que a autora toma por Modalidade referese à modalidade lógico-filosófica. Aqui, em nossa tese, referimo-nos à modalidade, também em sua acepção linguística, como resultado da modalização. Também é oportuno esclarecer que, ao ser taxativa que quase todas as formas da língua estão a serviço e são submetidas à modalização, expressa, claramente, que a ausência aparente desta também corresponde a uma operação de modalização, só que de rebaixamento de seu grau de evidência. Costa (1997) corrobora essa visão ao considerar que todo enunciado é modalizado seja por crença, por opinião ou por saber. Comumente, a percepção de grau apagado ou muito rebaixado de modalização não é senão construída. Assim é que, por exemplo, das muitas alternativas à expressão de futuridade em língua portuguesa, atualmente, é a perífrase ancorada em ir que é, habitualmente, vista como de grau neutro. Há várias perífrases possíveis à construção da ideia de futuridade em português. Arrolamos, em resumo: ir, haver, ter, dever, poder, querer e demais volitivos/desiderativos (almejar, ambicionar, desejar, esperar, visar e outros mais), precisar, necessitar, etc. Não atribuímos a todas essas formas modalizadoras o status de construtoras de locuções verbais, mas sim de expressão de futuridade em nível semântico. Sobre as formas listadas, é notável que umas se especializem na formação e expressão da futuridade verbal mais do que outras. Tal processo parece encontrar paralelo em outras línguas. Nossa hipótese é de que isso se correlaciona à opacidade de determinadas formas verbais. As mais irregulares, em seu paradigma verbal, apresentariam maior grau de opacidade para os falantes de dada língua e, então, habilitar-se-iam mais prontamente ao exercício de funções mais gramaticalizadas dentro dessa mesma língua87. Daí os auxiliares de futuridade mais comuns: ir, ter, haver, dever, poder e querer. 86 SANTOS (2003, p. 410). Em nossa pesquisa, em nível de mestrado, A oração sem sujeito em língua portuguesa: função, caracterização e uso, já levantáramos essa premissa. Lá, a respeito das construções sem sujeito formadas por verbos que se fizeram impessoais no curso histórico da língua, como o emblemático exemplo, dentre muitos outros de haver, dissemos que um maior nível de opacidade da forma verbal habilita-a a se tornar um possível instanciador gramatical de construção impessoal. A base de tal processo encontrar-se-ia na irregularidade/ anomalia verbal 87 71 Para que possamos enfim superar a questão da incompletude das modalidades filosóficas para a descrição linguística, pensemos nas diferentes conformações, linguisticamente modalizadas, que uma simples proposição, como Ela saiu, pode assumir. Parece que ela saiu. Ela deve ter saído. Não estou certo se ela saiu. Com certeza, ela saiu. Disseram que ela saiu. Creio que ela saiu. É possível que ela tenha saído. Duvido que ela tenha saído. É inacreditável que ela tenha saído Que bom que ela saiu. Ela pode ter saído. Ela saiu? Ó, ela saiu... Ela saiu, viu? Só sei que ela saiu. Eis algumas possibilidades, dentre tantas outras, que atestam que a expressão linguística não pode ser encarcerada a categorias de pensamento lógico simplesmente. Há estudos que consideram o dictum e o modus, divisão tradicional de estudos descritivos que toma, na verdade, os termos de empréstimo à filosofia escolástica medieval (cf. AZEREDO, 2008, p. 209). O primeiro corresponderia ao conteúdo proposicional em si, enquanto o segundo recobriria as possíveis atitudes do falante diante do que diz, ou seja, desse conteúdo que, afinal, também diz respeito à forma. Aí, estaria o ajuizamento de valor aplicado ao enunciado na forma de modalidade em si que pode abranger uma gradação vasta incluindo dúvida, hipótese, suposição, desejo, torcida, intenção, obrigação, etc. O modus e o dictum voltarão a ser pois “... a aderência entre significado e significante se tornaria mais frágil. Essa debilidade de dado signo verbal predisporia tal forma a papéis mais gramaticalizados na língua.”. 72 retomados, em nossa explanação, quando nos aprofundarmos, especificamente, no modo subjuntivo. As expressões modais podem ser de uma gama também bastante ampla, incluindo vocábulos e expressões modais, construções frasais, entonações, os modos verbais em si, além de recursos supralinguísticos, como gestos. Dentre as palavras e expressões modais, podemos citar verbos auxiliares modalizadores, advérbios de modalidade, orações modalizadoras (como Eu creio que, Não resta dúvida que, etc), predicados e expressões idiomáticas já cristalizadas (como É certo, É possível, Quem dera, Queira Deus, etc). Além de todos esses, lembremo-nos de que já constatamos que os próprios tempora futuros, com especial destaque ao modo indicativo− já que, no subjuntivo, a modalização é inerente− podem expressar modalização. Para Vilela (1999), as modalidades básicas a se considerar, linguisticamente, são realis e irrealis. Essa oposição, frequentemente, é a que se tenta transpor para a oposição indicativo-subjuntivo. Contudo, em que pesem aspectos produtivos dessa sobreposição, conforme buscaremos caracterizar, a relação entre os modos verbais portugueses é mais de complementação em uma gradação que visa à modalização em maior ou menor grau do que de oposição binária. Os conceitos de realis e irrealis são também, por vezes, convocados à descrição linguística dos tempora. Comrie (1985) assevera-nos que, na língua dyirbal, australiana, há um sistema de oposição verbal, marcado morfologicamente, presente-passado, assentados no parâmetro do realis, contrapondo-se ao futuro, calcado no irrealis. De todo modo, tornaremos à problematização em torno das esferas do realis e do irrealis quando adentrarmos a descrição dos modos verbais em si, a seguir. 2.3 Modos verbais portugueses Sabemos, da tradicional sistematização gramatical, de séculos, que os modos verbais portugueses seriam o indicativo, o subjuntivo e o imperativo. A tradição gramatical lusitana, ancorada na tradição francesa nesse ponto, ainda considera o, assim chamado, condicional, já nas gramáticas brasileiras, especialmente depois de Said Ali, futuro do pretérito. Aqui, tomaremos por modos efetivos os três primeiros 73 citados e, ao analisarmos o futuro do pretérito, daremos conta do porquê de não o considerar um modo à parte, mas sim um tempus. Antes de prosseguirmos, façamos uma breve digressão por outras importantes referências gramaticais do Ocidente. Embora a percepção quanto à abrangência dos modos verbais não possa ser tomada por referência estrita, já que estão calcadas em outras línguas, ainda assim, interessa-nos a visão sobre o que seja modo. Comecemos pelos gregos. Dentro de sua tradição na qual o estudo da linguagem é, primeiro e muito solidamente, levado a efeito pela Filosofia, natural esperar que muitos dos conceitos pré-gramaticais e, a partir dos estoicos, gramaticais, no sentido que hoje levamos em conta, pois que formulados dentro das formas linguísticas e não de ideações logicistas que buscavam, pelo subterfúgio da linguagem a compreensão das relações do homem com o mundo a sua volta e os valores e feitos daí advindos. Dentro desses princípios, a primeira formulação a merecer destaque remonta a Protágoras, séc. V a.C. que propôs diferentes modos para a divisão da composição retórica em “modalidades de frases”: imprecação (eucholé- εὐ χολή), interrogação (erotésis- ἐ ρώτεσις), resposta (apókrisis- ἀ πόκρισις) e ordem (entolé- ἐ ντολή). Já para Aristóteles, os tipos de elocução eram, além da ordem (entolé- ἐ ντολή), da resposta (apókrisis- ἀ πόκρισις) e da interrogação (erotésis- ἐ ρώτεσις), o pedido (euché- εὐ χή), a narração (diégesisδιέγεσις), a ameaça (apeilé- ἀ πειλή). Mesmo os estoicos não realizam o salto da incorporação do modo como categoria gramatical, embora tenham promovido o grande salto histórico rumo ao estudo gramatical. Contudo, nesse ponto específico, referente ao modo verbal, prosseguem o desenvolvimento da análise dos tipos básicos de frases, a partir da proposição. Já Dionísio o Trácio, reconhecido como autor da primeira gramática grega, a Téchné grammatiké (Τέχνή γραμματική), no século II a.C., vale-se do termo énklisis (ἒ νκλισις) para a identificação do modo verbal. É aí que ocorre o grande salto de uma categoria do pensamento ou do discurso para uma categoria da língua. O olhar se desloca do tipo de frase para as especificidades do verbo. Para a língua grega, Dionísio identifica cinco modos: o indicativo (horistiké- ὣριστική), imperativo (prostaktiké- προστακτική), optativo (euktiké- εὐ κτική), subjuntivo (hypotaktiké- ὑ ποτακτική) e infinitivo (aparémphatosἀ παρέμφατος). Destaque-se que o subjuntivo carrega o mesmo radical da palavra hipótese e a palavra utilizada para definir o infinitivo é, originalmente, um adjetivo que significa indefinido. Já o nome do imperativo deriva de próstaxis/ πρόσταξις, 74 ordem. Já o indicativo, além de conter o significado convencionado de “definitório”, ainda se vale de uma palavra que é a forma craseada de áristos/ ἂ ριστος, adjetivo superlativo para bom. Por fim, a palavra para o optativo corresponde a um adjetivo que, literalmente, significa volitivo, aquele que expressa seu voto. Após Dionísio, Apolônio Díscolo, da grande linhagem de estudos da Alexandria, no séc. II d.C., voltou-se muito mais à sintaxe do que aos aspectos morfológicos88. No séc I d.C., em Roma, despontava outro grande gramático da Antiguidade, Marco Terencio Varrão, autor de várias obras, dentre as quais, De língua latina e Grammatica. Talvez um de seus grandes méritos, em termos de descrição gramatical da língua latina, tenha sido a percepção de paradigmas aspectuais, denominados infectum e perfectum, a clivar os verbos daquela língua em dois grandes grupos, retomando uma análise já construída pelos estoicos. O aspecto tornar-se-ia o grande ponto de partida da sistematização dos verbos latinos para o autor. Nesse ponto, parece-nos que, mais uma vez, ele teve uma grande intuição, afinal, a conceptualização aspectual, em latim, precede a temporal, pois é, a partir do aspecto, que se opta pelo radical a ser utilizado. Ele ainda dividiria o verbo latino em três conjugações, não captando a diferença entre, por exemplo, lego (3ª conjugação) e audio (4ª conjugação). Tal distinção só passaria a ser feita no séc. III d.C.. Já dos modos, Varrão trata de forma muito mais superficial. São referidos por perífrases: cum imperamus, para o imperativo, quae sunt indicandi, para o indicativo e o subjuntivo sequer recebe denominação latina, apenas exemplificação direta (cf. VALENZA, 2010). Sabemos, contudo, que há sistematizações da língua latina que consideram modos, ainda, o infinitivo, com seus formatos presente, passado e futuro, o particípio, com quatro formas, sendo duas de futuro, com a passiva, comumente, designada gerundivo, o gerúndio e o supino. Em suma, nas gramáticas primordiais gregas, o modo não apresenta uma conceituação precisa, mas sim já uma subdivisão, autônoma das modalidades da Filosofia. Na gramática de Varrão, o modo é posto em segundo plano, em favor do aspecto. Pode ser útil, ainda convocar a Gramática de Port-Royal, publicada em 1660, sob o título Grammaire générale et raisonnée contenant les fondemens de l'art de parler, expliqués d'une manière claire et naturelle, uma proposição de gramática 88 Para todas as informações desse parágrafo, cf. NEVES (2001, p. 43 e pp. 49-60). 75 racional, coadunando-se com os valores da época, mesmo tendo nascido sob os auspícios de um tradicional mosteiro. A gramática trata, efetivamente, da língua francesa, com pretensões universalizantes, para isso, valendo-se do latim, em diversas citações, seja em comparação ao francês ou para respaldar alguma forma linguística nesta língua. Os verbos são, nela, definidos como “aquele gênero de palavras que significam a maneira e a forma de nossos pensamentos”. Logo, identificam o indicativo, “a afirmação”, como forma natural dos verbos, sofrendo “inflexões” com diferentes pessoas e tempos. Os demais modos nasceriam de uma modificação “para explicar mais claramente o que passava em seu espírito”. Daí, teriam vindo o subjuntivo, as “condicionadas” e ainda o imperativo que seria expresso “quando aquilo que queremos depende de uma pessoa, da qual podemos obtê-lo, e lhe expressamos a vontade que temos de que o faça.”. Na caracterização do imperativo, os autores vaticinam a máxima “não se pode dar uma ordem a si mesmo”. Ao fim da exposição, sem terem, ao longo dela, definido diretamente modo, referem-se aos itens descritos dessa maneira. Em tempo, dissemos não ter havido referência direta a modo, mas, em boa parte da exposição, os autores valem-se de expressões como estado de espírito, querer coisas e similares. Não nos aprece descabido haver aí indícios que se compatibilizam com a visão do que seja modo que chegou até nós89. Notamos que a categorização de indicativo, subjuntivo e imperativo, como modos verbais, é de longínqua ancestralidade. Talvez, ela surja em nossas gramáticas como transposição de descrição e nomenclaturalização. O fato é que parece persistir até hoje. Sabe-se que a simples transposição de categorias e classificações para as mais diferentes línguas foi, em tempos passados, e ainda é, procedimento comum. Agora, vejamos como os modos são encarados na visão gramatical portuguesa. Dentro da esfera da tradição gramatical de língua portuguesa em geral e brasileira em especial, tantas vezes corroborada em estudos linguísticos descritivos mais atuais, somos apresentados a uma sistematização que explora, declaradamente ou não, os modos verbais de nossa língua, por meio da contraposição indicativo versus subjuntivo, deixando o imperativo, como algo à parte, sem maiores esclarecimentos acerca de por que este seria posto de lado, sem 89 ARNAULD & LANCELOT. (2001, pp. 94-96). 76 qualquer correlação com a contraposição estabelecida entre os outros dois modos. Comumente, a base para a mencionada contraposição assenta-se em premissas ou ideias como verdadeiro, real, certo, em identidade com o indicativo e suposição, irreal, incerto, dentre outros, para o subjuntivo. A respeito do supracitado, percorremos algumas definições de gramáticas tradicionais para confirmação e ampliação do que dissemos. Selecionamos, para esta análise, BARBOSA (1881), MACIEL (1931), RIBEIRO (1930), TÔRRES (1959), ALMEIDA (1962), SAID ALI (1966b), MELO (1970), BECHARA (1976), CUNHA & CINTRA (1985) e ROCHA LIMA (2003). De modo geral, prevaleceu, nesses autores, a identificação de indicativo, subjuntivo e imperativo. Contudo, há algumas discrepâncias, frente a isso, e problematizações que precisamos levantar. Barbosa (1881) identifica, por modos, “as differentes90 maneiras de enunciar a co-existência do attributo no sujeito da proposição.”91, sendo esses: o infinitivo, o indicativo e o subjuntivo. Quanto ao imperativo, considera-o parte do indicativo. Maciel (1931), além dos três modos, identifica também o infinitivo e o condicional. Este último também presente no ajuizamento de Ribeiro (1930). Melo (1970): asseverando modo como “atitude do falante relativamente à ação (ou fato), ao processo, ao movimento que o verbo traduz.”, distingue-os em indicativo, que corresponde a “uma constatação”, imperativo, que seria “uma ordem”, um comando”, subjuntivo, que corresponderia a “uma interpretação da ação, vista como dependente, como condicionada ou como hipotética”, destacando-se, mais uma vez, o caráter subordinado do uso do subjuntivo. Por fim, acrescenta ainda o modo optativo, equivalente a “um desejo, um convite, um pedido” e, quanto a este, ainda sublinha que “Em português, não há formas especiais para o optativo, servindo-se a língua, para isso, das formas do subjuntivo e, ocasionalmente, do imperativo.”. Adiante, o autor problematiza que, “do ponto-de-vista estrutural, morfológico”, só se podem considerar as três primeiras formas modais. Interpõe ainda uma nota quanto ao imperativo na qual destaca que “Sendo o imperativo o modo do comando, é claro que êle só pode ter uma pessoa gramatical, a segunda, que corresponde ao ouvinte: ninguém pode mandar a si mesmo fazer algo, nem, 90 Adotaremos como procedimento geral, em toda esta tese, a manutenção do padrão ortográfico original de todas as citações aqui utilizadas. 91 BARBOSA (1881, pp. 138-140). 77 muito menos, a um terceiro, que nada tem com isso, alheio que está ao circuito linguístico.”92 [grifo em itálico, do autor; em negrito, nosso]. Cunha & Cintra (1985) vaticinam modo como “a propriedade que tem o verbo de indicar a atitude (de certeza, de dúvida, de suposição, de mando, etc.) da pessoa que fala em relação ao fato que enuncia”93. Sem fatos novos com relação à caracterização do indicativo, caracterizam o subjuntivo como aquele em que “Encaramos, então, a existência ou não existência do fato como uma coisa incerta, duvidosa, eventual ou, mesmo, irreal” [grifos do autor]94. Por fim, o imperativo é conceituado com uma interessante novidade dos autores, em relação às conceituações mais comuns para o modo em questão: Embora a palavra IMPERATIVO esteja ligada, pela origem, ao latim imperare “comandar”, não é para ordem ou comando que, na maioria dos casos, nos servimos desse modo. Há, como veremos, outros meios mais eficazes para expressarmos tal noção. Quando empregamos o IMPERATVO, em geral, temos o intuito de exortar o nosso interlocutor a cumprir a ação indicada pelo verbo. É, pois, mais o modo da exortação, do conselho, do convite, do que propriamente do comando, da ordem95. [grifos em maiúsculas, dos autores; grifos em negritos, nossos] Essa última conceituação para o modo imperativo será bastante proveitosa em nosso desenvolvimento, pois que, como os autores, vemos a necessidade de se superar o velho e carcomido chavão que ainda domina as salas de aula de Língua Portuguesa de que o imperativo se presta ao ordenamento tão somente. Destaque-se que o subjuntivo é caracterizado ora por sua natureza subordinada ora por seu traço semântico de hipótese, desejo, suposição, etc. Por fim, de Rocha Lima (2003), chamamos a atenção a dois fatos curiosos. Primeiro, após reconhecer indicativo, subjuntivo e imperativo como modos, afirma que “Ao lado destas três, outras formas há, às quais têm os gramáticos vacilado chamar modos: o infinitivo, o particípio e o gerúndio, reconhecendo que as três “não possuem função exclusivamente verbal”96 [todos os grifos do autor]. Adiante, conceituará o imperativo afirmativo como “um tempo misto” [grifo nosso], visto que “para sua formação concorrem o presente do indicativo e o presente do subjuntivo”97 92 MELO (1970, p. 139-140). CUNHA & CINTRA (1985, p. 436). 94 Idem, p. 453. 95 CUNHA & CINTRA (1985, p. 465). 96 ROCHA LIMA (2003, p. 122). 97 ROCHA LIMA (op. cit, p. 129). 93 78 e o imperativo negativo. Ao permitir-se o “escorregão” de nomear o imperativo por “tempo”, o autor também nos permite confirmar algumas de nossas intuições quanto ao modo imperativo e sua sistematização que parece tender, explícita ou implicitamente, a tomá-lo por um apêndice dos modos verbais portugueses. Pudemos perceber que algumas conceituações de modo são muito próximas do que, ainda hoje, pratica-se, como definição. Quanto aos modos em si, o indicativo e o subjuntivo, de fato, são consensuais e universais em todas as identificações de modo, ao passo que o imperativo, considerado modo na maioria dos autores, é posto em situação, de certa forma, à parte, estabelecendo com os outros dois modos uma relação, claramente, diferenciada daquela que eles estabelecem entre si, um em relação ao outro, de oposição binária. Constatamos também como modos periféricos em algumas definições o condicional, seguindo a linha analítica tradicional das gramáticas lusas, o optativo, o infinitivo e uma ponderação a respeito do conjunto formado por infinitivo, particípio e gerúndio, no mínimo, reconhecendo nessas três formas particularidades afins. Temos um grande acordo com a conceituação majoritária do que seja modo que lhe preserva a faceta de gramaticalização da modalidade. Assim, acatamos, por ora, a ideia mais geral, veiculada pelos autores em questão sobre o que seja modo e nos reservamos um pouco mais de embasamento para postular nossa conceituação sobre essa categoria verbal. Essa definição majoritária aponta para a conjunção dos planos morfológico e semântico no entendimento do que seja modo. Por isso, não é possível acolher nenhuma das formas nominais nessa categoria. Quanto ao optativo, pensamos que Gladstone Chaves de Melo dá-lhe a solução de bom senso: ainda que possa ser percebido como valor, não apresenta realização morfológica própria, para nós um critério inerente à categorização como modo. Enfim, o referido condicional, como já disséramos, será tratado por nós, quando da explanação sobre o futuro do pretérito. Desde já, antecipamos que tenderemos a encará-lo, decididamente, como tempus e não como modo à parte. Ainda a respeito do que seja modo e da caracterização de cada um deles, consideramos também oportuno trazer à baila gramáticas mais contemporâneas, do séc. XXI, de abordagem mais claramente linguística, bem como dicionários de Linguística. Comecemos pelas referidas gramáticas contemporâneas de abordagem linguística: VILELA (1999a), ABREU (2006), FERRAREZI JUNIOR & TELES (2008), 79 PERINI (2010), AZEREDO (2008), CASTILHO (2010), BAGNO (2012) e MATEUS et al (2003)98. VILELA (1999a): o autor considera o modo “um dos instrumentos privilegiados para exprimir a “modalidade””, a qual é por ele considerada “uma categoria semântico-formal em que intervêm, por um lado, uma hierarquia de meios morfológicos, sintácticos, prosódicos e lexicais, e, por outro lado, a atitude do falante perante a validade do conteúdo fixado no enunciado”. Chama a atenção que, em sua primeira parte da conceituação de modo, o autor recorre aos aspectos formais que já anunciara na própria categorização, ou seja, surgem elementos para além do mundo semântico e discursivo no entendimento do que sejam modos. Cabe pontuar que, dentre os elementos formais, até então, só a morfologia ganhara destaque nas anteriores conceituações. Destaquemos também que o “conteúdo fixado no enunciado” seria o dictum, alhures mencionado; já o modus, a “atitude do falante”. Prosseguindo, ele identifica como categorias básicas de modalidade frasal a realidade e a irrealidade. O posicionamento do falante construir-se-ia no balanço entre realidade e irrealidade, dentro de uma escala de pontos entre tais extremos; daí, a suposição, a condição, a necessidade, a possibilidade, a certeza, a incerteza, etc. Adiante, identifica os modos portugueses, a iniciar pelo indicativo, “a forma básica dos modos: representa o conteúdo do enunciado como um facto”. Ainda considera-o o modo não marcado [grifos nossos]. Em seguida, qualifica o conjuntivo como portador de uma semântica “em oposição à do indicativo: é o modo do “não-realizado”, ou “ainda não realizado”. Ainda, concorda com a identidade marcante entre esse modo e as orações subordinadas e reconhece valor optativo nos conjuntivos independentes. Postula o modo condicional, em consonância com a já referida tradição de descrição gramatical lusa, reconhecendo a expressão de tal modo, contudo, como “o irreal no passado”, como um “pedido”, “ou ainda a 98 Tanto VILELA (1999ª) quanto MATEUS et al (2003) são, na verdade, de fins do séc. XX, contudo estão, claramente, inseridas na perspectiva de uma descrição mais linguística. 80 suavização de uma afirmação”. Também nos fala do condicional composto que expressaria “a irrealidade no passado”, “desejo com verbos de vontade”, por exemplo, “Ela teria desejado ver o museu.”, “avaliação (do valor) de informações obtidas por canais intermediários”, como em “Segundo o jornal O Público, o incêndio teria começado por volta da meia noite.” Decididamente, pensamos que os gramáticos brasileiros encontraram uma apresentação bem mais satisfatória para a identidade da forma verbal aqui em discussão, o que discutiremos à frente, oportunamente. Por fim, o modo imperativo, a respeito do qual aponta para a natureza interacional necessária e para o reconhecimento do papel da entoação, fator distintivo entre um pedido, uma ordem, um conselho, uma ameaça, uma advertência. Destaca o sema de futuro como evidente nos usos do imperativo. Problematiza ainda o grande rol de formas possíveis na língua à construção da imperatividade para além do modo em questão. E aponta também esse modo como contendo “lacunas, em que o conjuntivo completa normalmente as formas que faltam ao imperativo.” 99 . Eis um ponto bem discrepante na caracterização do imperativo nas tradições brasileira e portuguesa. A visão ainda hoje mais vigorosa, em nosso país, vê o imperativo com formas coincidentes ao subjuntivo, ao passo que em Portugal, vê-se o conjuntivo a suplementar o imperativo. Tornaremos a tal questão com vagar quando de nossa caracterização do imperativo. ABREU (2006): sem conceituar modo, no que tange ao imperativo, contudo, o autor debruça-se em problematizações, como ao afirmar que “pelo princípio da iconicidade, tanto o imperativo afirmativo quanto o negativo não possuem a primeira pessoa do singular. Afinal, ninguém dá ordens ou faz pedidos a si mesmo.”100, a velha máxima de Port-Royal secularizada e travestida em modernidade. Na sequência, apresenta as formas afirmativa e negativa, segundo a exposição já muito carcomida em nosso país do presente do indicativo sem s, para as segundas pessoas do afirmativo e o uso do subjuntivo para todas as demais, em confirmação 99 VILELA (1999a, pp. 172-175). ABREU (2006, p. 312). 100 81 do que há pouco falávamos sobre a diferente ótica como se encara, em geral, esse ponto descritivo no Brasil e em Portugal. FERRAREZI JUNIOR & TELES (2008): nessa obra que reivindica, explicitamente, a língua brasileira, temática que será nosso objeto de problematização no capítulo 5, nada se conceitua sobre o que sejam modos. Ainda assim, esses são apresentados como sendo o indicativo, o subjuntivo e o imperativo; infinitivo, gerúndio e particípio são reunidos em um mesmo tópico. Sobre o imperativo, os autores reconhecem-lhe valor de modalidade, mas acabam por fazer concessão a sua identificação como tempo. Para todos os três tópicos de modos verbais, são apresentados esquemas de localização temporal, a partir de uma seta, orientada da esquerda para a direita como representação temporal. O modo indicativo é apresentado como o que “representa ações reais, que se crê (ou se quer fazer crer) verdadeiramente tenham acontecido, estejam acontecendo ou acontecerão”; já do subjuntivo, tão somente, dizse que “representa uma ação duvidosa ou incerta”. Em que pese a tímida conceituação, observa-se um traço interessante para os tempora subjuntivos, ao se afirmar que “as formas de subjuntivo são imprecisas no tempo”. Interessa-nos, sobremaneira, desenvolver tal questão, o que tomará curso adiante. Sobre o imperativo, apenas se diz que “representa uma ordem ou pedido”101. PERINI (2010): não trata da apresentação do que sejam modos ou mesmo de quais o são, embora, dispersamente, considere os três tradicionais como tais, ao que tudo indica. Entretanto, no capítulo 4, intitulado Orações sem sujeito, trata do imperativo, então visto como um desses casos, em seu uso mais típico102. Sobre esse modo, limita-se a apontar que o sujeito pode, quando por objetivo de ênfase, compor 101 FERRAREZI JR. & TELES (2008, pp. 166-167). Cabe esclarecer que Perini considera oração sem sujeito toda aquela desprovida do SN sujeito. Como já argumentado em Nascimento (2011, pp. 96-97), discordamos dessa conceituação no que concerne especificamente aos casos de sujeitos elípticos, os quais, a nosso ver, decididamente, não compõem o rol de orações sem sujeito. 102 82 plenamente a oração, como em “Vamos lavar nós mesmos esse carro” ou “Lava você esse carro!”103. AZEREDO (2008): aqui, o modo é conceituado como “a variação da forma do verbo [...] para a expressão da atitude do enunciador− ou modalidade da frase”. Notemos que, novamente, como em Vilela (1999a), o plano morfológico é içado ao primeiro plano da identificação conceitual. Na sequência, o indicativo é retratado como o “que serve para indicar fatos de existência objetiva” [grifo do autor]. E o subjuntivo é o “que serve para representar fatos como dependentes do ponto de vista pessoal do enunciador”. O autor ainda explora, por exemplos, distinções semânticas entre indicativo e subjuntivo, fazendo-nos crer que atesta tal oposição como a central entre os modos portugueses. Apresenta-nos, enfim, o imperativo como modo em “que o enunciador expressa uma ordem, uma exortação, um pedido”. Após isso, oferece-nos dois importantes alertas quanto ao uso desse modo: de que, diferente do que se vê no indicativo e no subjuntivo, as formas de imperativo são invariáveis quanto ao tempo e também que essas “são exclusivas dos usos da língua em que o enunciador se dirige explicitamente ao seu interlocutor [...], o que limita a ocorrência do imperativo à função conativa”104 [grifo nosso], diversamente do que ocorrido com indicativo e subjuntivo, utilizáveis em qualquer função da linguagem. CASTILHO (2010): para o autor, modo é “a avaliação que o falante faz sobre o dictum, considerando-o real, irreal, possível ou necessário.”. Aponta indicativo, subjuntivo e imperativo como os modos de nossa língua. O primeiro é tomado por predominar, sintaticamente, em sentenças simples, asseverativas e interrogativas, já semanticamente, por corresponder a “uma avaliação do dictum como um estado de coisas real, verdadeiro”. Sobre o subjuntivo, caracteriza seu predomínio nas orações subordinadas e chama atenção para o fato de que subjuntivo e subordinado podem ser entendidos como sinônimos. Em termos 103 104 PERINI (2010, p. 79). AZEREDO (2008, pp. 209-211). 83 semânticos, “expressa um estado de coisas duvidoso”. Pondera ainda sobre o tratamento errático da descrição gramatical em torno de sua terminologia: subjuntivo ou conjuntivo. Por fim, sobre o imperativo, qualifica-o como aquele que “expressa uma ordem ou um pedido”. Adverte, porém, que, fora da 2ª pessoa, o modo indicaria uma volição. Atribui à herança optativa, a atual representação suplementar do imperativo por formas de subjuntivo. Condena a “decoreba” escolar tão consagrada de que a 2ª pessoa da forma afirmativa corresponderia ao presente indicativo sem s. Problematiza ainda que a natureza do imperativo encontrar-se-ia entre um ato de fala ilocutório e as flexões verbais. Destaca ainda que o modo, hoje, seria suprido na língua tanto por indicativo quanto por subjuntivo, apontando indícios de mudanças corroborados por dados de pesquisas de Henrique Braga e Marta Scherre, expostos na explanação. Em especial, chamamos a atenção para uma conclusão da autora citada que aponta para situações não só de preenchimento do SN sujeito, em construções imperativas, como também de tendência ao uso de indicativo ou subjuntivo, em função da posição pré ou pós-verbal desse SN, a primeira favorecendo indicativo, a segunda, subjuntivo, como se exemplifica na obra: “Faça você o trabalho, eu estou cansado.” “Você faz o trabalho, eu estou cansado.”105 [grifos do autor] Ataliba Castilho ainda abre um questionamento a respeito da polêmica sobre a natureza modal ou temporal do condicional/ futuro do pretérito, estabelecendo que a forma expressa, por sua natureza polifuncional, expressa ambos os valores, esvaziando, de certa forma o debate sobre tal tema. BAGNO (2012): em sua obra, o autor, primeiro reconhece o modo como categoria semântica verbal, ao lado do aspecto, do tempo e da voz. Apresenta-nos uma conceituação para modo como “devidamente 105 CASTILHO (2010, pp. 437-441) 84 gramaticalizado em cada um dos paradigmas morfológicos que permitem ao falante expressar sua atitude com relação ao estado de coisas.”106 [grifos do autor]. Reconhece, como possíveis, nas línguas, os modos indicativo, subjuntivo, optativo, condicional, imperativo, causativo, interrogativo e negativo. Estabelece interessante distinção entre modo e aspecto que aqui citamos: Os modos englobam, como sabemos, diferentes tempos. O modo se diferencia do aspecto precisamente por comportar um conjunto de tempos, enquanto o aspecto traduz a apreciação que o falante faz de algo que se passa num único segmento temporal [...]107 [grifo do autor] Inicia sua exposição pelo modo condicional, embora considere que “os modos englobam diferentes tempos”. Advoga tal modo melhor rotulado sob essa terminologia do que como futuro do pretérito, dado que seu uso mais frequente, como por ele argumentado, a partir de dados do projeto NURC, seria modal. Tais dados perfizeram, em seu levantamento, um total de 95,5% de usos modais, associados às construções condicionais. No ponto voltado ao subjuntivo, curiosa ou compreensivelmente, inicia sua exposição por asseverar que “O modo indicativo (também chamado evidencial ou declarativo) incide diretamente sobre a realidade empírica do estado de coisas; com ele produzimos declarações factuais e crenças positivas.” [grifos do autor]. Assegura também que o indicativo “Ocorre em todas as línguas do mundo.”. Sobre o subjuntivo em si, destaca seu predomínio em construções de subordinação e advoga, surpreendentemente, que, quando em construções independentes, tal independência é apenas aparente, pois que corresponderia a estruturas em que a sentença principal fora apagada. A partir daí, justifica a terminologia conjuntivo, embora acabe por ajuizar subjuntivo como mais apropriada, pois que recobriria mais abrangentemente os usos de tal modo. Prosseguindo em sua exposição, atenta à situação sui generis do subjuntivo em português, com amplo quadro temporal, dentre formas simples e compostas, se comparado às irmãs línguas latinas. Destaca também a queda de uso crescente do subjuntivo em PB, mesmo no uso 106 107 BAGNO (2010, pp. 559-560). BAGNO (op. cit., p. 556). 85 de falantes considerados cultos. No entanto, ressalva que diante de construções negativas na oração principal, verifica-se um favorecimento à realização do subjuntivo. Aponta como fator motivador ao desaparecimento gradual do subjuntivo a economia linguística já que expressões como dúvida, possibilidade, concessão, etc já viriam indicadas na oração principal. Sublinhemos que tal raciocínio coaduna-se à visão de sobremodalização de Campos (1997). No tocante ao imperativo, o autor volta-se mais às críticas contra os artificialismos no ensino do paradigma do imperativo e dos usos de 2ª pessoa, em face do uso corrente no PB. Faz ainda uma varredura dos usos de imperativo pelas regiões brasileiras, problematizando, sobretudo, a 2ª pessoa. Pontua também que o uso verificado, efetivamente, em PB, para a 1ª pessoa do plural é vamos mais infinitivo, com ou sem se. Sobre isso, nada diz sobre a perífrase vamos mais gerúndio. Não há, na obra, exposição específica para o indicativo. MATEUS et al (2003): eis outra obra cuja primeira edição remonta aos finais do século XX. Pelas mesmas razões expostas quanto a Vilela (1999), trazemos aqui essa obra, de tanto esforço e apuro descritivo. As autoras iniciam sua exposição pelo conceito de modalidade, mencionando as aléticas, as epistêmicas, as deônticas, as bulamaicas− relacionadas ao desejo, as avaliativas e as causais. Como fosse de se esperar acabam por se concentrar nas deônticas e epistêmicas, trazendo ao convívio dessas, as internas ao participante que diriam respeito à capacidade e necessidade e as externas ao participante, possibilidade ou necessidade externa. Após longa exposição sobre modalidades e verbos modais, iniciam a abordagem de modos, limitando-se a dizer que “Os modos estão relacionados com a modalidade de diferentes maneiras.”108. Admitem como modos portugueses o indicativo, o conjuntivo, o imperativo e ressalvam que “o Futuro e o Condicional, quer simples quer compostos, possam também ocorrer como modos.”109. 108 109 MATEUS et al. (2003, p. 254). Idem, ibidem.. 86 Abordam primeiro o imperativo, o qual assinalam, distintivamente, como especializado na expressão da modalidade deôntica. Apresentam restrição ao uso do modo: “não pode combinar com estados não faseáveis” e dão, como exemplificação disso: “*Sê alto!” e “*Morre!”. Discordamos, ao menos em parte, da agramaticalidade dos dois exemplos. Quanto ao segundo, simplesmente não vemos procedência em sua indicação. Desde a trivial e prosaica situação de se embrenhar em caça a uma barata, proferindo “Morre, desgraçada!”― a própria expressão de vontade do enunciador― ou o que o valha, como vocativo, a situações mais drásticas de interação envolvidas, infelizmente não apenas romanceadas ou filmadas, em que se profira algo equivalente, percebese, portanto uso efetivo, em contextos não faseáveis, ainda que a morte seja sofrida e lenta. Quanto ao primeiro caso, mesmo desconsiderando, claro, contextos metafóricos, não vemos impedimento na oração imperativa, mas muito mais incompatibilidade semântica, em princípio, entre o verbo ser, indicador de estado permanente e a condição intrinsecamente estrutural contida no semantema do adjetivo. Não haveria qualquer indício de restrição quanto a Sê forte! ou Sê esperto! Em outras palavras não se poderia, por conveniência comunicativa, inclusive, exortar-se alguém a ser algo que já o é ou, não sendo, não o será. Mesmo se considerássemos, processos de crescimento ainda inconclusos, persistiria a não fazer sentido, uma vez que o processo de vir a ser alto, além de, em princípio, independer do interlocutor, não pode ser atendido em prontidão, como exigiria uma das especificações do sema imperativo. Logo após, elas voltam-se aos usos modais do futuro indicativo e do condicional, mais voltadas à exemplificação e análises. Iniciam uma exposição conjunta do indicativo e do conjuntivo por assinalar a complexidade da distinção de uso entre os dois modos, como mostram seus exemplos seguintes: “A Ana lamentou que estejas doente.” E “O Rui crê que a Rita está em casa.”110, em que há certeza construída com subjuntivo e incerteza com indicativo. Problematizam, em função desses 110 MATEUS et al. (op. cit, p. 258). 87 exemplos, se as formas de subjuntivo são semanticamente vazias e apenas condicionadas sintaticamente ou não. Exploram distinções semânticas entre exemplos com indicativos e subjuntivos, tal qual Azeredo (2008) e, logo depois, identificam o indicativo como “preferencial das frases simples, da maior parte das coordenadas111 e ainda da oração principal em muitas frases complexas.”. Quanto ao conjuntivo, admitemlhe usos coordenados e em frases simples, mas lhe atribuem, sobretudo, a presença nas subordinadas. Destacam ainda seu papel suplementar ao imperativo. Nesse último caso, atentam para os conjuntivos em coordenadas alternativas, como na exemplificação “Gostes ou não gostes da sopa, vais comê-la!”112, em que, a nosso ver, os valores de conjuntivo e imperativo imiscuem-se. Por fim, expõem, longamente, contextos subordinados de ocorrência subjuntiva e terminam por explorar os tempora desse modo. Ao cabo dessa sequência de gramáticas que qualificamos linguísticas113, vimos uma série de elementos novos de análise serem inseridos, ampliando nossos referenciais para lidar com o conceito de modo, importante não só pela hierarquia estabelecida com relação aos tempora, mas, também, porque uma questão com que temos que lidar centralmente, em nossa tese, há de passar por apreciação de papel modal dos futuros portugueses. Observamos, nessa segunda safra de gramáticos, que, no geral, não há discordâncias profundas com relação aos “gramáticos tradicionais” quanto ao que, afinal, seja modo, embora haja naqueles algum maior refinamento e aprofundamento, esperáveis por sinal. Há pequenas dissonâncias disso, como Bagno (2012) ao vaticinar modos como formados por diferentes tempos, o que poria em xeque, além do condicional que ele próprio reivindica, também o imperativo. O mesmo autor define os modos como categorias apenas semânticas, visão da qual discordamos bastante. Como já dissemos, e mais do que corroborados pelos mais 111 Note-se que, nas coordenadas, em relação ao subjuntivo, o predomínio do imperativo é praticamente total, salvo, claro, usos optativos coordenados. Afora isso, na ausência de indicativo, só podemos encontrar, nas coordenadas, imperativo, infinitivo, gerúndio. Mesmo os particípios mereceriam uma discussão à parte, quanto à possibilidade de serem, aí, interpretados como adjetivos. 112 MATEUS et al. (2003, pp. 257-259). 113 Tomamos linguística aqui, tal qual CAMARA JR. (1986), como o que é correlato à Linguística e não à linguagem de maneira ampla. 88 distintos autores, o modo é de natureza morfossemântica. Aliás, tudo na língua pressupõe semântica, uma vez que ela, língua, nada mais é do que um sistema complexo que se vale de vários instrumentos e aparatos internos ou supralinguísticos, para sua tarefa-mor e razão de ser: construir significação. Insistindo na natureza/estrutura/comportamento morfossemântico dos modos, caberia taxar-se como semântica, sobretudo, a modalidade e, mesmo essa, pode manifestar contributos doutras naturezas, quer morfossintáticas, quer suprassegmentais. Há ainda, a se explicitar, as visões que dicionários de Linguística trazem sobre as categorias verbais em análise. Dos quatro que investigamos, CAMARA JR. (2000), DUBOIS et al (1993), CRYSTAL (1985) e TRASK (2006), entendemos que o primeiro apenas, sobretudo, traz posicionamento diferenciado do que já temos aqui tratado, sobretudo para a língua portuguesa. Em CAMARA JR. (2000), no verbete modo encontramos “Propriedade que tem a forma verbal de designar a nossa atitude psíquica em face do fato que exprimimos”. Quanto à especificação dos modos, são eles: indicativo, “em que asseguramos o fato”, subjuntivo ou conjuntivo, “em que enunciamos um fato com dúvida” e imperativo, “em que queremos que o fato se dê”. Acrescenta ainda que “o modo indicativo ficou de tal sorte predominante, que interfere na área dos outros dois” [grifos nossos]. Assevera o subjuntivo como modo de “servidão gramatical”. Levanta ainda sobre o imperativo, interessante ponderação de que “O imperativo, por sua vez, no Brasil, tem em regra uma conotação agressiva, ou pelo menos de superioridade impositiva, dando-se preferência, fora daí, a uma expressão indireta de vontade, com o indicativo.”114. Tal observação apresenta uma tentativa de explicação estilístico-cultural para a obliteração do modo imperativo no PB. Destaca ainda, no interior do modo indicativo, tempora que, comumente, assumem valor modal, como futuro do presente, para a dúvida e a possibilidade, pretérito imperfeito, para a irrealidade, futuro do pretérito, para a impossibilidade. Propõe ainda, dois novos modos constatados, para o português, ambos frutos de usos perifrásticos: o obrigatório, com ter, em qualquer tempus, seguido por de ou que e infinitivo e o volitivo, com auxiliar haver, especialmente no presente do indicativo, seguido por de mais infinitivo. Sobretudo, o segundo dos “novos modos” apontados por Camara Jr., 114 CAMARA JR. (2000, p. 169). 89 parece-nos, hoje, de uso vestigial na linguagem concreta e corrente do PB. Quanto ao primeiro, o obrigatório, não vemos aí o caso de modo, mas sim de uma modalização de alto rendimento na língua. Há ainda os verbetes específicos para cada modo. Em indicativo, não vimos nenhum acréscimo relevante, a nossos propósitos, a não ser, talvez, de que o comportamento desse modo, “mais geral e básico”115 vê-se também nas demais línguas indo-europeias. Já em imperativo, informa-nos que tal modo é “mórfica e significativamente distinto dos demais”. Expressa exclusivamente a vontade do falante em relação ao comportamento do ouvinte. Aponta ainda que, morfologicamente, o modo se restringe à 2ª pessoa presente e plural das formas afirmativas. Por fim, no verbete relativo a subjuntivo, deparamos com fatos novos que convém trazer à baila. Primeiro, é assinalado como remontando ao indo-europeu, que nesse modo “o processo é apenas admitido em nosso espírito e portanto passível de dúvida, em oposição ao indicativo”116. O autor aponta também o valor optativo do subjuntivo, opondo-se nesse aspecto ao imperativo, salvo nas pessoas defectivas deste modo, em que, então, dar-se-ia neutralização entre este e o optativo. Notemos que, pela premissa de Bagno (2012) de que os modos seriam formados por diferentes tempora, poderíamos assumir o obrigatório de Camara Jr., como um modo. Já o volitivo, para além do desuso, também não perfaria a aceitabilidade segundo o critério dos tempos verbais. Pensamos, contudo, que o obrigatório mattosiano liga-se mais à esfera da modalidade apenas, ainda que em uma perífrase de alta produtividade, não apresentando motivação morfológica que nos leve a trazê-lo à esfera dos modos. De toda a longa, mas, a nosso ver, profícua exposição de recortes conceituais e problematizações por que enveredamos, reunindo vinte e dois títulos de referência (vinte e seis, considerando Dionísio o Trácio, Apolônio Díscolo, Varrão e Port-Royal), algumas questões saltam aos olhos, seja como consensos, ou quase, seja como questionamentos. Ei-las, com suas eventuais problematizações: 1.O modo é, consensualmente, uma das categorias gramaticais do verbo. 115 116 CAMARA JR. (2000, p. 145). Idem, p. 225. 90 2.Majoritariamente, o modo é reconhecido como categoria morfossemântica no português e nas línguas. É isso que permite, inclusive, apontá-lo como gramaticalização da modalidade/ modalização. 3.Indicativo, subjuntivo e imperativo, intuitivamente ou não, são apontados como modos verbais de nossa língua. Há ponderação não desprezível quanto ao estatuto do modo condicional. O optativo é mencionado, como valor residual, ainda semântica e sintaticamente, relevante, mas dissipado morfologicamente. 4.O indicativo é apontado, direta ou indiretamente, como modo predominante, básico, geral. Imaginamos que seja daí que advenha a ideia sustentada por alguns autores de forma não marcada, da qual discordamos, uma vez que o indicativo apresenta, claramente, marcações, o que desenvolveremos adiante. Em conformidade com o predomínio indicativo, muito se aponta para a dilapidação de subjuntivo e imperativo, por conta disso. 5.A oposição indicativo versus subjuntivo parece estar no cerne, ainda que não explicitamente em todos os casos, da distinção fundamental de modo. 6.O imperativo é assinalado como distinto ou pelo menos posto à parte. Sobretudo, a partir da perspectiva dos autores de maior enfoque linguístico científico, deparamos com muitas problematizações sobre a estrutura, funcionamento, comportamento desse modo, não apontados, em geral, nas perspectivas mais tradicionais. Inclusive, a questão bastante básica de o que o imperativo expressa, afinal, é objeto de algumas posições discordantes. 7.Para além da questão terminológica do subjuntivo, parece haver tendência de consenso quanto às suas manifestações na língua, restando a questão mesma da vitalidade ou não de seus usos. 91 8.Estruturalmente, qual o grau de defecção do imperativo? Suas formas suplementares devem ser interpretadas como, morfologicamente? 9.Restam ainda vestígios da vacilação a que aludiu Gladstone Chaves de Melo quanto às formas nominais e sua possibilidade de entendimento como modos. Identificamos tais questões como as centrais, sobre as quais versaremos no prosseguimento de nossa exposição sobre modos, retomando e reafirmando a conceituação com que nos guiaremos nesta tese, não mais provisoriamente, após todas as ponderações adicionais que trouxemos à nossa cena analítica, como modo sendo uma marcação morfológico-verbal que corresponde, no plano semântico, à possibilidade de se expressar e se interpretar o juízo de valor do enunciador sobre o que diz. Estabelecido tal conceito, passaremos à exploração de cada um dos modos e, dentro deles, dos tempora. Pretendemos, por esse percurso, situar, com maior rigor, o que, enfim, seja o futuro verbal português. Antes, porém, precisamos estabelecer breves considerações sobre o tempus, uma vez que optamos por abordar os tempos verbais dentro de seus modos. Também serão necessárias apreciações sobre o tempo e o entrelaçamento dele com seu receptáculo linguístico. 2.4 Considerações sobre tempus e tempo Pretendemos, neste item, proceder a considerações realmente breves, acerca de questões gerais relacionadas a tempus e a tempo que ficariam deslocadas ou subutilizadas, em meio aos tempora de cada modo. O tempo, obviamente, é o ponto de partida aqui. O tempus, afinal, como dissemos, em nossa introdução, corresponde à apreensão linguística do tempo, ou seja, o tempo é decodificado em tempus, por processamento cognitivo. Ocorre que, embora o tempo corresponda a um substantivo concreto, tratamo-lo como abstração. Nossa percepção de tempo parece tender à unidirecionalidade, por meio de vivência e de observação, do resplandecer à putrefação, tanto de nossos corpos quanto do mundo à nossa volta. É o próprio tempo biológico, percebido na sucessão das 92 estações, nas fases da vida, numa orientação que toma por início o próprio nascimento. É assim que, ao que tudo indica, sentimos, em nosso próprio corpo, o tempo. Tomamos partido de uma compreensão da linguagem como construída e apreendida e não inata, a forjar o potencial conjunto de valores advindos de tal percepção primeira. Tomemos o curso do tempo, assemelhado ao curso do rio, inclusive em seu fluxo unidirecional, em metáfora literária tão produtiva. Esse tempo que tentamos apenas compreender e decodificamos de um modo particular, associado à nossa capacidade de apreensão dele, foi, igualmente, por nós, construído. Os dois grandes ramos da Física, há um século, a Relativística, inaugurada por Einstein e a Mecânica Quântica, a partir de Max Planck, têm uma relação, com o tempo concreto, bem diversa da com a qual lidamos, tanto no senso comum quanto na Linguística. Para a Física Relativística, por exemplo, o tempo é indissociável do espaço, formando com esse um todo quadridimensional, o que desencadeia consequências práticas bastante anti-intuitivas, como a expansão/ deformação do espaço, mediante a velocidade desenvolvida, assim como a contração do tempo. Obviamente, a compreensão do tempo como tão concreto quanto o espaço, para as duas grandes correntes da Física contemporânea, está aqui posta tão somente para que se postule que o tempo de que falamos aqui, decodificado linguisticamente, de fato, é uma construção, uma interpretação sobre o que, afinal, seja o tempo real, de dificílimo acesso e alcance para nossa cognição. Dito isso, qualquer pretensão de apreensão linguística universal do tempo soa inócua. A transposição de tempo em tempus dá-se de formas muito distintas nas línguas. E não nos referimos ao fato de, por exemplo, dada língua possuir cinco pretéritos indicativos, ao passo que outra só contenha dois desses. Ou da diferença dos modos representados nesta ou naquela língua. Falamos de distinções ainda mais profundas. Segundo Comrie (1985), há línguas, como o hopi, desprovidas da expressão de tempos verbais e outras, como de certos aborígenes australianos que concebem o tempo cíclico e não linear, algo de difícil compreensão, inclusive, para nossa matriz cultural. Há ainda, as que possuem delimitações de tempo distintas das nossas. O yidini, outra língua australiana, em risco de extinção, segundo a SIL, 93 Associação Internacional de Linguística117, não distingue os conceitos de hoje e de agora. Outras duas línguas australianas, o yandruwandha e o tiwi, apresentam sufixos temporais para indicar as diferentes partes do dia. Em haya, língua nígerocongolesa, há expressão de diferentes níveis de posterioridade no futuro. Por outro lado, em bamileke-dschang, língua camaronesa, há distintas gradações de passado remoto. Nas línguas do grupo kru, faladas na Libéria e na Costa do Marfim, a marcação de tempo é feita lexicalmente: bai, baimbai, bambai, advindos de by and by, do inglês, incialmente na forma de pidgins. Em kalaw lagaw ya, falada no centro e no oeste da Austrália, pretérito constrói-se com o sufixo ngul, que, como lexema, significa ontem. Em birmanês e em dyirbal, a língua que serviu de observação a George Lakoff, para a construção de sua referencial obra Women, fire and dangerous things, não há tempora118. O mesmo autor define tempus assim: “Tense is grammaticalised expression of location in time.”119. Um pouco adiante, desenvolve um pouco mais essa ideia, ao proferir que “[...] location in time is in many ways similar to location in space; and the expressions used in languages for location in time are often derived etymologically from spatial expressions”120 121 . Sabemos que, aqui, o autor está a falar de uma máxima da Linguística Cognitiva de que o tempo é, por nós, decodificado como espaço, dentro do princípio de que a metáfora cognitiva opera no sentido de tornar o abstrato mais concreto, mais palpável. Notemos, a título de curiosidade, que, partilhando a identificação do tempo como dimensão indissociável do espaço, teríamos que passar a considerar não mais o tempo como metaforizado em espaço, mas sim como uma metonímia deste. Há distinções marcantes entre tempo e espaço, manifestas, em geral, nas línguas, que se faz interessante notar. Embora o espaço conte com dimensões adicionais, em relação ao tempo, não há, linguisticamente nele, nenhuma oposição da ordem futuro versus passado, como dois pontos divergentes do presente. Talvez a inexistência de um sistema espacial dessa ordem esteja diretamente ligada à própria complexidade que tal concretização linguística exigiria de nossas 117 Portal da SIL: http://www.sil.org/linguistics. Para todos esses dados, cf. COMRIE (1985). 119 “Tempo verbal é a expressão gramaticalizada de localização no tempo.” 120 COMRIE (1985, p. 15). 121 “… localização no tempo é de muitas maneiras similar à localização no espaço; e as expressões utilizadas nas línguas para localização no tempo são frequentemente derivadas etimologicamente de expressões espaciais.” 118 94 capacidades de abstração. Outra distinção oportuna de se notar é que o tempo tende a ser considerado compartilhado entre interlocutores. Mesmo desde o advento da escrita e, mais abruptamente, com gravadores de voz, vídeo, comunicação virtual via internet, os interlocutores podem, objetivamente, estar situados em diferentes pontos do tempo, contudo, tal diferença não se concretiza nas línguas. Sobre isso, deparamos, em Comrie (1985): Apparently no language has two words for ‘now’, one referring to the moment when the writer is composing his letter and the other to the moment when the reader is deciphering it, nor does any language have distinctions in tense system to specify this difference.122123 Na transposição de tempo a tempus, toda a noção do segundo recai sobre a ideia de centro dêitico− diferente do que se passa com o aspecto−, o qual, tendencialmente, é tomado pelo presente discursivo que, assim, torna-se uma ponte entre língua e discurso. Qualquer centro dêitico distinto do agora (e do aqui) precisa ser elucidado pelo co(n)texto. É o princípio que dará passagem à formulação dos chamados tempora relativos, aqueles que não tomam o presente por centro dêitico, em oposição aos absolutos, que o fazem. A língua quéchua, da América do Sul, no Peru e na Bolívia, apresenta diferentes sufixos verbais para tempora absolutos e para relativos. Ao recorrermos ao conceito de centro dêitico, notemos que, mais uma vez, valemo-nos de um conceito do mundo espacial transposto ao universo temporal. Sobre a organização dos sistemas temporais, há duas grandes visões sobre os mesmos: ou correspondem a um enquadramento geral passado- não passado ou futuro- não futuro. Especialmente sobre isso, tomamos partido da primeira visão, ao menos no que concerne à língua portuguesa, embora acreditemos em uma latente universalidade dessa, eventualmente, camuflada aqui e ali pela morfologia de dado sistema morfológico verbal. As razões pelas quais cremos num sistema português que oponha passado- não passado, na sua própria estruturação interna serão elucidadas ao longo de nossa exposição relativa aos tempora portugueses. Possivelmente, não faz sentido cogitar um sistema de oposição do tipo presente- não presente, pois este pressuporia tempora descontínuos, o que parece 122 COMRIE (op. cit., p. 16). “Aparentemente nenhuma língua possui duas palavras para ‘agora’, uma referindo-se a quando o escritor está compondo sua carta e outra ao momento quando o leitor está decifrando-a, nem qualquer língua apresenta distinções em seu sistema para especificar essa diferença.” 123 95 uma real impossibilidade e, mais que isso, uma provável incongruência, já que nossa percepção linear do tempo parece se compatibilizar com a existência de uma única dimensão temporal em nosso universo. Uma apreensão de tempo descontínuo parece mais afeita a tempos bidimensionais, tridimensionais e outras dificultosas ilações nessa seara, tais quais propostas pelas Teorias das Cordas, da Física. Costa e Sousa (2007) diz-nos que não há um tempo, mas distintos tempos, dentre os quais, o vivido, o biológico, o científico− instaurado pelo relógio− e o linguístico, do qual o tempus é um subconjunto. Lembremos do que já postulamos, em nossa introdução, de que há expressão de tempo, no português, em advérbios e em adjetivos, vestigialmente, como já lá apontado. Por fim, são bem conhecidas as sistematizações de Benveniste e de Weinrich para tempora indicativos. O primeiro reconhece o tempo do discurso e o tempo da história. Aquele dar-se-ia na presença do enunciador, enquanto este, em sua ausência. Já Weinrich adota as terminologias tempo do mundo comentado e tempo do mundo narrado. Atentemos para o fato de que ambos os pares terminológicos são respectivamente equivalentes, detectando duas distintas ordens de apresentação temporal, correspondendo a duas marcações de enunciação― para Weinrich, atitude de locução― distintas, uma relativa à narração e a outra ao discurso. É o que Fonseca (1994) identifica como esfera do nunc (agora) e do tunc (então), oposição esta que extravasaria os tempora, como nos demonstra, e, aqui, adaptamos, por meio de advérbios: Quadro 5: o mundo da narração e o mundo do discurso. NARRAÇÃO (TUNC) DISCURSO (NUNC) Então Agora Nesse dia Hoje Na véspera Ontem No dia seguinte Amanhã Na semana seguinte Na próxima semana Na semana anterior Na semana passada Três dias antes Há três dias Referência interior ao enunciado, reportando Relação temporal direta com um ponto de -se indiretamente à enunciação. referência coincidente à enunciação. 96 Em termos de tempos verbais, considerando apenas o modo indicativo, em suas formas simples, as essenciais, Fonseca (op. cit.) propõe, a partir de terminologias de Eugenio Coseriu e Bernard Pottier, para a mesma questão: Quadro 6: distribuição dos tempora portugueses pela narração e pelo discurso. INATUAL ACTUAL NARRAÇÃO DISCURSO Imperfeito Presente Mais-que-perfeito Perfeito Futuro do pretérito Futuro do presente São essas as considerações gerais e breves que vimos necessidade de estabelecer sobre tempo, sobre tempus e sobre a relação entre ambos. Desta feita, rumemos pela exploração dos modos e dos tempora, dentro de cada um deles, tomando-os por indicativo, subjuntivo e imperativo. 2.5 Modo indicativo Primeiramente, vemos o modo indicativo, de fato, como básico, ou melhor, dentro de uma visão prototípica sobre a conformação e funcionamento da língua, ele corresponde ao modo verbal típico, sendo os demais, gradualmente, mais afastados dessa tipicidade. Tal visão, daria conta de esclarecer a maior definitude temporal do indicativo, uma caracterização menor desses no subjuntivo e com menor especificação temporal, como veremos no item pertinente, além de uma estruturação modal muito periférica do imperativo. Propomos isso, claro, para a língua portuguesa, já que, em outros idiomas, os graus de afastamento do protótipo de modo possam se apresentar de outras maneiras. Contudo, confirmado inclusive por outros autores que aqui convocamos, o indicativo parece ser, universalmente, este protótipo, o que faria sentido, numa visão mesmo genética das línguas. A expressão indicativa é mais básica, primeira. Também no desenvolvimento humano, o indicativo parece 97 preceder os demais modos. Isso pode ser verdade, também, para a precedência genética do imperativo sobre o subjuntivo. Segundo Quiles & López-Menchero (2009), o protoindo-europeu só dispunha de indicativo e de imperativo. O subjuntivo e o optativo teriam surgido no protoindo-europeu tardio. Precisamos, neste ponto, dar vazão a um alerta importante. Assumir que o modo indicativo relaciona-se com os demais dentro de uma relação de tipicidade modal e gradações traz consequências, aparentemente, sutis às quais, no entanto, precisamos tentar responder adequadamente. Se levamos a compreensão das relações entre os modos para a esfera da percepção escalar e prototípica, tiramos de cena a visão, tendendo a consensual, de que haja uma oposição básica entre indicativo e subjuntivo que estaria assentada na própria conceituação de modo. Afinal, a visão da língua como formada por unidades, estruturas, construções não discretas, mas sim escalares, na maior parte das vezes, dá conta de reposicionar uma série de visões descritivas, constituídas historicamente, que enxergam na língua uma série de contraposições binárias, muitas vezes, de profundo, quando não artificial, maniqueísmo, bem aos moldes dessa inegável base do pensamento ocidental. Indo além, poderíamos dizer que a oposição, ainda hoje, primeira na mente de muitos falantes e de tantos professores de Português, mesmo dentre alguns pesquisadores, ainda que, cada vez, mais minoritários, é a falseada binaridade certo versus errado, consequência maior e mais deletéria de séculos de estudos de linguagem, sob ótica não científica e que sedimentou todo um rol de indevidas oposições, baseadas no princípio do milenar maniqueísmo. À primeira vista, estamos diante de uma questão enturvecida. Contudo, cremos que podemos lidar com ela, convocando alguns referenciais já aqui postulados. Primeiramente, apossemo-nos da informação da precedência genética do indicativo e do imperativo sobre os demais modos, o que, conforme supracitado, repete-se no desenvolvimento humano. Ou seja, cognitivamente, os valores subjuntivos e optativos, são de um maior nível de complexidade, implicando, além da capacidade de abstração e projeção de futuridade e de realidades alternativas/ imaginárias, também autodescentramento, muito mais complexo do que o que dá vazão ao imperativo na interlocução imediata e imediatista com o outro, em enunciados que requerem prontidão de atendimento a vontades ainda extremamente autocentradas. Consideremos também a muito oportuna contribuição de Camara Jr. (2000), único autor a apontar oposição entre imperativo e optativo. Desenvolvamos, aliás, essa 98 ideia. O valor imperativo diz respeito à ação exercida sobre o interlocutor, na perspectiva de atendimento do que se instrui. Já o optativo situa-se no ponto em que não há possibilidade de ação sobre o outro, interlocutor ou não, restando a torcida, os votos, o desejo. Se compreendemos que é, a partir daí, que é possível captar a razão pela qual o autor assegurou a distinção fundamental entre imperativo e optativo e, se adicional e simultaneamente, conseguimos notar que é plausível uma relação escalar que vai do imperativo mais extremo, aquele em que há, inclusive, ascendência hierárquica entre os interlocutores, possibilitando ordenamentos que contariam, então, com expectativa de maior prontidão de atendimento até o extremo oposto, em que a sorte esteja entregue ao destino, assumindo este a configuração simbólica, metafísica, das crenças e esperanças mais íntimas de cada um que as puder assumir, sem qualquer possibilidade, ainda que distante, de intervenção em dado acontecimento, resta o mais desnudado optativo. Notemos ainda que, se o imperativo só se viabiliza apelativamente, na forçosa presença de um interlocutor, o optativo corresponde ao interesse de alguém, de outrem por mais ausente que esteja, embora possa ser o próprio enunciador, incapacitado por si mesmo à ação que o leva a se valer da optatividade. Destarte, consideremos que a mesma relação possa ser estendida, por implicatura de processos e de raciocínio àquela estabelecida por indicativo e subjuntivo. O subjuntivo seria então, primordialmente, a impossibilidade do indicativo. Nos planos enevoados à asserção, surgiria a inviabilidade desta, em diferentes graus da máxima assertiva à máxima não assertiva, do totalmente realizado, comprovado, atestado e testemunhado ao impossível, inexistente, delirante, jamais atestado. Eis que perfizemos uma escala tal qual a proposta para imperativo e optativo. Juntemos essas considerações. Primordialmente, temos a emergência genética de indicativo e imperativo, de fácil credibilidade, inclusive pela estruturação cognitiva de ambos. A existência, indiscutivelmente, como conceito e como vivência, precede a não existência, assim como o ímpeto de intervir sobre o outro antecede a impossibilidade completa de qualquer grau de intervenção, a plena incapacidade e/ou impotência diante de um acontecimento. Temos então, dois planos escalares traçados. Acrescentemos, a nosso raciocínio, que o indicativo já foi, por nós e por vários autores, reconhecido como básico. Então, numa escala da ordem que começamos a traçar, ele antecederia o imperativo. Tem-se então, uma gradação de 99 referências cruzadas, para efeitos genéticos. Intuindo uma representação gráfica, ainda que muito provisória ao que estamos a formular: Esquema 2: inter-relação dos modos verbais. [+ indicativo] [+imperativo] [+ optativo] [+ subjuntivo] Decodificando a figura acima, a diferença de dimensão entre a largura das setas está desproporcional, mas serve como indício da centralidade da oposição escalar principal entre indicativo e subjuntivo. Da mesma maneira, a inclinação da segunda, atribui à oposição imperativo-optativo caraterização menos focal, em relação à primeira. Há, nessa proposição de visualização, bem inicial, como destacamos, uma questão que pode se desdobrar em indagação perturbadora. O que seria o ponto de interseção entre os dois pontos ou planos escalares? Não dispomos de uma resposta definitiva a isso, mas consideramos válido, inclusive, questionarmo-nos se há interseção. Talvez, a melhor proposição visual fosse tridimensional sem interseção, tão somente com sobreposição de planos, o que, obviamente, não nos será possível representar aqui com os recursos de que dispomos. Outra possibilidade, também a ser encarada como provisória, é que esse suposto ponto de interseção poderia corresponder às formas nominais, talvez por isso, ainda residualmente, sentidas, mesmo que fraca e difusamente, como modos? Um argumento a favor dessa visão seria o fato de ser o ponto interseccional em questão o da neutralização das distinções modais, equidistante dos pontos extremos prototípicos de cada um dos valores modais representados. Assim, haveria coerência entre a percepção de valores modais esvaziados e a intuição de que as 100 formas nominais constituam uma série. O fato de que, em várias línguas, diferente do que ocorre em português, elas possuam diferentes tempora reforçaria então essa hipótese. Destaque seja feito aí ao infinitivo português, em seu modelo flexionado, pessoal− aliás, não encontrado nas irmãs línguas latinas, inovação que é do português124− intuímos corresponder ao presente. Por último, se as formas nominais− chamadas, por alguns, inadvertidamente, segundo nosso juízo, verboides− estão equidistantes dos protótipos modais em uma zona “neutra” entre eles é de se supor, ou pelo menos admitir como possibilidade, uma decorrente neutralização derivada para valores temporais, comum nas línguas contemporâneas para essas formas. Do que vimos e levantamos até então, essa premissa só não daria conta de explicar o modo supino latino. Contudo, aí vemos uma provável idiossincrasia de descrição gramatical. O supino latino amatum, deletum, auditum, corresponderia, em português, por exemplo, às subordinadas adverbiais finais. Talvez, trate-se então somente de uma opção de descrição, sem maiores implicações reais sobre a caracterização do que seja modo. Quanto à menção feita por Bagno (2012) aos latentes modos negativo e interrogativo, consideramos que aí possa estar por se reconhecer simples questão de tipologia fraseológica ou de relações paramodais. Saindo da questão modal genética e retornando à nossa língua, como dissemos, hoje, no português, o imperativo ocupa posição mais periférica do que o subjuntivo. Mantido o protótipo pelas línguas, a distribuição no continuum poderia ser alterada por fatores vários de ordem histórico-social. Não desprezemos ainda a sempre presente ação de fatores de cognição. No caso da língua portuguesa, o enfraquecimento do paradigma imperativo pode ter levado este modo ao comportamento periférico. Não temos aqui e agora a resposta completa a esse ponto específico e tampouco nos propomos a tê-la, reconhecendo, inclusive, que deva passar pela inevitável análise da questão no latim clássico, bem como, depois no vulgar e nos romances, da distribuição e conformação dos modos imperativo e subjuntivo. Para o que pretendíamos, cremos já ter derrubado a aparente contradição entre assunção da oposição indicativo versus subjuntivo e reivindicação do critério analítico de prototipicidade linguística. 124 Segundo Maurer Jr. (1959, p. 186), o infinitivo flexionado surge no português como decorrência do infinitivo com sujeito, inovação, por sua vez, do latim vulgar. 101 Novamente segundo Quiles & López-Menchero (2009), a oposição modal indoeuropeia, entre indicativo e subjuntivo, constituía-se em um indicativo atemático versus um subjuntivo temático ou indicativo temático versus um subjuntivo temático de vogal longa. Ou seja, aí se confirmaria, para o indo-europeu, a ideia de um indicativo não marcado, cabendo o status de forma marcada, morfologicamente ao subjuntivo. Portanto, a intuição de vários autores por que passamos do indicativo como forma “zero” confirmar-se-ia aí, sem, todavia, segundo nossa opinião, assim se verificar, em termos da morfologia no português. O imperativo, por sua vez, corresponderia, geneticamente, ao tema puro, com adição de advérbios e/ou pronomes. Notemos que, em muitas línguas, o imperativo, como tema puro, conserva-se. Além disso, essa marcação morfológica, do subjuntivo, em oposição ao indicativo, poderia ser lida como um decalque do descolamento daquele modo de dentro deste, na própria formação da cognição sobre o que sejam as impossibilidades, as especulações, o imaginário, o possível e afins, a partir de formulações de relações conceituais que iriam gradativamente se afastando mais e mais do que era o tipificado em termos do indicativo. Ainda, do mesmo modo como indicativo precederia imperativo, sendo este, uma certa especificação, especialização daquele, em nossa leitura genética, o mesmo desenvolvimento pode ter sido levado a cabo para subjuntivo e optativo, pareados como formas não marcadas dos modos primeiros. Assim o optativo indoeuropeu seria o subjuntivo com sufixos específicos. Essa distinção tênue e a proximidade cognitiva pode ser a responsável pela proximidade muito grande entre os dois modos em várias línguas, como em grego clássico em que várias formas de subjuntivo e optativo são coincidentes, e, claro, até para o apagamento do segundo, em favor do primeiro. E por que não ao contrário? Pensamos que pelo fato de o subjuntivo se opor escalarmente ao indicativo, modo básico, isso tenha garantido sua maior longevidade frente ao optativo. Outro ponto de observação para o caráter básico generalizado do indicativo seria o simples fato de ser o modo dominante, senão único, nas frases verbais mais básicas e elementares. E cabe ainda conceituar a expressão do modo indicativo, a qual, em nosso levantamento de autores de gramáticas, salvo preciosismos ou generalidades excessivas, não destoou notadamente entre os mais diversos tempos e autorias em si. Tomamos, em consonância, o indicativo como o modo da factualidade em 102 que, prototipicamente, verifica-se o grau mais tênue de ajuizamento do enunciador e no qual se constata a maior definitude de tempos verbais. A respeito do dado de factualidade, notemos que ele vai desde a mera constatação de fato remoto, situação em que o ajuizamento pode ser entendido como apagado mesmo à crença tomada como certa e convicta, “real” mesmo, de dado fato. Ou, ainda mais radicalmente, até o ponto em que uma suposição possa ser tomada como “certeza” em uma realidade de construção mental, projetada, imaginária. Essa conceituação e suas decorrências levam-nos à necessidade de nova sistematização a dar mais concretude ao que aqui apregoamos. Esquema 3: graus de factualidade dos tempora indicativos. [+ factual/ + certo/ + indicativo] Pretérito mais-que-perfeito Pretérito perfeito Presente Pretérito imperfeito Futuro do presente Futuro do pretérito [- factual/ + hipotético/+ subjuntivo] Atentemos ao fato de que a escala de factualidade não se confunde com a de temporalidade. Daí, o presente assumir papel mais factual do que o imperfeito, como se comprova pela suplementação que este realiza do futuro do pretérito, ao passo que aquele assim se correlaciona ao futuro do presente, mais factual que é do que sua versão pretérita. A factualidade está, diretamente, ligada à modalidade/modalização. Como implicação óbvia do esquema acima, verificamos que os futuros indicativos correspondem a tempora de fronteira, o que daria conta de explicar justamente seu tão comum papel modal, dentro da língua. A posição fronteiriça também obscureceria seu valor temporal, dando-lhes a própria feição inerente, até pela própria condição cognitiva, inclusive, de futuros, de entes verbais entre o tempus e o modo, com uma definitude entre ambas as condições em aberto que é 103 como se apresentam e razão pela qual tanto se polemiza sobre isso. Essa visualização também preserva a precedência temporal, garantindo aos elementos mais remotos o maior grau de factualidade, de concretude como fatos mesmos, enquanto os mais recentes ou ulteriores seriam não só, gradualmente, menos factuais, como também, mais abstratos, em termos de sua própria conceptualização. Atentando à dimensão aspectual, os tempora que abarcam ou podem abarcar... a imperfectividade são menos factuais, dada sua extensão semântica no tempo, o que daria ao fato carga mais difusa e menos certa, verificável, atestável. Feitas nossa ponderações gerais sobre o modo indicativo e questões que lhe são correlatas e íntimas, agora vejamos seus tempora. 2.5.1 Presente O presente do indicativo é o epicentro de toda a grade temporal da língua, aliás, ao que parece, das línguas em geral. Na verdade, melhor seria apontar a uma sobreposição que aí se dá entre o presente discursivo e o presente tempus, fundindo-se em uma única forma que serve de referencial às relações gerais para a maioria dos tempora, configurando os tempora absolutos da língua. Tal sobreposição permite encarar o presente, na falta de melhor termo, como um metatempus. É bastante comum, nas línguas, que esse presente refira-se não somente a um momento presente instantâneo, mas a uma faixa de tempo, implicando, portanto, que, muito comumente, o presente presta-se à imperfectividade, como se dá em português. Esse traço, junto a não marcação morfológica modo-temporal, atribuindolhe, assim, características de forma básica, “zero”, garante-lhe uma exitosa elasticidade pela cadeia temporal, tornando-o um verdadeiro tempus coringa, propício a uma expressão que, se não recobre todo o modo indicativo, permite-lhe um trânsito de valores semânticos sem igual na língua. O próprio traço de imperfectividade compõe a habilitação a sua polissemia, além dos fatores já mencionados, pois lhe trará por atribuição a distensão pela linha do tempo, alargando, desta forma, o próprio espectro temporal. De início, o presente dá conta das próprias distintas especificações do que seja o presente, bem como se ramifica 104 à representação do passado e do futuro, criando, desta forma, uma rede de expressividade muito rica. Dando uma forma sistemática a isso, obteríamos, por exemplo: Esquema 4: valores do presente do indicativo. Simultaneidade ao momento de fala. Contemporaneidade PRESENTE DO INDICATIVO Frequência Atemporalidade Futuridade Apresentação histórica (passado) Vejamos, especificamente, cada valor dos apontados. O de simultaneidade ao momento de fala, habitualmente, corresponde à intuição mais imediata sobre a utilização do presente do indicativo. Seria esse o grau máximo de superposição entre presente discursivo e presente tempus, ainda mais se se tratar de um enunciado performativo. Esse presente também conta com o traço da instantaneidade, agregado que estaria à própria simultaneidade do momento da fala. Contudo, em português, constitui uso de muito baixa produtividade, geralmente, dando lugar a uma locução com estar seguido por verbo no gerúndio (no PB) ou preposição a e verbo no infinitivo (no PE)125. Do contrário, há de constar uma especificação co(n)textual muito sólida a avalizar a utilização do presente aí, ainda assim, passando por inusual na língua. Comumente, tal especificação assume a forma de um adjunto adverbial, do ponto de vista cotextual. Agora, (neste exato momento) estudo os verbos portugueses. Agora, estou/ tô126estudando/ a estudar os verbos portugueses. Em usos, devidamente contextualizados e explicitados no discurso e na situação interativa e/ou em construções predicativas, sobretudo, podem apresentar maior produtividade: 125 126 Além do PE, essa é também a referência padrão de uso para o português africano, logo, aí incluído o PM. Apenas no PB. 105 As ruas (es)tão vazias... Como dói! (imediatamente após uma topada, por exemplo) O presente com valor contemporâneo equivale a um dos protótipos de uso desse tempus. Cognitivamente, corresponde a um presente percebido como momento atual, em clara acepção imperfectiva. Estudo na UERJ. O Brasil mantém relações comerciais com a China. Precisa-se de copeiro. A noção de contemporaneidade aí presente pode ser de extensão bastante variável, podendo compreender tanto a genérica ideia de “nos dias atuais” quanto se retrair até um “hoje”, por exemplo. Como isso anda devagar hoje, hein? Também cogitamos que seja possível entender uma realização como a última, pela interpretação de simultaneidade ao momento de fala, em acepção distendida. Admitindo inclusive: Como isso está andando devagar hoje, hein? O traço imperfectivo do presente é amplamente partilhado com a acepção de fato frequente, o qual pode vir reforçado por adjuntos adverbiais ou ser especificado pragmaticamente no contexto. (Durante a semana) Acordo às sete. O metrô (só) anda cheio (no horário do rush). Não o conheço, mas ele sempre vem aqui. Os três próximos usos já fogem, claramente, da prototipicidade do presente. O de valor atemporal, em especial, apresenta uma marca inusitada de poder expressar fatos que não são tomados como limitados no tempo, propriedade essa exclusiva do 106 presente. O que aqui chamamos de atemporalidade pode também, em termos convencionais, ser considerado omnitemporalidade, constituindo uma espécie de aspecto único e indeterminado e indeterminável de duração contínua virtualmente ilimitada, ao menos para efeitos de nossa cognição. É o uso que constituirá a enunciação de fatos tomados como verdades absolutas, imutáveis, constatações irrefutáveis, de caráter universalizante, ainda que, obviamente não o possam ser. A Terra gira em torno do Sol. A História é a mãe das ciências. Rapadura é doce, mas não é mole não. Este uso do presente pode, por sua natureza mesma, ser veiculado também de forma estilística e/ou subjetiva, o que também dá vazão a ser o uso que consubstancia, frequentemente, o discurso senso comum. O Mengão é vencedor! Brasileiro só age assim mesmo. A utilização com valor de futuridade corresponde à alta produtividade em linguagem corrente. Aponta-se, comumente, tal uso como equivalente a um futuro de breve realização, contudo, embora não disponhamos de dados a esse respeito, parece-nos factível que a amplitude real do valor de futuridade pela forma de presente seja, efetivamente, mais abrangente do que isso, pelo simples fato de que o julgamento de brevidade é, forçosamente, sempre relativo e subjetivo. Pode deixar que, depois da novela, eu lavo a louça. Amanhã, às seis e meia, a gente se encontra. Hoje ainda, te ligo sem falta. O presente de valor futuro, inclusive, põe-nos diante de um problema metodológico. Quando nos capítulos 6 e 7, de apresentação e levantamento dos corpora, relativos aos usos de futuro do presente indicativo em PB, PE e PM, teremos que decidir por considerá-lo uma das possibilidades de representação desse tempus ou, por não perfazer o critério morfológico estrito, exclui-lo de tal 107 análise. Antecipamos aqui a polêmica vindoura, mas só pretendemos encaminhá-la nos capítulos mencionados, de forma a não assoberbar a presente exposição. Por fim, o valor de apresentação histórica, com valor de passado, uso consagrado como de presente histórico, assumindo aí a semântica do pretérito perfeito, inclusive de sua pontualidade factual. É um uso que também se expande, naturalmente, para possibilidades narrativas. Em 1917, os sovietes fazem a Revolução. Naquele momento, ela entra no quarto silenciosamente. Ainda há um uso crescente do qual não tratamos aqui do presente do indicativo. Este tempus vem sendo arregimentado, fortemente, à expressão do valor imperativo em linguagem corrente e cotidiana. Contudo, trataremos desse aspecto específico quando abordarmos o modo imperativo. Como vimos, a flexibilidade e adaptabilidade do presente são soberbas na língua. Em verdade, sua extensão só não alcança os dois extremos indicativos, o mais-que-perfeito e o futuro do pretérito, dois tempora, por sinal, não referenciados no presente, de construção temporal relativa, portanto, fora, de fato, do escopo do presente. É de se notar ainda que, de modo geral, os valores semânticos expressos pelo presente, à exceção, possivelmente, do de atemporalidade, constituem relações cognitivas, inclusive, muito simples e intuitivas, o que acaba por reforçar a sua condição de tempus básico. 2.5.2 Pretérito perfeito e pretérito imperfeito Estes dois tempora não se encontram agrupados na mesma exposição casuisticamente. Embora, na organização interna de nosso texto, pretendamos reservar espaços distintos de caracterização a cada um deles, há um motivo, segundo nosso parecer, muito justo para reuni-los sob a mesma égide: correspondem ao mesmo tempo apreendido, decodificado linguisticamente segundo pontos de vista bem diferenciados, comumente denominados aspectos. São esses dois tempora a manifestação mais sólida, em termos morfológicos, da 108 aspectualidade portuguesa. São também as duas grandes permanências do sistema verbal latino, como dito alhures, a respeito da gramática latina de Varrão, todo organizado em torno da oposição infectum-perfectum, a ponto de o aspecto preceder o tempo, na conceptualização das formas verbais, vide seus diferentes radicais. Quanto a exemplário das distintas concretizações de radicais, a partir do presente e do perfeito latinos, correlatos na oposição paradigmática aspectual dessa língua, vejamos127: Quadro 7: radicais de perfectum e infectum latinos. Primeira pessoa do presente do indicativo ativo (radical de Primeira pessoa do perfeito do indicativo infectum) ativo (radical de Em português perfectum) ago egi fazer dico dixi dizer mitto misi enviar pergo perrexi continuar tango tetigi tocar fero tuli carregar aufero abstuli roubar eo ii ir sum fui ser/existir Radicais em negrito. Além disso, imperfeito e perfeito indicativos são duas das formas que se mantiveram, sobrevivendo e evoluindo morfologicamente, na passagem do latim ao português, diferente do que ocorreu com os futuros, o que poderia ser mais uma pista cognitiva sobre a menor estabilidade mórfica dos tempora futuros, mas trataremos disso no item devido. Travaglia (1994) considera que: Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO128 não dêitica, através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem 127 128 Adaptado de VALENZA (2008). Na convenção adotada pelo autor, TEMPO corresponde à nossa anotação tempo. 109 ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação.129 o Ou seja, o aspecto é uma categoria de tempo, assim como o tempus mesmo, por sinal. Sobre tal categoria, cremos que não precisamos nos deter muito nela, diferente do que fizemos em relação ao modo e à modalidade e ao que ainda faremos adiante, mais especificamente com a modalização, já que a discussão aspectual, para nossos objetivos de estudo, encontra-se mais marginal. Por ora, concentrar-nos-emos no tocante à perfectividade e à imperfectividade, tornando, quando preciso, às considerações que se fizerem necessárias sobre aspecto, tomando por suporte a mais completa sistematização já feita para a categoria pelo professor Ataliba Castilho e demais autores de que carecermos para tanto. Tomando um dos mais irregulares verbos de que poderíamos nos valer, mesmo assim, fica patente e translúcida a continuidade das formas latinas em nossa língua: Quadro 8: perfeito e imperfeito em esse. IMPERFEITO PERFEITO eram fui eras fuisti erat fuit eramus fuimus eratis fuistis erant fuerunt Retornando ao português, em comparação muito simples, podemos propor: Quando criança, eu brincava naquela praça. Quando criança, eu brinquei naquela praça. Percebamos que, à primeira vista, os dois enunciados informam fatos básicos que apresentam uma marcante distinção: no primeiro, houve uma época da vida em que se brincou na praça em questão; já no segundo, tudo que se pode afirmar é que 129 TRAVAGLIA (1994, p. 44). 110 houve um momento específico e pontual no passado em que se brincou na dita praça. O segundo sentido poderia ser ampliado para uma compreensão sinônima da primeira, mediante o adendo de um modificador adverbial, semanticamente, apropriado, como várias vezes, de montão, pra caramba, muito e outros tantos. Ou seja, o perfeito necessita de especificações sejam pragmáticas, sejam intratextuais. Daí a impossibilidade de: *Um dia, eu era seu amigo. A especificação circunstancializada exige o perfeito, impedindo imperfeito, dada sua inerente inespecificidade. É por essa razão que os contos de fadas e similares, tão comumente, iniciam-se pelo formular Era uma vez, já que falam de tempos imprecisos, da época em que os bichos falavam, etc. Circunstancializadores que apontem a alguma especificidade podem ocorrer com o imperfeito, em sua acepção de frequência, se esses não forem pontuais, tendo alguma duração no tempo. Nas últimas férias, a gente vinha nessa praia direto. Com um circunstancializador especificador pontual, o imperfeito, necessariamente, passa a significar inconclusão, no sentido mesmo de interrupção do fato. Eu até vinha te encontrar, mas o engarrafamento não permitiu que eu chegasse. Pelo observado, podemos exarar que o perfeito indica fato concluso, pontual, específico no passado e o imperfeito, fato inconcluso, contínuo, inespecífico, frequente também em relação ao passado. Notemos que essa oposição aspectual paradigmática não se sustenta diante de construções com verbos relacionais. O Botafogo foi um grande time do Rio. O Botafogo era um grande time do Rio. Ela pareceu bem estranha ontem. 111 Ela parecia bem estranha ontem. A oposição perfectivo- imperfectivo não é exclusiva dessas formas verbais. O particípio é a forma nominal que traz consigo a perfectividade demarcada em contraposição ao infinitivo e, sobretudo, ao gerúndio, transparentemente, imperfectivo. Porém, tampouco tal distinção aspectual está confinada aos verbos portugueses. O par adverbial já e ainda, semanticamente, distingue-se por isso. Há substantivos que se distinguem na significação, a partir desse traço: queimadura e queimação, escravatura e escravização, filme e filmagem, treino e treinamento, ajuste e ajustamento130. Temos adjetivos que apresentam tal oscilação: nascido e nascente, corrido e corrente, irritável/ irritante e irritado, falante e falado131. Todavia, concentremo-nos nos verbos em análise, para prosseguirmos a sequência que nos encaminha ao futuro. Perfeito e imperfeito ainda formam, em par, os verbos que estruturam a narração em português, cabendo a este a contextualização, enquadramento da narrativa e àquele a sucessão de fatos em si. Poema tirado de uma notícia de jornal (Manuel Bandeira) João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem [número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. No lírico exemplo narrativo acima, de Manuel Bandeira, observamos exatamente isso. O primeiro verso faz toda a contextualização, situando o leitor nos elementos da narrativa. A partir do momento em que o enredo em si inicia-se, com os acontecimentos em sucessão no tempo, é o perfeito que ganha vez. É a própria constituição interna da perfectividade que garante ao perfeito a habilitação a tal papel, uma vez que, ao incidir pontual e especificamente sobre o passado, cada fato enunciado é recoberto, pronto e acabadamente. Assim, o próximo fato aludido só 130 131 Para mais informações sobre esses e outros exemplos, ver TRAVAGLIA (1994) e COSTA (2002). Alguns dos exemplos aqui apresentados, retomando a problematização do capítulo 1, são novamente citados. 112 pode ter se dado depois do anterior. É a perfectividade desse pretérito, em português, que permite, pois, o estabelecimento de uma linearidade temporal sucessiva. Tal papel não poderia ser recoberto pelo imperfeito, por sua peculiaridade de poder ser distendido no passado. Se pensarmos no tempo como seta unidirecional, o perfeito é um ponto desse segmento, enquanto o imperfeito, um segmento dessa reta. Esquema 4: representação gráfica para perfeito e imperfeito. ● Imperfeito: época no passado Perfeito: ponto no passado Superadas as distinções aspectuais entre as duas formas pretéritas, passemos a tratar de cada uma delas especificamente. A começar pelo perfeito. Este tempus corresponde a um momento anterior à enunciação, proferida no presente, tendo por referência o próprio tempo presente132. O perfeito português apresenta curioso comportamento se comparado aos equivalentes de outras línguas latinas: ele cumpre dupla função, cada qual, em nossas línguas irmãs exercidas por diferentes tempora. De forma geral, podemos dizer que ele cumpre de um lado uma função típica de aoristo, de outro, de um passado com continuidade presente que, nas mencionadas línguas, é papel cumprido por uma forma composta similar a nosso pretérito perfeito composto− terminologia que precisaremos problematizar à frente− mas com significação bastante diversa de nosso tempo composto. Poderíamos ampliar essa comparação para além das línguas latinas. Em inglês, por exemplo, temos o passado simples e o presente perfeito que correspondem igualmente à acepção mencionada nas línguas latinas. No caso da primeira forma, é imprescindível o acompanhamento de um aporte adverbial que lhe situe o fato em termos de tempo, seja em que amplitude o for. Ocorre que nosso perfeito, em face de um perfeito composto− como enfim, consagradamente, é chamado− com a especificidade de significação que esta forma 132 Ao fim deste capítulo, esmiuçaremos a localização dos tempora indicativos, em função de diferentes referenciais temporais, a fim de configurar, precisamente, o locus dos futuros, segundo os princípios de Reichenbach. 113 composta apresenta, de fato acumula os dois papéis. Pensemos em alguns exemplos. Estiou. Raspou, ganhou. Partiu! Destaquemos que os exemplos supracitados são todos de usos bastante informais de nossa língua, até onde sabemos, restritos ao PB. No primeiro, temos um perfeito a designar um fato que, a rigor, é presente. No segundo, o que temos, na verdade, é uma situação totalmente hipotética. Já no terceiro, uma gíria para despedida ou prontidão em se evadir de algum ponto. A nosso ver, nos três casos, o que temos em jogo é tão somente a perfectividade. É a noção de acabamento que está em jogo: uma perfectividade pura, identificada ao papel que identificamos como aoristo. É a roupagem de perfectivo puro/ aoristo que contribui para a possibilidade de uma construção com perfeito de referência futura, como em: Quando você chegar, eu já saí. No exemplo acima, o que está em jogo, objetivamente, é mais uma vez a perfectividade, o que possibilita a ocupação do lugar da forma terei saído por saí. Comrie (1985) cita que, em russo, há um valor de pretérito que pode suprir o futuro iminente e nos exemplifica ja posel/ Я ушел (“eu parti”), como exemplo disso. Coincidentemente, é a mesma forma que acima indicamos para o português, em acepção similar. Ainda teríamos, a forma Fui!, também do âmbito da informalidade, mas em situação e acepção equivalentes ao que temos apresentado argumentativamente. Pensemos, por outro lado, em por que uma afirmação como a seguinte é inviável em português e a que lhe é posterior não o é? *Shakespeare morreu. Shakespeare morreu no mesmo dia e mês em que havia nascido. 114 A primeira frase agramaticaliza-se pela mesma razão que o passado simples do inglês precisa de adverbialização. O nosso perfeito, quando não expressa perfectividade, mas passado, de fato, necessita, contextual ou cotextualmente, ser situado no tempo. Agora, tratemos do imperfeito. Este tempus corresponde, em verdade, à acepção de um presente, porém em referência passada. Salvo algumas especificações, como da atemporalidade/ omnitemporalidade que só podem caber a um verbo não marcado, tal qual presente o é, possui a propriedade de extensão no tempo, de frequência e até de representação suplementar da relação de futuridade/ posterioridade. É assim que, muito comumente, em língua corrente, substitui o futuro do pretérito, com altíssima produtividade. Se eu pudesse, viajava pra te visitar agora. Essa produtividade é tamanha que a forma de futuro do pretérito já começa a dar sinais de ocorrência formal em tais utilizações. É comum que tal uso, bem como os do presente em substituição ao futuro do presente e ao perfeito, sejam tratados por metáfora temporal. Ainda neste capítulo, elucidaremos essa questão. Agora, tratemos do pretérito dos pretéritos. 2.5.3 Pretérito mais-que-perfeito Eis-nos diante de um tempus, embora intuitivo, que resguarda suas idiossincrasias na língua. Primeiramente, ele também é uma direta herança latina e subsiste em outras línguas dessa família, embora com especificações de uso que não necessariamente se verifiquem em nosso idioma, como em espanhol, em que faz as vezes do imperfeito do subjuntivo, ausente nesta língua. Aliás, esse tempus já cumpriu tal papel em língua portuguesa, como já informamos, a partir de Azeredo (1995), tanto na língua arcaica quanto na clássica, podendo assumir valor de futuro do pretérito ou de imperfeito do subjuntivo. Textos camonianos, barrocos e árcades estão eivados de tais exemplos. 115 À mesma D. Ângela (Gregório de Mattos) Anjo no nome, Angélica na cara, Isso é ser flor, e Anjo juntamente, Ser Angélica flor, e anjo florente, Em quem, senão em vós se uniformara? Quem veria uma flor, que a não cortara De verde pé, de rama florescente? E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus, o não idolatrara? [...] Que alegre campo! Que manhã tão clara! Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira, Mais tristeza que a noite me causara. (Bocage) De tal uso, sobrevivem, cristalizados, em nosso idioma Quem dera/ Tomara. O mais-que-perfeito, como sugere o nome, corresponde a um pretérito em um passado ainda mais remoto do que os indicados por outras formas que remetam a de passado, quer sejam de perfeito ou de imperfeito. Por sua natureza, ele toma por referência, obrigatoriamente, então, o passado, o que o torna um tempus relativo. É um passado dentro do passado, como podemos ver na segunda oração da frase abaixo. Quando a mãe chegou em casa, as crianças já haviam dormido. Em nosso exemplo, por sinal, o mais-que-perfeito vem representado por uma locução de uso mais comum na língua do que a forma simples, já desaparecida do uso corrente. Hoje, ela frequenta sobretudo falares muito formais, textos literários, outras modalidades de textos escritos formais, ou, claro, algum estilismo esporádico. Não é, todavia, a forma haver mais particípio a mais produtiva para esse tempus, mas sim ter junto a um particípio. Temos, então, uma escala de formalidade para o mais-que-perfeito, óbvio, inversamente proporcional a sua frequência de uso. Esquema 6: escala de formalidade para o mais-que-perfeito. + FORMAL Chegara + INFORMAL Havia chegado Tinha chegado 116 Na verdade, a forma ter (no imperfeito) acompanhada de particípio é utilizada amplamente, mesmo em contextos formais, sendo de recurso bastante universal no PB atual. Observe-se que tal forma é denominada pretérito mais-que-perfeito composto e corresponde ao único tempus composto de significado idêntico ao de sua forma simples, no indicativo, o que pode ser um fator indireto de motivação a essa substituição, uma vez que, com ela, reduz-se todo um paradigma flexional do modo indicativo. Ainda sobre o mais-que-perfeito, ele pode ser suprido pelo perfeito, nos moldes da, assim denominada, metáfora temporal. 2.5.4 Perspectiva de locus em continuum modo-temporal para os futuros portugueses Enfim, alcançamos o ponto de ápice deste capítulo. Antes, convém, no entanto, esclarecermos a óbvia e intencional lacuna descritiva dos próprios futuros. Eles comporão um capítulo à parte, com alentada descrição, análise e problematização, o seguinte. Neste, pretendíamos, desde o início, enfatizarmos questões ligadas a traços de modo e de modalidade, pois são questões embasadoras do que temos por intento de formulação. No capítulo 3, retornaremos a tal questão, mas, pelo viés da modalização. Já contamos com elementos suficientes para apontar o anunciado locus dos tempora futuros, ao menos dos indicativos, que são nosso cerne. Depois deste item, prosseguiremos pelos modos subjuntivo e imperativo e poderemos esclarecer melhor o porquê de nosso foco nos futuros indicativos. Jespersen (1951) propôs um esquema para situar os tempora na linha do tempo. Primeiro, observemos tal esquema133, aqui adaptado por nós, para representação dos tempora potenciais que podem constar em uma língua: Esquema 7: representação unidimensional dos tempora. Aa Ab Ac B Ca Temos, seguindo uma orientação da esquerda para a direita: 133 JESPERSEN (Op. cit., 257). Cb Cc 117 Aa- antepretérito Ab- pretérito Ac- pós-pretérito B- presente Ca- ante-futuro Cb- futuro Cc- pós-futuro O presente, para esse autor, apresenta-se indivisível, embora o mesmo reconheça que haja línguas em que podemos encontrar formas de pretérito que, de forma efetiva, expressam o presente, como resultado de um fato passado. O exemplo mais categórico fornecido para tal exemplificação é o presente perfeito inglês que, nesse ponto, muito se distingue do passado simples. O presente perfeito inglês poderia, em face do esquema acima, ser considerado, então, um desdobramento de Ac ou o próprio Ac. Aa representaria vários exemplos de pretéritos mais-que-perfeitos de várias línguas. Notemos que tanto Ab quanto Cb não dão conta da caracterização, em termos de tempus, das distinções aspectuais que há nesses pontos. Em parte, isso também é atribuído ao fato de o autor ter recorrido a uma representação unidimensional para os tempora. Quanto a Ca, identifica-o com fatos voltados a um futuro mais próximo e imediato e, muitas vezes, representado pela forma de presente, em diferentes línguas. Já a posição Cc, é indicada pelo estudioso como de difícil preenchimento. A esse respeito, o autor oferece-nos à reflexão o enunciado inglês I shall be going to write, que considera de existência, realização e plausibilidade duvidosas. Em outras palavras, diríamos que é improvável, no conjunto das línguas, a existência de um “futuro mais-que-perfeito ou de um “futuro do futuro”, improváveis, em termos morfológicos, uma vez que, em termos de contexto comunicativo, é facilmente plausível: Depois de ter ido ao colégio, farei a inscrição para o concurso. Atentemos também que esse recorte temporal só pode dizer respeito ao aspecto perfectivo, já que o imperfectivo faz referência a uma época, um período; não apresentando o “compromisso” de referência específica e pontual que se verifica 118 no campo da perfectividade. Daí a não existência de um pretérito mais-queimperfeito. Azeredo (2008), a partir das considerações de Said Ali (1966), oferece-nos um enfoque “bidimensional” que toma por princípio o fato de, em português, a referência de tempo ser estabelecida, fundamentalmente, em presente e em passado, como corroborado aqui: “oposição temporal, no indicativo, far-se-á, basicamente, numa oposição presente/passado...” (Mattos e Silva, 2006, p. 119). Adaptamos a abordagem de Azeredo nestas sistematizações: Esquema 8: representação bidimensional dos tempora, a partir do passado. PASSADO Anterior Simultâneo Mais-que-perfeito Imperfeito Posterior Futuro do pretérito Esquema 9: representação bidimensional dos tempora, a partir do presente. PRESENTE Anterior Simultâneo Posterior Perfeito Presente Futuro do presente 119 Em outra proposta de esquematização que cotejasse tanto presente quanto passado, como referências temporais, simultaneamente, chegaríamos a: Quadro 9: visão bidimensional dos tempora. Tempo de referência Presente Passado Intervalo de tempo Pretérito perfeito Anterior Pretérito Mais-que- Perfeito Simultâneo Presente Pretérito Imperfeito Posterior Futuro do Presente Futuro do Pretérito Por fim, apresentamos o olhar “tridimensional”, a partir da teorização de REICHENBACH (1947)134 que descreve os verbos a partir de três momentos distintos, em olhar estrutural e logicizante: o momento de fala (MF), correspondente ao próprio momento de enunciação e situado, como já sabemos, no presente discursivo; o momento do evento (ME), equivalente ao momento do fato/evento descrito, o momento, enfim da predicação; o momento de referência (MR), o sistema temporal fixo de que emanam noções como anterioridade, simultaneidade ou posterioridade, é a própria perspectiva do tempo. Segundo tal teorização, os futuros simples do indicativo do português seriam descritos nos termos seguintes: futuro do presente: MF simultâneo ao MR e ambos anteriores ao ME: [MF = MR < ME] futuro do pretérito: MR anterior ao MF e esse anterior ao ME: [MR < MF < ME] Acoplando à formulação de Azeredo (2008) e Said “tridimensionalidade” de Reichenbach, teríamos, fundamentalmente: 134 REICHENBACH (1947) e também, por meio, de ILARI (1997) e CORÔA (2005). Ali (1966) a 120 Quadro 10: os tempora na tridimensionalidade de Reichenbach. INSTANTE ENUNCIATIVO- MF MR PASSADO PRESENTE FUTURO ME Anterior Coetâneo Posterior Anterior Pretérito Pretérito Imperfeito Futuro do Pretérito Pretérito Mais-que- Coetâneo Posterior Presente Futuro do Futuro Presente Presente Perfeito Anterior Coetâneo Posterior MF<MR=ME MF<MR<ME do Composto Perfeito (Perfeito) SEGUNDO AS “FÓRMULAS” DE REICHENBACH MF>MR>ME MF>MR=ME MF>MR<ME MF=MR>ME MF=MR=ME MF=MR<ME MF<MR>ME Na configuração de Reichenbach, acima apresentada, [>] indica posterioridade, [=] sinaliza simultaneidade/coetaneidade e [<] denota anterioridade. Os três “momentos” de Reichenbach são aqui apresentados segundo visão hierárquica, em que MF sobrepõe-se a MR e este a ME, ordenamento também válido para a apresentação da “fórmula” de Reichenbach para cada tempus português. Algumas observações complementares sobre nossa sistematização para as fórmulas de Reichenbach aplicadas ao sistema verbal português. Como vimos, no MR futuro, há posições vacantes, relativas à coetaneidade e à posterioridade. Acompanhando a premissa de Jespersen, ambas as posições parecem ser ocupadas, suplementarmente, com contexto e/ou cotexto apropriado a isso, pelo futuro do presente. Por outro lado, a construção alcunhada gerundismo135 possa, talvez, corresponder a tais lacunas. A motivação para a rápida expansão desse uso, ainda considerado anômalo por muitos, pode advir daí. O único locus não vacante é o do futuro perfeito. Oportunamente, trataremos desse tempus, inclusive do porquê da qualificação como perfeito. Julgamos útil, mesmo antes de termos tratado os compostos, inclui-lo na sistematização, uma vez que sua localização é óbvia e única. Também nos interessa destacar a existência de posições vacantes no sistema verbal português. 135 Trataremos do gerundismo no próximo capítulo, referente aos futuros. 121 Notemos também que, embora a sistematização proposta não incorpore o aspecto, o ME anterior sempre pressupõe perfectividade, ao passo que o ME coetâneo ou posterior sempre corresponde à imperfectividade. Contudo, ao abordar as demais formas compostas, nosso próximo item, novas problematizações surgirão ligados à questão aspectual e às fórmulas de Reichenbach. Eis que nossos tempora futuros estão devidamente situados em todas as referências de tempo que nos são necessárias. Tal sistematização será fundamental à descrição pormenorizada de nossos protagonistas futuros. Antes de prosseguirmos, porém, observamos um aspecto muito interessante das nossas representações de Reichenbach. Passamos pela ideia de metáfora temporal em nosso texto. Essa expressão é bastante antiga em análise linguística. Segundo Fonseca (1994), ela remonta a 1883, ao ser utilizada por Andrés Belo, em sua obra Análisis ideológica de los tempos de la conjugación castellana. Pretendemos aqui introduzir um novo olhar a essa questão, até pelo fato de sermos de convencimento bem pouco inclinado à concordância com a existência de um processo aí de metáfora temporal. Nossa não inclinação vem muito ancorada no fato de não haver uma justificativa, de nosso conhecimento, que, minimamente, dê conta de explicar o porquê da suposta metáfora. Para ressignificarmos o processo de substituição de formas verbais, com a suposta transferência de significados, o que, possivelmente, seria uma justificativa plausível a avalizar a ideia de metáfora, iniciemos por perfilar os processos desse tipo que ocorrem no português: a) Pretérito perfeito por MF=MR>ME b) Pretérito perfeito MF>MR>ME por MF=MR>ME c) Pretérito imperfeito MF>MR=ME Pretérito mais-que-perfeito Futuro do presente composto MF<MR>ME por Futuro do pretérito MF>MR<ME 122 d) Presente por Pretérito perfeito MF=MR=ME e) Presente MF=MR>ME por Futuro do presente MF=MR=ME MF=MR<ME Como podemos observar, claramente, acima, pelos grifos, a substituição temporal parece condicionada a que haja uma identidade parcial na fórmula de Reichenbach, ou seja, precisa haver um mínimo de aderência entre o locus temporal de cada um dos tempora envolvidos. O perfeito, por exemplo, não poderia fazer as vezes do futuro do pretérito, haveria uma impossibilidade a isso, uma restrição, pela completa incompatibilidade temporal nos três níveis e não só neles, mas pela incongruência das relações estabelecidas por cada intervalo de tempo, cada uma das formas de relações entre os momentos temporais em questão. Constatar isso leva-nos a poder pensar se não seria mais apropriado, pois, conceber uma metonímia temporal. Porém, independente disso, conseguimos uma formulação que explica a substituição tão produtiva nessas formas verbais, ao menos em termos de língua portuguesa. 2.5.4 Formas compostas Tradicionalmente, as formas nomeadas compostas no modo indicativo e suas respectivas estruturações são: Pretérito perfeito: ter no presente + particípio Pretérito mais-que-perfeito: ter no imperfeito + particípio Futuro do presente: ter no futuro do presente + particípio Futuro do pretérito: ter no futuro do pretérito + particípio Apenas essa primeira, corriqueira e simples apresentação já suscita algumas questões. O que exatamente é uma forma composta? É uma locução como qualquer 123 outra? Essas formas são efetivamente locuções? Elas correspondem ao que suas denominações de fato indicam? As formas compostas, a nós, parecem ser locuções que se especializaram, principalmente, em recortes temporais ausentes no sistema verbal. Ao menos esse parece ser, indubitavelmente, o caso do perfeito composto e do futuro do presente composto. O futuro do pretérito composto pode tanto corresponder a uma nova significação ou não. Trataremos dos futuros compostos, junto aos tempora futuros, em capítulo à parte, o próximo. Já o mais-que-perfeito composto é sinônimo de sua forma simples, uma razão, por nós, alegada para a prevalência daquela sobre esta. Na verdade, reconhecemos que, em outra sincronia, já possa ter havido, ainda que sutil, diferença de significado entre as duas formas, porém, se já o houve, hoje, tal distinção já não mais se faz presente. O mais-que-perfeito, pela gradual fossilização de sua forma simples, em língua corrente, parece ser o de maior produtividade dentre as formas compostas. O perfeito composto, por outro lado, parece ser o mais indevidamente qualificado. Sua denominação é bastante inapropriada, já que perfeito pressupõe um aspecto que tal tempus simplesmente não satisfaz, sendo plenamente imperfectivo. Melhor seria nomeá-lo presente composto. No português arcaico, como nos atesta Fonseca (1994), tal tempus possuía significação equivalente ao perfeito. Desse uso, só nos restou, como vestígio, o marcador formular cristalizado Tenho dito, utilizado em fins de discurso, sobretudo em contextos solenes e com invariável tom arcaizante. Hoje, de fato, esse tempo verbal é mais um presente do que um pretérito, expressando iteratividade ou duratividade, em uma faixa de tempo iniciada no passado e que alcança o presente. Ou seja, o perfeito composto e o perfeito simples distinguem-se temporal e aspectualmente. Campos (1997, p. 122) questiona, pertinentemente, se “o perfeito composto está mais próximo do presente da enunciação do que o próprio presente gramatical?”. Fonseca (op. cit.) também nos comunica que o perfeito faria parte dos tempora do mundo narrado, ao passo que o composto, do mundo comentado. O traço aspectual de iteratividade ou duratividade da forma composta, em face da simples, condiciona seu uso a lexemas que admitam tal traço. Comparemos: O passarinho do viveiro da minha tia morreu em minhas mãos. *O passarinho do viveiro da minha tia tem morrido em minhas mãos. 124 Porém: Os passarinhos do viveiro da minha tia têm morrido em minhas mãos. No primeiro exemplo da série temos uma enunciação que localiza o ME em ponto anterior ao MF, em MR presente. Já no exemplo seguinte, embora a caracterização à Reichenbach seja idêntica, MF=MR>ME, ocorre que o ME prolonga-se no tempo, em repetição ou duração, o que seria incongruente para o lexema de morrer. Já no terceiro caso, a pluralização inclui, obviamente, o dado de que morrer refere-se a entes distintos inclusos no SN que carrega a marca mórfica desse plural, pressupondo iteratividade. Em outras palavras, diferentes passarinhos têm morrido, estariam morrendo. No que concerne à formula de Reichenbach aplicada ao perfeito composto e à sua forma simples, a única maneira de superarmos o desconforto e imprecisão descritiva da configuração coincidente seria acrescentar-lhe algum dado que desse conta de caracterizar o aspecto. Notemos que o aspecto incidirá sobre o ME, não dizendo respeito ao MF ou ao MR. Na verdade, para sermos mais precisos, o aspecto mais se refere à conformação que toma o ME em si, o que não é, em princípio, alcançado na sistematização proposta por Reichenbach. A esse respeito, propomos, como solução provisória ao menos, a seguinte caracterização: MF=MR>ME, no que diz respeito ao perfeito composto. A seta unidirecional sobre o ME indicaria a ideia de duração ou repetição, dados de imperfectividade. A unidirecionalidade daria conta de representar um momento de início específico no passado com prolongamento na linha do tempo, até o presente indefinidamente. A perfectividade, por pontual que é, dispensaria marcação adicional. Ajuizamos que tal marcação distintiva pode ficar restrita aos casos em que a fórmula de Reichenbach dê margem a esse tipo de ambiguidade. Verifiquemos ainda que não há possibilidade de sinonímia entre o perfeito simples e composto: Ela esteve eufórica o dia inteiro. Ela tem estado eufórica o dia inteiro. 125 Na segunda frase, flagramos um fato ainda contínuo, em pleno desenvolvimento, ao passo que na primeira é possível asseverar que estado de euforia já é passado, terminado. O presente composto, como, doravante, a ele, referir-nos-emos, apresenta uma propriedade sintética muito caraterística que é o fato de dispensar a presença obrigatória de circunstancializadores a lhe especificar a abrangência temporal, como em: Tenho trabalhado aqui na mesma função. Tenho trabalhado aqui na mesma função nos últimos cinco anos. Tenho trabalhado aqui até agora na mesma função nos últimos cinco anos. Notemos que a última realização soa por redundante ou enfática, especialmente no tocante ao adjunto até agora, já contido na semântica do tempus. Quanto aos demais conjuntos adverbiais, na mesma função funciona como especificador, reforçador de aqui; já nos últimos cinco anos especifica a referência inicial de tempo do presente perfeito, sendo a final o momento presente, como levantado por Campos (op. cit.), possivelmente, o próprio presente enunciativo. O perfeito e o presente composto são tão diversos que não admitem sequer correlação temporal entre si: *Quando a mãe chegou em casa, as crianças têm estado brincando.136 *Quando a mãe tem chegado em casa, as crianças estiveram brincando. Contudo: Quando a mãe chegou em casa, as crianças estavam brincando. Perfeito e presente composto são incompatíveis, em correlações temporais, pelo fato de o segundo trazer à cena um fato em pleno desenvolvimento, o que se torna incompatível com a semântica aspectual do primeiro. Podemos ainda comparar o presente composto ao simples. 136 Exemplos na usual regência preposicional do PB. 126 Nas férias ela vem nos visitar. Nas férias ela sempre vem nos visitar. Nas férias ela tem vindo nos visitar. O primeiro exemplo pode ser tomado como de presente com valor de futuridade. Já o segundo, pelo adendo do advérbio sempre, só pode ser entendido como frequência, hábito. Já o terceiro também corresponde a esse valor. Entretanto, há um fator de distinção significativo entre as duas formas, bastante sutil, é verdade. Pensemos em um diálogo desta forma. ─Vamos ajeitar a casa, pois ela sempre vem nos visitar nesta época. ─ Tem vindo. Este ano não sei... Percebamos que a forma de presente composto, no contexto aludido, embora de referência usual aberta temporalmente no presente, quando contraposta ao presente simples, refere-se a uma iteratividade ou duração anterior ao momento enunciativo. Assim, por essa contraposição, é possível intuir, no exemplo dado, que ela não venha mais. Tal retração enunciativa do presente composto só se daria ou se evidenciaria mediante a forma verbal enunciativa por excelência, tanto que, em face do perfeito, o presente composto apresenta evidenciadas marcas enunciativas. É sabido que, de forma geral, nas demais línguas latinas, a forma que corresponde, apenas em formato, à nossa de presente composto, tem significação bastante distinta, efetivamente de pretérito. O fato de nossa forma correspondente não apresentar tal significação seria fator determinante para que nosso perfeito simples apresente a dupla significação a que nos referimos. Para Campos (1997), há pelo menos uma língua latina em que tal forma correlaciona-se de alguma maneira, em nível semântico, com o português. Isso ocorreria com nossa tão aparentada língua galega. A autora exemplifica que o galego Teño escrito unha carta não se traduziria ao português por Escrevi uma carta. Esta seria a tradução de Escrebin unha carta. A forma galega escrebin é traduzível, para o espanhol, tanto por escrebi quanto por he escrito, a depender do contexto, possuindo, pois, a mesma ambiguidade que o perfeito português manifesta. Teño escrito unha carta também não seria traduzível por Tenho escrito uma carta. A tradução mais fidedigna ao valor galego, para nossa língua, seria Tenho escrita uma carta, ou mais claramente, 127 Tenho uma carta escrita. Notemos que, então, na língua galega, é possível recuperar um valor, para o português atual, primitivo que remonta ao sentido histórico de habeo mais particípio. Este significado para a forma composta, identificado no galego, remonta ao português do séc. XV, quando se verificava, em nossa língua, uma construção como em “a nossa linguagem que temos pósta em arte” [grifos da autora]137. Neste exemplo, temos claramente o particípio, em papel adjetivo, concordando com um SN, como disséssemos, hoje, Tenho as frutas compradas por tenho comprado as frutas. É o estágio em que parece se encontrar o galego a esse respeito. Não se trataria, assim, de um tempo composto, mas sim de uma perífrase resultativa. Contudo, Costa (op. cit.) também nos afirma que, no galego atual, convivem construções como: [...] unha caixa de puros que teño gardada para vostede [...] Eu, muitas veces, teño cazado num dia mais de vinte perdices. Tais exemplos levar-nos iam a reconhecer, então, que o uso galego atual diz respeito tanto a uma perífrase resultativa quanto a um latente tempo composto, remontado o estado da língua portuguesa na passagem do séc. XV ao XVI. É justamente na passagem do valor adjetivo por verbal nos particípios das então perífrases resultativas― ou seja, na queda da concordância do particípio com o SN objeto― que ficaria marcada a instauração das atuais formas compostas. A partir daí, estas seriam gramaticalizações de tempora. A distinção entre formas simples e compostas poderia ser, portanto, vista como aquelas sendo tempora essenciais, à exceção dos futuros, e estas, acidentais. O motivo para excetuar os futuros está demonstrado no capítulo 1, por sua origem portuguesa perifrástica, anterior a esses tempos compostos inovadores do português moderno, formados por ter mais particípio. João de Barros, gramático do séc. XVI, reconhece por tempos compostos, em sua terminologia, tempos per rodeo, tanto as formas de ter mais particípio quanto as de ser mais particípio. As primeiras, como já dissemos, seriam inovadoras, as segundas remontariam ao português arcaico, opinião, segundo Mattos e Silva (2002)138, de Epiphanio Dias, Mattoso Camara Jr. e Said Ali. A essa configuração de formato arcaizante corresponderiam, como exemplos: 137 138 Exemplo tomado a MATTOS E SILVA (2002, p. 132). MATTOS E SILVA (op. cit., p. 129). 128 [...] outros já eram idos [...] [...] eram já passados sete meses [...] [...] a isso era aly uiindo [...]139 Resta-nos ainda ponderar que locução verbal seria, afinal, a denominada tempo composto. Há várias locuções verbais, de altíssima produtividade, como a forma usual de futuro com ir junto a infinitivo, que não recebem tal status descritivo. Podemos, neste ponto, tanto advogar que as sistematizações sempre correspondem a escolhas descritivas, sendo inerentemente, passíveis de discussão quanto que o nível de aderência entre a locução com ir mais infinitivo não apresenta a abrangência temporal daquela formada por ter, resultando, assim, em alcance menos sistemático, em menor aderência temporal, em termos do espraiamento pelo modo verbal. Vejamos que o nível de coesão dos tempos compostos é de forma não desprezível na língua. Há várias formas de se testar isso. Trata-se de comprovar que tal grupo corresponda a uma unidade, abrigada no interior de uma única oração. Vamos a nossos testes. 1. Impossibilidade de desdobramento de uma oração completiva verbal: Ela tem pesquisado fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. *Ela tem que pesquisa/ pesquise fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. Ela decidiu pesquisar fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. Ela decidiu que pesquisaria fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. Os dois primeiros exemplos, contrastando com os dois últimos, comprovam a coesão e unidade do primeiro caso, em oposição à estrutura oracional composta do segundo. 2. O particípio tem sua natureza verbal corroborada pela impossibilidade de ser retomado por um oblíquo ou forma pronominal substantiva. 139 Idem, p. 131. 129 Ela tem pesquisado fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. E também tem pesquisado no Liceu Literário. *Ela tem pesquisado fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. E também tem isso no Liceu Literário. *Ela tem pesquisado fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. E também o tem no Liceu Literário. Ela tem pesquisado fontes para seu estudo na Biblioteca Nacional. E também o tem feito no Liceu Literário. Ela preferiu pesquisar suas fontes na Biblioteca Nacional. Ela preferiu isso. Ela o preferiu. O quarto exemplo faz-se gramatical pela utilização vicária do verbo fazer participial, como elemento coesivo, em substituição, justamente, a outro particípio. Já diante de um grupo verbal não locucional, como preferir pesquisar, a possibilidade de substituição por vocábulo que possa fazer as vezes de objeto é bem distinta. Comparemos com: Ela garantiu ter pesquisado suas fontes na Biblioteca Nacional. Ela o garantiu. Neste último caso, o oblíquo corresponde a todo o complemento verbal oracional. 3. A perspectiva de negação diz respeito ao conjunto verbal e não a uma de suas formas isoladamente. Ela não tem pesquisado suas fontes na Biblioteca Nacional. ?Ela tem não pesquisado suas fontes na Biblioteca Nacional. Ela preferiu pesquisar suas fontes na Biblioteca Nacional. Ela preferiu não pesquisar suas fontes na Biblioteca Nacional. 130 A segunda forma só seria viável em um contexto que insinuasse, estilisticamente, que ela tem, em verdade, perdido tempo ou se dedicado a outros afazeres quando deveria estar a pesquisar. Não corresponderia, portanto, a um uso prototípico de negação. Como dissemos, seria um uso muito específico e estilístico a incutir uma crítica do enunciador na referida atividade de pesquisa. Já no quarto exemplo, temos o típico comportamento de uma sequência verbal que não corresponde a locução em que o escopo da negação pode incidir plenamente sobre uma das formas verbais apenas. 4. Como ter mais particípio constitui uma unidade sintática, qualquer termo que a ele se relacione o fará no nível desta unidade e não de seus componentes separadamente. ― Ela as tem pesquisado na Biblioteca Nacional. ― O que ela tem pesquisado? ― As suas fontes. ― Ela as tem pesquisado na Biblioteca Nacional. *― O que ela tem? *― As suas fontes. *― O que ela pesquisado? *― As suas fontes. Notemos que os últimos dois pares de pergunta e, logo, suas respostas, são de todo incongruentes e esdrúxulos, comprovando a unidade da locução em estudo. 5. Enfim, o teste da apassivação, já que o verbo principal da locução, neste caso, sendo transitivo direto, permite tal aferição. Ela tem pesquisado suas fontes na Biblioteca Nacional. Suas fontes têm sido pesquisadas na Biblioteca Nacional. As fontes têm sido pesquisadas na Biblioteca Nacional (por ela). Ela preferiu pesquisar suas fontes na Biblioteca Nacional. 131 *Suas fontes têm sido preferidas pesquisar na Biblioteca Nacional. *Suas fontes têm sido preferidas pesquisadas na Biblioteca Nacional. Os dois últimos exemplos não se tornam viáveis, atingindo o nível do esdrúxulo no último, como comprovação da impossibilidade de apassivação, uma vez que não estamos a lidar com uma locução. A propriedade de transitividade só se encontra no primeiro verbo, atestando a não coesão verbal locucional, como comprova a possibilidade de perífrase seguinte: Ela tem preferido a Biblioteca Nacional para pesquisar suas fontes. A Biblioteca Nacional tem sido preferida por ela para pesquisar suas fontes.140 Assim, temos demonstrada a propriedade coesiva da locução verbal participial, consagradamente, denominada tempo composto. Em meio às tantas polêmicas e ponderações sobre o que seja ou não uma locução verbal, sobre as várias possibilidades de níveis de auxiliaridade (ver Pontes, 1973), esses testes podem ser de auxílio, com oportuno trocadilho, à aferição da auxiliaridade. Feita essa explanação e reservando a análise semântico-temporal dos tempora compostos futuros ao capítulo devido, damos por encerrado o item relativo ao modo indicativo neste capítulo. 2.6 Modo subjuntivo Sobre este modo ora em análise, iniciemos pela questão terminológica, advogando que vemos pertinência e propriedade tanto em subjuntivo quanto em conjuntivo. Ambas as terminologias referem-se ao uso prototípico do modo. No primeiro caso, temos uma referência a sua ocorrência mais típica, determinada e sob a regência de um verbo em oração principal em outro modo. No segundo, a reiteração de que seu uso mais frequente é antecedido por conjunção. Os argumentos que serviriam a restringir conjuntivo, pois se pode encontrar indicativo na mesma situação, não mudam o fato de que tal posição é típica do modo 140 Em todos os exemplos com o verbo preferir, lançamos mão de sua transitividade corrente em PB. 132 subjuntivo. Assim sendo, tomaremos ambas as denominações para referência ao modo em estudo. Já vimos que o modo subjuntivo opõe-se ao indicativo, em termos mórficos e semânticos. Acrescentemos também os sintáticos, dada a presença marcante e condicionada à ambiência morfossintática dos enunciados, nos já referidos casos de subjuntivo em subordinadas. Segundo Santos (2003), é a partir da gramática de Jerônimo Soares Barbosa que o conjuntivo passa a ter tratamento sintático. Agora, lidando com a questão semântica: Procuro um restaurante que serve comida grega. Procuro um restaurante que sirva comida grega. Não sei quem é aquela menina. Não sei quem seja aquela menina. No primeiro par de exemplos, vemos clara distinção semântica. Na primeira frase, o indicativo implica que a existência do restaurante não está em questão. É possível até que ele já seja conhecido do enunciador, apesar do artigo indefinido. Já no segundo caso, nem se sabe, ao certo, se o restaurante existe. Isso é apresentado como possibilidade, quiçá torcida. Situação diversa é a que percebemos nos dois últimos exemplos em que não observamos distinção semântica significativa. Talvez, em outra sincronia da língua, já tenha havido, para um caso como esse, diferenciação. No entanto, se houve, hoje nos é desconhecida e não perceptível. No vácuo de ocorrências como a do último par, vem se desenvolvendo uma ampla invasão de indicativos em contextos conjuntivos, até então, por excelência. Você quer que eu trago a cadeira? Se eu passo aqui às quatro, tá bom pra você? Há poucos que apreciam boa música. Deixa que eu pego esse pacote. Não acredito que isso irrita tua mãe. 133 Nas cinco frases, estamos diante de contextos típicos de conjuntivo. A primeira ainda representa realização estigmatizada. As demais são correntes e universais, mesmo em falares cultos, não causando qualquer estranheza. Intuímos que se trate de contextos em que a distinção semântica indicativo versus subjuntivo não atue (mais) categoricamente, podendo ser esse um fator a favorecer a queda do subjuntivo, substituído aí pelo modo indicativo. Bagno (2012) adverte que a presença de negações no período favorece a presença do subjuntivo em detrimento do indicativo. Exemplifica-o por dados colhidos ao NURC. eu não acho que casar e ter filhos seja uma coisa natural, da vida.141 Santos (2003)142 cita que, segundo pressupostos gerativistas, o “elemento NEG” “em posição mais alta” constituiria restrição que implicaria o uso do conjuntivo. Campos (1997), por meio de seu conceito, já mencionado alhures, de sobremodalização, pode estar a fornecer um instrumento adicional para a análise desses casos, já que atribui a muitas ocorrências de conjuntivo, uma marcação redundante de modalização. Assim em Talvez eu passe aí pra te ver, a modalização hipotética surge tanto na forma adverbial postada à abertura do período quanto na forma verbal. Por essa redundância, ficaria habilitada a realização Talvez eu passo aí pra te ver. Tal fenômeno parece apontar para um esvaziamento semântico próprio das formas subjuntivas no português, uma vez que seu sema mais proeminente manifestado parece, de fato, ser o de contrafactualidade, independente da manifestação mais efetiva que essa poderá tomar em cada enunciado. Se assim for, terá razão Mattoso Camara, ao afirmar que ao subjuntivo cabe tão somente o papel, em nossa língua, da “servidão gramatical”, em um percurso de erosão morfossintático-semântico, desde seu tráfego do latim, idioma em que o subjuntivo era autônomo e pleno como modo verbal. Acerca disso, Santos (2003) considera que “O uso do ‹‹conjuntivo›› tornar-se-ia [...] um mero elo numa cadeia de gramaticalização diacrônica gradual, cujo processo de evolução autorizaria a coexistência de empregos dotados de sentido, a par de outros que não o têm.”143. 141 NURC/RJ, em BAGNO (2012, pp. 562-563). SANTOS (op. cit., p. 118). 143 SANTOS (op.cit., p. 418). 142 134 Adiante, prossegue: “No processo evolutivo das línguas, o ‹‹conjuntivo›› assumiria então, cada vez mais, papel de uma simples marca da construção subordinada.”144. A autora alerta ainda que o critério exclusivamente semântico é insuficiente para se lidar com a conjuntividade e, para demonstrar isso, dá-nos, por exemplos, frases que vão contra a semântica de indicativo e de subjuntivo. Lamento que estejas doente. Não tenho a certeza que ele vem.145 Adverte também que o termo irrealis, comumente empregado para o conjuntivo não pode ser entendido como não real ou irreal, uma vez que não diz respeito à realização ou não dos eventos em questão― o que constituiria critério lógico, não linguístico― mas sim como uma oposição a não marcado, correspondendo a “ausência ou suspensão da realidade”. O irrealis seria, por extensão, uma forma de não asserção, o não factual. O sistema verbal do inglês atual dispensa o subjuntivo. O mesmo modo não é encontrado em línguas eslavas nem bálticas, segundo Quiles & López-Menchero (2009), o que, segundo os autores, faz supor que o modo subjuntivo seja uma inovação do protoindo-europeu tardio ou que se tenha perdido nos dialetos bálticos e eslavos do indo-europeu por outra razão de difícil reconstituição. Weinrich (1968) trata o subjuntivo por metáfora temporal, explicação para o português insuficiente. Cuidemos também do subjuntivo de valor optativo. Mesmo este, embora em contexto de frase independente, portanto, em princípio, “mais abrigado”, não tem conseguido se manter imune ao avanço indicativo. Tomara que você consegue resolver isso. É bem verdade que aqui ainda encontramos um resquício de presença indicativa, no cristalizado tomara, impedindo uma realização que possa ser plenamente tomada como subjuntivo independente― embora tomara tenha hoje, gramaticalizado, mais valor adverbial do que verbal― mas, ainda assim, isso não muda o fato de que, mesmo estigmatizadamente, percebermos um uso indicativo em contexto em que seria esperado subjuntivo de valor optativo. 144 145 Idem, ibidem. Idem, p. 420. 135 Recordemos ainda que o optativo fora suprimido como modo já no latim. Na língua grega clássica, em que era um modo pleno, algumas de suas formas já eram coincidentes com as de subjuntivo. Mais uma vez, advogamos que a proximidade conceitual entre típicos valores subjuntivos e optativos deve ter levado a uma leitura e decodificação que implicou na supressão do modo mais frágil do par, uma vez que o subjuntivo era conceptualizado mediante sua oposição ao poderoso indicativo. O último exemplo ainda nos põe defronte à ponderação de Bagno (2012) de que os usos independentes do subjuntivo só o sejam usos dependentes com a oração de comando apagada. Não sabemos ao certo em que nível o autor refere-se a “apagamento”. Entendemos esse em três possíveis formas: por contextualização pragmática, por diferença de nível, em análise gerativa, entre estrutura superficial e profunda e como expressão/ termo subentendido, expediente a que muito recorre a gramática tradicional em suas descrições. Na primeira acepção, podemos admitir uma situação de interação que dê conta de suprimir a suposta introdução do enunciado optativo. No segundo, trata-se de um procedimento de análise de uma teoria, implicando uma série de outros constituintes correlatos a este. No terceiro, é um subterfúgio sacado sempre que se faz necessário à consecução de um objetivo de análise pretendido, não importando em quão artificial resulte tal subterfúgio. A esse respeito, diz-nos, há mais de um século Said Ali: O processo sophistico da substituição não é admissivel em uma analyze scientifica. Tomemos um exemplo da chimica. Si apresentarmos a um preparador de chimica um sal para analyzar, e si elle não puder dar conta da tarefa por não possuir no seu laboratorio os reactivos necessarios ou por outra causa qualquer, não irá com certeza substituir o sal por outroe analyzar o corpo B em vez do corpo A. Isto parece intuitivo; em grammatica, porém [...] queremos sempre ou por faz ou por nefas dar explicação de tudo e, o que é mais, sujeitar essa explicação a certos e determinados moldes fixos. [...] Assim, em vez de analyzar directamente a frase vende-se uma casa, costumam autopsiar est’outra: uma casa é vendida [...]146 Ou ainda: [...] Em vez de aceitarmos os phenomenos linguisticos taes quaes se apresentam, andamos geralmente a procurar fóra da linguagem um termo reclamado por um principio aprioristico, fingindo portanto um sujeito, ou 146 SAID ALI (1895b, p. 114), através da edição fac-similar presente em BECHARA (2005). 136 então substituindo uma frase por outra, linguisticamente differente, em vez de analysar a primeira, analysamos a segunda. Em outras palavras: nós não analysamos; sophismamos a analyse.147 Fica claro e evidente que advogamos que o que se deve analisar, em qualquer caso, é a realização verificada. Neste caso, o subjuntivo de valor independente que ocorre em tantos exemplos e que, assim, Sejam abertos nossos caminhos de estudo. Há ainda que se abordar os tempora subjuntivos. Lembremos que o português apresenta um detalhamento destes não encontrado em outras línguas latinas. São três tempora simples e três compostos. Para as formas simples, teríamos, a partir da referência de 1ª pessoa do singular, por exemplo: Presente: estude, dê, chegue, ame, escreva, perca, tenha, seja, ria, vá. Pretérito Imperfeito: estudasse, desse, chegasse, amasse, escrevesse, perdesse, tivesse, fosse, risse, fosse. Futuro do presente: estudar, der, chegar, amar, escrever, perder, tiver, for, rir, for. Já para as formas compostas: Pretérito perfeito: tenha estudado. Pretérito mais-que-perfeito: tivesse estudado. Futuro do presente: tiver estudado. Não é simples a caracterização semântica das formas de conjuntivo, pois, como remetem a um tempo imaginário, seus valores temporais não contêm o nível de aderência aos tempora que se verifica no indicativo. Ainda assim, em linhas muito gerais, poderíamos dizer que, em meio à pluralidade de valores temporais latentes em cada forma, o uso que lhes justifica a respectiva denominação é: Presente: apresenta um acontecimento potencial no momento da fala. Convém que descanse um pouco. 147 SAID ALI (1895, p. 41), através da edição fac-similar presente em BECHARA (2005). 137 Imperfeito: enuncia uma ocorrência hipotética passada, porém posterior a outra já ocorrida. Parece ser a forma mais produtiva do subjuntivo, na língua. Ela insistiu que saíssemos de casa. Tem também altíssima produtividade nas construções condicionais fortes, associado ao futuro do pretérito, como veremos no próximo capítulo. Futuro: expressa acontecimento tomado por possível num momento posterior ao da enunciação. Quando eles chegarem, já será então muito tarde. É típico das condicionais fracas, junto ao futuro do presente do indicativo. Perfeito composto: apresenta ocorrência conclusa em momento anterior ao da enunciação. Embora tenha se empenhado muito, seus resultados foram insatisfatórios. Mais-que-perfeito composto: expressa acontecimento anterior a outro fato já terminado. Ainda que ela já tivesse se aborrecido bastante, insistiu em fazer as pazes. Futuro composto: enuncia acontecimento posterior ao momento atual, mas já terminado antes de outro fato futuro. Quando eles tiverem se mudado em definitivo para a nova casa, faremos uma visita. Observemos que as formas compostas são todas perfectivas. Também é perfectivo o futuro simples. Aí, por sinal, paira uma distinção em relação ao infinitivo flexionado, que é imperfectivo, embora, nos verbos regulares, utilizem das mesmas formas. Já o presente e o imperfeito carregam o traço da imperfectividade. 138 O mais-que-perfeito apresenta comum uso de valor imperativo, em geral. Notese que se refere a acontecimento que não mais pode ser modificado. Neste sentido, ganha ares de censura, como em: Tivesse estudado, não teria chegado a esta situação. Sobre os tempora simples, relembremos que não podem ser tomados no sentido da temporalidade que observamos no indicativo. Todos os três podem se correlacionar a passado, presente e futuro. Todos se conformam segundo um juízo de tempo relativo. Ele pediu que eu viesse amanhã. Observamos que, neste exemplo, temos um imperfeito indicando, claramente, futuridade. Ferrarezi Jr. & Teles (2008) apresentam uma visualização da linha do tempo para as formas conjuntivas simples que adaptamos abaixo. Momento tomado como sendo a provável referência de uma ação passível de ocorrência148 Esquema 10: os tempora do subjuntivo. Imperfeito Presente Futuro Os autores pretendem, com o esquema acima, marcar, sobretudo, a “imprecisão” temporal das formas subjuntivas, opinião da qual partilhamos. De modo geral, a grande oposição semântica central estabelecida nos tempora simples conjuntivos é entre o imperfeito de um lado e o presente e futuro de outro. Ou, em outras palavras, passado e não passado. 148 FERRAREZI JR. & TELES (op. cit., p. 167) 139 Vou sair antes que ele chegue. Vou sair depois que ele chegar. Ainda sobre a sistematização temporal do conjuntivo, pela própria natureza semântico-discursiva do modo, a futuridade sempre é uma possibilidade a seus tempora, embora nenhum deles tenha a primazia da expressão de futuridade, por excelência. Ele pediu que eu voltasse amanhã. Ele pediu que eu volte amanhã. Quanto ao valor de preteridade, este é, de fato, reservado às formas de pretérito. Percebamos que as formas de presente e de futuro não apresentam distinção de significado― excetuada a diferença de perspectiva quanto a perfectividade ou imperfectividade, nos moldes que comentamos. São mais duas covariantes, condicionadas morfossintaticamente, em distribuição complementar na língua. Quem tiver condições, poderá viajar. Quem tenha condições, poderá viajar. Quem tivesse condições, poderia viajar. Já aqui fica ainda mais evidenciada a equivalência semântica entre presente e futuro, no subjuntivo, e sua distinção frente ao imperfeito, influenciando, inclusive, na correlação temporal com os futuros e, consequentemente, na significação final do período. Para Fonseca (op. cit.), as formas conjuntivas expressam valores temporais sempre relativos, sendo estes ou de anterioridade ou de simultaneidade/posterioridade à forma verbal da oração principal. A autora ainda apresenta para tais formas, com base em sua enunciação/ locução: 140 Quadro 11: Perspectiva de enunciação do conjuntivo. ANTERIORIDADE ATITUDE DE LOCUÇÃO/ SIMULTANEIDADEPOSTERIORIDADE DISCURSO ENUNCIAÇÃO Perfeito, Futuro Presente, Futuro composto NARRAÇÃO Mais-que-perfeito Imperfeito Não conseguimos ver possibilidade de, bidimensionalmente, representar os tempora subjuntivos. Quanto às fórmulas de Reichenbach, dada a inexistência de fixidez temporal relativa ao ME desses tempora que seria deduzida ou condicionada a partir do verbo da oração principal, não é possível representá-los pelos parâmetros utilizados para o indicativo. Não dispomos aqui de um modelo de representação para tais tempora. 2.7 Modo imperativo Enfim, atingimos no último subponto deste capítulo, o modo imperativo, que, em português, reserva-nos algumas ponderações. Já o identificamos como das possíveis formas à expressão de futuridade. Em latim, havia os tempora presente e futuro para tal modo. Do latim, só conservou-se, em nossa língua, o imperativo presente que, por tempus único, já não recebe tratamento terminológico que lhe reconheça como tal, ainda mais que esse presente confundir-se-ia, forçosamente, com o próprio presente enunciativo. O valor de imperativo futuro é possível recuperar em usos, por exemplo, com o futuro do presente: Não matarás! Não cobiçarás a mulher do próximo! Daqui de casa, hoje, você não sairá/ vai sair de jeito algum. Quiles & López-Menchero (op.cit.) afirmam que o imperativo formou-se desde o protoindo-europeu, apresentando, inicialmente, a mesma forma do indicativo, mas com valor expressivo, sendo tal modo o paralelo verbal do vocativo na declinação 141 nominal. A 2ª pessoa do imperativo seria de formação mais remota do que a 3ª, o que confirmaria a prototipicidade daquela pessoa no modo em questão. Como problematizamos no item 2.3 e corroborado por muitas exposições sobre os modos verbais, o imperativo português comporta-se à parte da oposição indicativo-conjuntivo. Além disso, esse modo não reúne uma mínima grade temporal e é de uso exclusivo à interação, manifestando sempre a função apelativa da linguagem. Certamente, o imperativo ocupa um status modal outro no sistema do português, configurando-se como um modo periférico. Pensamos que o imperativo possa ser considerado um paramodo, por todo o seu conjunto de caraterísticas atípicas, somadas a seu alto grau de defectividade, sendo mais um vestígio de modo do que um modo pleno na língua. Assim, poderíamos propor, como visão para os modos portugueses respeitando sua hierarquia e prototipicidade no sistema da língua: Indicativo- PRIMÁRIO MODO Subjuntivo- SECUNDÁRIO Imperativo- PARAMODO Neste ponto, já exaramos nosso parecer de que o imperativo resume-se à 2ª pessoa singular e plural de sua forma afirmativa, justamente as pessoas do discurso que, prototipicamente, representariam o sempre apelativo imperativo. Não nos parece que isso seja mera casualidade. Nos demais usos, é suplementado pelo subjuntivo de valor optativo. Camara Jr. (2000) apresentou-nos uma hipótese de neutralização entre imperativo e as formas de valor optativo que comporiam sua grade, em papel suplementar. Se aceitarmos tal premissa, teremos que considerar que tal neutralização dê-se pelo valor injuntivo presente tanto no imperativo quanto no optativo. Isso nos leva a uma problematização clara com a definição ainda tão difundida de que o imperativo exprima ordem. Pensamos que conceituá-lo pela expressão de valores apelativos componha retrato mais fiel de seus usos: exortações, pedidos, aconselhamentos, sugestões, etc. A ideia de ordem pressuporia, antes de mais nada, uma relação assimétrica entre os interlocutores, criando hierarquia formal ou convencional que criasse um contexto em que os apelos devessem ser entendidos como ordenamentos. Na mesma linha, a 142 característica inerente do uso apelativo, o que pressupõe interlocução, daria conta de, plenamente, desabilitar o uso da 1ª pessoa do singular, não carecendo a repetição da ingênua, enfadonha e inverídica afirmação de que “não se pode dar ordens a si mesmo”. A esse respeito, qualquer enunciador pode, por exemplo, exortar-se a uma tarefa. Vamos, Anderson, siga adiante. O imperativo está longe de ser a única forma na língua de se proferir esses valores injuntivos, incluindo aí, por vezes, o ordenamento. Vilela (1999) apresentanos alguns dos recursos, para isso, possíveis no português: ― indicativo: Agora, levantas-te da cama e depois contas-me toda a história! ― futuro: Amarás ao Senhor Teu Deus com todo o teu coração... Levantar-se-á da cama sempre às sete da manhã. ― passiva de estado: Agora, está-se de pé! Nesta altura, está-se sentado! ― infinitivo: Levantar! Virar à esquerda! ― particípio: Levantado! Quieto! ― perfeito: [na aula de ginástica] Levantou! Rodou à esquerda! ― frase subordinada: E se agora estivesses levantado! ― verbos modais: dever, ter que, ser + para + infinitivo149 O modo imperativo corresponderia, assim, à gramaticalização do valor exortativo/imperativo que abrange uma rede de possibilidades. Anteriormente, associamos o imperativo ao indicativo, em termos de primazia genética na língua, constituindo valores, intuitiva e cognitivamente, mais básicos do que os expressos por subjuntivo e optativo. Contudo, apontamos que o indicativo, em acordo com múltiplos juízos exarados sobre isto, seria a forma básica. Parece149 VILELA (1999, p. 175-176). 143 nos oportuno acrescentar que o indicativo é um modo do nível da língua, ao passo que o imperativo, indubitavelmente, situa-se no discurso. Note-se que, do ponto de vista do uso corrente, no PB atual, o indicativo anda também a avançar amplamente sobre terreno outrora imperativo. Comparem-se as formas: USO CORRENTE USO PRESCRITO Chega aqui. Chegue aqui. Apaga a luz. Apague a luz Sai logo! Vem cá rápido! Faz o que te der na cabeça. Saia logo! Venha cá rápido! Faça/ Faze o que te der na cabeça. Percebamos que, na primeira coluna, temos o uso efetivamente feito, não estigmatizado do imperativo: a forma de 3ª pessoa do singular do presente do indicativo, com valor injuntivo/ imperativo. Aos que argumentam, sem maiores aprofundamentos, que se trataria aí da generalização da 2ª pessoa do singular do imperativo morfológico, as frases com o verbo fazer elucidam que, de fato, estamos a lidar com um presente imperativizado. Nem entramos aqui no mérito da neutralização entre 2ª e 3ª pessoas do discurso no PB, pois, embora o fenômeno possa aí ser observado também, vemo-lo como fator bastante secundário no referente à passagem de imperativo a indicativo― apenas o debate, no entanto, a respeito dos usos dialetais de você e de tu no PB já seriam de um fôlego à parte. Notemos que esse uso imperativo reserva manifestações curiosas, como, por exemplo, o valor causativo em construções como Sai dois chopes aí. Flagramos, em tal construção, outro dado interessante a observar. Essa forma de presente de valor imperativo, por alguma razão que nos é ainda desconhecida, parece desfavorecer plural. Vemos isso no último exemplo, mas também em tantos outros: Vem cá, vocês dois, Sai do quarto você e seu irmão, agora! Convoquemos, a esse respeito, Campos (1997) que nos afirma que a modalidade deôntica, diferente da epistêmica, aproxima-se do valor causativo. Obviamente, há um grande nível de identidade entre a modalidade deôntica e o uso imperativo. Talvez possa haver aí, então, uma pista ao entendimento do que ocorra nesses inovadores usos imperativos do PB. 144 3 OS FUTUROS PORTUGUESES E ao abismo do vertiginoso futuro, desci. Pedro Ayres Magalhães (Madredeus). Neste capítulo especificamente, pretendemos, de fato, voltarmo-nos aos futuros portugueses. Para tanto, empreenderemos um percurso que terá por pontos centrais uma breve explanação sobre o processo de gramaticalização nas formas de futuro em nossa língua. Neste ponto, pretendemos abordar algumas marcas gerais da gramaticalização. Reportar-nos-emos a cotejos com outros processos de gramaticalização para futuro em outros idiomas no capítulo 4. Em seguida, trataremos de cada um dos tempora futuros: o futuro do presente do indicativo, incluindo aí a forma composta desse modo, o futuro do pretérito do mesmo modo, também com sua forma composta, os futuros subjuntivos e, por fim, o famigerado “gerundismo”. Iniciemos, pois, esta nossa exposição. 3.1 Futuridade gramaticalizada Já tratamos, empenhadamente, no ponto 2.1, do capítulo anterior, sobre Futuro e futuridade, de que aquele seria a gramaticalização, em forma de tempus, deste. Dos tempora futuros indicativos portugueses, no capítulo 1, situamos seu percurso histórico, de indubitável processo de gramaticalização morfossintática. Como em um das máximas funcionalistas, a sintaxe de um período histórico anterior pode muito bem se tornar morfologia num momento posterior, reabilitando o próprio entendimento das fronteiras entre sintaxe e morfologia. Cabe-nos aqui, neste item, discutir, então, a gramaticalização ora em curso de ir em auxiliar, quiçá, índice de futuridade a se gramaticalizar em marcação morfossintática de futuro verbal na língua portuguesa. Para prosseguirmos, precisamos discutir previamente tanto auxiliaridade como gramaticalização em si. Comecemos pela primeira, admitindo que tal tema em português não é, com certeza, simples. Embora a terminologia locução verbal seja de apropriação bastante universal, ainda há uma série de pontos a ser, no temário, 145 esclarecidos. No item 2.5.5, propusemos alguns testes à comprovação da coesão de um conjunto verbal, a se constituir em aporte mono-oracional. A partir destas, aferições, passamos a poder, então, distinguir sequências verbais em períodos compostos de locuções em períodos absolutos. Contudo, isso não elimina uma série de pontos a serem aqui problematizados. Tampouco explica casos de vacilação quanto à classificação como locução verbal, advinda, justamente, dos diferentes níveis de coesão contraídos em tal construção. Uma questão primeira derivada daí seria a própria distinção entre tempos compostos e demais perífrases verbais. Pontes (1973) sustenta que os tempos compostos são fruto da própria sistematização dos gramáticos, correspondendo a artificialismo classificatório. Também pensa assim Said Ali (1966c) que considera que ter andado e estar andando em nada se distinguem, a não ser na tradição e no fato de a primeira forma encontrar equivalentes em outras línguas, em que é tratado como tempus. Reivindica, inclusive, analogia de formação entre os dois exemplos por ele dado. Neste ponto específico, permitimo-nos discordar, ou pelo menos, problematizar a posição dos autores, a partir de um dado que é a passagem do vocábulo participial que acompanha ter de adjetivo, com concordância com o SN objeto a verbo invariável. Assim, em Os Lusíadas, no séc. XVI, ainda presenciamos Camões, mesmo com seu moderno português, empregar Grandes batalhas tem desbaratadas,/ Que as águias nas bandeiras tem pintadas150. A passagem à forma tem pintado seria um marco, segundo Mattos e Silva (2002). Concordamos e julgamos que aí se flagra um percurso de gramaticalização não ocorrido, com tal nível de sistematicidade, em outros grupos locucionais verbais. Em tal ponto, encontramos uma motivação à aceitação dos paradigmas de tempos verbais compostos. Pontes (op. cit.) identifica como falsos auxiliares fazer, mandar, deixar, querer. Na verdade, tais verbos trariam como complemento típico uma construção causativa. Ainda acrescenta que dever (em sentido deôntico), haver de, ter que, precisar, poder (epistêmico), parecer, começar a, pôr-se a, voltar a, costumar, acabar de e ir precisam ser problematizados como auxiliares, uma vez que todos eles podem admitir sujeito oracional. De todos esses, por razões que dispensam maiores explicações, dedicar-nos-emos às ponderações sobre o verbo ir. Pontes (op. cit.) 150 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Canto 8, 5ª estância. 146 utiliza, como exemplos que comprovariam a propensão de ir aos sujeitos oracionais, exemplos como Vai chover ou Vai haver aula, curiosamente― ou não― dois casos de oração sem sujeito. Ao se valer de tais exemplos, a autora pensa em, por exemplo, Vai chover, como equivalente de Chover vai. Analisemos tal questão. Vou pescar. Pescar vou. Na segunda oração, assim como em Chover vai, estamos, na verdade, a lidar com o verbo ir pleno e não como auxiliar. A coesão da sequência locucional leva a essa mudança de interpretação, frente à interpolação, o que não habilitaria, portanto, a leitura proposta pela autora. Pensamos que há, hoje, efetivamente, na língua, uma zona de obscurecimento entre os dois valores semânticos polares de ir: verbo pleno, de movimento e verbo auxiliar, indicador de futuridade. O estatuto sintático destas formas também seria bastante diverso. Não vemos o argumento da autora, portanto como desabilitador da auxiliaridade de ir, verbo que, cotidianamente, fortalece-se na especialização de operador gramatical de futuro, em língua portuguesa. Esquema 11: a transição semântica de ir. Zona propícia à Ir pleno, de movimento indefinição semântica Ir auxiliar de futuridade É por tal indefinição, comprovação de gramaticalização ainda em processo, de mudança em curso, que flagramos enunciados, efetivamente, ambíguos para os valores de ir: Vou comer. Ela vai dormir. 147 Observemos que, nos dois, só o contexto, se é que tanto, podem nos esclarecer se se trata de mover-se para comer ou para dormir ou da referência futura. Aliás, é justamente daí que nasce, cognitivamente, o uso de ir, como auxiliar de futuro, fenômeno verificado em outras línguas, como veremos no capítulo seguinte. Nas considerações de Bybee (2003) sobre o verbo go em inglês, na auxiliaridade de futuro, nesta língua: “At first, the meaning is primarily spatial, but a strong inference of intention is also present. The intention meaning can become primary, and from that, one can infer future actions”151. Adicionalmente, lembremos que, desde a apresentação de como a língua decodifica tempo em tempus, temos trabalhado a ideia de que o movimento é de metaforização de tempo por espaço. Aliás, a própria concepção de unidirecionalidade do tempo, com toda sua sorte e consequências de representação, vem daí. A própria apreensão de deslocamento no espaço, convertida em compreensão de percurso no tempo está aí também traduzida. No dia a dia, a todo momento, tratamos tempo por espaço, em um dos modelos de metaforização cognitiva mais conhecidos, mais usuais e, ao que tudo indica, mais primordiais. Daqui pra frente, tudo será diferente. A partir deste ponto, precisamos rever algumas questões. Daqui até tua casa são uns quarenta minutos. Como argumento adicional ao fato de que ir como auxiliar de valor futuro ainda é um caso de mudança não completada, notemos os casos abaixo: Vou ir pra casa. Vou vir aqui amanhã. O estranhamento detectável no uso da forma vou ir é indício de que não temos aí uma gramaticalização pronta e acabada, mesmo que consideremos o viés, por muitas vezes, de motivação normativa desse estranhamento. Em contrapartida, a forma vou vir não suscita estranhamentos, dando assim a certeza de que a referida gramaticalização encontra-se em nível muito avançado em nosso idioma. 151 “Primeiramente, o significado é primariamente espacial, mas uma forte inferência de intenção está também presente. O significado de intenção pode tornar-se primário, e a partir daí, pode-se inferir ações futuras.” 148 Cabe registrar que o verbo ir só é tomado, habitualmente, como auxiliar formal para a expressão da futuridade, gramaticalizada na formação dos futuros verbais, ainda que apresente alta produtividade na formação de perífrases de pretérito. Comparemos Vou dormir e Fui dormir. Também é digna de nota a ambiguidade que o verbo ir imprime a essas formas, podendo ser entendido na acepção de dormirei/ dormi ou encaminho-me/ encaminhei-me para dormir. Essa ambiguidade faz-se plenamente presente na conceptualização do verbo ir junto a infinitivos verbais. Em termos de cognição, esse verbo descreve um movimento que pressupõe ponto de partida e de chegada. Ainda acerca da ambiguidade de ir nas construções com infinitivo, advogamos que eis aí um indício de mudança linguística ainda não plenamente concretizada, embora de largo espectro no tempo e no espaço em nossa língua, sobretudo no PB. Lembremos também que o processo de gramaticalização e de mudança pode se dar mantendo as formas variantes por longo período de tempo. Vemos processos de mudanças inúmeros em diferentes estágios e graus de variação das formas implicadas. Observando alguns exemplos: Quadro 12: exemplos de gramaticalização. Vocábulo/ Valor mais antigo Valor mais recente Expressão a gente Substantivo, acompanhado de Pronome pessoal artigo tipo Substantivo Conjunção ou marcador discursivo via Substantivo Preposição aí Advérbio espacial Conjunção conclusiva bem Advérbio de modo Marcador discursivo chega Verbo Interjeição Vejamos que, em tipo, aí, bem e chega, temos o convívio amplo das duas formas variantes. Já em a gente e via, supomos nos encontrarmos em um processo em que o novo uso parece encobrir gradualmente a forma mais antiga. O fenômeno que ora se verifica com ir é do primeiro tipo e ficou conhecido na, literatura 149 especializada em mudança linguística, como overlap model, um processo em três estágios com a seguinte caracterização, segundo Martelotta (2011, p. 52): (i) há uma expressão linguística A, que é recrutada para cumprir gramaticalização; (ii) esta expressão adquire um segundo padrão de uso, B, que apresenta ambiguidade em relação a A; (iii) finalmente A se perde, ou seja, agora há apenas B. A consecução da mudança, como dissemos já, pode durar séculos. Para que ela esteja completada e possa ser tomada como mudança e não apenas variação, seria necessário o desaparecimento da forma linguística anterior. Podemos falar em mudança já efetivada, por exemplo, no caso da sobreposição de ter existencial a haver de mesma acepção no PB152. Martelotta adverte-nos que, entretanto, nem todo processo de gramaticalização atinge o estágio final. Ir, hoje, vive, vigorosamente, o segundo estágio do processo de overlap model. E cabe aqui melhor precisar afirmação anterior nossa. Não se trata de duas formas distintas para ir, em suposto processo homonímico, mas sim de polissemia construída no vocábulo, permitindo leituras ambíguas. Ou ainda melhor, a expressão da polissemia nada mais é do que o tráfego entre dois domínios cognitivos distintos.. Novamente Martelotta, apresenta-nos os contextos em que gradualmente essa ambiguidade fixou-se e, a partir daí, permitiu uma reanálise do verbo. Ele vai para casa falar com Paulo Ele vai falar com Paulo. Vai chover. [grifos do autor] As três frases representam um verdadeiro trajeto de mudança. Na primeira, deparamos com o uso pleno de ir, como de movimento espacial de um ponto qualquer, de partida, a outro, de chegada. Já no segundo, chegamos ao contexto que, justamente, instaura a ambiguidade, dada a interpretação de intenção, como já nos informara Bybee (2003), acoplada à ideia de deslocamento. A ambiguidade aí é a mesma que aludimos em exemplos anteriores, uma zona de obscurecimento na passagem do valor espacial ao temporal de futuridade. A partir da possibilidade de leitura deste último valor, habilitam-se exemplos como o último, coincidentemente, o mesmo de que se valera Pontes (1973), corroborando nossa discordância quanto a 152 É este dos temas centrais em nossa pesquisa de mestrado. Ver NASCIMENTO (2011). 150 identificação do estatuto de auxiliaridade de ir, pela autora. A partir do último caso, contextos que contenham ir mais um verbo no infinitivo, ou, se preferirmos, uma adverbial final reduzida de infinitivo, passarão a ser amplamente lidos como de valor futuro. Atentemos ainda para o fato de que a segunda frase, em si, advém de uma construção de finalidade: Ele vai para falar com Paulo. Retornando à metaforização cognitiva de espaço por tempo, lembremo-nos de que se deslocar no espaço toma tempo, perfaz uma duração. O circuito integral de gramaticalização, não necessariamente sempre percorrido, é de espaço> tempo> noção. Talvez os exemplares mais clássicos de tal trajeto encontrem-se nas preposições, por exemplo, em de: Sou do interior> Sou de outra época> Sou dessas coisas, não. Já da passagem preposicional do domínio espacial ao temporal, temos caso exemplar em desde, em português. Em espanhol, por curiosidade, ainda se detecta largamente seu uso espacial. Esquema 12: o circuito cognitivo. TEMPO ESPAÇO TEXTO/NOÇÃO153 Os contextos de ambiguidade/ polissemia ocorridos e flagrados na passagem de ir espacial a temporal, passando por intenção, são parte, necessariamente, constitutiva ao próprio processo de mudança, que, em si, é gradual. À medida que os contextos ambíguos vão se avolumando no uso é que vão sendo habilitadas novas leituras nas quais a inferência nova então autorizada passa a ser empregada de maneira não mais ambígua, como em Vai chover, claramente destituído de qualquer marca de volição. Em termos de comparação do nível de gramaticalização e de mudança, notemos que, no pretérito, tal mudança não se encontra tão avançada. Embora deparemos com Foi dormir e, talvez, possamos depreender daí ambiguidade, não há, hoje, quaisquer possibilidades para *Foi chover. Aqui cabe uma digressão, pois ainda que a forma última exemplificada seja, hoje, pelo menos, inexistente, ela se 153 Adaptado de MARTELOTTA (2011, p. 99). 151 faz válida em contextos que, a nós, parecem de uma correlação discursiva, como uma espécie de clivagem, com manutenção de valor temporal. Assim, em Foi chover justo agora, há uma marca de pontualidade com a qual a forma foi parece se associar, destituindo-se, em alguma medida, de seu valor temporal. Tal destituição temporal ocorreria parcialmente. Se por um lado, não percebemos, na construção em questão, valor temporal pleno, na acepção morfossemântica, também flagramos algum resíduo disso na vinculação entre circunstancialização de aspecto pontual e o uso do perfeito. Percebamos ainda que tal estrutura não encontra equivalente no imperfeito, em nível de correlação, a não ser que em acepção de futuro do pretérito: *Ia [imperfeito] chover justo naquele momento. Mas insistimos na presença de tal uso em construções de correlação discursiva, o que, pensamos, torna duvidosa, a não ser, talvez, em contextos muito específicos de enunciação, a depender de entonação e do aporte pragmático, uma construção como ?Foi chover ontem. Isso nos leva a concluir que ir mais infinitivo, com valor de futuro, dispõe de maior coesão locucional do que sua versão no pretérito. Perceba-se que o verbo ir na primeira está no presente, mas, mesmo assim, o valor de futuridade lhe é muito pronunciado. Já no segundo enunciado, não vemos o valor de pretérito como tão naturalmente extensível a todo a sequência verbal, denotando, de fato, uma menor coesão. Possivelmente, em Foi dormir, a ideia focal ainda é a de deslocamento no espaço, em tempo pretérito, claro. Só se comprova daí a força semântica e morfossintática da locução de futuridade atual em língua portuguesa. Só a título de ilustração, em catalão, o verbo equivalente a ir, anar, é auxiliar para construções de pretérito: Vaig fer um pastís (Fiz um bolo). Encontramos ainda outras locuções com ir, em gramaticalização menos acentuada do que a de futuridade. A de imperativo já apresenta hoje produtividade considerável, como Vamos nos encontrar às cinco. Também flagramos locuções com ir no subjuntivo: for viajar, fosse viajar. Notemos ainda que a forma de futuro do subjuntivo locucional em ir pode ser suprida pela forma de presente, sem que esta admita leitura de futuro do presente: Se você vai fazer assim, não vai dar certo, em que podemos ler for fazer, mas a interpretação por fará parece-nos de todo duvidosa. Atentemos também para o fato de que a forma antônima a ir, verbo que com ele partilha, semanticamente, evidente propriedade dêitica, também se encontra em processo de variação na língua, apesar de em menor amplitude. Contudo, uma 152 realização como Vem chovendo a semana inteira, com valor equivalente a do presente perfeito― Tem chovido a semana inteira.― é já de uso bastante difundido, ao menos no PB. Também observamos gramaticalizações do também dêitico vir, na expressão formular Venho por meio desta... e em um uso que consideramos como de atenuação, como, Ela veio a se internar/ a falecer há uma semana. É preciso, no entanto, destacar que, como comprovação mesma do contexto de mudança em curso do papel gramatical de ir, como auxiliar de futuridade, há vários usos de tal forma em locuções ou meras sequências verbais que claramente não correspondem ao valor semântico de futuro. Um caso desses, bastante produtivo, é o de locuções de imperatividade, como em Vamos prestar atenção aqui!. Note-se que, por outro lado, uma perífrase equivalente pode corresponder a valor de futuro em outros contextos: Vamos sair cedinho amanhã. Por outro lado, temos casos em que ir não corresponde a qualquer indício, sequer vago, de referência futura, como em: Vai ver ele saiu de casa em que flagramos claro valor adverbial. Temos por certo deparar com exemplos outros de construção com ir sem valor de futuro, quando da análise de nossos corpora. A respeito do papel gramatical do verbo ir em locuções de futuro do presente e do pretérito, Castilho (2010) defende que tal verbo, formador de locução dos futuros do presente e do pretérito, deve ser interpretado como prefixo. Da mesma forma, sustenta que a forma habere funcionava como afixo móvel, donde veio sua cristalização como sufixo que mais tarde se constituiria em parte do morfema modotemporal de futuro tanto do presente quanto do pretérito. Essa interpretação, claramente, aponta a um rumo de severa gramaticalização na formação dos tempos verbais de futuro do português. Tal visão parece-nos, em princípio, sujeita a problematizações, mas com pontos de pertinência. Segundo ela, estaríamos a presenciar os primeiros tempos de um morfema a construir um possível vindouro futuro verbal com desinência modo-temporal prefixal e alomórfica, em uma mudança que, possivelmente, dada a velocidade das trocas comunicacionais hoje, dar-se-ia mais breve do que a de cinco séculos da passagem do futuro clássico latino à forma analítica vulgar. Considerando tais “pré-morfemas” e seus aludidos alomorfes para dar conta dos então diferentes radicais de ir, observamos, desde já, em algumas dessas formas o processo de erosão fonética, componente comum da gramaticalização: vô, i, vamo, foro, para vou, ir, vamos, foram. No entanto, todas as reduções fonéticas 153 apresentadas encontram paralelo em outros exemplos verbais que sequer se encontram em processo de gramaticalização. Não é em vão esta observação de Castilho (Op. cit., 405) sobre o passado e sobre nosso caro futuro: [...] o futuro não integra nossa experiência de vida. Só conhecemos o passado (e por isso a gramática escancara as portas para ele, inventando várias formas de passado)154 e o fugidio presente (e por isso habitualmente temos só uma forma para gramaticalizar o presente). [grifo nosso] Um possível reflexo dessa instabilidade na própria cognição do que afinal seja o futuro talvez se torne visível em sua também instabilidade morfológica na expressão do futuro verbal gramaticalizado, em perspectiva pancrônica. No próximo capítulo, constataremos que tal comportamento verifica-se similar em muitas outras línguas. Anexemos a estas reflexões, nossas especulações no item 2.4, sobre a mitificação do passado e um certo desapego em relação ao futuro e sua valoração que identificamos na própria história da humanidade e que apontamos como possíveis fatores de estímulo adicional ao plano cognitivo da própria concretização gramatical de futuro verbal nas línguas. Em tal ponto, parecem coincidir a intuição falante, a interpretação geral das línguas e a realidade. Afinal, em termos de tempo cronológico, nada se demonstra mais factual do que o passado. Ao observarmos o céu, em qualquer direção, deparamos com esse inexorável passado. Em uma noite de bela e esplendorosa lua cheia, o que vemos, em verdade, é a lua tal qual se demonstrava treze segundos atrás, o Sol remete-nos a um passado de oito minutos e, assim por diante, olhamos para um passado cada vez mais remotamente longínquo. Mirar os céus só remete ao futuro em nosso imaginário povoado pela literatura e cinematografia de ficção científica. Na verdade dos fatos, o que resta de tal visagem é só o passado. Assim, poderíamos dizer que a categoria cognitiva de tempo e, consequentemente, de tempus realizar-se-ia prototipicamente nos pretéritos e perifericamente nos futuros, em que, inclusive, dá passagem a outra categoria, a de modo. Nesse sentido, a escala de protipicidade temporal para os tempora seria 154 A título de exemplificação, lembremo-nos de que o grego clássico possuía quatro tempora para o passado: o perfeito (que também se opunha aspectualmente ao presente), o imperfeito, o mais-que-perfeito e o aoristo. Como parte da mesma ilustração, o francês apresenta cinco pretéritos. 154 coincidente com a que apresentamos no item 2.5, para o modo indicativo e não seria mesmo esperável que fosse diferente, afinal, as marcas de factualidade estão atreladas às temporais. É justamente como manifestação periférica do que sejam os tempora que os futuros estarão na borda entre tempus e modo, em consonância com suas propriedades na língua. São eles uma zona obscurecida entre ambas as categorias. Só a título de exemplo, notemos que o pretérito que pode, ocasionalmente, expressar valor modal é justamente um que ocupa a zona intermediária entre protótipo e periferia: o imperfeito. Temos até aqui falado da metaforização de espaço por tempo na gramaticalização de ir, mas é preciso ampliar a visagem de tal processo ao outro grande processo de cognição: a metonímia, que se presentifica por processos inferenciais, de ajuizamento de contiguidade. As ideias de que se movimentar de um ponto a outro envolvem tempo e intencionalidade permitiram que se fosse moldando o valor de futuridade, em um processo no qual deslocamento e intenção foram, cada vez mais, tornando-se ideias mais secundárias, embora claramente agregadas ao valor temporal aí em relevo. Lembremos que metáfora e metonímia são processos cognitivos muito mais complementares do que excludentes. Inclusive, ser resultado de metáfora ou de metonímia pode depender do ponto de visagem adotado e qual a extensão de tempo com que se observa o fenômeno de mudança. Recordemos que, no capítulo anterior, propomos que o tempo pode ser entendido como metonímia de espaço, e não como metáfora, dependendo da concepção que adotarmos para o entendimento da relação espaço-tempo. Destaquemos ainda que estamos a tratar ir tanto do ponto de vista da gramaticalização quanto da mudança, reconhecendo-os como processos distintos, ainda que muito imbricados entre si. A gramaticalização é uma das possibilidades de mudança linguística. Toda gramaticalização implica mudança semântica, já o contrário não é verdadeiro. Podemos ter mudança linguística em vários níveis e de várias maneiras sem mudança de categorização. Este é o caso de vossa mercê> vosmicê> você no PE, em que o vocábulo continua a ser um pronome de tratamento― mas não no PB, no qual apresenta amplo status de pronome pessoal. A mudança de ir é de espaço para tempo, mas também é de objetivo/finalidade para suposição/inclinação. É desse movimento que vai eclodir seu valor modal. E aí viria à tona a passagem de tempo a noção, implicando justamente seus usos modais. Indo além, podemos dizer que não há como, por sua própria natureza, que 155 o futuro não corresponda a algum nível de modalização― como veremos mais abrangentemente no capítulo seguinte ao comparar diferentes formas de futuro nas diversas línguas e seus valores semânticos. Uma das formas modalizadoras passa a assumir, aos falantes, valor mais neutro, papel típico de formas verbais mais opacas, logo mais funcionais e gramaticalizadas, casos de haver e ir, os dois últimos auxiliares de futuridade gramaticalizados em português. No caso de ir, em português, é preciso retomar a memória do que citamos sobre eo/ire latino, logo à abertura do item 1.3, e sua propensão, contida, segundo nosso juízo, em seu próprio semantema, à caracterização de mudanças de estado/situações. Cremos que a feição de tal semantema foi amplamente herdada em nossa forma ir, em que pese sua conformação morfológica interna ser historicamente heterogênea. Tal constatação pode suscitar consequências vastas na própria análise do processo de mudança de que aqui tratamos. Primeiro, percebamos que na própria ideia de movimento inerente a ir há um esquema mental subjacente que pressupõe um ponto de partida e um de chegada, uma origem e uma meta. Ir diz respeito, enfaticamente, à meta, no que, inclusive, opõe-se, deiticamente, a vir. A meta de ir, como sugerem as significações, apresentadas em 1.3, atestadas por eo pode ser decodificada em estado, situação, condição distinta da do ponto de partida/origem. Nesse sentido, o semantema de ir traria em seu bojo a pressuposição da possível mudança. Em outras palavras, ir é um verbo que indica movimento, mas também mudança. Esquema 13: o trajeto cognitivo de ir. IR A B Partida/ Origem Situação inicial Chegada/Meta Situação nova É a tal propriedade que aludem Bybbe, Pagliuca & Perkins (1999, p. 30), ao proferirem que: [...] the semantics of movement is not sufficient in itself to give up rise to the future sense. Rather, movement constructions that are sources for future 156 grams155 actually signal that the subject is in the process of moving towards a goal.156 Tal sistematização, em princípio, bastante simples e autoevidenciável, acarreta notáveis consequências. Bybee (2003b) pontua que uma das marcas da mudança linguística, em meio à gramaticalização, é a propriedade da retenção, uma memória do potencial lexical de dada forma que se mantém, ainda que bastante obliterada e passível de um possível apagamento muitíssimo gradual. Assim, diríamos que, por exemplo, na forma desinencial do futuro português, subsiste, em algum nível, o sema de modalização de dever em acepção deôntica. Do mesmo modo, podemos dizer que as ambiguidades percebidas no uso de ir em locução podem também advir daí. Assim que em Vou almoçar habilitam-se duas leituras. A ideia de movimento permanecerá factível nos predicados ditos ativos. Mais do que apenas movimento, teremos aí descrita verdadeira volição, o que nos remete à propriedade mesma supracitada de mudança de situação operada pelo verbo em questão. Vejamos, por outro lado, o que se passa na relação de tal verbo com predicados estativos. Vou ali pegar um táxi. ? Vou ali ficar triste. Vou pegar um táxi ali. Vou ficar triste ali. Óbvio que a movimentação do elemento adverbial influencia a coesão e determina a interpretação da sequência verbal em questão. Assim, podemos falar com segurança de valores inequívocos de futuro verbal apenas nos dois últimos casos, ao passo que nos dois primeiros eclode a ideia de movimento, aliada, em alguma medida, a intenção. É de se notar o segundo caso, em que a possível não realização há de estar vinculada, a nosso ver, a uma restrição entre a própria semântica do verbo e a estrutura estativa em si. Já no correlato quarto exemplo, estamos diante de uma construção gramaticalizada em futuro que só admite essa 155 O termo gram de utilização convencional dos autores em questão, advindo de gramaticalization não possui tradução direta ao português. Assim, optaremos por uma expressão que busque manter seu sentido original pretendido em inglês. 156 “[...] a semântica do movimento não é suficiente por si só para dar origem ao sentido de futuro. Em vez disso, as construções de movimento que são fontes de elementos de gramaticalização em futuro verdadeiramente sinalizam que o sujeito está em processo de se mover em direção a uma meta. 157 leitura, não cabendo a interpretação de movimento, diferente do que se verifica com o terceiro caso. Acrescentemos que, no último exemplo, mesmo o sentido volitivo encontra-se enturvado. Observe-se que, em um exemplo como Vai fechar o tempo, estamos diante do nível zero de volição implicada por ir, ao total e inquestionável encargo da gramaticalização. O traço de volição que acompanha ir em português, e que já demonstrava tal inclinação, como vimos, em latim, manifesta-se para além das construções que resultarão em gramaticalizações para futuro verbal. Notemos que na expressão típica da linguagem cotidiana estar indo só lidamos, a rigor, com movimento e não com volição. Ele está indo almoçar. Ele está indo viajar neste fim de semana. ? Ele está indo passar no teste. *Está indo chover. Observe-se que os dois primeiros exemplos só admitem leitura que inclua deslocamento, ao contrário dos dois últimos exemplos que, desprovidos de tal possibilidade, tornam-se em parte ou em todo inviáveis como execuções linguísticas. Por outro lado, poderíamos, perfeitamente, deparar com Vou passar no teste, sob o qual não cabe leitura de movimento, embora caiba a volitiva associada a de futuridade. A volição demarcada em ir, seja em construções de futuridade ou não, diz respeito ao ainda não experenciado, o que reforça o sema de futuridade que vem aí agregado. Assim, adendemos à tão propalada semântica de movimento de ir valores volitivos e, sobretudo, em nível mesmo cognitivo, de mudança. A universalidade combinatória de ir com qualquer outro verbo da língua, exceção talvez feita ao próprio ir, é demarcadora da abrangência da gramaticalização com a aqui estamos a lidar, uma vez que ir pleno não admite universalmente tais sequenciamentos verbais e estruturações predicativas. Sobre o futuro em mudança, podemos dizer que, como corresponde, cognitivamente, a uma série de possibilidades, tal tempo verbal consorcia-se a diferentes auxiliares que lhe imprimem alguma modalização, e uma das formas modalizadoras acaba por ser aí a vitoriosa, como a que alcança status de formadora 158 do futuro, em termos morfológicos, inclusive. Em logudorês, por exemplo, a forma adotada para a expressão do futuro provém do verbo dever; já em romeno, deparamos com o verbo querer, o mesmo responsável por uma das expressões de futuridade verbal da língua inglesa157. Óbvio que a modalização aqui apontada quanto ao futuro só é adequadamente percebida em perspectiva histórica. E, mais, cabe o questionamento se o futuro verbal é necessariamente instável em sua estruturação morfológica, dado o fato de ser refém de um processo modalizador, e antes deste, um cognitivo, anterior à sua constituição. Oliveira (2006) aponta para uma deriva indo-europeia analítico> sintético. Nós já percebemos e apontamos alhures aí uma mesma oscilação entre formas sintéticas e analíticas que vemos, ao longo da história, do latim ao português, nas formas de futuro e em outras, como, no pretérito mais-que-perfeito (hoje mais analítico do que sintético em PB, expresso pelo imperfeito de ter ou haver seguido pela forma de particípio do verbo principal) ou na expressão da passividade verbal, por exemplo. Corresponderão todas essas formas a conceitos decodificados, cognitivamente, como menos básicos e primordiais na língua? Serão tais formas categorias mais instáveis? Bybbe, Pagliuca & Perkins (1999) reconhecem o futuro como tempus, de fato, sui generis, ao dizerem: The future does not represent ‘future time reference’ in the same way that the past representes ‘past time reference’, either in the use of the term in reference grammars [...] the term ‘future’ is to signal that an assertation about future time is being made, or in other words, to signal a prediction.158 159 Costa e Sousa (2007) parece concordar, ao menos em parte, com as conclusões dos autores supracitados ao reconhecer como valores básicos do futuro a intenção e a predição, esta quando associada a outrem. Acrescentemos que, até em face dos contextos de ampla polissemia, a gramaticalização de ir para futuro, talvez, esteja mais consolidada no plano sintático do que no semântico. 157 Referimo-nos a uma das possibilidades, pois há também a perífrase to be going to seguida de um verbo principal como forma gramaticalizada de futuro em língua inglesa. Essa forma, com verbo originariamente de movimento, parece manter paralelo com a atual gramaticalização verificada em português para a expressão de futuro perifrástico. 158 BYBEE, PAGLIUCA & PERKINS (1999, p. 19). 159 “O futuro não representa ‘referência de tempo futura’ da mesma maneira que o pretérito representa ‘referência de tempo passada’, mesmo uso do termo em gramáticas de referência [...] o termo ‘futuro’ é para assinalar que uma assertiva sobre o tempo futuro é feita, ou em outras palavras, para apontar uma predição.” 159 É preciso registrar que muito do que dissemos tem por foco o futuro do presente do indicativo, protótipo de futuro. Contudo, muitas observações são plenamente cabíveis ao futuro do pretérito também, tão usualmente configurado com verbo ir no pretérito imperfeito, seguido por infinitivo, em processo que parece de clara analogia ao futuro do presente e que seria mais um dado a comprovar os vínculos e laços sólidos entre os dois tempora. Ao futuro composto do indicativo, muito do que se disse é também extensível, uma vez que seu formato usual é ir no presente, duplamente seguido, por um infinitivo e, depois, um particípio. Já os futuros subjuntivos, de fato, estariam afastados dos parâmetros aqui exarados. Tal afastamento, por sinal, dá-se também nos planos semântico e mórfico de tais verbos que, afinal, estão imersos em uma apreensão de tempo de outra ordem, como já expomos acerca do modo conjuntivo. Tendo situado a formação do futuro português como processo tanto de gramaticalização quanto de mudança em curso, com níveis de produtividade crescentes no português, passamos a caracterização dos tempora futuros. 3.2 Futuro do presente do indicativo O futuro do presente corresponde ao protótipo, à própria intuição do que seja o futuro tanto cronológico quanto verbal. Em português, hoje, ele corresponde a um formato morfológico simples, dois morfossintáticos perifrásticos e ainda mais um semântico, respectivamente: com desinências modo-temporais -ra-/-re-, nas formas locutivas alternantes com ir no presente ou futuro do presente seguido por infinitivo e sob a roupagem do presente do indicativo. Da última forma, insistem alguns em dizer que corresponda a usos do futuro em perspectiva de breve concretização/ realização. Já o dissemos antes e insistimos que tal critério é de todo subjetivo, não podendo ser, de fato, tomado por referência. Em sete anos você se gradua como regente. Só na segunda metade do século o ser humano consegue enviar missões tripuladas a Marte. 160 Ambos os enunciados, plenamente exequíveis, atestam a já sabida subjetividade do referido pressuposto de brevidade futura. Para nossa surpresa, Perini (2010, p. 222) considera agramatical O sol se extingue dentro de dois bilhões de anos. Estranhamos tal juízo de valor classificatório e não vemos qualquer irregularidade na construção. O presente indicativo pode expressar futuro, sem delimitações― até porque subjetivas― quanto a este futuro. Costa e Sousa (2007) também pensa que proximidade ou não do futuro é de todo discutível, como critério atribuído ao uso. A mesma autora atribui à forma perifrástica uma propriedade aorística, de pontualidade, de que a forma simples estaria destituída. Assim, oporia Dir-se-ia que vai chover a Dir-se-ia que choverá, identificando na primeira um fato eventual e na segunda, fato habitual. No tocante às perífrases, a alternância entre ambas apresenta amplo favorecimento à forma com ir no presente, ficando a versão com futuro do presente reservada a contextos que, por ora, identificamos tão somente como de ênfase. Tal uso, curiosamente, parece se aproximar do que, hoje, identificamos como um dos traços que ainda mantém a forma simples desinencial em linguagem corrente. Além de tal especificação, acrescentemos a indicação de nível de comprometimento; comparemos Estarei lá às dez em ponto com Vou estar lá às dez em ponto. No primeiro caso, parece haver, ainda que em nível intersubjetivo moldado discursivamente, uma asseveração mais forte. Por fim, não esqueçamos que a forma desinencial também parece vir se especializando em denotar formalidade, indício de seu uso cotidiano cada vez mais restrito. Oliveira (2006) afirma que a forma simples de futuro do presente indica hoje mais formalidade do que futuridade. Quadro 13: comparação dos usos das formas de futuro do presente. Forma Desinencial- Farei/ fará Contexto de uso Alto grau de comprometimento, formalidade, ênfase. Perifrástica- Vou fazer/ Vai fazer Universal. Perifrástica- Irei fazer/ Irá fazer Ênfase. Presente do indicativo Universal, mais voltado, contudo, à fala. 161 Pretendemos, exatamente em nosso capítulo 7, contrastar os usos destas variantes em PB, PE e PM. Os contextos de uso acima, por ora, referem-se ao PB marcadamente. Quanto à forma perifrástica com ir no futuro, Bagno (2012) considera que se trata de caso de hipercorreção, ocorrendo em contextos de monitoramento linguístico. Oliveira (2006) contrasta as formas morfossintáticas de futuro à semântica no presente, atribuindo valor modal àquelas e assertivo a esta. Identifica ainda que a forma simples seria [- modal], ao passo que a perifrástica, [+ modal]. E acrescenta que, para Gryner,160 o presente de valor futuro é, essencialmente, expressão de não passado. Pontes (1972, p. 94) considera o morfema rá um “sufixo verbal que indica dúvida em relação a um fato futuro”, em discordância da asseveração mais temporal atribuída a tal forma por Oliveira (2006). Levantemos uma sutileza descritiva mais que se interpõe entre as formas simples e perifrástica de futuro do presente. Suas representações de Reichenbach podem ser formuladas de maneira distinta. Para a forma perifrástica, já concluímos que teríamos MF=MR<ME; já para a simples, MF<MR=ME mostra-se como possibilidade. Isso equivaleria à ocupação da coetaneidade com a referência futura, se aceitarmos a plausibilidade dessa configuração. Consideremos também que a perífrase em futuro poderia receber a mesma descrição que apontamos como pertinente para a forma desinencial. Neste caso, isso parece ter pouco impacto dada a baixa produtividade dessa segunda perífrase, a nosso ver, muito atrelada a usos estilísticos esporádicos. O dado que impede tal leitura para a perífrase de ir no presente é justamente o verbo de movimento no presente, que sugere um deslocamento espaço-temporal a partir do momento presente até o futuro. Notemos que as formas perifrásticas para representação de futuro, alicerçadas que são em uma locução com base no tempus presente, sempre oferecerão a possibilidade de interpretação/leitura de projeção de fato presente rumo ao futuro, tal qual se deu na passagem do futuro latino da forma desinencial para perífrase em habere. Tal interpretação implica, forçosamente, encarar de modo distinto as perífrases em ir no presente e ir no futuro. Esta última pode até mesmo ser 160 GRYNER, apud OLIVEIRA (2006). 162 consequência de hipercorreção ou de ênfase no grau de certeza e/ou de compromisso pretendido pelo enunciador. Contudo, é preciso perceber que em irei dizer, por exemplo, não se lida com uma projeção de futuro a perfazer o trajeto presente-futuro. Não da mesma forma que vou dizer. E aqui não falamos, necessariamente, de perspectiva de futuro próximo ou distante, mas da formatação mesma do processo de modalização em nível de conceptualização. Além disso, note-se também que, nas perífrases em ir futuro + infinitivo, continua-se a lidar, enfim, com o futuro desinencial, justamente no verbo que carreia o valor de futuridade. Seria assim, uma espécie de forma que reuniria, a um só tempo, o elemento ir com valor de futuridade e a marca desinencial, em conformação mista que pode, muito bem, justificar-se tanto por autocorreção quanto por ênfase. Ainda poderíamos levantar como possibilidades de futuro verbalmente expresso as perífrases com haver: haver (presente) + de + infinitivo e haver (futuro) + de + infinitivo. Porém, suspeitamos fortemente que, no PB, não haveremos de deparar com tais formas, salvo, claro, em contextos de grande rebuscamento/ monitoramento. Já no PE e no PM, aguardaremos nossos corpora para constatar ou não a presença dessa possibilidade de futuro de tom arcaizante. A multiplicidade de formas para a expressão do futuro, correntes em nossa língua, não é mais assunto habitualmente tratado nas descrições gramaticais tradicionais. No entanto, Pereira (1958) já apontava para a noção de futuridade expressa por perífrases com verbos como dever ou poder. Fazia ainda uma distinção entre as formas de futuro com o auxiliar ter (denominadas de futuro obrigatório) e com o auxiliar haver (por ele, categorizadas como futuro promissivo), identificando, assim, distintos valores de futuro e de futuridade correntes na língua. A terminologia futuro do presente só faz sentido em face do termo futuro do pretérito. Os autores que reconhecem este último como condicional, chamam aquele apenas de futuro, tal qual, comumente, procede-se em relação à denominação do futuro no modo subjuntivo. No próximo item, abordaremos a questão nomenclatural mesma em torno do futuro do pretérito, de modo a nos posicionarmos e problematizarmos tal questão. Quanto aos usos do futuro do presente, Vilela (1999) destaca a grande linearidade do tempus. Quanto aos seus valores atenta, sobretudo, aos usos modais, porém identifica-lhe também uso temporal, trazendo-nos, por exemplos: 163 ― futuro do presente: A ponte entrará em funcionamento no dia tal. ― futuro de suposição: Ele estará agora a chegar à Samardã. ― futuro de incerteza: Será que ele terá razão? ― ordem de natureza moral intemporal: Não matarás!161 Ainda acrescenta aos seus usos, o valor de “atenuação ou modalização de uma ordem”, como em: Far-me-á o favor de abandonar imediatamente a sala! Alguns usos apontados pelo autor parecem, a nós, referir-se a dialetação no PE. O uso de suposição, por exemplo, em PB, realizar-se-ia, presumivelmente como o modalizador dever: Ele deve estar chegando agora... Na construção de incerteza, mantendo o formular Será, já em grande parte destituído de seu valor verbal, encontraríamos, após este, pretérito imperfeito de valor modal ou presente ou futuro do pretérito. O uso como “ordem intemporal”, a nós, como já dito, soa mais como de valor imperativo. Porém, aí reconhecemos um legítimo valor do futuro do presente, seja, ao que tudo indica de abrangência transatlântica nos dialetos portugueses. Ademais, o que, tantas vezes, distinguirá o valor de futuridade do de imperatividade será a entonação ou o contexto pragmático, como em Vamos jogar agora, passível de ambas as leituras. Já o valor de “atenuação de ordem”, em PB, corresponderia ao presente, ao imperativo mesmo― com busca de atenuação na entonação ou em algum recurso gestual― ou ao futuro do pretérito, em uso bastante difundido. Azeredo (2008) frisa o valor aspectual imperfectivo do futuro do presente e reconhece-lhe, como valores básicos: a posterioridade ao presente, em modalidade asseverativa ou categórica: Eles saberão que eu estive aqui./ Os trabalhadores não pagarão essa dívida. a simultaneidade ao momento de enunciação, em modalidade hipotética ou dubitativa: Quem estará acordado a esta hora?162 Este autor traz-nos as evidências de que o futuro do presente possa ser destituído de valor temporal, quando em construção francamente modal, como o último exemplo. Notemos que nos dois primeiros exemplos também subsiste valor modal, predominante no segundo e atenuado, frente ao temporal, mas também 161 162 VILELA (1999a, p. 167). AZEREDO (2008, p. 361). 164 presente no primeiro. De modo geral, os futuros, mesmo quando em aparente uso temporal, expressam, necessariamente modo também. Aprofundemos a análise de temporalidade e modalidade no tempus futuro do presente. A partir de Corôa (2005), elaboramos a necessidade de apreender o que seja cada uma dessas esferas, ainda que insistindo que o valor temporal para o futuro, destituído de modalização, é meramente convencional, fazendo sentido tão somente à elaboração teórica pura. O valor temporal dos futuros emerge, justamente, do contexto indicativo, ainda que eles ocupem uma posição de borda em tal contexto. Costa e Sousa (op. cit.) apresenta-nos interessante exemplo a ser considerado, já associado a sua explicitação fundamental. A casa já está em chamas. [valor temporal] O fogo vai destruir a casa. O fogo consome os arredores da casa. [valor modal] É de chamar a atenção que a ambiguidade contida na frase, só detectável discursivamente, reside na interpretação de predominância temporal ou modal a se dar à locução vai destruir, correspondendo cada uma das realizações a tons de voz distintos. É claro que, pragmaticamente, é que o valor temporal do futuro ganha vazão, afinal, no exemplo dado, é só uma questão de tempo, linear, como enfatizou Vilela (op. cit.) do presente ao futuro, para que a casa seja consumida pelas chamas. Ainda que neste contexto, algum acontecimento abrupto, de todo inesperado pudesse mudar o curso da situação, rompendo com a expectativa mais certa e resoluta quanto ao destino da casa. Eis uma situação em que o valor temporal, claramente, predomina, mas o modal não pode ser considerado descartado, ainda que muito tênue. Pensemos numa frase que forneça melhor contexto à exemplificação que pretendemos. O copo já iniciou sua trajetória de queda. Esse copo vai cair no chão. O copo foi deixado displicentemente à beira da mesa. 165 Tal qual no exemplo de Costa e Sousa (op. cit.), teríamos ambiguidade não pragmática, correspondente a diferentes contextos e com diferentes entonações. O primeiro sentido corresponderia à leitura temporal, o segundo, modal. Voltemos ao entendimento temporal, considerando que, mais uma vez, trata-se de mero prosseguimento da linha do tempo, portanto temporalidade inegável. Contudo, por mais assertivo que seja o contexto e por mais que se trate de um futuro a se concluir em instantes, se alguém em ato ágil e heroico intercepta o copo em pleno ar, interrompendo sua então certeira trajetória rumo ao espatifar irreversível, comprovou-se o porquê todo e qualquer futuro, mesmo que iminentíssimo, é sempre modalização também. Descritiva e poeticamente― por que não?― é no futuro que tempus e modo encontram-se. Tendo, então, por premissa que o valor temporal no futuro nunca pode ocorrer de forma rigorosamente absoluta, ratifiquemos que as referências a um futuro temporal devam ser entendidas convencionalmente, para efeitos de simplificação descritiva. Vejamos, agora, em tentativa de representação gráfica, o que seriam esses valores temporal e modal do futuro do presente: Esquema 14: o futuro do presente temporal. Temporal: ● Presente Futuro Ou Presente Futuro Esquema 15: o futuro do presente modal. Modal: Presente (momentâneo ou extenso) ● Futuro(s) modal(is) 166 Notemos que, na temporalidade, temos um prosseguimento, como reivindica Vilela (op. cit.) linear, instado em momento posterior ao presente― seja este instantâneo ou uma duração no tempo, MF, momento da fala, da enunciação mesma, também tomado como MR, sendo o acontecimento, ME, posterior. Já na representação da modalização, temos o mesmo esquema até a entrada em cena do futuro, quando este se torna um feixe de possibilidades e de possíveis acontecimentos, remetendo a valores que são de trânsito pleno do modo subjuntivo. Mateus et al são a única referência que ponderam que o futuro do presente e o do pretérito―em suas palavras, o futuro e o condicional― pudessem ser vistos ambos como modo à parte, o que nos parece profundamente mais coerente do que a proposição de que apenas o segundo destes tempora constituísse um modo à parte. Inclusive, nossa, aqui antecipada, discordância da terminologia condicional passa muito pelo fato de que quase tudo―senão tudo― o que se argumenta para que o futuro do pretérito seja tomado como modo vale também para o futuro do presente, apenas com valor modal tenuemente menos acentuado, o que está de pleno acordo com nossa proposição de uma escala na qual os futuros são menos indicativos e mais eivados de valores modais. Para as autoras, a possibilidade de substituição do futuro do presente, futuro do pretérito e futuro do presente composto, respectivamente, por presente, imperfeito e perfeito seria uma comprovação do esvaziamento temporal aí verificado, a corroborar uso essencialmente modal. Depreendemos daí que o “modo verbal futuro” apresentaria quatro tempora, dentre simples e compostos: o presente, o pretérito, o futuro perfeito e o futuro imperfeito, os dois últimos não exemplificados ou conjecturados pelas autoras, mas inferências nossas. Advertimos, contudo, que as observações, especialmente sobre o futuro do presente foram feitas a partir de sua forma simples. Não nos ficou claro se as autoras manteriam o mesmo ajuizamento em face da versão perifrástica. 167 Quadro 14: o modo temporal futuro. Tempora indicativos Modo verbal Futuro Futuro do presente/ Futuro Presente Futuro do pretérito/ Condicional Pretérito imperfeito Futuro do presente composto Futuro perfeito Futuro do pretérito composto Futuro imperfeito Não sabemos se há vantagens descritivas na sistematização acima, mas a respeitamos por ver nela uma coerência profunda de como lidar com os futuros. Julgamos que nossa proposição de que eles sejam encarados como parte periférica dos valores temporais indicativos, numa perspectiva descritiva por protótipos, já dá conta de resolver o problema, inclusos aí quaisquer incômodos derivados da frequente expressão modal veiculada pelos futuros, o que seria muito esperável, dada sua condição periférica e fronteiriça. Pensamos também, como já esclarecido no capítulo anterior, que tal visão livra-nos de armadilhas da descrição por simplistas e falseadas oposições binárias, como se os objetos de análise do estudo linguístico fossem discretos. Todavia, como dissemos, é uma proposição descritiva respeitabilíssima a supracitada, da qual intuímos o suposto modo verbal e suas terminologias decorrentes. Acrescente-se apenas que conceber o futuro como modo e não como tempus é bastante contraintuitivo e, neste caso, falamos de uma intuição milenaríssima. Observe-se ainda que, pelo próprio estágio de mudança em que se encontra a forma em estudo, com muitos contextos polissêmicos, em muitos casos haverá bastante opacidade ao estabelecimento mesmo de leitura modal ou temporal. A esse respeito, o correlato futuro do pretérito será de modalização mais “palpável”, tanto pela maior carga modal intrínseca quanto pelo fato de, nas formas perifrásticas, apresentar menor gramaticalização. No concernente aos valores modais em si, o futuro do presente pode expressar o conjunto da grade modal: certeza, convicção; prescrição, ordem, proibição, conselho; obrigação; 168 necessidade; volição; intenção; possibilidade, permissão, consentimento; probabilidade. Consideremos que algumas dessas noções modais, afora os desdobramentos que já assinalamos, podem ainda ser submetidas a novas ramificações internas, o que garante ao futuro uma rede modal bastante ampla e diversificada. Há ainda, pelo menos, mais um uso do futuro do presente, de caráter estilístico, não apontado pelos autores que tomamos para consulta. Tal uso é identificável, em princípio, no PB. Casos como Isso eu não vou ter, por exemplo, em uma interlocução em situação de compra, quando o cliente indaga ao vendedor sobre dado produto. Note-se que o valor da forma verbal aí exemplificada é de presente do indicativo. Cuidemos, agora, do assim denominado futuro do presente composto. Sobre tal tempus, único a ocupar plena e indubitavelmente um locus taxativo na referência de futuridade, é preciso começar por questionar a sua própria denominação. Esta não explicita de que se trata de fato sua forma. Em primeiro lugar, assinalemos que o futuro do presente em pleno uso e de aceitação cada vez mais universal na língua, corresponde a uma forma, lato sensu, também composta. Em segundo lugar, o chamado futuro composto tem, como principal marca distintiva, o fato de ser perfectivo, enquanto a sua versão “simples”, é imperfectiva. O dito futuro composto estaria melhor nomeado como pré-futuro, pretérito do futuro, futuro perfeito ou futuro anterior. Dessas, as duas últimas parecem-nos melhores, por serem mais diretas e remeterem a uma importante marca semântica desse tempus. No que se refere ao futuro como referência de tempo, observamos que, na sistematização das fórmulas de Reichenbach, constatamos duas posições vacantes, justamente nas referências de tempo futuro. Além de identificarmos o futuro simples desinencial como possível ocupante da posição de referência simultânea/ coetânea ao futuro, cogitamos tal posição passível também de ser ocupada pelo “gerundismo”. Notemos que tal forma estabelece-se, na língua, justamente, em meio à derrocada do futuro do presente desinencial. De todo modo, trataremos do “gerundismo” ao fim 169 deste capítulo. Interessa-nos, agora, especular sobre como parece ser de difícil preenchimento a posição de posterioridade no tempo futuro, uma espécie de “futuro do futuro”, de difícil alcance conceptual, possivelmente também cognitivo. Isso se dá pela própria natureza do que seja o futuro. Como ponto temporal em aberto que é intrinsecamente, um futuro em relação a outro futuro parece demais longínquo para nossa vã cognição. Atentemos, contudo, que tal referência pode ser construída, a partir das devidas instruções co(n)textuais. Amanhã viajo pra Serra. Chegando lá, me registro na pousada e saio pra passear/vou passear. Na frase acima, notemos que a terceira forma verbal corresponderia, justamente, a um futuro dentro de uma projeção já futura. A segunda, a nosso ver, admite tanto interpretação de presente quanto de futuro, em relação à referência futura. 3.2 Futuro do pretérito do indicativo Neste ponto, no tocante ao ME, faz-se premente retornar à distinção entre as tríades anterioridade-simultaneidade-posterioridade e passado-presente-futuro. Consideremos a sentença Amanhã você me liga pra dizer como passou a noite. Os dois verbos em forma finita, liga e passou, têm, como referência, o futuro. Como já expusemos, tal referência não tem reflexos morfológicos na língua, sendo, neste caso, construída a partir do advérbio Amanhã. O primeiro verbo apresenta valor, na verdade, imperativo− já indicado como denotador de futuridade− aqui concretizado em forma de presente do indicativo163. Poderia ainda assumir a forma ligará/vai ligar, de futuro do presente, mantendo seu valor imperativo. Quanto à forma passou, temos uma concretização em pretérito perfeito do indicativo, equivalendo à realização mais informal― em correlação temporal com a forma liga, morfologicamente, no presente― para expressão tanto da ideia de anterioridade quanto da de perfectividade. Tivéssemos na primeira oração a forma ligará, teríamos 163 Insistimos no fato de que, no PB, o modo imperativo, em termos morfológicos, é de realização exígua, sendo substituído pelo presente do indicativo em valor imperativo. 170 nesta a realização terá passado/vai ter passado, expressão exata, em língua portuguesa de um fato tomado como anterior em relação ao tempo futuro. Em outras palavras, um fato que, no futuro, já se terá tornado passado. Aí, mais uma vez, deparamos com a insuficiência da terminologia oficial de futuro do presente composto― como acabamos de ponderar― pois que não apreende o aspecto perfectivo dessa locução. Eis-nos diante de um futuro anterior. Notemos que tal tempus seria, claramente, situado como pertencente ao paradigma do futuro, ainda mais que o tem como referência clara de tempo, em nível de MR. Adotando raciocínio de mesma monta, podemos, enfim, elucidar a que paradigmas de tempo pertenceriam os tempora futuro do presente e, nosso objeto aqui prioritário, futuro do pretérito. O locus temporal de cada um seria, respectivamente, o presente e o pretérito. Logo, o nosso futuro do pretérito é um tempo do paradigma do passado. O que denominamos nele futuro, nada mais é do que a aplicação da visão imediata e senso comum do que seja futuro. Em verdade, se mantivermos a visão― que tão produtiva parece-nos, em termos da descrição a que aqui nos propomos― teremos que admitir que o que aí está em jogo é a ideia de posterioridade164, que remete ao momento do evento, o ponto de observância do próprio acontecimento, em relação a um referencial absoluto de tempo, o MR. O primeiro é decomponível, em função do segundo, em anterior, simultâneo/coetâneo ou posterior. Já o segundo, em sua condição de tempo pleno, é tomado como passado, presente ou futuro. Do encadeamento de ambos com o ato de enunciação, tomado como ocasião mesma da fala para a composição de cada um dos tempora de dada língua. Como mais um suporte à ideia de um sistema de tempora alicerçados nos tempos presente e passado, citamos contribuição de Camara Jr. (1956, 38), recorrendo à Filosofia da Linguagem para nos expor o que seriam os futuros: Dentro do quadro temporal básico, dicotômico, o sujeito falante focaliza no presente um processo que é atual, e focaliza normalmente no passado aquêle que anteriormente o foi. Há assim, a bem dizer, um presente, que é a atualidade, e um passado, que já o foi. Ora, o futuro, que a ambos se acrescenta, situa-se fora de cada um desses momentos. Fenomenològicamente, há, em verdade, dois futuros possíveis de serem levados em conta na expressão lingüística. Há evidentemente, tudo aquilo que ultrapassa o momento atual e estabelece um além do presente em seu sentido estrito: é como uma linha de que conhecemos o ponto de partida e daí se estende ao infinito. Mas, há concomitantemente, o que ultrapassa o estrito momento passado, focalizado pelo sujeito falante, parando, ou não, onde começa o presente: é como uma linha de que temos 164 Aqui, remetemos à distinção traçada no item 2.1 entre futuridade e posterioridade. 171 o ponto de partida no passado e muitas vêzes no presente o ponto de chegada. Parece-nos, absolutamente prático que continuemos então a encarar a tríade anterioridade-simultaneidade-posterioridade como distinta de passado-presentefuturo, embora saibamos que possam ser tomadas, para efeitos de simplificação, como sinônimas, por vezes. É óbvio que um acontecimento posterior dentro de uma referência de passado é um futuro no/do passado, mas nos parece eficaz denominarmos o ME de maneira distinta daquela adotada para o MR, uma vez que, linguisticamente, tal distinção parece, decididamente, sustentar-se. E, dentro da caracterização mais profunda do que seria o futuro do pretérito, não há como se desviar da premência da questão terminológica que aqui envolve ampla abrangência descritiva agregada. Neste ponto, precisamos ter em mente a grandiosa contribuição aí dada por dois autores de nosso escopo analítico aqui proposto: Said Ali e Mattoso Camara. Destarte, temos por intenção antecipar o conjunto de sua reflexão terminológica, reservando para os itens posteriores a análise descritiva em termos de funcionamento e usos propriamente ditos da forma verbal aqui em jogo. Como muito bem destaca Camara Jr. (1956), em seu primeiro capítulo, a denominação de dada forma linguística arrasta consigo todo um posicionamento implícito acerca de análise gramatical e linguística que não se pode ignorar― não é por outro motivo que temos dado tanto relevo a essa seara de discussão em nossa tese. No que se refere ao tempus em estudo, tanto esse autor na supracitada obra quanto Said Ali (1966c) sustentam a maior compatibilidade da terminologia futuro do pretérito em detrimento de condicional. Percebamos que a adoção da última implica, necessariamente, postular um modo adicional à língua portuguesa. Já estamos sabedores de que a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS), de 2008, em Portugal reafirma o reconhecimento do modo condicional― o que, em face do supracitado, é postura terminológica e também, forçosamente, analítica. Tal decisão tão somente corrobora uma tradição das gramáticas lusitanas. Tradição esta, outrora reputada no nosso país, segundo informações advindas de Said Ali (Op. cit.), muito balizadas, por sua vez, na tradição descritiva francesa que reconhece o modo condicional, com dois tempos, o presente e o perfeito. O primeiro equivaleria ao que, no Brasil, majoritariamente, denominamos futuro do pretérito simples. Já o segundo manifesta-se, nas 172 descrições gramaticais de nosso idioma, pela forma perifrástica, correntemente nomeada futuro do pretérito composto. Não é usual que, em nossas descrições reconheça-se, explicitamente, este como perfectivo e aquele como imperfectivo165. Entendemos que só nos cabe tratar da questão terminológica no que se refere à língua portuguesa. Portanto, o exemplo do francês que aqui, mais uma vez, trouxemos fica resguardado como citação. Acerca da impropriedade do termo condicional, em português, ambos os autores a que nos referimos aqui partem da premissa inicial de que não é só ao tempus em questão que cabe o papel de estabelecimento de relações condicionais na língua. A esse respeito, os autores aludem ao conhecido uso do futuro do presente em construções condicionais, como: Se eu tiver dinheiro, viajarei/vou viajar/ viajo nestas férias. Segundo tal pensamento, não haveria qualquer motivo para considerar as construções correlatas com futuro do pretérito (Se eu tivesse dinheiro, viajaria166 nestas férias) como exemplo de condicionalidade167 e as de futuro do presente não. Esse primeiro argumento é, sem dúvida, carregado de pertinência. A condição também diz respeito ao futuro do presente, por exemplo, o qual não tem seu status temporal, normalmente posto em xeque por isso. No entanto, precisamos esmiuçar a questão que aí está, por ora, apenas implícita. Suponhamos as três sentenças seguintes: I. Se ele está com fome, vai comer logo. II. Se ele estiver com fome, vai comer logo. III. Se ele estivesse com fome, comeria logo. Convencionou-se, a partir de estudos filosóficos lógicos e retóricos, denominar a parte da sentença que expressa a condição em si de prótase e a consequência de tal condição de apódose. Aqui preferimos denominar esta de condicionada e aquela, condicionante, meramente por as julgarmos terminologias 165 Podemos inclusive ir mais longe e afirmar que nas gramáticas das línguas neolatinas, não é habitual o reconhecimento, consagrado na própria terminologia dos tempora, da oposição aspectual perfeito versus imperfeito. O próprio latim a reservava ainda para os tempora de futuro. Com a perda dos futuros verbais latinos na passagem para as línguas românicas e a reconstituição da expressão verbal de futuro por meio de processos históricos ancorados em suporte perifrástico, parece se ter perdido o referencial na própria terminologia latina como válida em tais casos. Tal caso não deixa de ser um lapso histórico curioso, já que o sistema latino era tão ancorado na oposição perfectum-infectum e, descritivamente, esta passou a segundo ou terceiro plano nas gramáticas neolatinas que tanto de suporte descritivo latino trouxeram a suas línguas. 166 Também segundo Camara Jr (2000), verificamos, neste uso, neutralização com a forma de pretérito imperfeito (Se eu tivesse dinheiro, viajava nestas férias). Já tratamos disso no item 2.5.2. 167 Preferimos o termo condicionalidade para designar as relações de condição, construídas entre orações em relação de subordinação. 173 mais diretas. Reportando-nos aos exemplos acima, vemos, em I, a condicionante no presente do indicativo, ao passo que a condicionada se dá no futuro do presente; já em II, temos a condicionante no futuro do subjuntivo e a condicionada mantém-se no futuro do presente do indicativo; por fim, em III, temos, respectivamente, imperfeito do subjuntivo e futuro do pretérito. Ocorre que o nível de condicionalidade varia em cada uma dessas sentenças. Percebemos que a relação mais fortemente condicional, ou seja, a de mais distante concretização do fato e maior valor hipotético é a expressa em III, enquanto, em II, notamos um nível intermediário dessa relação e já, em I, detectamos uma relação que é mais propriamente de causalidade168 do que de condicionalidade. O que vemos aí é uma gradação entre valores de condição e causa que normalmente não é objeto de análise das descrições gramaticais tradicionais. Portanto, a relação mais prototípica de condição, ou seja, aquela que nos remete a um universo hipotético ou potencial, de fato, é a expressa com a oração condicionada no futuro do pretérito. Podemos, daí, concluir que a consideração desse uso como o mais representativo das relações de condição não é então absurdo, do ponto de vista da análise linguística, já que, nesse tipo de análise, muito tem que ser observado, segundo julgamos e temos defendido e implementado, em termos prototípicos. Talvez a objeção a tal solução, com seus óbvios reflexos terminológicos, possa mais claramente ser objetada em função de tal saída, em que pese caracterizar a relação prototípica de condição, encubra usos outros do futuro do pretérito. De todo modo, queremos ainda resgatar a carga muito baixa de factualidade desse tempus― o qual, como já demonstrado, ocuparia a região fronteiriça entre o indicativo e os valores modais subjuntivos― como provável fator motivador a sua categorização fora do modo indicativo e, mais que isso, como modo verbal à parte. Trata-se, portanto, de, reconhecendo a insuficiência analítica contida na terminologia de condicional, destacar, ao menos parcialmente, as razões que demonstram nela alguma pertinência, ainda que não vejamos por que se referiria apenas ao futuro do pretérito, uma vez que este, com seu correlato futuro do presente, formam subsistema dentre os tempora portugueses. Feita essa última ressalva, cabe insistir na ideia de que, com a nomenclatura condicional, aponta-se a construção de condição prototípica da língua, mas não se 168 Lembremo-nos de que Said Ali (1966c, p. 138) alerta-nos para o fato de que as construções com se subordinante adverbial podem ainda se apresentar sob variadas outras roupagens de correlações verbais temporais, como nos exemplifica, por meio de: se a lei se cumpre, as cousas andam bem; se queres paz, prepara-te para a guerra. 174 faz jus a muitos outros usos do futuro do pretérito. Tais usos serão devidamente postos sob discussão quando expusermos adiante a sistematização que cada um dos autores em estudo em nosso trabalho apresenta sobre o tempus em análise. Ainda acerca do debate estritamente terminológico, esses mencionados demais usos do futuro do pretérito corroboram para justificar que este deva receber o nome com que se consagrou na tradição brasileira, ao ponto de hoje não ser sequer mais visível, ao menos não facilmente, a referência a condicional na maior parte das gramáticas pedagógicas de nosso país. Apesar de não pretendermos aqui ainda nos debruçar com vagar nos usos do futuro do pretérito postulados por cada um dos autores que convocamos à confecção de nosso estudo, julgamos proveitosa a contribuição de Said Ali, nos itens iniciais de seu arrazoado acerca do futuro do pretérito quando nos diz: Paradoxal, ou não, futuro do pretérito é denominação que se há de tomar ao pé da letra; nem sei de outra que melhor caracterize o papel do verbo quando se comparam frases como as seguintes: Diz que virá sem falta. Disse que viria sem falta. _________ Juro que cumprirei meu dever. Jurei que cumpriria meu dever.169 Note-se ainda que a conversão de um discurso direto em futuro do presente para discurso indireto também reforça a correlação entre os dois futuros do indicativo, como correlatos, respectivamente, do presente e do pretérito. Apontada a questão de que futuro do pretérito é terminologia mais viável para descrição gramatical do que condicional, precisamos agora lançar ponderações se a nomenclatura vitoriosa na tradição gramatical brasileira é, enfim, a melhor, em termos absolutos. Para tal empreitada, trazemos à baila informação oportuna e reveladora, a nós franqueada, por Camara Jr. (1956, pp. 8-9): [...] no fio das considerações sôbre a denominação das formas em -ria, cabe apenas dizer que resulta da mesma posição teórica, mas fugindo ao percalço de um nome aparentemente paradoxal, o “pospretérito” de ANDRÉS BELLO na sua já clássica reelaboração gramatical do espanhol. [...] 169 SAID ALI (1966c, p. 133). 175 BELLO acentua o caráter de um processo posterior a outro, pretérito, e, pois, futuro a êste em última análise. Ao mesmo tempo, situa a forma francamente no modo indicativo [...]. Vale, entretanto, insistir em que o nome criado por BELLO é apenas o elo de uma cadeia de termos, com que o gramático venezuelano fez a revisão da nomenclatura verbal corrente. O prefixo pos- correlata-se com pre-, co- e ante-, de sorte que pospretérito só ganha toda a sua eficiência denominativa quando associado a prepretérito (o nosso pretérito perfeito), copretérito (o nosso pretérito imperfeito) e antepretérito (o nosso pretérito mais que perfeito). Não é de bom alvitre adotá-la isoladamente, fora da série dos termos em que está colocado, como se tem feito às vezes. Por outro lado, a denominação tem o inconveniente de obumbrar o conceito de futuro, que─ como veremos─ está entranhado nas formas em –ria. Muito instigante é, para nós, essa proposição do gramático hispanófono Andrés Bello. Analisemos a cadeia terminológica por ele criada para descrição dos tempos verbais em seu idioma. As denominações antepretérito, copretérito e pospretérito entram em consonância com nossa análise, apresentada no item 2.5.4, caracterizando o mais-que-perfeito como anterior, o imperfeito como coetâneo e o futuro do pretérito como posterior, em termos de ME, a um MR situado no passado. Encontramos problematizações a serem feitas acerca da denominação prepretérito, uma vez que não supre o caráter do pretérito perfeito português distinto do espanhol, dada sua já mencionada ambiguidade. A rigor, em nossa língua, trata-se de um pré-presente oscilando com um presente perfeito. De todo modo, concordando com o autor de que estamos aí diante de uma rede terminológica que se faz mais coerente e coesa mediante a adoção de cada elo de sua cadeia, reservamo-nos a ponderação acerca do fato de que o conceito de futuro ficaria enturvado por detrás da denominação de pospretérito. Já dissecamos o porquê, embora tal distinção não seja minimamente necessária, em termos intuitivos ou mesmo filosóficos, convém à descrição linguística mais alentada a distinção entre as ideias de futuro como MR e de posterioridade como ME. Portanto, em estrita observância ao que propusemos, consideramos que pospretérito caracterizaria com retidão o que venha a ser nosso tempus sob análise. Ao mesmo tempo, não pretendemos elevar tal posicionamento a um ponto de disputa teórico-terminológica, de forma que, reconhecendo a ampla difusão do nome futuro do pretérito na descrição gramatical e linguística ora em exercício no país, não há por que nos referirmos a tal forma, ao longo de nosso trabalho restante de outro modo. No que tange à denominação referida como propícia, pospretérito, sua adoção coerente 176 implicaria na mencionada rede de elos em que se reveste de sentido mais sólido, levando a estas correspondências: Quadro 15: a terminologia temporal de Bello. PARADIGMA PASSADO PRESENTE FUTURO Denominação corrente atual Denominação potencial Pretérito mais-que-perfeito Pré-pretérito Pretérito imperfeito (Co)pretérito Futuro do pretérito Pós-pretérito Pretérito perfeito Pré-presente Presente (Co)Presente Futuro do Presente Pós-presente Futuro do presente composto Pré-futuro Óbvio está que fizemos adaptações ao esquema inicialmente proposto por Andrés Bello, que, ademais, é correlato à descrição da língua espanhola. Buscamos denominações que se fizessem coerentes à sistematização que expusemos no capítulo anterior, acerca da descrição formular dos tempora portugueses do modo indicativo. Os tempos compostos que mantivemos à parte o foram em função ou da não distinção semântica que observamos no português atual entre forma simples e composta― caso do pretérito mais-que-perfeito― ou à necessidade de adoção complementar dos nomes perfeito e imperfeito para adequada caracterização da distinção das formas verbais― caso do futuro tanto do presente quanto do pretérito compostos― ou ainda à divergência acerca da denominação ora adotada para caracterização do tempus em questão― o que já explicitamos no que se refere à distinção do pretérito perfeito em suas formas simples e composta. Retornando à proposição inicial de Bello, uma vez que excluímos o pretérito perfeito da formalização referenciada no MR passado, não havia por que manter, para o português, o prefixo ante-. De forma correlata, trabalhamos então apenas com os prefixos pré-, co- e pós para estabelecer eventuais equivalências. Também é importante deixar claro que a oposição aspectual, que poderia, pacificamente, valerse dos adjetivos perfeito e imperfeito não foram aí consideradas como possibilidades, o que seria, em tal sistematização, produtivo para opor especialmente um possível presente perfeito (pré-presente) à sua versão imperfeita. Insistimos que qualquer maior conveniência dessa rede nomenclatural, por nós apontada, mais se 177 faz pertinente à descrição do que a objetivos pedagógicos, dada a profunda propagação das denominações hoje amplamente utilizadas com mesma finalidade expositiva no processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa no país. Essa última observação nos coloca diante da necessidade de refletir sobre as implicações da adoção do nome futuro do pretérito para uma perspectiva pedagógica da língua portuguesa. Tal denominação não é de fácil assimilação, do ponto de vista de seus efeitos e potencialidades práticas para os aprendizes de língua portuguesa. Como muito bem frisaram Said Ali e Camara Jr., e por nós foram citados neste ponto, tal terminologia soa, em princípio, paradoxal, o que é absolutamente coerente com o senso comum da apreensão de tempo que, como já constatamos pormenorizadamente, não mantém relação com a apreensão linguística do que seja o tempo expresso verbalmente. Pensamos que, a partir da correlação direta com o futuro do presente e da referência no tempo passado, mantendo-se, portanto, enfaticamente, a ideia de posterioridade, seja possível melhor caracterização do futuro do pretérito. Além disso, é importante acrescentar, sistematicamente, à sua descrição, o caráter potencial, hipotético que possui, sem descaracterizá-lo como pertencente ao modo indicativo. Em linhas bastantes gerais, tais cuidados poderiam trazer benesses à descrição com fins pedagógicos acerca do futuro do pretérito. Pretendemos, agora, passarmos a enveredar pelas questões analíticas e descritivas propugnadas por cada um dos autores que escolhemos para compor nosso painel sobre a descrição do futuro do pretérito em nossa língua. Iniciemos pelo mestre Said Ali, em sua obra Dificuldades da Língua Portuguesa. No capítulo intitulado O futuro (Op. cit., pp. 133- 139), o autor inicia sua caracterização acerca dos dois tempora futuros do indicativo pela sua caracterização como derivados do infinitivo português. Em seguida, dedica-se à caracterização terminológica do futuro do pretérito, em contraposição à nomenclatura condicional. Como já apontamos, o primeiro uso aí aludido do referido tempus o é, em sua correlação contrastiva com construções em períodos compostos com o futuro do presente, conforme exemplificado no item anterior, em que se associa a principal com verbo no presente à subordinada com futuro do presente e principal com verbo no pretérito (nos exemplos dados, apenas o perfeito) com oração subordinada com futuro do pretérito. 178 Na sequência, frisa o caráter [- factual] dos tempora futuros do modo indicativo por estas observações: O porvir não se regula pelos cálculos e previsões humanas. As combinações mais subtis podem falhar ante a incerteza do dia d’amanhã ou do que possa advir ainda hoje. Uma cousa é referir o que tem acontecido, ou o que acontece agora, e outra é anunciar cousas vindouras. Se o presente e o pretérito dão idéia de fatos reais, o futuro por sua vez desperta a noção de fatos duvidosos, problemáticos. [grifo nosso]170 171 À frente, somos apresentados a usos estilísticos do futuro do pretérito (e também do correlato futuro do presente): indicação de incerteza ou desconfiança, atribuição de maior polidez a construções que se poderiam dar simplesmente no presente. Dedica-se, enfaticamente, na sequência, às relações frasais condicionais, em que destaca o papel igualmente de condicional nas sentenças compostas possuidoras da cláusula condicionante, em geral se, e oração principal no futuro do presente. Já ponderamos que há aí um gradiente de condicionalidade que vai da relação de condição meramente hipotética e potencial, prototipicamente expressa pela oração principal no futuro do pretérito e subordinada no imperfeito do subjuntivo à relação claramente causal, em que detectamos a subordinada no presente do indicativo e a subordinante no futuro do presente do mesmo modo. Contudo, tal gradiente não é considerado pelo autor, uma vez que seu foco de interesse repousa em desarvorar a pertinência do nome condicional como privativo à denominação alternativa do futuro do pretérito em nosso idioma. Apartando-se essa nossa ressalva, tal exposição do uso condicional, em diferentes possibilidades na língua, ocupa apreciável extensão na exposição do autor, incluindo cotejamento com as construções condicionais latinas. A esse propósito, informa-nos que, no referido idioma, tanto a oração condicional quanto a condicionante eram expressas pelos tempora imperfeito ou mais-que-perfeito, ambos do subjuntivo, mostrando-nos, dentre outros exemplos: si scirem, dicerem172, donde podemos intuir si scissem, dicessem. Tais exemplos são postulados com a finalidade de se concluir que tais construções jamais foram supostas em um modo condicional em latim, o qual sequer era previsto para tal língua. 170 Cf. CASTILHO (2010, 405). SAID ALI (op. cit., p. 134). 172 SAID ALI (op. cit., p. 137). 171 179 Após ainda se estender mais nas relações condicionais portuguesas, apresenta-nos, por fim, o que alcunha de futuro compulsivo e que categoriza como “o que deve ser em virtude de acôrdo, mandamento, ordem ou lei”173. Tal uso, privativo do futuro do presente português, já foi por nós indicado como próximo do que seria o imperativo futuro das línguas que o possuem. Em linhas bastante gerais, elencamos aqui os principais fatos levantados por Said Ali no concernente ao futuro verbal em sua referida obra. Destacamos seu demarcado interesse por dirimir a então polêmica terminológica a respeito do futuro do pretérito, polêmica cuja resolução passou, decisivamente, pela contribuição do autor em questão. Agora, restringindo sua exposição apenas ao futuro do pretérito, destaquemos: a correlação direta com fatos que indicam posterioridade no passado; sinalização de dúvida, hesitação, hipótese acerca de fato que se pospõe a um verbo referenciado no passado; demonstração de cortesia, gentileza, polidez por parte do enunciador; do mesmo modo e igualmente estilístico, a manifestação de desconfiança, vacilação; o uso condicional enfim. Agora, tornemos ao professor Mattoso Camara, em sua obra Uma forma verbal portuguêsa: estudo estilístico-gramatical Eis-nos diante de uma obra inteiramente dedicada à discussão analítica, de base linguística e terminológica sobre o futuro do pretérito português. Ao longo de uma centena de páginas, o autor nos expõe consubstanciadas exemplificações, argumentações e análises que advogam a favor do nome futuro do pretérito, como pertencente ao modo indicativo. Precisaremos aqui efetuar profunda edição de modo a conseguirmos dar conta de, em pouco espaço, apresentar as principais conclusões de tal obra. Contextualizemos ainda que, anterior à Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB, de 1959) que viria a consagrar o termo futuro do pretérito, essa obra ainda se debate com a superação do nome condicional, tomando como referencial, explicitamente assumido, os escritos de Said Ali sobre o tema. 173 SAID ALI (op. cit., p. 139). 180 Primeiramente, deparamos com uma ponderação acerca dos reflexos analíticos contidos na adoção desta ou daquela terminologia. Menciona que, no que tange ao tempus em discussão, tal problemática nomenclatural erige-se a partir da não referência aproveitável na tradição gramatical latina, uma vez que os futuros latinos não passaram às línguas daí oriundas. Para apreciação de tal questão, convoca várias referências, como Andrés Bello― já enfaticamente por nós citado, Epiphanio Dias, Georges Gougenheim, dentre outros. Todos propõem a necessidade do reconhecimento sincrônico, não necessariamente pela mesma terminologia, de uma futuridade referenciada a partir do pretérito e, gramaticalmente, expressa por forma verbal corrente na língua. Ainda na exposição inicial, levanta de forma tênue a consideração acerca do potencial modal do tempus em análise. Em seguida, passamos a uma exposição historicizada sobre as categorias de tempo e modo verbais, em que somos apresentados à ideia, hoje não intuitiva, de que os verbos não necessariamente sempre foram uma classe de corte temporal tão distinto quanto hoje os percebermos. Demonstra-se, então, que no passado a categoria de aspecto desempenhava papel hierarquicamente mais predominante do que a de tempo. E sobre o modo, a obra diz-nos que houve grande obliteração do modo optativo que, já em grego, era, não poucas vezes, suprimido em favor do subjuntivo (cf. Horta, 1983). Mesmo o subjuntivo174, reduziu-se a meio de explicitação da subordinação sintática nas línguas românicas. No mais, só se demonstra, semanticamente pleno, em oposição ao modo indicativo175. O texto passa, então, a caracterizar mais alentadamente os valores modais das formas verbais futuras, levantando muitos dos motivos que já expusemos direta ou indiretamente para que o futuro apareça, invariavelmente, matizado em modalidade. Sobre isso, dá-nos a valiosa constatação, de clara feição estilística de que “sem subintenções subjuntivas, potenciais, optativas, imperativas, o tempo futuro, para asserção franca, se realiza essencialmente pela forma do presente.”176. Ainda nos comunica, categoricamente, a justificativa de tal uso recorrente que também é verificável em outros idiomas: “Em têrmos diacrônicos, isso se torna evidente pela circunstância de serem universalmente as formas do futuro criações 174 Lembremo-nos de que Jespersen (1956) aponta-nos o desaparecimento mórfico do modo subjuntivo também em língua inglesa, subsistindo apenas, residualmente, na conjugação de be. 175 Insistamos que, em linguagem espontânea, ainda sob considerável marginalização frente à norma linguística, é visível no PB a generalização do modo indicativo em detrimento do subjuntivo. Sobre o mesmo temário, recordemos, em tempo, que o modo imperativo não mais apresenta realização morfológica expressa correntemente no PB, sendo, de todo, substituído pelo presente do indicativo de valor imperativo. 176 Camara Jr. (1956, p. 21). 181 secundárias, resultantes de formas, de início, modais.”177, o que se coaduna com o conjunto de análises que temos exposto sobre a própria constituição morfológica e cognitiva dos tempora de futuro. Também indo ao encontro do que temos afirmado, estabelece que, linguisticamente, o que se dá, primordialmente, não é a tripartição intuitiva passado-presente e futuro, mas sim a oposição passado versus presente. Chegando à expressão do tempo futuro propriamente dito, expõe-nos vastamente os verbos auxiliares que contribuíram para o estabelecimento de um futuro gramaticalmente pleno em variadas línguas, como o gótico, o inglês, o grego bizantino, o grego moderno, o romeno, alemão antigo, o sânscrito178. Ainda nos dá a evolução diacrônica de algumas dessas formas. No mesmo capítulo, mais à frente, caracteriza-se o futuro verbal como portador de três recortes semânticos distintos: 1) um futuro puramente temporal na informação objetiva; 2) um futuro com gradações modais, aflorando cada uma delas, com nitidez, na base da situação, ou do contexto; 3) um futuro intemporal, ou “metafórico”, francamente transposto para modo. [...] o segundo tipo é que reflete a motivação inicial para a criação das formas futuras e mais exatamente consubstancia a sua essência como categoria nocional. O primeiro tipo resulta da intelectualização, ou gramaticalização intelectualizada, da língua, e concretiza uma função linguística muito menos espontânea e ampla. No terceiro tipo, o futuro resolve-se na significação imperativa ou numa aplicação subjuntiva latosensu, em virtude da hipertrofia, por assim dizer, respectivamente da coloração volitiva ou dos matizes não-assertivos que o futuro naturalmente comporta.179 [grifos nossos] Por fim, ainda no mesmo capítulo, oferta-nos a cara e, a nosso ver, decisiva reflexão que situa o futuro como uma sobreposição à divisão linguística fundamental de presente e passado e não um acréscimo a esses dois recortes temporais, o que implicaria desfazer-se tal dicotomia, em favor de uma percepção temporal tripartite. Enfim, alcançamos o capítulo IV, em que deparamos com o futuro do pretérito em si. Inicia-se a elucidação do que seria tal tempus por esclarecimentos circunscritos à filosofia da linguagem. Traz-nos, na sequência, ao conhecimento, a não generalização da expressão de posterioridade em relação a um referencial passado na família indo-europeia, especialmente, nas línguas antigas, frisando a exceção aí para o sânscrito. Mesmo assim, situa tal uso na língua dos vedas como muito restrito, a partir do dado de que, em todo o Mahabhárata, tal tempus só surge 177 Ibidem. Cf. capítulo 1. 179 Camara Jr. (1956, p. 33). 178 182 vinte e cinco vezes, o que é ínfimo, considerando o seu esplendoroso conjunto de noventa mil versos, sendo destes mais de setenta e quatro mil em sânscrito. Em abordagem diacrônica, reconta-nos a fixação do auxiliar haver para a formação de perífrases modalizadas para a expressão de futuridade tanto em relação ao presente quanto ao pretérito, em nossa língua. Recorrendo a vários autores e, por meio de cotejamentos com outros idiomas, em especial o latim, mostra-nos à exaustão, o que é esse futuro que se pospõe a um referencial passado, dissecando de forma profundíssima tal uso, em que é possível estabelecer paralelo com a exposição de Said Ali (1966c) que nos apresenta em períodos compostos a correlação oração principal no pretérito, subordinada, no futuro do pretérito. Também Camara Jr. (op. cit.), nesse ponto, volta-se à expressão dos discursos indireto e indireto livre como pontos de apreensão da correlação pretérito-futuro do pretérito. São também apontados vários usos estilísticos com exemplificação que, em muito amplia, o que já fora ofertado por Said Ali (Op. cit.). No capítulo subsequente, lidamos com as inter-relações entre condição e irrealidade. A primeira constatação que nos é apresentada dá conta de afirmar que “... é uma contingência de qualquer evento futuro depender, implicitamente que seja, de uma condição para poder realizar-se.”180.na evolução de tal pensamento, o futuro do pretérito é caracterizado como expressão possível tanto da realidade quanto da irrealidade. No desenrolar do capítulo, deparamos com esta observação que trazemos à baila: O futuro do pretérito opõe-se ao futuro do presente pela sua capacidade para designar o fato irreal. Estabelece-se, até, uma distinção semântica, de caráter modal, entre o presente, o futuro do presente e o futuro do pretérito, conforme a intenção é respectivamente adiantar uma informação─ a) segura, b) possìvelmente real, c) imaginária.181 [grifo nosso] Flagramos, em seu uso dito “imaginário”, a reiteração do traço [- factual] atribuído ao futuro do pretérito, o que o fará o tempus indicativo, por excelência da expressão da irrealidade, da potencialidade, às vezes aproximando-se do uso do modo potencial grego, como bem também nos assinala a obra que ora analisamos. No prosseguimento desse capítulo, vemos a oscilação entre o uso do pretérito imperfeito e futuro do pretérito, ambos do indicativo, em que, considerando a 180 181 CAMARA JR. (Op. cit., p. 56). CAMARA JR. (Op. cit., p. 64). 183 neutralização correntemente verificada na informalidade da língua corrente, some-se ainda, na possibilidade de tal variação, “a falta de uma franca projeção de fato no tempo futuro.”182. Pululam no capítulo citações literárias várias em que são exemplificados os muitos usos aludidos pelo autor. Advertidos somos também de que, em face do emprego do pretérito imperfeito do indicativo, o mais-que-perfeito assume o papel de demonstração da irrealidade, padrão esse verificado em outras línguas latinas. Como já vimos e já nos foi informado por Azeredo (1995), tal uso em português esvaiu-se. No seguimento da obra, chegamos também ao capítulo relativo ao futuro do pretérito composto. Após distinguir semiótica e morfologicamente o paradigma de formas verbais simples e compostas, enfatiza que, em especial nas línguas românicas e, em geral nas ocidentais, o impulso à formação das formas compostas foi a necessidade de mais eficaz explicitação de matizes aspectuais, muitas vezes, enturvados nas formas simples. No concernente ao tempus perifrástico em análise, a caracterização aí apresentada vai ao encontro de nossas observações de que tal forma visa à expressão da perfectividade para o tempus futuro do pretérito. Também aqui somos brindados com farta exemplificação literária, inclusive no tocante à oposição de aspectos perfectivo e imperfectivo183. O futuro do pretérito composto é considerado, na obra, uma forma perifrástica peculiarmente complexa, já que “já é necessáriamente um tempus relativo, pois é futuro em relação a um momento (pretérito) distinto do atual em que se fala. Dá-se então o acréscimo da anterioridade, em relação a outro momento pretérito...”184. A mesma complexidade de articulação de referência temporal é apontada para o pretérito mais-que-perfeito composto. Um uso apontado como fecundo para a forma composta do futuro do pretérito é em meio ao discurso indireto. E também visto como equivalente à posterioridade de um pretérito anterior, qual seja, o mais-que-perfeito composto, em que se acentua o corte aspectual de fato concluso, consumado em relação à referência temporal. Também somos informados da correspondência entre as duas formas compostas 182 CAMARA JR. (Op. cit, p. 74). Chamamos a atenção para o fato de que, em Camara Jr. (Op. cit., pp. 85- 89), confirma-se nossa análise a respeito da distinção entre o pretérito perfeito simples e sua suposta versão composta, como se consagrou denominar nas gramáticas de língua portuguesa. 184 CAMARA JR. (Op. cit, p. 89). 183 184 quando se objetiva a expressão da dúvida por meio de futuro modal, como em: teria amado/ talvez tenha amado. Adverte-se ainda a possibilidade de alternância entre as formas compostas de futuro do presente e do pretérito, com óbvia preservação da perfectividade, em caso de proveito da situação de alternância entre, respectivamente, realidade e irrealidade. Por fim, o futuro do pretérito composto é apontado, em síntese, como possibilidade “para assinalar a permansividade, ou a consumação, ou apenas temporalmente a anterioridade...”185 com fins de “enriquecer os meios de expressão da irrealidade, em português.”186. Em termos bastante resumidos, eis a exposição de Mattoso Camara, acerca da análise linguística, tanto gramatical quanto estilística, em parâmetros sincrônicos e diacrônicos do tempus futuro do pretérito, com ressalva à defesa da própria terminologia em questão. Seguindo a proposta e entendimento de ambos os autores, estendendo os valores aí para também abarcar o plano estilístico da língua, propomos esta sistematização aos usos do futuro do pretérito: Quadro 16: valores do futuro do pretérito. Futuro do pretérito Temporal Modal Fatos que denotam Expressão posterioridade dúvida, no Hipotético de Uso Estilístico condicional de cortesia, hesitação, prototípico, hipótese, em relação associação à referência temporal modo subjuntivo, em situados passada. referencial passado. presente. em Uso próximo ao valor Expressão efetiva do Manifestação discurso indireto, do do modo optativo, tal irreal e/ou imaginário. desconfiança, futuro do presente qual se verifica em hesitação, do discurso direto. grego clássico. enunciador, em relação a fato passado. Correlato, em Demonstração com o gentileza, polidez, por parte do enunciador, para fatos temporalmente de no forte dúvida, por parte do referenciado no presente. Expressão de surpresa ou indignação, também em referência ao tempo presente. 185 186 CAMARA JR. (1956, p. 96). Ibidem. 185 Eis os principais empregos que observamos, por meio dos autores aqui analisados. Trata-se de usos bastante diversificados, o que, pensamos, coaduna-se claramente com a natureza de um tempus tão fortemente modalizado, dada sua própria natureza fronteiriça entre os modos indicativo e subjuntivo, atestada pela sua baixa carga factual. Sobre os usos estilísticos que arrolamos, todos eles em substituição ao tempus presente do indicativo, cabe notar que, como o futuro do pretérito recobre-se também, de forma categórica, de valor hipotético, aí repousaria a noção de não obrigatoriedade de dada ação, sugerindo, por extensão, o tom de gentileza que caracterizaria um desses empregos estilísticos. Quanto aos outros dois, advogamos que, também nesses, está em jogo o substrato hipotético do futuro do pretérito, oferecendo, assim, recurso expressivo à manifestação da dúvida, da surpresa e de valores similares. Especificamente sobre o uso de polidez, enxergamos aí outras explicações ao uso, além das já arroladas: a estilística ou a transposição a um mundo imaginário, nesse caso com papel atenuador, que justifique cabalmente tal ocorrência, uma vez que, por nossa proposição da equivalência parcial das fórmulas de Reichenbach, perfazendo metonímia temporal, não se sustenta tal utilização. Também não podemos deixar de mencionar um traço sintático prototípico do futuro do pretérito que é seu emprego em períodos compostos, o que se explica facilmente pela necessidade de expressão complexa que tal tempus exige, trazendo como marcas muito pronunciadas a explicitação de seus MR e ME. Por fim, todos os empregos supracitados dizem respeito tão somente ao futuro do pretérito simples. De sua versão composta, cujos usos só foram apontados por Camara Jr. (1956) e Cunha & Cintra (1985), trazemos os seguintes empregos depreendidos desses autores: em discurso indireto como correlato do futuro do presente composto; como posterior ao pretérito mais-que-perfeito composto; expressão de dúvida em expressão de futuro, explicitamente modal; indicação de possibilidade, especulação, incerteza em relação a fato passado. Por todas as ponderações aqui apresentadas e, sobretudo, pelo fato de que os futuros indicativos funcionam, pareadamente, como subsistema que se acopla à 186 oposição presente-passado, concordamos com a análise majoritária vigente que deles se faz. Assim, mantemos nossa defesa de um futuro do pretérito, sem qualquer prejuízo de seus amplos e variados usos modais, consequência mesma de sua conceptualização e situação de borda, em meio aos tempora indicativos. Destaquemos ainda como papel não levantado pelos autores em que nos baseamos o fato de o futuro do pretérito poder desempenhar a função de sequenciador textual, muito afeito ao discurso relatado, indicando, tantas vezes, descomprometimento de outrem com o próprio relato. Aparece com alta frequência em descrições, dissertações, injunções e narrações e menos em diálogos. Nesse sentido, seu valor de posterioridade ganha ares polifônicos. Também assinalemos que a posterioridade estabelecida em relação aos referenciais de tempo presente e passado por cada um dos tempora futuros apresenta uma distinção importante: é dêitica para o futuro do presente e anafórica para o futuro do pretérito. Isso é decorrência do próprio fato de o primeiro ser tempus absoluto e o segundo, relativo. Ainda resta falar neste item, referente ao futuro do pretérito― por razões compreensíveis muito mais dedicado à discussão terminológica e analítica― dos formatos que tal tempus assume na língua, tal o fizemos em boa parte da exposição relativa ao correlato futuro do presente. Diga-se, de antemão, que não empreenderemos levantamentos de dados ao futuro do pretérito. Nosso ponto de interesse fulcral em tal questão é mesmo o futuro do presente, tempo verbal protótipo das relações de futuridade e no qual se assenta todo o assomo de mudança linguística. Pensamos que isso se dê de tal maneira que as mudanças ocorridas na representação de formato do futuro do pretérito sejam devidas, em parte, por analogia com o futuro do presente. Assim, detectamos no futuro do pretérito, as seguintes possibilidades de realização: em forma desinencial, com morfemas ria ou rie; em forma de pretérito imperfeito com significação de futuro do pretérito; em forma perifrástica, com o verbo ir no pretérito imperfeito, acompanhado por infinitivo; em forma perifrástica com o verbo ir no futuro do pretérito, acompanhado por infinitivo. 187 É impossível não notar o formidável paralelo com o que se dá na representação do futuro do presente. Identificamos, em grande parte intuitivamente, já que há muito menos estudos sobre isso, que o imperfeito semantizado como futuro do pretérito seja uso de muito amplo espectro. Já a última forma parece-nos de rara utilização efetiva. É bastante plausível pensar que o ritmo de mudança no futuro do pretérito seja diverso do observado em seu tempus correlato futuro, já que este é o epicentro da variação e da mudança em curso. Talvez àquele caiba, em grande parte, o processo de analogia como forma impulsionadora de mudança. 3.4 Futuros do subjuntivo Agora, tratemos com inevitável brevidade, dos futuros do modo conjuntivo: o simples e o composto, ambos perfectivos. Já identificamos, no item 2.6, uma relação de distribuição complementar entre o futuro do subjuntivo e o presente, possivelmente, extensiva aos cortes aspectuais, respectivamente, perfectivo e imperfectivo. Como já vimos, a noção de futuridade no modo subjuntivo é ainda mais esparsa do que no indicativo, não se distinguindo, por vezes, da noção de simultaneidade, o que justifica a oscilação entre futuro e presente no conjuntivo. Os tempora futuros subjuntivos não correspondem a formas que indiquem, necessariamente, futuridade/ posterioridade, sendo assim formas de futuro bastante periféricas. Na verdade, como já vimos no item 2.6, não há formas específicas, no subjuntivo para a expressão da futuridade, embora o conjunto de seus tempora o possa fazer. Em nossas descrições, comumente, quando tomado à parte o subjuntivo é mais tratado como um bloco. Seu único tempus que não vem sendo tomado de assalto pelo indicativo parece ser o imperfeito. Assim, desconsideramos, claro, que ao tratarmos de futuridade verbal os futuros conjuntivos ocupem lugar prototípico dentro dessa noção. O imperativo, por exemplo, é muito mais próximo ao protótipo de futuridade do que os tempora futuros subjuntivos. Tanto é assim que já caracterizamos todos os tempora aí presentes como potencialmente matizadores de futuridade. 188 Ainda assim, um uso bastante básico do futuro conjuntivo é aquele que projeta a possibilidade do evento em momento posterior ao de fala como em Quando puder, me ligue. Também é bastante produtivo, como já o sabemos, o uso nas condicionais em correlação com o futuro do presente. Ressalvados estes contextos, o uso do tempus futuro subjuntivo seja, talvez, o mais restrito dentre os do modo conjuntivo. Contudo, sublinhamos que não dispomos de maiores dados sobre isso, uma vez que não entramos em contato com estudos específicos do conjuntivo que levem em conta os tempora aí presentes, nem mesmo em obra densa totalmente voltada a esse modo, como encontramos em Santos (2003). De toda forma, com certeza, os futuros subjuntivos não compõem nossos objetos de análise e muito menos de investigação nesta tese. 3.5 “Gerundismo” Por fim, após todas as caracterizações e problematizações que envolvem os tempora futuros, chegamos ao mais novo integrante da família. Afinal, uma anomalia ou uma inovação? Infração e abuso ou mudança? Por todo o percurso descritivo, expositivo e teórico supracitado, enquadramos a construção aqui em estudo dentre as possibilidades de expressão gramaticalizada ou em gramaticalização de futuridade na língua. Temos claro que há nessa asserção pontos que precisam ser devidamente destrinchados. A isso procederemos em todo este item. Iniciamos nossa dissecação do tema em estudo de dois exemplos que apresentam muito bem a tônica em que se dá o entendimento amplamente difundido do que seja o, assim chamado, gerundismo. 189 Ilustração 1: Miguel Paiva. A tira acima é do personagem Gatão de meia idade, de Miguel Paiva. A ela, encontra-se adendado o título Gerúndio: o tempo que não acaba nunca. Não sabemos se esse título corresponde à confecção original da tira ou se foi acrescentado a ela. De todo modo, isso não modifica a análise que faremos em rigorosamente nada. Há mais exemplos de tiras do mesmo autor com a temática do gerundismo e o mesmo título espalhados pela internet187. Antes de comentarmos essa tira, vejamos o outro exemplo: Decreto nº 28.314, de 28 de setembro de 2007. Demite o gerúndio do Distrito Federal, e dá outras providências. O governador do Distrito Federal, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 100, incisos VII e XXVI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, DECRETA: Art. 1° - Fica demitido o Gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal. Art. 2° - Fica proibido a partir desta data o uso do gerúndio para desculpa de INEFICIÊNCIA. Art. 3° - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário. Brasília, 28 de setembro de 2007. 119º da República e 48º de Brasília 187 Dentre outros endereços virtuais, é possível encontrar mais tiras de Miguel Paiva sobre a mesma referida temática em www.nogargalo.blogspot.com, além, claro, da própria página de referência creditada abaixo da ilustração. 190 JOSÉ ROBERTO ARRUDA188 Comentemos agora os dois exemplos. A tira de Miguel Paiva, considerando o título a ela integrado, reflete uma visão muito difundida, infelizmente, e corroborada no inusitado decreto do então governador José Roberto Arruda, o qual, decerto, exemplifica uma duvidosa escolha de prioridades. A visão mencionada é de que há algum problema no uso do gerúndio. A própria denominação gerundismo reforça colateralmente tal ideia. Além disso, há, em termos linguísticos estritos, no título da tira uma impropriedade que não pode nos passar despercebida. Gerúndio não é tempo verbal, como sabemos. Em português, as formas nominais seriam mais apropriadamente caracterizadas como aspectos do que como tempora― isso, claro, além das considerações sobre elas já exaradas no capítulo 2. A menção a não acabar nunca parece se remeter justamente ao aspecto progressivo do gerúndio, mas também ao todo da construção identificada como gerundismo que indicaria uma espécie de progressão indefinida no futuro. Ao menos é essa a crítica que consideramos estar na base da rejeição à referida construção. Notemos que, ao mesmo tempo, tal traço nos remete ao locus temporal de coetaneidade e, sobretudo, de posterioridade no futuro. Sobre quaisquer críticas ao uso de gerúndio de forma genérica, não há, obviamente, procedência de nenhuma espécie. O gerúndio é forma nominal do verbo sobrevivente do latim ao português e hoje caracterizadora do dialeto brasileiro em comparação ao europeu e mesmo aos falares portugueses africanos. Assim, só resta lamentar o “decreto” do então governador José Roberto Arruda. De todo modo, os dois exemplos aqui apresentados são emblemáticos da percepção difundida sobre o tal gerundismo. Convencionou-se considerá-lo anômalo, esdrúxulo, mau uso da língua, errado. Há aí viés conservador e normativo, mas também há uma apreciação linguística de que tal construção seria uma interferência na forma como nosso sistema linguístico equaliza relações de tempo e de aspecto. Seria, dentro de tal visão, um “ruído”, o que se compatibiliza com a propalada origem de tal uso atribuída, vastamente, a más traduções de manuais de teleatendimento do inglês para o português. Como a expansão de tais serviços deuse nos últimos quinze ou vinte anos, com ela, teria vindo, “de arrastão”, a disseminação da construção ora em estudo. Nas palavras de Pasquale Cipro Neto, 188 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u333074.shtml. 191 em artigo no portal Exame, “muita gente traduz ao pé da letra frases como “I will be sending” ou “We will be booking” (por “Vou estar enviando” e “Vamos estar reservando”, respectivamente)189. Problematizando as críticas ao gerundismo, Sírio Possenti, também em artigo virtualmente disponível, apresenta-nos dois surpreendentes e insuspeitos exemplos que precisariam, por questão de coerência, ser entendidos como gerundismo. Do texto da Nomenclatura Gramatical Brasileira, documento de 1959, muito antes do teleatendimento, cita “Podem alguns verbos estar modificando toda a oração”. Já o segundo exemplo vem, de nada mais nada menos, que a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra e diz “O complemento nominal pode estar integrando o sujeito, o predicativo, o objeto direto...”. O que dizer desses dois casos? Ainda que reconheçamos, um alargamento de uso da referida construção, nos últimos anos, os casos citados mostram que a hipótese que atribui todo o mal aos serviços de teleatendimento não se sustenta. Pensamos que a disseminação de uso está muito mais vinculada à fantástica expansão e multifacetamento da comunicação nos últimos quinze, vinte anos: sites, blogues, “torpedos”, etc. Em face desses dois últimos exemplos, é fundamental avançarmos na problematização do chamado gerundismo. Uma construção exemplar do que seria o gerundismo é Vou estar verificando. Devido à presença do gerúndio, acrescido do sufixo –ismo, em acepção pejorativa, criou-se a denominação em questão. Gerundismo então seria o mau uso do gerúndio. Isso se verificaria nas formas de futuro do presente, quando a elas se anexa o gerúndio, sugerindo uma continuidade indefinida do fato verbal no futuro, de carga modal acentuadíssima. Podemos então pensar em um futuro inalcançável. Mas, afinal de contas, não é isso mesmo que é o futuro? Em termos filosóficos, o futuro não é alcançável. Mas, deixemos a digressão filosófica à parte e enveredemos por nossa análise. Não cabem críticas a construções como Não me ligue a essa hora porque vou estar dormindo. Mesmo em uma visão mais tradicional e purista, o exemplo dado procede totalmente. A questão aí é de ordem aspectual. Dormir pressupõe uma extensão de tempo, não pode ser concebida como atividade pontual de forma alguma. Vemos então que a própria semântica do verbo delimitaria essa aceitabilidade. Com verbos de aspecto durativo, circunscrito em sua significação, não haveria, em princípio, irregularidade e/ou 189 http://www.sinprorp.org.br/clipping/2005/067.htm 192 anomalia de uso. Tomemos, em contrapartida, o verbo quebrar, exemplo de ação bastante pontual. Construções com quebrar em estrutura de gerundismo soam bem menos factíveis. Isso, claro, desde que tomemos quebrar em seu sentido referencial. Afinal, em termos de uso linguístico, é bastante plausível algo como Vou tá quebrando seu galho, em que o verbo estar assume sua roupagem informal. Aparentemente, a irregularidade de constituição do gerundismo pairaria sobre essa questão aspectual, entretanto precisamos aqui desmistificar essa ideia. O aspecto pode surgir na semântica verbal, mas não só nela. Os tempora, como bem já elucidamos, também circunscrevem aspectualmente. Formas como caía, surgia descrevem fatos que se estendem no tempo, dada a intervenção aspectual do pretérito imperfeito ou antes da própria aspectualização imperfectiva. As formas nominais, da mesma forma, realizam tal processo, em termos de perfectividade ou imperfectividade. O aspecto durativo não pode, então, ser tomado, no abstrato, como algo definível conceptualmente e sem interação com toda a potencial malha flexional e seus consequentes desdobramentos semânticos. O verbo que trouxemos à baila para exemplificar uma construção arquetípica de gerundismo, verificar (mas poderia ser enviar, resolver, providenciar, etc) não tem de per si qualquer impeditivo a uma interpretação durativa. A rigor, isso mais depende de seu complemento, ou seja, se aquilo que se vai verificar demanda tempo, não nos parecendo absurdo, pelo contrário, o entendimento de uma verificação que estenda processualmente. Esse mesmo argumento cabe a vários outros casos. Precisaríamos então reconhecer que o gerúndio aí, em Vou estar verificando, funciona como um modificador morfemático de aspecto verbal. Premissa aceita, não haveria, para além do normativismo gramatical, claro, qualquer exotismo nas construções de gerundismo. É claro que em termos estritos discursivos e pragmáticos tal fórmula “gerundista” pode ser marca, por sua carga modal, de descomprometimento. Desse traço específico, cuidaremos um pouco adiante. Ainda no que concerne ao debate aspectual envolvido nas construções estudadas, é necessário tecer considerações mais amplas. O aspecto durativo que é aí característico emana de todo o conjunto perifrástico, não cabendo ao gerúndio exclusividade quanto a esse efeito. O verbo ir, de que já esboçamos leitura cognitiva, insere-se em perspectiva durativa. E o que não dizer a esse respeito do verbo estar? Durativo em essência. Mais um motivo para objetarmos a denominação gerundismo. Julgamos que mais lúcido seria encarar essa perífrase como o que realmente é: um 193 futuro do presente progressivo ou, resumidamente, futuro progressivo (nome por que passaremos a nos referir para tal forma), que estaria circunscrito na coetaneidade e/ou posterioridade, a partir de uma referência de tempo (MR) futura. Talvez nesse ponto repouse um motivo para a rejeição ou estranhamento inicial dessa forma. Ocorre que, como vimos, o futuro não é, habitual e prontamente tomado como tempo de referência em português. No entanto, não vemos nada que impeça isso de ocorrer. Se estivermos corretos em nossa análise, esse futuro progressivo não seria tão somente uma forma variante, mas inovadora, uma vez que apresentaria novas possibilidades de interpretação semântica para o verbo. Sobre a constituição perifrástica em si, a composição de auxiliares e forma nominal é rigorosamente canônica na língua. Rocha (online) demonstra em dados coletados junto a falantes de nível superior concluso ou em curso que a forma, por exemplo, estarei comprando apresenta o dobro de aceitabilidade em comparação com vou estar comprando. O desdobramento do futuro do presente em locução com ir é forma não só produtiva, mas, hoje, claramente predominante para a expressão desse tempus. Interpretarão os falantes o futuro do presente sintético como mais taxativo? É possível que isso proceda se considerarmos que seu uso está se restringindo cada vez mais a contextos formais, portanto isso poderia revesti-lo de tom mais enfático quando sacado para uso. O incômodo, do ponto de vista da interlocução, parece se assentar na intepretação que é feita da opção pelo futuro progressivo, tipicamente desdobrado em uma perífrase de três elementos, verbo ir, seguido pelo verbo estar e, por fim, o verbo principal no gerúndio. Tal interpretação, comumente, em nível discursivo e pragmático, seria de um descompromisso/ redução de engajamento do enunciador com aquilo que diz. Dessa forma, poderíamos conceber uma escala de comprometimento discursivo que, partindo do enunciador mais engajado, seria: Esquema 16: locuções de futuro e nível de comprometimento do enunciador. [+ Compromisso] VERIFICAREI IREI VERIFICAR VOU VERIFICAR ESTAREI VERIFICANDO VOU ESTAR VERIFICANDO [- Compromisso] 194 Não incluímos na supracitada escala a forma irei estar verificando. Tendemos a interpretá-la como variante livre daquela com o verbo ir no presente e de muito baixa produtividade potencial. Se tomarmos a questão dessa indicação de descompromisso que, insistimos, dá-se no plano discursivo, é compreensível a resistência ao uso do futuro progressivo, ainda mais em função de seu contexto marcado de serviço de teleatendimento. Também ganha sentido o artigo 2º do esdrúxulo decreto do Sr. José Roberto Arruda, se considerarmos o texto referente a gerundismo e não a gerúndio, no que diz respeito ao uso dessa forma para encobrir ineficiências. Aliás, ainda a esse respeito, há outro ponto de vista há ser considerado discursivamente aí. A interpretação de pouco engajamento quanto à realização do fato em questão é feito pelo ouvinte, mas, do ponto de vista do enunciador pode haver uma intenção de exprimir gentileza por meio desse uso. Rocha (online), também por meio de dados, mostra-nos que a forma de futuro progressivo tende a ser entendida como mais cordial, gentil, polida e, inclusive, atenuadora de más notícias. O exemplo, retirado diretamente da pesquisa da autora é este: A nossa empresa precisa cortar gastos para não falir, por isso vamos estar demitindo você. Nesse exemplo, a atenuação chega às raias do eufemismo, possivelmente, em tom tomado por dissimulado. O fato de o futuro progressivo ser, então, tão marcado por efeitos de modalização não contém quaisquer surpresas, já que parte da base morfossintática da formação dos futuros verbais portugueses, tempora perifrásticos. Abordemos agora a natureza da modalidade aí envolvida. Como já tratamos, nesta tese, as modalidades epistêmica e deôntica distinguem-se por esta estar associada a enunciados vinculados à obrigação/ permissão, enquanto aquela, à necessidade/ possibilidade. Mas, como dissemos e vimos alhures, isso é grosso modo. Nem sempre tal distinção é tão facilmente patente. Ainda assim, podemos identificar a modalidade deôntica como pertencente ao plano da interação social, ao passo que a epistêmica diria respeito ao primado da razão. A partir daí, precisamos, então, encarar a modalidade como dependente da própria expressão do enunciador, revelando seu envolvimento com o que diz, dentro de um contexto interacional. É factível, portanto, ainda mais se levamos em conta que a distinção entre as modalidades tem gradações de distanciamento entre uma e outra, pensar que a intenção comunicativa enunciada não corresponda à 195 interpretação dela feita. No que se refere ao uso do futuro progressivo, isso evidentemente poderia se aplicar. Reforçamos que tal desencontro pode ainda se ancorar nas consequências da tomada do futuro como referência (MR). Assim, teríamos aí concorrentes tanto acepções epistêmicas quanto deônticas para a interpretação dessa construção. Há ainda um ponto incômodo a ser tratado. Se, de fato, o futuro progressivo ocupa lacunas no sistema de tempora português, a partir de lacunas no MR futuro, por que, neste caso, o gerúndio imprimiria recorte temporal e não apenas aspectual, como se dá com perífrases de pretérito e de presente, como em X esteve resolvendo e X está resolvendo, em que X é qualquer SN com os traços [+ agente] e [+ humano?. Em verdade, não temos uma explicação completa para isso. Intuímos que há um processo de gramaticalização de tal forma no futuro ainda não operada nos demais tempora. Chamamos a atenção para o fato de que o mesmo se verifica com o futuro do presente composto. Eis aí um tempus que também tendo o futuro por MR, possui uma forma nominal que recebe interpretação temporal. X terá resolvido traz claro sentido de anterioridade para além da perfectividade do particípio. Talvez no MR futuro a perfectividade ganhe realces de anterioridade, ao passo que a imperfectividade, marca do gerúndio, evoque presente e/ou futuro mais demarcadamente. Cabe a reflexão se tal comportamento não está associado à natureza híbrida do futuro verbal português, segundo nossa teorização, com traços modais e temporais. Dessa forma, imaginamos ter levantado pontos a que se deva atentar para uma caracterização rigorosamente linguística e de teor descritivo. Não se trata de desconsiderar a língua padrão, mas aos estudos linguísticos importa, sobremaneira a língua real e viva; mesmo as mortas, desde que tenham sido línguas efetivas em seu uso. Compomos uma exposição teórica sobre a construção por que optamos, em face das razões aludidas, denominar futuro progressivo. Situamos as distinções entre valor de futuridade e gramaticalização de tempora futuros, descrevemos especialmente o futuro do presente português e passamos à nossa estrutura de interesse neste trabalho. Na caracterização do futuro progressivo, buscamos analisar morfossintaticamente a perífrase em que está assentado, bem como lidar com a extensão semântica e de interpretação discursiva da mesma, em meio a interações sociais. Abordamos essa construção ainda em termos temporais, aspectuais e de modalidade. Levantamos uma série de impropriedades na forma 196 com que vulgarmente se enxerga tal perífrase. Tentamos desmistificar suas origens, a partir de dados insuspeitos, a nosso ver. Eis uma faceta bastante produtiva no uso de nosso objeto de estudo primordial: a expressão verbal da futuridade em língua portuguesa. Como observamos quando da caracterização do futuro do presente, o futuro progressivo pode fazer parte de um rearranjo maior do sistema temporal português, disparado por uma nova forma de futuro aí presente. Temos certeza de que ainda há muitas questões em aberto quanto à caracterização dos futuros verbais portugueses, desdobrados em sete distintos tempora, com usos igualmente distintos: futuro do presente; futuro do pretérito; futuro anterior; futuro do pretérito composto; futuro progressivo; futuro do subjuntivo; futuro composto do subjuntivo. Julgamos, porém, que conseguimos levantar questões e problematizações, em diálogo com vários autores, pertinentes ao prosseguimento do debate teórico aqui proposto em seu porvir. 197 4 CONCEPTUALIZAÇÕES DE FUTURIDADE EM PERSPECTIVA LINGUÍSTICOCOMPARADA As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo. Ludwig Wittgeinstein Neste capítulo, pretendemos oferecer breves ilustrações de processos, em outras línguas, que têm atuado gramaticalmente em sentido bastante similar a tudo o que temos visto para a língua portuguesa nesta tese. Trata-se de “notícias” sobre gramaticalizações pelas línguas do globo que confirmam o funcionamento cognitivo que tem sido aqui apontado. Vemos cristalinamente a singularidade cognitiva do futuro, decodificado em termos linguísticos como tempo verbal, ao depararmos com sua frequente caracterização morfológica num amplo conjunto de línguas, por meio de verbos auxiliares: inglês (will), alemão (werden), holandês (zal), a título de ilustração. Sobre o grego antigo, por exemplo, Horta (1983) informa-nos que a língua grega incorporou o tempo verbal futuro, em termos morfológicos, tardiamente. O mesmo é proveniente de uma construção perifrástica com verbo no presente desiderativo nesse grego, anterior ao clássico. Tudo isso corresponde a processo, rigorosamente, similar ao com que aqui deparamos. Já sabemos do item 1.1 que o tempus futuro é tardio em protoindo-europeu e também já versamos, no capítulo anterior, sobre como tal tempus é distinto de presente e pretéritos, em termos mesmo cognitivos, com as consequentes implicações morfológicas disso. Uma delas seria o constante processo de auxiliarização que, pretendemos abordar como extravasante às línguas indo-europeias. Jespersen (Op. cit.) afirma que os verbos que, tendencialmente, mais se prestam a ocupar o papel de auxiliaridade à expressão da futuridade verbal são de: a) volição (como no inglês, no romeno, no italiano e no grego moderno); b) movimento (também atestado no inglês, além de no sueco, no francês, no dinamarquês); c) obrigação (como no inglês arcaico e no holandês contemporâneo) e d) possibilidade (sem que aqui o autor cite exemplificação específica de línguas, mas podemos retomar o exemplo do logudorês, já citado). 198 Bybbe, Pagliuca & Perkins (1999) não só concordam com tal sistematização como a ampliam. Por meio do banco de dados do projeto GRAMCATS190, composto por 75 línguas com distribuição geográfica bastante diversificada, abrangendo todo o globo, das mais variadas tipologias, os autores constataram, a partir dos dados descritivos dessas línguas, constantes no referido banco de dados, que a formação do tempus futuro enquadra-se em uma das soluções abaixo: uso de formas verbais aspectuais, em geral, do plano imperfectivo e, mais raramente, do perfectivo; construções verbais com significação voltada a modalidades orientadas para o agente191, como desejo, obrigação e, menos comumente, capacidade; construções com verbos que denotem movimento rumo a uma meta; uso de advérbios temporais; construções que expressam modalidades orientadas ao falante, como imperatividade, optatividade, hortatividade e pela expressão da modalidade epistêmica (possibilidade e probabilidade, grosso modo). Cabe registrar que, em BYBBE, PAGLIUCA & PERKINS (1994), os autores contabilizam 156 diferentes expressões para futuro, nos mais distintos níveis de gramaticalização, dentro dos parâmetros e agrupamentos supracitados nessas 75 línguas. Do total de línguas em análise no GRAMCATS, foram encontradas 38 ocorrências para a expressão do futuro por algum lexema verbal aspectual, com a seguinte distribuição: presente: 9 ocorrências; contínuo/progressivo: 9 ocorrências; habitual/frequente: 9 ocorrências; 190 Adiante, apresentaremos a relação de línguas do referido projeto. Gram é um termo que pretende se referir ao conjunto dos possíveis elementos de gramaticalização: afixos, verbos auxiliares, advérbios, etc. 191 No capítulo 2, já tratamos do reordenamento da modalidade deôntica apresentada por Santos (2003), em diálogo com BYBEE & FLEISCHMANN, no item 2.2. 199 imperfectivo propriamente dito: 7 ocorrências; perfectivo: 3 ocorrências e pretérito: 3 ocorrências. É em tal rol de ocorrências que se enquadraria, por exemplo, o valor de futuridade do presente do indicativo português. Também se enquadraria aí um uso como do alemão corrente, dispensando o auxiliar de futuridade werden: Ich gehe morgen ins Kino (Vou ao cinema amanhã), em lugar de Ich werde morgen ins Kino gehen (Irei ao cinema amanhã). No caso da primeira frase, a presença do advérbio de tempo morgen (amanhã) é fundamental a sua viabilização com interpretação de futuro. Nada diferente do que se vê também em língua inglesa: I go to LA tomorrow. Em Taitiano, um dos exemplos de expressão de futuro por lexema perfectivo, a interpretação de futuro anterior construída nessa língua só é possível mediante a presença de uma oração subordinada temporal. Uma interessante conclusão dos autores, ainda sobre os futuros aspectuais― como os denominam― é o da sua prevalência em lexemas monossilábicos, perfazendo 73% de ocorrências dessa expressão. Tal impacto não foi verificado em outras construções possíveis de futuro. Sobre os futuros formados a partir de modalidades tanto orientadas para o falante quanto para o agente, tendencialmente, nas línguas, as últimas tendem a ser menos gramaticalizadas do que as primeiras, o que se atesta pelo menor volume de expressão flexiva daquelas nas mais variadas línguas. Os mesmos autores também cunham a expressão futage192 para análise do processo de gramaticalização do futuro nas línguas. Tal expressão corresponderia à “era semântica” do processo de gramaticalização, formado, neologisticamente, a partir de future e age. Assim, vaticinam: futage 1: todos os futuros expressos por uso orientado para o agente, como se verificou, com valor de desejo em dinamarquês, nimborano, bongu, tok pisin, etc; com valor de obrigatoriedade como encontrado em basco, também em dinamarquês, eslávio, bari, haka e buriat e outros; 192 Preferiremos a manutenção do vocábulo original em inglês, sem tradução própria ao português. 200 com valor de capacidade em cantonês. Essa era de gramaticalização corresponderia a um processo mais recente, em geral. Futage 2: correspondendo a um desenvolvimento do estágio anterior, reportar-se-ia ainda às modalidades orientadas para o agente, mas com a inclusão explícita de intenção. Tal caraterização constatou-se nas línguas tanga e chuquesa. O percurso aí previsto, pelos autores, em termos de estágio de gramaticalização tem a seguinte orientação193: Desejo > Vontade > Intenção > Predição Futage 3: equivale ao estágio de desenvolvimento semântico em que o próprio futuro seja o único valor reportado. Aí, estaria assentado um processo de gramaticalização já mais antigo, com alto nível de apagamento semântico, inclusive da camada de retenção. Nosso futuro desinencial em –ra/-re já se enquadrou em tal estágio, pensamos. Hoje, pelas razões argumentadas no capítulo anterior, pensamos que ele torna à expressão de um sentido de comprometimento, em seu uso, que o desloca, de certo modo, do escopo de “futuro puro”. Das línguas constantes no GRAMCATS, nenhuma apresentou representação para tal estágio. Futage 4: incorporaria tanto formas advindas do valor epistêmico quanto aquelas derivadas das modalidades orientadas para o falante. Os autores apontam a própria construção de prótases em construções condicionais no inglês contemporâneo, como exemplo desse estágio, como em If you help me, we can finish faster194. Encontraram-se, em GRAMCATS, exemplificações desses valores de futuro em inuit, agau, tucano, krongo, dentre outras línguas. Ainda resta o maior grupo de ocorrências: as verificadas com verbos de movimento que suplantariam os demais casos no número de línguas abrangidas. 193 194 Explicitado em BYBBE, PAGLIUCA & PERKINS (1994, p. 256). BYBEE, PAGLIUCA & PERKINS (1999, p. 28). 201 Desses verbos, os dois grandes representantes são os que representam o semantema de ir e o de vir, o primeiro sendo mais atestado do que o segundo. Lembremos que aí cabem também, apesar de menos comuns, outros verbos de movimento, como vemos, hoje, a se dar em italiano, por meio do verbo andare, em processo, aparentemente ainda inicial195. Em Vado a dormire (Vou dormir) coexistem, como em tantos exemplos do português atual, leitura de movimento e de futuridade, contudo, ao contrário de nossa língua, só há a possibilidade Pioverá (Choverá) para um verbo construído sem qualquer instrução de agente. Já em tojolabal, da família maia, a expressão de futuro advém de um verbo cujo semantema corresponde a entrar. O auxílio de preposições junto aos verbos de movimento, dada a própria semântica de deslocamento, também é bastante comum. O próprio italiano, o espanhol, o dinamarquês, o inglês são línguas que se valem de tal recurso na construção de seus futuros com verbos de movimento. Embora bastante difundidos, tais futuros apresentariam um escopo de nuances semânticas mais restrito do que aquele advindos de valores estritamente modais. Além disso, teriam uma formação relativamente tardia nas línguas, remontando ao séc. XVII, segundo nos informa Dahl (2000, p. 319), nas línguas europeias como inglês e sueco. Os futuros advindos de verbos de movimento com o traço [+ intenção], na classificação postulada como futage, corresponderiam ao estágio 2. Já todos os demais, ao 4. Os chamados futuros aspectuais comporiam um grupo, segundo os autores, de padrão semântico absolutamente distinto de todos os demais, em padrão de gramaticalização bastante distinto, sem o efetivo desenvolvimento de tempora futuros nas línguas. Por isso, enquadrar-se-iam em segmento à parte, classificado como futage A, em correlação bastante autônoma e distinta dos demais. No conjunto das possibilidades de concretizações dos futuros, podemos encontrar, nas diversas línguas, a depender do próprio nível de gramaticalização, diferentes graus de coesão entre a forma auxiliar e o verbo por ela acompanhado, manifestando-se em relações de fusão de formas, dependência morfossintática ou relativo grau de autonomia, em que pese o vínculo estabelecido entre os lexemas 195 Tine Van Hecke, em Le futur périphrastique roman. Le cas de l’italien andare a + infinitif, afirma que a expressão que começa a se gramaticalizar para a expressão da futuridade verbal em italiano é a formada por andare seguido pela preposição a e pelo infinitivo, enquadrado, nesse caso, em uma perífrase a partir de verbo de movimento (VAN HECKE, apud OLIVEIRA: 2006). 202 para a expressão do futuro. Em nossa língua, podemos exemplificar os três tipos. Os morfemas –re/-ra do futuro do presente, amalgamados à base verbal exemplificariam o nível da fusão. Já a atual perífrase portuguesa oscilaria, hoje, entre os dois níveis, tendendo ao segundo nas leituras de futuridade plena e à terceira quando da interpretação de movimento. É importante notar que o possível nível de coesão a se estabelecer também há de variar segundo a tipologia morfossintática da língua em questão. Uma língua fortemente aglutinante, como o basco, há, a esse respeito, de apresentar comportamento muito diverso daquele manifestado em línguas muito analíticas, como o mandarim. Não nos esqueçamos de que, em meio a todas as análises sobre estágios, coesão das gramaticalizações e afins, é frequente o convívio de formas verbais de sentido pleno e gramaticalizado. Assim como o próprio caso de ir no português ou de go no inglês, bastante produtivos em ambas as acepções, por outro lado deparamos com willen do holandês, cognato do inglês will, a funcionar amplamente, como nos atestam Bybee, Pagliuca & Perkins (1994, p. 257) ora como auxiliar de expressão futura, ora como pleno com valor desiderativo. Também vê-se isso em alemão com relação a werden: Ich bin älter geworden (Eu sou mais velho) ou Ich werde morgen nach Brasilien fliegen (Vou voar para o Brasil amanhã). No primeiro caso, werden é verbo pleno de valor existencial, inclusive flexionado no pretérito, já no segundo, é o auxiliar de tempus futuro. Para além das classificações de estágio de gramaticalização e outros mais, o que estamos a observar é de uma amplitude bastante esclarecedora. Os macroprocessos de, primeiro, expressão de futuridade, seguidos por gramaticalização de futuro verbal em línguas muito distantes e pertencentes a tipologias, famílias e grupos muito distintos podem ser agrupáveis, indicando universais linguísticos em potencial. Isso, a nosso ver, dar-se-ia pelo fato de que o futuro, tardio morfologicamente, não é tempus “natural”. Em outras palavras, em perspectiva pancrônica, ele parece não existir com autonomia e forma própria nas línguas. Adicionalmente, apresentamos alguns breves exemplos, no bojo das considerações de Jespersen (op. cit.), bem como de Bybee, Pagliuca & Perkins (op. cit.). 203 Quadro 17 - formas de futuro em algumas línguas europeias. LÍNGUA FORMA VALOR Latim vulgar venio + infinitivo de movimento Romeno voi (oriundo do latino volo) + infinitivo desiderativo Espanhol loar-é (haver), proveniente do latino habeo promissivo-desiderativo Espanhol ir + a + infinitivo movimento Francês louer- ai (haver), proveniente do latino habeo promissivo-desiderativo Francês aller + infinitivo movimento Italiano loder-ò (haver), proveniente do latino habeo idem Italiano andare + a + infinitivo movimento Provençal lauzar- ai (haver), proveniente do latino habeo promissivo-desiderativo Sardo depo + infinitivo promissivo Romanche veñ ou viñst 196+ infinitivo de movimento Inglês will + infinitivo desiderativo Inglês be going to + infinitivo de movimento Inglês shall + infinitivo obrigação Alemão werden + infinitivo existencial Holandês zall + infinitivo obrigação Holandês willen + infinitivo desiderativo Sueco kommer + infinitivo desiderativo Russo Быть (bit) + infinitivo existencial Ucraniano infinitivo + imati (ter) obrigação Grego θα [tha] + infinitivo desiderativo mun + infinitivo desiderativo moderno Islandês 196 Finlandês aikoa + infinitivo de possibilidade Finlandês tulla + caso ilativo197 do 3º infinitivo de movimento A oscilação de formas, segundo DAHL (2000), é devida ao dialeto em questão; no engadino, utiliza-se a primeira forma, já no sobremirano, a segunda, 197 Caso afeito a poucas línguas, como, por exemplo, finlandês e estoniano, exprimindo aproximadamente a noção de “para dentro de”. 204 Os exemplos acima são todos indo-europeus, à exceção do finlandês, língua até hoje de estatuto isolado. Nelas, os valores apresentados para a expressão formadora dos futuros verbais coadunam-se com o que temos aqui trazido à baila. Chama a atenção a reiterada combinação com infinitivo. Talvez isso se dê, primeiro, pelo universalismo dessa forma nominal e também por ser uma forma que tende a apresentar baixa marcação temporal e aspectual, habilitando-se, assim ao encontro com o auxiliar que, destacadamente, cumprirá tais papéis. Temos que considerar ainda, quanto ao predomínio de infinitivo, na supracitada sistematização, o predomínio massivo de línguas indo-europeias aí. Por fim, apresentamos a relação de línguas do projeto GRAMCATS, a título de dimensionar sua abrangência, de acordo com a numeração198 do próprio banco de dados desse projeto, obtidas a partir de DE HAAN (2013) e BYBEE, PAGLIUCA & PERKINS (1994). Quadro 18: a expressão do futuro verbal nas línguas do projeto GRAMCATS. Nº Língua Origem/ Grupo genético Valor do “gram” de 199 futuro Formato morfológico atual200 1 Inuit Esquimó-aleuta201 desiderativo- desejar sufixo202 possibilidade-tentar sufixo finalidade/intenção ssa- status não informado 2 Basco Isolada existencial- sufixo + auxiliar ter/haver/existir necessidade-precisar possibilidade 198 (para sufixo + auxiliar o ko da- futuro “do presente” e o “presente”, “do passado”) zen- ko “passado”, Algumas numerações, correspondentes às posições 7, 21, 29, 31, 36, 41, 44, 45, 53, 54, 55, 57, 61, 62, 64, 65, 66, e 70, por motivos que nos são desconhecidos, não se encontram explicitadas, no inventário do projeto GRAMCATS. 199 Os sentidos informados na forma de verbos devem ser entendidos como uma tentativa aproximativa de exprimir seus significados “à indo-europeia”. Em alguns casos, não constará forma verbal, pela ausência de tal informação nas fontes consultadas, especialmente BYBEE, PAGLIUCA & PERKINS (1994). 200 Quando houver na coluna indicação de número, entre parênteses, isso será referência à quantidade de diferentes “grams” que desempenham esse mesmo papel na língua. 201 A filiação do inuit não é questão pacífica. Enquanto há quem a considere esquimó-aleuta, como De Haan (2013), outros a tomam por isolada, como o basco, o finlandês, o húngaro. Neste ponto de vista, incluem-se Bybbe, Pagliuca & Perkins (1994). 202 Alguns formatos exigirão especificações ainda maiores, como dupla sufixação, presença de advérbios, distintos níveis de complexos de auxiliaridade. Não entraremos aqui em tal ordem de detalhamento. Para Tais informações, ver BYBEE, PAGLIUCA & PERKINS (1994). 205 status não informados 3 Chádica (família afro-asiática) Margi movimento- aproximar- auxiliar se; movimento-ir 4 Chádica Kanakuru sem dados auxiliar para 203 futuro 5 Khoisan (coisã), a menor das Agau uso de presente famílias africanas, marcadas pelo clique. 6 Berbere (família afro-asiática) Tuaregue Finalidade/intenção ed- status não informado 8 Tigré ou Semítica Xasa existencial- existir sufixo + auxiliar capacidade- estar em particípio condições de auxiliar 9 Cheyenne Algonquina (América do Norte) sem dados para futuro 10 Caribe Arawakana (América Central) uso de imperfectivo possibilidade Insular + me- status não informado 11 Cocama Tupi movimento-ir 12 Chacobo Pano (América do Sul) sem dados para futuro 13 Jivaro Jivaroana (pequena família auxiliar sem dados para futuro entre o norte do Peru e Leste do Equador) 14 Tucano Tucana (norte da América do movimento-vir Sul) sufixo + auxiliar (2) 15 Gugada Pama-Nyungan (Austrália) uso de presente 16 Gugu- Pama-Maric (Austrália) sem dados para futuro uso de presente Yalanji 17 Alyawarra Pama-Nyungan (Austrália) 18 Maung Iwadiana (línguas fora do movimento-ir prefixo grande grupo Pama, Austrália) 19 Worora Wororana (família em sem dados para futuro extinção, Austrália) 20 Alawa Marrana (família em extinção, Austrália) 203 possibilidade wǔi- status não informado Essa ausência de informação significa que não apuramos nas fontes consultadas informações descritivas sobre o futuro dessas línguas e não necessariamente que no GRAMCATS não haja tal informação, embora o possa ser. 206 possibilidade 22 Koho Banárica (Vietnã e regiões yar- idem sem dados para futuro próximas) 23 Palaung Mon-khmer (Birmânia) sem dados para futuro 24 Car Nicobaresa (Índia) sem dados para futuro 25 Taitiano Polinésia uso de imperfectivo uso de perfectivo 26 Motu Austronésia (Papua-Nova sem dados para futuro Guiné) 27 Atchin Malaio-Polinésia (Vanuatu, movimento-ir auxiliar Oceania) 28 Halia Buka (Oceania) sem dados para futuro 30 Tanga Malaio-Polinésia (Oceania) sem dados para futuro 32 Nakanai Malaio-Polinésia (Papua-Nova sem dados para futuro Guiné) 33 Chuquês Micronésia (Oceania) advérbio de tempo particípio possibilidade particípio 34 Pangasinês Filipina possível antigo presente 35 Rukai Formoso-Austronésia uso de imperfectivo 37 Buli Gur (centro-africana) existencial-existir/estar prefixo situado 38 Papago Uto-asteca 39 Abkhaz Caucasiana (noroeste do obrigação auxiliar advérbio de tempo sufixo uso de perfectivo Cáucaso) 40 Guaymí Chibchana (América Central) movimento-vir 42 Kui Dravidiana (Índia) possível antigo presente 43 Abipón Guaicuru-charruana (sul da auxiliar movimento-ir sufixo América do Sul) 46 Karok Hokana (noroeste dos EUA) sem dados para futuro 47 Latim Românica existencial- existir204 sufixo uso de presente 48 Maithili Indo-ariana uso de presente 49 Baluchi Indo-ariana uso de presente/progressivo 204 A referência aqui é, claramente, ao futuro do latim clássico, já analisado por nós no capítulo 1. 207 50 Grego Grega Dinamarquê auxiliar uso de presente moderno205 51 desiderativo Germânica s movimento-vir auxiliar desiderativo-querer auxiliar obrigatoriedade-dever auxiliar promissivoconseguir/ter de auxiliar uso de presente 52 Yagaria Trans-guineense (Papua-Nova existencial- existir206 sufixo Guiné) 56 Ono Trans-guineense (Papua-Nova sem dados para futuro Guiné) 58 Nimborano Nimborana desiderativo- sufixo desejar/querer 59 Bongu Nilo-saariana desiderativo- sufixo (2) desejar/querer 60 Yessan- Sépica (Papua-Nova Guiné) Mayo existencial-existir sufixo volitivo-fazer auxiliar existencial-existir sufixo finalidade/intenção iti- status não informado 63 Baining Baining (Papua-Nova Guiné) uso de perfectivo 67 !Kung Kx’a (Namíbia, Botswana e sem dados para futuro Angola) 68 Eslávio Atapascana (Canadá) existencial/locativo- auxiliar situar-se 69 Krongo Kadu (Sudão) obrigação não informado movimento-vir; auxiliar movimento- ir auxiliar 71 Temne Niger-Congolesa uso de presente 72 Mwera Bantu movimento-vir prefixo 73 Tem Gur (centro-africana) auxiliar 74 Engenni Niger-Congolesa movimento-vir uso de presente sem dados para futuro 75 Mano Niger-Congolesa movimento-vir; auxiliar 205 O grego moderno é a única língua coincidente entre os dados do GRAMCATS e a sistematização anterior que oferecemos. 206 É importante enfatizar que as menções às significações verbais que aqui são feitas são aproximativas e de modo a serem claras às referências a que estamos mais habituados. Na língua yagaria, por exemplo, o significado de existir encontra-se consolidado em uma mesma forma verbal que inclui os sentidos, para nós, de dizer e de fazer. 208 76 Bari Nilo-saariana movimento- ir auxiliar movimento- ir particípio possibilidade-procurar particípio advérbio de tempo particípio 77 Ngambay Centro-sudanesa sem dados para futuro 78 Kanuri Saariana uso de imperfectivo 79 Chinanteco Oto-manguiana (México) sem dados para futuro de Palantla 80 Tojolabal Maia movimento-retornar auxiliar 81 Zuñi Isolada (EUA) movimento- ir sufixo 82 Maidu Costa Oeste (EUA) existencial-existir sufixo 83 Shuswap Salishana (Canadá) sem dados para futuro 84 Lao Tibetano-birmanesa sem dados para futuro 85 Chepang Tibetano-birmanesa existencial- sufixo ter/haver/existir possibilidade ca- status não informado 86 Haka Tibetano-birmanesa obrigação-ter de particípio possibilidade lai- status não informado 87 Lahu Tibetano-birmanesa sem dados para futuro 88 Nùng Tai-kadai (Vietnã) movimento- ir auxiliar 89 Cantonês Chinesa movimento-alcançar; particípio capacidade- poder (ser particípio (2) capaz de) 90 Dakota Sioux desiderativo-querer particípio finalidade/intenção kte- status não informado 91 Udmurt Urálica 92 Uigur Túrquica uso de presente (China e sem dados para futuro Casaquistão) 93 Buriat Mongol obrigação sufixo 94 Tok Pisin Criolla (Papua-Nova Guiné) desiderativo-gostar auxiliar advérbio de tempo particípio 209 Cabe frisar que a presente relação de línguas, formada por aleatorialidade, a partir de uma base descritiva morfossintática que minimamente satisfizesse as necessidades de pesquisa do projeto, contém apenas cinco exemplos de idiomas indo-europeus: dinamarquês, latim, maithili, balúchi e grego, compondo, portanto, um conjunto de base, de fato, universal para asseveração da caraterização da expressão do futuro verbal nas línguas. Em todas com dados sobre futuro disponível é possível constatar a construção do futuro proveniente de uma anterior demanda de base modal, consolidando uma trajetória cognitiva de formação do tempus em estudo. 210 5 O FUTURO DO PB, PE E PM Minha pátria é minha língua. Bernardo Soares/Fernando Pessoa. Em nossa tese, temos nos embrenhado, até aqui, por um caminho descritivo pelo futuro e conceitos que lhe são correlatos. Eis que este capítulo segue por rumo diferente. Aqui, pretendemos estabelecer nosso espaço de estudo comparativo pelo mundo da língua portuguesa. Mais especificamente, havemos de tratar do estabelecimento do português moçambicano e do espaço linguístico do que seja a lusofonia. O título do capítulo é, não casualmente, ambíguo, uma vez que nossas pretensões aqui são de problematizar o próprio espaço da lusofonia e de suas variedades nacionais, para além da questão estritamente linguística, esperamos conseguir enveredar por breves considerações de política linguística também. 5.1 Português ou brasileiro? Há uma premissa em que nos referenciamos, nesta tese, e que precisamos aqui explicitar. Entendemos a língua portuguesa como ente abstrato e ideal, concretizada em suas muitas variedades. Assim, temos o português brasileiro, português europeu, português moçambicano, português angolano, português timorense, etc. Tem vicejado, especialmente no Brasil, em meios linguísticos e com algum apelo leigo também― muitas vezes motivado pela mera diversidade vocabular entre Brasil e Portugal― a ideia de que, na verdade, em nosso país, falaríamos uma língua outra, o brasileiro, diversa do português. A título de exemplificação, uma das gramáticas que serviu de base a nossa consulta intitula-se Gramática do Brasileiro (Ferrarezi Jr. & Teles, 2008). Bagno (2012, p. 247) defende convictamente a ideia de que falamos uma língua derivada do português clássico, distinta do PE. Em suas palavras: “o PB é uma língua diferente do português europeu, com o qual tem fortes 211 laços de parentesco, mas do qual já se afastou, tanto em suas variedades urbanas e de prestígio quanto em suas variedades “populares” e estigmatizadas.”. Óbvio que há distinções nos falares brasileiro e português, dentre destes também o há entre falares pernambucano, mineiro e gaúcho, por exemplo, de um lado e lisboeta, madeirense e transmontano, de outro. Contudo, não cremos que estejamos, em nível estritamente linguístico, a lidar com línguas diferentes. Em tal ponto, faz-necessária uma digressão teoricista. A discussão acerca da identidade de nosso idioma nasce junto com a identidade de nossa nacionalidade, no séc. XIX. Ou melhor, até antes, com o nheengatu, língua geral, a língua espontânea da brasilidade, banida e criminalizada pelo truculento decreto de Pombal, em 1758. No entanto, retornando à questão do português no séc. XIX, o movimento romântico erige-se como pilar da construção de um projeto de brasilidade que passa determinantemente por garantir status cultural, de língua literária ao português praticado no Brasil. São expoentes dessas inclinações Gonçalves Dias e, sobretudo, José de Alencar, em seu sintaxismo à brasileira. Não que defendessem um linguajar brasileiro cotidiano, na boca do povo, mais se tratava de dar foro de pátria ao falar das elites brasileiras, agora não mais colonizadas e, por isso, com um mundo por ganhar. O falar cotidiano viria à literatura pelos modernistas, numa postura de transgressão e ruptura com os cânones gramaticais, expressa, a bem da verdade, em um projeto mais estético e um tanto quanto circunscrito à esfera da elite intelectual. Antes destes, Lima Barreto empreendeu severo esforço por constituir uma língua literária que incorporasse a brasilidade cotidiana e mais desprestigiada. Decerto que tais posturas encontrariam resistência e contraposição. Assim, ninguém mais ninguém menos do que Machado de Assis carregou nas tintas de uma linguagem consagradamente alusitanada. Cabe também destacar, como nome de elevado prestígio, em uma postura linguageira francamente pró-lusitana, Olavo Bilac, subalternalizando, inclusive, nosso linguajar frente ao lusitano. O ápice dos propósitos de “alusitanamento” do português brasileiro tem como símbolo marcante a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, presidida por Machado e eivada de parnasianos, zelosos por “imortalizar”, por mumificação, presumimos, em panos do Alentejo, nosso português, sob um ideal francamente positivista, “Ordem e progresso” por princípios, abreviando a máxima comtiana de “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.”, em nossa bandeira que, a título de ilustração, compõe uma minoria de bandeiras de nações do mundo com ausência da 212 cor vermelha e toda a sua ancestral simbologia e iconicidade. Dos países do globo, apenas 21 % não possuem tal cor na bandeira, mais comum mesmo do que a cor branca nos pavilhões nacionais. Curiosamente, os continentes com maior ausência dessa cor são o africano (25,5%), o americano (21,7%) junto com a Oceania (21,7%), todos colonizados que foram. A maior presença da cor é justamente no continente europeu, colonizador, em um verdadeiro processo histórico de apagamento ideológico. Ilustração 2: Bandeiras do mundo. 207 Dos raros países com quatro cores na bandeira, apenas vinte e nove, só o Brasil e as Ilhas Salomão, na Oceania não possuem a referida cor na bandeira. Sigamos, contudo, em esclarecer que não queremos aqui construir a falsa caracterização de que o “alusitanamento” de nossa língua constrói-se como projeto conservador em contraposição a um projeto libertário, ou o que o valha, de língua brasileira. O próprio Alencar era membro do Partido Conservador e, como tal, defensor da escravidão. Os modernistas, membros que eram da burguesia paulistana, mais buscavam o choque estético, do que rupturas ideológicas. 207 Fonte: http://pt.dreamstime.com/fotos-de-stock-royalty-free-bandeiras-do-vetor-image12977628. Consulta em 23/11/2014. 213 De todo modo, hoje, no alvorecer do séc. XXI, próximos do segundo centenário da Independência, tal qual na primeira metade do séc. XIX e no início do séc. XX, a “língua brasileira” volta aos holofotes, inclusive por meios não elitistas, mas, pelo contrário, referenciados em sérios estudos linguísticos. Ponderamos que, contudo, não se trata apenas de uma reflexão linguística. A nosso ver, é, fundamentalmente, sociopolítica. A reivindicação da “língua brasileira”, frequentemente, tem estado, ao longo dos tempos, associada a um balanço histórico e sociocultural que identifica a matriz portuguesa como opressora e inibidora de uma série de aspectos voltados à perspectiva de liberdade, em suas muitas acepções e aplicações, em nosso país. Há, portanto, aí, entremeadas, motivações de distintas ordens de compreensão, sobressaindo-se as ligadas à história e seu necessário balanço, bem como à política. É, pois, por demandas político-históricas que vemos pautada a urgência da discussão em torno do reconhecimento do “brasileiro”. Enveredando pelo debate aqui anunciado, é preciso tecer mais algumas breves considerações. Pretendemos, como já deixamos insinuado, ater-nos ao campo linguístico, em tal discussão. Óbvio que não se trata de idealizar o sistema linguístico como atemporal, dissociado da sociedade, inistoricizável. Pelo contrário, o que aqui se advoga é que tal sistema é fundamentalmente social e, em tal esfera social, através do tempo e do espaço, dá-se sua fluidez, estabelece-se sua dinamicidade, ocorrem suas transformações. Afinal, a língua é o elemento constitutivo básico do que denominamos cultura. Em outras palavras, a língua erigese como o mais legítimo e definidor pilar de humanidade que há. A necessidade de formularmos uma avaliação em termos linguísticos que responda à pergunta sobre a língua falada no Brasil hoje é opção para maior clareza metodológica tão somente. Vejamos claramente tal questão ao opor o par língua e idioma. A sinonímia entre ambos os conceitos é muito vasta. Contudo, podemos perceber que idioma é mais facilmente revestível de uma carga sociopolítica do que o primeiro. Idioma assume mais prontamente o sentido de língua nacional, de língua de uma dada pátria. Talvez seja a tal dimensão a que o debate ora citado, enfim, remeta. Muito provavelmente, ultrapasse-o, atingindo o estrato geopolítico. Afinal, hoje o Brasil é um gigante lusófono e se sente bastante à vontade com sua recémalcançada prática sub-imperialista na América Latina. É, portanto, compreensível, em função de tais fatores, que se ambicione uma posição de “comando” no tocante 214 à língua que é tão sua quanto de Portugal, incontestemente. Insistimos que isso tão somente diz respeito à esfera histórica, política, quiçá geopolítica. Também não podemos descartar o anseio histórico-cultural de livrarmo-nos das impressões digitais de nossa outrora metrópole que ainda são, quanto mais aos olhos defensores do idioma “brasileiro”, tão decalcados em nossa cultura, impedindo a eclosão, na visão destes, de nossa brasilidade, em suas máximas potencialidades. Segundo a referida visão, eis que um astro da magnitude que o Brasil hoje alcançou não se pode deixar ofuscar por um corpúsculo ancestral. Mediante tais constatações, para prosseguirmos, precisamos, segundo nosso juízo, de plena desvinculação de qualquer recalque, amargura cultural residual ou revanchismo histórico torto, quanto a Portugal. Preferimos enxergar na cultura lusa uma copropriedade da língua portuguesa. Indo mais longe, em termos linguísticos efetivos, o mesmo se aplicaria ao conjunto das ex-colônias portuguesas, compondo conosco o mundo lusófono. Enfim, chegamos às condições de ajuizamento acerca da legitimidade linguística ou não da língua “brasileira”. Os argumentos mais comuns de serem encontrados a advogar favoravelmente sobre a questão evidenciada dizem mais imediatamente respeito ao léxico e à fonética. Não vemos aí argumentação que se sustente consistentemente. Houaiss (1988) compartilha conosco da reflexão em torno daquilo que denomina léxico familiar, apontando para o fato de que o vocabulário elementar do Brasil e de Portugal é rigorosamente o mesmo. Lembremonos de que, tal critério, na história da Linguística, foi fundamental para se surpreender parentescos linguísticos, primeiramente intuídos a partir de tal faixa vocabular. Pensamos que, ainda encontrando predileções lá e cá, por esta ou por aquela palavra− afinal os cachorros que aqui latem, não ladram como os cães de lá, dentro do que se pretende alcunhar “brasileiro”. A mesma observação aplicar-se-ia quanto às distinções fonéticas. Aliás, no conjunto das línguas, há distâncias apreciáveis em seu conjunto de dialetos. A exemplificação, recorrente, dos dialetos do italiano como falares distintíssimos é notória. E o que dizer, por exemplo, do inglês texano, reputado, no meio anglófono, por seu estupendo afastamento da pronúncia padrão de língua inglesa, seja em sua vertente norte-americana, seja quanto mais em seu viés britânico? De ordem distinta, a nosso ver, são os argumentos de ordem sintática. É verdade inquestionável que há, nesta seara, diferenças apreciáveis: a sempre 215 relembrada colocação pronominal, a francamente maior suscetibilidade da vertente brasileira a construções impessoais com a consequente impessoalização historicizável de vários verbos em nosso português, a abertura de nossa variedade de língua ao padrão sintático ergativo− com larga amplificação de construções com sujeitos não agentes, afetando drasticamente a malha argumental dos verbos, repercutindo isso em sua transitividade aparente, a constituição de sujeitos expletivos a tendência à omissão de complementos verbais− em contraposição à vertente lusitana, que torna os sujeitos frequentemente elípticos, a tendência crescente em nosso português de explicitação do sujeito pronominal. A última característica remete ainda a uma mudança morfossintática apreciável, em termos de impacto, causada pela entrada de você e a gente na esfera de pronomes pessoais plenos. A partir daí, uma considerável extensão da malha pronominal, bem como das flexões verbais de 2ª e de 3ª pessoas passam a se tornar indistintas no uso linguístico efetivo em PB208. Não temos a pretensão de ter elencado todo o conjunto de distinções sintáticas entre PB e PE. Contudo, não há como negar que se trate de diferenças não desprezíveis. E aqui é preciso considerar que também verificamos, no uso efetivo do PB, divergências sintáticas entre seus dialetos. O processo de queda de clíticos no dialeto mineiro, para tomar um exemplo simples, encontra-se em ritmo, a “ouvidos escutados”, mais intenso do que no restante do país. Parece-nos mais do que esperável que na comparação com “além mares” as divergências se acentuem ainda mais, em face do afastamento de uso cotidiano e de contato. De todo modo, quando consideramos a sintaxe ainda estamos a lidar com nível mais superficial do sistema linguístico. Não fosse assim, teríamos que, forçosamente, considerar que o português arcaico não era português, ou melhor, que não mais se fala português em qualquer canto do globo. O mesmo se aplicaria a outros períodos históricos. E o que dizer do latim clássico e do vulgar, segundo tal critério? Qual dos dois, afinal, não seria latim? E quanto aos principais dialetos da Grécia clássica? Ático, eólico, jônico e dórico eram, então, línguas distintas? Não é na sintaxe, postada na superfície linguística, que flagramos um novo sistema de língua, cremos. Onde, afinal, repousariam critérios estritamente linguísticos para anunciar ao mundo o nascimento de uma nova língua? A nosso ver, na esfera morfológica de forma estrita. 208 Todas essas distinções sintáticas foram tratadas em NASCIMENTO (2011). 216 Aprofundemos a questão. O latim deu lugar a suas bem-sucedidas línguas herdeiras. Nesse processo, a transformação de uma língua em outra é atestada por mudanças morfológicas profundas. Não falamos da criação de pronomes pessoais de 3ª pessoa. Nem mesmo a ruptura da grade de declinações nominais, o que já vinha se verificando no latim vulgar, atesta isso. A título de exemplificação, recordemos que línguas outras, como o alemão, o russo, o grego têm sintetizado, ao longo dos tempos, sua abrangência de declinações nominais. Vamos então a pontos mais abissais da estruturação morfológica. PB e PE continuam compartilhando do mesmo conjunto de palavras gramaticais: artigos, preposições, conjunções, morfemas gramaticais. Aí, afastamo-nos, decisivamente, da superfície linguística. Os artigos, por exemplo, são, por excelência, as palavras mais dessemantizadas e mais rigorosamente gramaticais que há. E, no mais, todo o conjunto vocabular e morfemático que citamos cumpre papel gramatical de grau bastante estrito. Nos afixos e nas desinências, sejam nominais ou verbais, também não constatamos a emergência de novas formas que anunciem o nascimento de novo sistema linguístico. Eis nosso ponto de vista: é na morfologia mais deslexicalizada possível que é pertinente flagrar um novo sistema linguístico. É óbvio que, em tal campo, não há rastros do surgimento de nova língua. A colonização portuguesa e suas consequências são, hoje, contingência histórica, em termos positivos e negativos. Há hoje colonizações mais nocivas, concretas e invasivas a nos cercar, como a de língua inglesa a nos propor todo um modus operandi cultural muito mais deletério que nos leva a celebrar Halloween, a considerar nomes em inglês mais sofisticados ou “civilizados” do que os em português, com infelizes adesões inclusive institucionais a tal causa, Riocard, o bilhete de ônibus no estado do Rio de Janeiro, BRT- Bus Rapid Transit, a sigla para os corredores expressos de trânsito na cidade do Rio de Janeiro, Personal Banking, serviço de caixa eletrônico de banco estatal. Não se trata de xenofobia linguística ou postura estreita com relação aos tão produtivos empréstimos linguísticos, mas sim de uma reflexão quanto a seus abusos, em prol de uma lógica de glamourização de dada língua/ cultura em detrimento da nossa. Há ainda as colonizações que nós mesmos brasileiros empreendemo-nos, sem que nenhuma metrópole outra o faça por nós. É esta a forma como lidamos com indígenas, por exemplo, homenageados caricaturalmente em todo Dia do Índio― data que é indício em si da sua exclusão, afinal, só os vitimados têm datas: 217 Dia da Mulher, dia do Trabalhador, Dia da Consciência Negra, etc, como marca da própria necessidade de lutas ou para mascarar inexpressividades sociais. Somos, junto com os Estados Unidos, a nação americana que mais massacrou indígenas. No Brasil, processou-se um genocídio humano, cultural e linguístico. Ainda assim, mesmo após a Independência continuamos a dizimar indígenas, que sequer possuem um real e efetivo status de brasileiros, ocupando um locus indefinido entre a fauna e a condição de subcidadania, no imaginário de nosso país. Tantas vezes, deixamo-nos levar pela folclorizada visão de que foram os portugueses opressores e os brasileiros vítimas que nos esquecemos de que a história não é feita de bons e maus. Muitas barbaridades da colonização e, depois dela também, foram perpetradas por portugueses, claro, mas também por brasileiros, por luso-brasileiros e braso-portugueses. Os dados sobre línguas nativas são alarmantes, num nível só comparável ao visto nos EUA. Segundo a Associação Internacional de Linguística (SIL)209, dezenas de línguas brasileiras estão em extinção, com exíguas possibilidades de alcançarem o fim deste século. A vitimização histórica em torno dos índios não passa de dissimulado cinismo de um Estado e de uma população que os ignora, de todo, como seres até hoje. No Brasil, o racismo anti-indígena é tão estrutural e enraizado que fez até do negro homem branco. Colonizamo-nos ao nos autonomearmos brasileiros210. Eis aí uma questão advinda da morfologia. Como bem sabemos, -eiro não é um sufixo formador de adjetivos gentílicos. Não os encontramos em nacionalidades ou naturalidades outras. Só depararemos com ele em mineiro, explicável pela metonímia histórica que fez da região da Minas Gerais do Império o Estado de Minas Gerais. Em idiomas muito próximos, nosso sufixo de nacionalidade atribuído é o que corresponde ao português –ano. Brazilian e não Braziler, brasileño em vez de brasilero, brasilien no lugar de brasilieur. Brasileiro era o nome dado ao comerciante de pau-brasil, primeira forma de exploração e aviltamento de nosso território. Carregamos decalcada em nós a nomeação da expropriação. Da morfologia ao autocondicionamento. Retornando à questão de nossa língua, reconhecer-se como falante da mesma língua que os portugueses, de modo algum, pode ser tomado por 209 Ver dados em http://www.ethnologue.com/country/BR/languages, via http://www01.sil.org/americas/brasil/SILling.html. Consulta em 23/11/2014. 210 Questão essa, primeira vez, suscitada e levantada pela Professora Doutora Vanise Medeiros, da Universidade Federal Fluminense. 218 assujeitamento. Partilhamos com eles do português que se concretiza como PB ou como PE, cada qual com seu uso culto de referência e suas possibilidades tantas de usos outros em uma gradação que vai do mais formal e monitorado ao mais informal, íntimo e distenso. Não há hierarquias entre o PB e o PE, a não ser a óbvia emergência daquele frente a este, dado seu contingente de falantes expressivamente superior. Por tudo aqui exposto, reafirmamos que, em análise tão somente linguística, temos, no Brasil, bem como em Portugal, a língua portuguesa, em duas variedades distintas, no plano superficial da língua. Em visagem profunda, os alicerces do sistema linguístico são os mesmos. As ansiedades múltiplas em torno da proclamação da independência linguística de nossa variedade― independência essa que já existe em plenitude― são derivadas de motivações outras. Enfim, a língua está imersa no mundo e com o mesmo dialoga em dialética incessante. Como dissera o sempre saudoso Saramago, e talvez seja uma forma de encarar a questão: “Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”.211 Há, ainda, uma questão mal resolvida para abordar quanto a isso. Qual afinal é a norma de prescrição linguística do português e qual sua abrangência? Pensamos que há de se distinguir norma culta de norma padrão (cf. Faraco, 2008). A primeira corresponde a um uso efetivo da língua, aquele feito por seus falantes tomados por cultos, em geral, com nível superior, grosso modo. Já a segunda corresponderia a uma língua quase ideal, na verdade imaginária, eivada de prescrições gramaticais, muitas delas de grande artificialismo, para não falarmos das corriqueiras incoerências descritivas nelas presentes. Há norma culta brasileira e lusitana. A chamada norma padrão ainda paira como um dado a carecer de maior clareza mesmo aos professores de português. Afinal, ela é a mesma para todo o mundo lusófono? Da forma como entendemos, tendencialmente, a norma padrão pretende-se a mesma, contudo, não sejamos ingênuos. Por exemplo, o uso de mo, to, lho como complementos verbais cumulativamente diretos e indiretos pode constar da norma padrão aplicada aos portugueses, mas não aos brasileiros, por extrapolar de tal forma o verificável, mesmo nos contextos mais formais e tensos de uso linguístico, que soa tão somente caricatural. É esta a visão básica que pretendemos aplicar e desenvolver no seguimento deste capítulo. 211 LOPES, Victor. Língua: Vidas em português. 2004 219 5.2 A questão da lusofonia Há uma premissa em que nos referenciamos, nesta tese, e que precisamos aqui explicitar. Entendemos a língua portuguesa como ente abstrato e ideal, concretizada em suas muitas variedades, hoje, presentes em todos os continentes. Assim, temos a língua portuguesa, como primeira língua e/ou língua oficial e/ou língua materna em: Portugal; Brasil; Angola; Cabo Verde; Guiné-Bissau; Moçambique; São Tomé e Príncipe; Timor Leste; Macau e Goa, Damão e Diu. Valente (2014, p. 81), retomando ELIA (2000), resgata deste último, os conceitos de Lusitânia: LUSITÂNIA ANTIGA: Portugal; Madeira; Açores. LUSITÂNIA NOVA: Brasil. LUSITÂNIA NOVÍSSIMA: Angola; Moçambique; Guiné-Bissau; Cabo Verde; São Tomé e Príncipe; Timor. LUSITÂNIA PERDIDA: Goa; Macau. LUSITÂNIA DISPERSA: Portugueses em países não lusófonos.212 Em relação a Brasil e a Portugal tão somente, Valente (op. cit.) lembra-nos ainda de que, para Elia, o status da língua só diverge na condição de berço para este país e de transplantada para aquele, sendo materna, oficial, nacional, padrão e 212 ELIA, Sílvio. A língua portuguesa no mundo. São Paulo: Ática, 2000, apud VALENTE (2014). 220 de cultura para ambos. Situação essa muito diversa da verificada no restante do mundo lusófono, como veremos aqui. A distribuição global da língua portuguesa no mundo atual segue abaixo.213 Ilustração 3: a língua portuguesa no mundo. Língua materna Língua oficial e administrativa Língua cultural ou secundária Comunidades de minorias lusófonas Crioulo de base portuguesa A língua portuguesa é das mais faladas no mundo. Os dados e as estatísticas são, por vezes, conflitantes quanto ao critério a ser utilizado para averiguação disso: idioma oficial, língua materna, primeira e segunda língua. De certo, estão à frente do português apenas o mandarim, o inglês e o espanhol. Hindi, árabe, bengali e russo, dependendo do critério adotado, podem estar adiante ou não. De todo modo, ao falarmos da língua portuguesa, lidamos com um universo que varia de 290 milhões de habitantes a 325 milhões, em função do critério adotado para estabelecimento do que seja ter o português como idioma. 213 Fonte: Wikipedia, via acesso eletrônico em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lusofonia. Consultada em 23/11/2014. 221 A distribuição dos falantes de português no globo conformaria a seguinte distribuição, demonstrando a esmagadora majoritariedade do Brasil no mundo lusófono.214 Ilustração 4: os percentuais da língua portuguesa por país. O português, para além de suas perspectivas de língua materna e/ou língua oficial, ainda tem presença relevante em tantos outros pontos do globo. Em Andorra, estima-se que 15% da população fale português. Em Luxemburgo, mesmo com repressões institucionais desde a escola, são 11% de falantes na população. Na Namíbia, pelo menos 4%. No Paraguai, 10%.215 Isso sem falar em grandes concentrações, sobretudo de portugueses, de brasileiros e de caboverdianos, pelo mundo. O espaço e a ação da lusofonia acaba por se confundir com o próprio espaço da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996, órgão para cooperação cultural, educacional, social e em vários outros setores, de clara conotação, a nosso ver, política e econômica. São hoje seus países membros: 214 215 Fonte: Wikipedia, via acesso eletrônico em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lusofonia. Consultada em 23/11/2014. Dados de http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_portuguesa. Consulta em 23/11/2014. 222 Quadro 19: população e situação da língua portuguesa nos países da CPLP. PAÍS POPULAÇÃO SITUAÇÃO DO PORTUGUÊS ESTIMADA216 Brasil 202,6 milhões Língua universal, materna e oficial. Portugal 11 milhões Língua universal, materna e oficial. Angola 24,3 milhões Língua oficial e falada por 60% da população. Cabo Verde 538 mil Língua oficial, com população bilíngue entre português e crioulo. 1milhão, Guiné-Bissau Moçambique 639 Língua oficial, falada por apenas cerca de mil 10%. 24,6 milhões Língua oficial, utilizada por 50% da população. São Tomé e 190,4 mil Língua oficial, falada por 95% da população. Príncipe Timor Leste 1,2 milhão Língua oficial, junto com o tétum, a população falante atinge, no máximo, 30%. Macau 588 mil Língua colonial, falada por parcela pequena da população. Não encontramos dados confiáveis quanto ao percentual, ainda que estimado. Guiné Equatorial 722 mil A ser oficializada como língua, ao lado do espanhol e do francês. Guiné Equatorial aderiu ao bloco no último ano (2014), sob forte polêmica e protestos, por seu governo ditatorial. O país possui um crioulo de base portuguesa, o Fá d’Ambô, falado na Ilha de Ano Bom, por cerca de 9 mil pessoas. Quanto à língua portuguesa em si, ela, efetivamente, não é falada no país, estando, no momento, em implantação mesmo em nível oficial/institucional. É ilustrativo advertir que, quando do ingresso do país na CPLP, tal fato foi noticiado no portal oficial do governo em espanhol, em francês, em inglês, mas não em português. No Brasil, apesar de mais de uma centena e meia de línguas nativas, o português possui amplitude, efetivamente, universal. 216 Números arredondados, segundo o censo mais recente de cada país, indo de 2006 ao presente. 223 Portugal possui ainda um segundo idioma oficial o mirandês, desde 2008. É falado por cerca de 15 mil pessoas, em geral bilíngues desta língua e do português, em um espaço geográfico que não chega a 500 km2. Há, fronteiriçamente a Portugal, em território espanhol, ainda o galego, língua siamesa da nossa, em suas origens. Alguns tomam o galego por codialeto do português. Pelas razões que argumentamos, assentadas, sobretudo, na morfologia, não temos acordo com tal juízo, embora reconheçamos os profundos laços históricos e culturais dos habitantes da Galícia com a língua portuguesa. Quadro 20: demonstrativo de comparação linguística entre português, galego e mirandês. PORTUGUÊS MIRANDÊS GALEGO Muitas línguas têm orgulho dos Muitas lhénguas ténen proua Moitas linguas teñen orgullo seus pergaminhos antigos, da de ls sous pergaminos antigos, dos seus pergamiños antigos, literatura escrita há centenas de de la lhiteratura screbida hai da literatura escrita hai centos anos e de escritores muito cientos d'anhos i de scritores de anos e de escritores moi famosos, hai hoije famosos, hoxe bandeiras desas hoje bandeiras muito afamados, dessas línguas. Mas há outras bandeiras dessas lhénguas. linguas. Pero hai outras que que não podem ter orgulho de Mas outras hai que nun puoden non poden ter orgullo de nada nada disso, como é o caso da tener proua de nada desso, diso, como é o caso da lingua língua mirandesa. cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa. mirandesa. Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe vivem uma situação similar no tocante ao uso linguístico. Nos três países, a língua de efetivo uso corrente é o crioulo de cada um deles. O português fica mais restrito aos espaços da institucionalidade, de governo, contextos formais. À exceção de Guiné-Bissau, nos outros dois configura-se uma situação de efetivo bilinguismo. Angola e Moçambique compartilham quadro similar em muitos pontos. Em ambos os casos, o português vem cumprindo um papel de língua de unidade nacional, em meio a um contexto de dezenas de outras línguas nativas. O número de angolanos e de moçambicanos a falar português ronda metade da população, 60% em Angola e 50% em Moçambique, segundo dados oficiais. No primeiro, o processo de nativização da língua está mais aprofundado, com quase o total do número de falantes de português declarando-o como primeira língua. Em Moçambique, apenas 9% da população declara o português como língua materna. 224 Contudo, os percentuais de falantes gerais de português tem crescido mais rapidamente em Moçambique do que em Angola. Em grande medida, isso se deve ao fato de que Moçambique passou a ensinar português por meio de línguas nativas, tornando o ensino bilíngue desde 2002, com pelo menos duas diferentes línguas por cada província. Já há, no país, ortografia padronizada para as línguas nativas e materiais escolares nelas confeccionados (cf. Ponso, 2011). Sobre a questão específica de Moçambique, no próximo item, aprofundaremos reflexões sobre a questão da língua portuguesa no país, bem como estabeleceremos o que consideramos ser o PM. Timor Leste é um Estado que vive com o tétum como principal língua de uso da população e que optou pela língua portuguesa tão logo se livrou do jugo da Indonésia, pela dimensão do enraizamento português lá e também como estratégia de inserção, agora independente, no mundo. Além dos países membros supracitados, a CPLP conta com um número crescente de Estados observadores, confirmando seu apelo socioeconômico. Ilustração 5: membros e observadores da CPLP. 217 Em Macau, o uso do português vem diminuindo, compreensivelmente, em meio a seus 588 mil habitantes. Com o fim da condição de Estado Autônomo da China em 217 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_portuguesa. Consulta em 23/11/2014. 225 meados deste século, tal decréscimo só tende a se acelerar. O país não é membro da CPLP, mas pleiteia tal condição, assim como Goa, na Índia. São Estados Observadores Associados: Maurícia (desde 2006), Senegal (desde 2008), Geórgia, Turquia, Namíbia e Japão (desde o ano passado). Reivindicam tal condição: Andorra, Marrocos, Filipinas, Venezuela, Croácia, Romênia, Ucrânia, Suazilândia, Austrália, Peru, Índia, Albânia, Taiwan, Malaca, Galícia, Luxemburgo e Indonésia. Estes dois últimos instam-nos a demonstrar estranheza. Luxemburgo, atualmente, convive com denúncias de punições a crianças por uso de português em creches. Episódios similares teriam sido registrados com trabalhadores emigrantes, segundo o portal Sapo218, principal meio virtual de veiculação de notícias em Portugal e países africanos lusófonos. Já a Indonésia oprimiu a língua portuguesa de todas as maneiras no Timor Leste, proibindo a população do país mesmo de falá-la. Dentre os demais países pretendentes à condição de observador, destaque-se a Índia com três territórios excolônias portuguesas, Goa, Damão e Diu, ainda a ex-colônia portuguesa de Malaca, onde se fala um crioulo de base portuguesa e Andorra, com população de pelo menos 15% de falantes de português. A CPLP não é, em verdade, tema a ser aqui muito mais desenvolvido. Julgamos que nos cabia sua apresentação e dimensionamento mínimo, pelo impacto que tem como órgão dinamizador da própria pauta da lusofonia. É nesta seara que pretendemos prosseguir. A lusofonia, hoje, é bandeira muito mais integrada socialmente a Portugal do que ao Brasil. A rigor, o Brasil não dispõe de políticas, ou antes, de vontade política para o estreitamento de laços com as nações abrangidas por essa pauta. Talvez Timor Leste seja o único Estado destes a contar com cooperação regular do Brasil, no envio de professores, por meio de órgãos oficiais, àquele país, o que soa muito mais a uma movimentação de construção de lobby ao pleito do assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). A presença ativa do Brasil nas questões lusófonas é fundamental, inclusive, para qualificar tal conceito, pelo peso populacional e cultural de nosso país. Seria engrandecedor à causa lusófona que uma outrora colônia, com o desenvolvimento que o Brasil 218 Matéria disponível, via internet, em: http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=1&did=167338#.VF9VtDmfT2A. Consulta em 23/11/2014. 226 conseguiu perfazer, pudesse, sobretudo, pluralizar a condução e o imaginário lusófonos. Assim, no mundo africano, a ideia de lusofonia confunde-se com a presença de Portugal, inevitavelmente. Para além disso, é preciso problematizar o que seja lusofonia, especialmente nestes países, a partir de agora, designados coletivamente como Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOPs). Neles, o processo de independência é muitíssimo recente, não tendo se conformado de modo pleno uma série de marcas identitárias sufocadas pelo processo colonial que nas últimas décadas de vigência, não bastasse todo o passado, ainda se revestiu da marca da opressão fascista, só superada pela Revolução dos Cravos, de 1974, que permitiria a própria perspectiva das independências nacionais, salvo para Guiné-Bissau que se libertou do jugo português em 1973, embora tal processo só tenha obtido o reconhecimento da exmetrópole tardia após os ventos de Abril. Especialmente em Angola e em Moçambique desenvolveram-se processos de guerra civil a cobrar altíssimos preços de suas populações. Até hoje, em Moçambique, há minas terrestres ativas, remanescentes de um total estimado em 2 milhões enterradas durante os 16 anos de guerra civil, tendo o país um dos maiores percentuais de amputados em todo o globo. Em meio às lutas que fizeram parte da própria construção dos países independentes, a língua portuguesa desempenhou em ambos importante papel, sendo um elemento de unidade nacional, em meio ao esfacelamento social e às múltiplas línguas que coexistiam em tais espaços. No caso específico de Moçambique, tornou-se a língua oficial da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), com papel, portanto, decisivo nos rumos daquela sociedade. Acrescente-se a isso que o contexto cotidiano dos PALOPs é de sociedade amplamente multiculturais. O multilinguismo eclode daí, sendo marca natural de todos estes países. Como nos diz Ponso (2011): [...] seus falantes movem-se entre a ideia de, por um lado, dominarem uma língua ex-colonial (como o português, o francês, o inglês) unificadora de um Estado-Nação acima de fronteiras étnicas e regionais e, por outro, cultivarem interesses e objetivos vinculados ao uso vernacular das línguas autóctones. 227 A tais países, o modelo de educação monolinguista só tende a agudizar distâncias, fragmentando ainda mais perspectivas que visem ao ideal, eurocêntrico, diga-se de passagem, do Estado-Nação unificado. Aí, falamos objetivamente de uma transposição de sociedade, nos moldes europeus ao contexto africano, de uma idealização de ensino monolíngue “civilizatório” a sociedades de tradição oral secular. Tragamos aqui à baila a reflexão de Rajagopalan (2003, p. 25): “Os nossos conceitos básicos de linguagem foram em grande parte herdados do século XIX, quando imperava o lema “Uma nação, uma língua, uma cultura””. Adiante, acrescenta que “O preconceito contra a miscigenação linguística está presente, por exemplo, no modo como são tratadas até hoje as línguas “pidgins”― marginalizadas por não possuírem a pureza de 24 quilates que se credita às línguas “normais”.”219. O processo de implantação/ adoção do português nos PALOPs é bastante diverso do por que passou o Brasil. Só a distância cronológica já justifica tal diferenciação. Lusofonia é, hoje, termo que engloba tanto países de universalismo do português, como idioma, quanto os PALOPs e Timor Leste, onde, embora língua oficial, em geral, não é aquela da qual a população se sirva em suas demandas cotidianas. Estão ainda englobados no conceito em questão, regiões de fraca e decrescente comunicação em português, como Macau e Goa― apesar de se estimar que, nesta última região, por ano cerca de 1500 crianças aprendam português. No que tange à questão linguística, a ideia de lusofonia põe em jogo, pois, relações muitíssimo díspares. Para Freixo (2007), a ideia da lusofonia e da própria constituição da CPLP como concretização de tal ideário precisa ser compreendida em “três polos” de ação e de interesses distintos, compreendendo Portugal, Brasil e os PALOPs/Timor, este último entendido como um grande bloco. Há muito de idealização na ideia de lusofonia. Como nos diz Faraco (2009): Nesse discurso de exaltação e celebração, não há, evidentemente, espaço para uma leitura crítica da exploração colonial. Ou do papel central que os luso-brasileiros exerceram no tráfico internacional de escravos africanos durante 300 anos; não há espaço para discutir o estado de imensa miséria social, econômica e cultural em que foram deixado; no momento da independência, os territórios africanos e asiáticos que estiveram sob o 219 RAJAGOPALAN (2003, p. 25). 228 domínio português; não há espaço para deixar visíveis a ideologia e as práticas racistas do colonialismo português na África; não há também espaço para compreender a heterogeneidade dos diferentes países, salvo se ela puder ser reduzida ao exótico e devidamente folclorizada (a culinária, por exemplo); e, mais ainda, não há espaço para se reconhecer e discutir o fato de que a língua portuguesa funciona socialmente também como forte fator de discriminação e exclusão nas sociedades em que é falada. Muito do ideal lusófono atual carrega, bastante intimamente, hoje, uma extensão de política de Estado portuguesa. Como nos diz Freixo (2007, p. 30): Do ponto de vista ideológico, a constituição da CPLP passa pelo discurso calcado na idéia de uma “herança cultural comum” que enfatiza os laços históricos que unem os países que a compõe, destacando a questão identitária, na qual a Língua Portuguesa adquire um papel fundamental. Com isto, dentro da estratégia de atuação do Estado português, é necessário que a Língua Portuguesa consolide-se como a quinta ou sexta língua mundial, impedindo que o espanhol torne-se o único idioma representativo da cultura ibero-latinoamericana, reforçando assim o papel de Portugal no cenário internacional. O mesmo autor ainda nos lembra de que, à época do ingresso no então Mercado Comum Europeu, nos anos 90, coincide com o momento em que Portugal volta seu olhar e investimentos aos PALOPs, ambicionando tornar-se um mediador intercontinental a aproximar Europa e África. O quanto a lusofonia interessa, de fato, à maioria da população de Moçambique ou de Cabo Verde? O que lhes traz de benéfico, afinal? É uma nova forma de se tentar homogeneizar e simplificar a África, sob um manto e nome ditados de fora? Será a lusofonia uma espécie de legitimação a uma identidade frente ao mundo? Que identidade é esta? O que constrói? O que destrói? A bandeira da lusofonia, aparentemente redutora, pode ser plural? Cremos que sim e que uma das chaves cruciais para isso passa pela contribuição dinamizadora que o Brasil possa se dispor a dar a tal constructo, visto que esse já assume uma expressão político-econômica, vide o aumento da amplitude da CPLP que não pode passar despercebida. Tal construção não é, decerto, simples. Valente (2014) alerta-nos do “caráter imperial da lusofonia”, fator esse que parece suscitar todo um efeito de dissuasão no que concerne à efetiva participação brasileira no projeto transnacional. Acerca do mencionado “caráter imperial”, Valente (op. cit.) afirma: 229 É frequente a comparação entre a decadência político-econômica dos últimos anos com a pujança da época das conquistas, até hoje orgulho de um pequeno país com uma diminuta população. [...] O mito do grande império, ainda fortemente presente na alma lusitana, reaparece, em certa medida, no discurso legitimador do que se convencionou chamar de lusofonia. [grifos nossos]220 O mesmo autor assinala ainda que o “efeito simbólico” da bandeira da lusofonia é muito distinto para portugueses e habitantes dos demais países lusófonos. Porém, ainda continua a pairar uma questão, hierarquicamente, primordial. Especialmente nos PALOPs, a adoção da língua portuguesa é o prosseguimento de processos de opressão, em plano cultural ou é a redimensionadora da identidade de nação que se precisa construir para inserção no globo atual? Pensamos que não seja nesta polarização que se possa chegar a uma resposta suficiente à complexidade das questões linguísticas e culturais dos PALOPs no séc. XXI. Há de se perseguir a construção de uma reflexão que possa, em meio à realidade de língua portuguesa oficial, reconhecer os espaços e papéis agentes dos instrumentos linguístico-culturais de que tais sociedades dispõem. Serão necessários laços de vinculação que permitam um caminho a percorrer abrigado da polarização entre um universalismo falsamente homogeneizante e solapador, de um lado e o essencialismo que apregoe isolacionismo. Este seria um importante papel histórico que a pauta da lusofonia poderia auxiliar a construir. Tratar-se-ia, portanto, de o português continuar a cumprir o papel amalgamador que vem cumprindo, especialmente em Angola e em Moçambique, sem que se perca a forçosa referência policêntrica que tal língua, por meio do instrumento da lusofonia, precisa passar a manifestar. Nos PALOPs onde grassam os crioulos de base portuguesa, estes podem servir como uma complementação recíproca à língua portuguesa, dentro de uma perspectiva transnacional de política linguística lusófona. A causa lusófona tem, antes de qualquer outro apelo, que se conformar como meio de deixar claro e evidente que o português não tem dono nem marca de autenticidade. Mais que isso, que nossa língua há de dialogar com as línguas com que divide espaços e tempos. A lusofonia não pode se confundir com um alargamento unilateral de Portugal no mundo. Mais uma vez, para isso, o Brasil 220 VALENTE (2014, p. 79). 230 cumpriria papel fundamental. A lusofonia também não pode ser meio de legitimar ou naturalizar massacre cultural. Para tanto, há de se convocar oportuna reflexão de Rajagopalan (2003, p. 69): A existência das línguas mistas221 nos dias de hoje corresponde à miscigenação crescente entre povos e culturas no mundo inteiro. Quem ainda pensa em termos de línguas estrangeiras, falantes nativos, etc. como se tais conceitos fossem definidos de uma vez por todas e incapazes de serem repensados, na verdade, ainda está vivendo no século XIX quando entes como nação, povo, indivíduo eram concebidos em termos de uma lógica binária segundo a qual só se admitia uma resposta categórica tipo “sim” ou “não”. Tal linha de reflexão será útil, para além de se pensar o mundo lusófono, em geral, inclusive, para nossa abordagem e qualificação específicas do PM, no próximo item deste capítulo. A prática da língua portuguesa no continente africano, aliás, no globo222, não pode ser espelhada tão somente em suas duas grandes normas de prestígio, a brasileira e a portuguesa. Hoje, especialmente em Moçambique e em Angola, o português é língua oficial, mas não é língua nacional. As novas medidas educacionais de Moçambique de efetivação de bilinguismo em suas escolas podem cumprir― e parecem já estar a fazê-lo― importante papel para a gradual transformação desse quadro. Há de se garantir reconhecimento a quem não fale o português como língua primeira. Para isso, a questão educacional é muitíssimo básica. Em Angola, o grande desafio é elevar o número de matrículas escolares. A educação tem tido, seguidamente, baixos orçamentos, infraestrutura precária, incluindo questões como falta de saneamento, corpo docente insuficiente quantitativa e qualitativamente, falta de estímulos e condições de trabalho de variada ordem, turmas sobrecarregadas de alunos, em grande extensão de faixa etária em uma mesma classe, falantes de línguas bantu aprendendo em português, um quadro de retenção e evasão escolar elevado. Desde 2006, Angola mantém um programa experimental em algumas poucas escolas primárias que torna o estudo de línguas nativas parte do currículo. Tal iniciativa é ainda bastante provisória e reflete certa indefinição do país na forma de 221 O autor, à frente, acrescenta ao conceito de línguas mistas línguas francas como o portunhol, o espanglês, etc. 222 Aqui, sem dúvida, estamos a nos voltar com maior interesses ao português no continente africano. Contudo, a título de ilustração e de contribuição, indicamos, para algum contato com o português de Timor Leste, ALMEIDA, Nuno Carlos Henriques de. Língua Portuguesa em Timor Leste: Ensino e Cidadania. Dissertação de Mestrado. Universidade de Lisboa, 2008. 231 lidar com tais línguas. Desde 1979, foi criado o Instituto Nacional de Línguas― que, a partir de 1985, viria a ser o Instituto de Línguas Nacionais― órgão que visa à preservação das línguas africanas no território angolano. Como consequência, essas línguas são tratadas, genericamente, como línguas nacionais pelos governos, embora não possuam o reconhecimento de línguas oficiais. Há algumas poucas instituições superiores, como a Universidade Agostinho Neto, maior universidade pública do país, que oferecem cursos em algumas línguas nativas, como a graduação em Línguas e Literaturas Africanas. Como nos diz Rajagopalan (2003, pp. 27-28): [...] o “multilinguismo já é a língua franca da África”223. [...] igual pertinência para outros continentes ou “subcontinentes”, como a Índia, bem como para as novas realidades geopolíticas como a União Europeia. [...] Ao fazer vista grossa às mudanças geopolíticas em curso no mundo inteiro, mudanças com resultados concretos plenamente visíveis a olho nu, a lingüística de hoje mostra sinais de querer se enclausurar numa torre de marfim, contemplando, com saudade, o mundo perdido de identidades fixas e delineadas uma vez por todas. [...] a facilidade com que costumamos falar de línguas tende a ofuscar o fato elementar de que tais entes inexistem no mundo real, mas são verdadeiros constructos criados em resposta a certas demandas históricas. [grifos nossos] Cremos que a lusofonia possa ser sim uma pátria, ou melhor, nação simbólica, desde que consiga construir-se em meio à diversidade, não como concessão, mas condição à sua própria constituição e ao seu sentido, o que implica mudanças em nosso próprio imaginário constituído sobre o que seja, hoje, a língua portuguesa. Do contrário, definhará corroída e solapada pelas concretudes às quais seu nível de vazia e distanciada abstração não conseguirá fazer frente, tal qual em uma espera caricata e anacrônica por Dom Sebastião, em pleno séc. XXI, enquanto o espectro de Antônio Conselheiro, ainda não ouvido, esteja a anunciar as lágrimas de Portugal a virar sertão. 5.3 Dialetos portugueses: o português moçambicano Este item pretende cumprir tarefas múltiplas, mas, fundamentalmente, caracterizar a língua portuguesa em Moçambique, variedade que junto à brasileira e 223 DESSAI apud RAJAGOPALAN (2003). 232 à portuguesa, compõe nosso interesse prioritário para cotejamentos de usos e valores do futuro do presente do indicativo. Primeiramente, cabe registrar que o acesso a estudos de nossa língua no espaço moçambicano ainda é muito escasso no Brasil, congruentemente ao desinteresse pela pauta lusófona, mas muito disparatado em relação ao que se verifica nos estudos literários. A discrepância entre o acesso vastíssimo que se tem à literatura moçambicana e os raros materiais sobre português em Moçambique é alarmante. Por conta disso, quase toda nossa referência para tratar dos temas aqui correlatos a Moçambique e aos rumos do idioma neste país vem de referências portuguesas ou moçambicanas. Feita esta necessária observação, esclareçamos por que Moçambique, como opção de análise. Desde o início de nossos interesses por estabelecer um estudo comparativo que incorporasse a língua portuguesa no continente africano, Angola e Moçambique surgiram como potenciais objetos de estudo. A razão para isso é a própria dinâmica do uso da língua nestes dois países onde o português está a se nacionalizar. Nos outros três países lusófonos do continente, que vivem um cotidiano de bilinguismo, grosso modo, o português, pelas informações de que dispomos é restrito a certos contextos sociais, prevalecendo o uso geral dos respectivos crioulos. Nas palavras de Rosa (2007): [...] a complexa situação linguística do Português em África pode ser assim sintetizada: registam-se fenómenos de bilinguismo social e diglossia (Crioulo/PE) em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau; observa-se a formação de duas variedades institucionalizadas do Português de dimensão nacional, PA e PM, cujo uso é amplamente comprovado nas comunidades de locutores das áreas urbanas, que se dividem em lusofalantes de L1 e de L2, em Angola e Moçambique; nesses dois países verificam-se, também, fenómenos de bilinguismo social e de diglossia, nas comunidades de lusofalantes de L2, quer nas áreas urbanas quer nas áreas não-urbanas. Assim, pareceu-nos mais pertinente um estudo sobre as realidades nas quais o português apresenta-se em perspectiva de universalização. Optar por Angola ou por Moçambique significava, a nós, alternativas equivalentes, em termos quantitativos e de dinâmica societária. Na realidade, possivelmente, Moçambique tem traços ainda mais multiculturais do que Angola. Somaram-se a isso dois fatores, um de ordem prática e outro de alguma subjetividade que nos levaram às terras do Índico. Obtivemos contato bastante ágil com a Cátedra de Português da Universidade Eduardo Mondlane, na figura da catedrática e principal referência sobre português 233 moçambicano no globo, Professora Doutora Perpétua Gonçalves. Por meio de tal contato, acessamos corpora de língua escrita e falada em Moçambique. Não conseguimos estabelecer equivalente êxito junto à Universidade Agostinho Neto, possível paralelo em relevância, centralidade dentro do ensino superior local e importância histórica da UEM. Além disso, observamos que Moçambique, hoje, é o país onde a língua portuguesa expande-se mais acelerada e dinamicamente. A iniciativa de escolas bilíngues, já aqui mencionada, há de ter papel preponderante para isso. Contudo, antes de prosseguirmos, é importante deixar bastante claro que comparar PB, PE e PM é cotejar desiguais. Os dois primeiros são variedades nacionais, de caráter universal, em suas sociedades, situação bastante diversa do último. A relação entre PB e PE de um lado e PM, de outro, é bastante assimétrica. Aqueles possuem normas linguísticas de referência e amplo reconhecimento social. Na literatura sobre PM, é comum encontrar a referência a esta variedade como uma protovariedade, quando não protovariante, denominação ainda piorada, uma vez que traz agregado o valor de subalternalidade, possivelmente, em relação ao PE. Julgamos, em princípio, inadequada tal perspectiva. Como já problematizamos, a variedade moçambicana do português, assim como as dos demais PALOPs, é o que é, em meio à diversidade em que está circunscrita. Não é o caso de se esperar o atingimento de um ideal estágio de língua nacional nos moldes brasileiro ou português. No caso específico do PE, este, inclusive, serve, até então, de norma de correção linguística no espaço restante da lusofonia, daí excluído o Brasil― queremos crer que, de fato, a norma portuguesa não seja, realisticamente, parâmetro de uso no nosso país. Não percamos, pois, a referência de que, embora desiguais, devam ser tomadas, em um mesmo patamar do ponto de vista científico linguístico, a serem considerados universos que nos forneçam o painel de usos e valores sobre o tempus em estudo. Outra questão a se pontuar é como lidar com a questão do erro linguístico. Esclareçamos isso. Disséramos, por exemplo, no item 2.5.2, que *Um dia, eu era teu amigo constitui impossibilidade no sistema da língua portuguesa. Isso seria exemplo cabal do que seja, enfim, erro linguístico. Nos moldes consagrados do pensamento linguístico, seria construção esperável por um estrangeiro, em suas experimentações e tentativas de produzir enunciados em português. Porém, 234 estamos a falar de um contexto em que muitos falantes de português relacionam-se com tal língua, nos moldes de L2. O próprio curso de graduação em Língua Portuguesa da Universidade Eduardo Mondlane autorreconhce-se como Cátedra Português: língua segunda e estrangeira. Como lidar com os “desvios”, em relação ao português que conhecemos, de falantes não nativos, em meio a um panorama em que não há uma norma de uso estabelecido, a não ser a deixada como legado colonial? Destaquemos que há autores tanto portugueses quanto moçambicanos que tratam as inovações, modificações observadas no PM como “desvios”, em relação ao PE. Pensamos que devamos perseguir o ideal pouco acima proposto de reconhecimento do valor da diversidade, como parte integrante desse falar português por frutificar no séc. XXI. Assim, basta-nos manter o mínimo bom senso linguístico de que aquilo que é produzido e viabiliza, reconhecidamente, comunicação efetiva é tão válido quanto qualquer outro registro, em termos linguísticos. Quanto ao conceito de L2, temos dúvidas se é, realmente adequado à perspectiva de Moçambique e, sobretudo, ao olhar que aqui temos tentado adotar quanto a seu contexto multilíngue, porém os próprios linguistas moçambicanos o aplicam. Provisoriamente, então, respeitemo-lo. Para minimamente situar os indicadores sociais de Moçambique, em meio ao mundo lusófono, registremos que, destes países, é o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo (0,322)― comparativamente, o do Brasil é de 0,718 e de Portugal, 0,809; a menor expectativa de vida, 49 anos, a 2ª maior taxa de mortalidade infantil, 107,84/mil por nascidos, apenas atrás de Angola; a menor taxa de alfabetização. Maputo, com cerca de 1.130 milhão de habitantes é a 15ª maior cidade do mundo lusófono. Antes dela, além de 13 cidades brasileiras, está também Luanda, capital de Angola. Adentrando o espaço de Moçambique, é preciso identificar que o português é, aí, uma língua falada basicamente em espaços urbanos os quais concentram pouco mais de 30% de sua população. As demais línguas de Moçambique são todas do grupo bantu. Seu número, embora varie segundo critérios adotados para classificação, a partir de dados do governo, é de 41 línguas, sendo as principais: Emakhuwa, falado por 26% da população, Xichangana, por 11%, Elomwe, por 8%, Cisena, 7% e Echuwabo224, 6%, as três últimas de patamares comparáveis ao 224 De acordo com o Centro de Estudos das Línguas Moçambicanas, sua designação deve compreender prefixos que remetem a sua localização e grupo linguístico. 235 português, em termos de uso como língua materna― uma vez que a taxa de uso do português, como L2, é bem superior, mais de 40%. Sobre o estatuto de uso do português no país, o linguista Gregório Firmino, em recente entrevista à revista Língua Portuguesa, afirmou: [...] agora em Moçambique, muitos não falam português. Mas toda gente o assume como um símbolo. Tanto que o português, além de servir como instrumento de comunicação, é como se fosse uma bandeira, um hino. Posso não gostar do hino; posso até não conhecer a letra e não cantá-lo, mas representa todos nós. Os estudos que há em Moçambique enfatizam muito a mudança linguística no lado da estrutura da língua. No tempo colonial, a língua não era falada da mesma forma que em Portugal nem pelos próprios portugueses que estavam em Moçambique. Mas o que fez a língua ser moçambicana foi o fato de ela ter sido assumida pelos moçambicanos como símbolo da unidade nacional - a mudança simbólica precede, tem mais relevância que a estrutural. Porque esta é normal; uma língua está sempre em mudança! O português está a sofrer um processo de nativização; que se associa a novos valores sociossimbólicos e traços linguísticos. Esta "nativização" tem mais a ver com o novo uso social do que com a diferenciação da língua em si. Ao português em Moçambique é conferido um caráter singular pela ideologia que motiva os seus usos e não só por suas inovações linguísticas.225 Nas zonas rurais, as línguas nativas são quase exclusivas, bem como nos contatos íntimos, familiares, da maior parte da população; já no espaço urbano tendem a dividir espaço com o português, que, apesar de falado minoritariamente, é a única língua presente em todo o território nacional, cumprindo papel, portanto, de língua franca. Segundo dados do censo de 1997, portanto já apreciavelmente desatualizados, em relação ao constante crescimento do português, o quadro de uso da língua nas províncias do país, era este226: Quadro 21: percentuais de fala da língua portuguesa em Moçambique. Local Moçambique Língua Língua falada com Sabem falar (%) Materna (%) mais frequência (%) 6 9 39 2 2 22 Província de Niassa 4 6 31 Província de Nampula 6 6 29 Província de Cabo Delgado 225 226 Os limites da lusofonia. Revista Língua Portuguesa, nº 99, jan. 2014. Fonte: FIRMINO (2008), via: http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/mes/06.pdf. 236 Província de Zambézia 5 7 32 Província de Tete 3 4 23 Província de Manica 4 6 38 Província de Sofala 10 15 48 Província de Inhambane 3 4 47 Província de Gaza 3 4 42 Província de Maputo 13 18 68 Cidade de Maputo 25 36 87 Para ilustrar geograficamente227: Ilustração 6: províncias de Moçambique. De Timbane (2013), extraímos o seguinte quadro, a partir de dados de censos oficiais de Moçambique, com informações mais recentes do país. Quadro 22: falantes de português em Moçambique em 2007. Estatuto % de falantes % de falantes % de falantes 1980 1997 2007 Português L2 24,4 39 50,3 Português L1 1,2 6,5 10,7 Fonte: Instituto Nacional de Estatísticas (2007)228 227 Fonte: http://imigrantes.no.sapo.pt/page2mocProvincias.html, consulta em 25/11/2014. 237 Note-se que o crescimento do português como L1 ocorre em ritmo ainda mais acelerado do que como L2. Entre 1980 e 2007, a língua dobra na condição L2 enquanto aumenta em nove vezes, em L1. Além das línguas nativas e do português, ainda há línguas estrangeiras com alguma concentração no país, como inglês, sobretudo pela proximidade com cinco países de língua oficial inglesa, hindi, urdu e gujrati, a penúltima língua paquistanesa e indiana e a última paquistanesa. No processo de estabelecimento da língua portuguesa em Moçambique, ainda segundo Firmino (op.cit., p. 6), “a língua portuguesa tornou-se numa forma de capital social directamente ligada aos sistemas simbólicos, ideológicos e económicos que controlavam a mobilidade social e relacionavam as habilidades pessoais com a estratificação social dentro da colónia.”. Lembremo-nos aqui de que a colonização portuguesa efetiva, em forma de ocupação física, em Moçambique― bem como em Angola― só se iniciaria no séc. XIX. Antes, o território só se prestava a ser um ponto repositório de escravos para o Império português. Durante mais de dois séculos, as colônias africanas foram bastante secundárias na política administrativa portuguesa, sendo preteridas em favor do Brasil e da Índia, tanto que Moçambique fora, nesse período todo, administrado a partir da Índia. Apenas em 1886, iniciar-se-iam as campanhas militares que garantiram a ocupação territorial plena de Moçambique por Portugal. Nos conflitos civis do processo de Independência, a adoção do português, como forma privilegiada de coesionar a Frelimo, pôs a língua, até então identificada com o colonialismo, pela primeira vez, em perspectiva anticolonial, passando a ser, então, matéria-prima da identidade moçambicana a ser forjada a partir de tal processo. Tal qual Caliban, personagem shakespeariano da peça A tempestade229, a outrora língua do inimigo, havia sido apropriada para a construção da identidade moçambicana. Como diz o escritor José Eduardo Agualusa, sobre Angola, o português passou “de língua madrasta à língua materna”, título de um livro seu. Segundo Mia Couto, ao ser indagado pela revista Língua Portuguesa, se o domínio colonial causa aversão ao português: 228 TIMBANE (2013, p. 38). “You taught me language, and my profit on 't. Is I know how to curse. The red plague rid you. For learning me your language!”. SHAKESPEARE, William. The tempest. Ato 1, cena 2. 229 238 Isto não existe e, se há, é fruto de uma minoria muito, mas muito pequena. O português tem cada vez mais transitado de língua oficial para a de cultura. Quando Moçambique se tornou independente, em 1975, só 2% da população tinha o português como língua materna. Agora, são mais de 10%. Todos os escritores moçambicanos escrevem em português porque sentem, sonham em português.230 Gonçalves (1996) propõe uma periodização para a língua portuguesa em Moçambique, desta forma: 1ª fase: 1498 a 1918. Tal período estender-se-ia da chegada de Vasco da Gama ao território ao fim das campanhas militares portuguesas de ocupação. Em tal fase, estaria marcada, fundamentalmente, uma relação assaz predatória da presença da língua portuguesa no país, ainda mais do que em Angola, já que tiveram que lidar, em Moçambique, com forte presença da cultura islâmica. Só a partir de 1752, a então colônia passaria a ser administrada diretamente por Portugal; papel antes ocupado pela administração indiana. A presença física do português, em todo esse longo período, é muito pequena. Até 1890, havia uma única escola primária para o ensino da língua. 2ª fase: 1918 a 1975. É nesse período que se desenvolveriam as bases sociais para a difusão da língua portuguesa. Em 1930, o Acto Colonial português passaria a regular, institucionalmente, a relação com as colônias, sendo instrumento que garantiu a constituição de uma rede social mínima: escolas, administração, órgãos públicos, a possibilitar a presença da língua portuguesa no território. A partir daí, surgem os primeiros homens letrados moçambicanos. Dar-se-ia, no anos 60, a criação da primeira universidade. 3ª fase: 1975 em diante. Período do estabelecimento efetivo da língua portuguesa em Moçambique, tornando-se, após sua adoção nas lutas pela independência nacional, pela Frelimo, língua de prestígio. A perspectiva de ser o português uma língua de unidade nacional tem profundo impacto em toda a sociedade, especialmente, no sistema 230 A voz de Moçambique. Revista Língua Portuguesa, nº 76, fev. 2012. 239 educacional. Embora, em tal fase, ainda se esteja longe de um consenso quanto à própria gestão da relação do português com as línguas autóctones, é o período de real apropriação da língua em que ela veste, de fato, a roupagem de Moçambique. Permitiríamos afirmar que é quando, então, nasce, um português ornamentado em capulana. Hoje, o português, em Moçambique, como língua oficial e como língua franca, já não é mais a língua apenas da institucionalidade oficial e formal; é, sobretudo, a língua da integração social, do público, especialmente urbano, em restaurantes, bares, eventos de coletivização em geral. A língua faz-se presente no rádio e na televisão. Há programas, nestes veículos, voltados ao uso do português. Isso implica uma discursivização nova. Trata-se agora desta língua a se ressignificar para significar Moçambique e o ser moçambicano, em suas demandas concretas de dia a dia. Na cidade de Maputo, capital do país e principal centro e foco lusófono moçambicano, dirigir-se a um estranho, em língua que não seja o português, é tomado como socialmente indevido, o que também suscita possíveis preocupantes decorrências sociolinguísticas, como de início de processo de estigmatização. O uso do português é tanto mais exigido socialmente quanto maior é a diversidade de línguas presentes em interações sociais. A respeito disso, Firmino (op. cit., p. 14) traz-nos um interessante relato de um morador de Maputo, em 1981, que nos dá a dimensão da questão: [...] Todos os dias, qualquer que seja, quando chega à paragem dos machimbombos231, pergunta-me se sou o último na bicha. Mas esta pergunta é feita na língua local. Como não oiço, limito-me a responder em macua ou em ajaua que é a língua que conheço. Então a pessoa fica logo um pouco aborrecida comigo. Então logo começa a discussão, dizendo ele que não podia responder em macua ou em ajaua. Pergunto eu em que dialecto posso responder? Ronga, changane, xitsua? Se eu não conheço! Peço aos naturais quando não conhecem a pessoa é bom falarem com ela em língua oficial porque o ser da mesma raça não significa nada. Somos de vários dialectos. [in Revista Tempo n.º 555, 31 de Maio de 1981, p. 50]. Junto a isso, não percamos de vista que, historicamente, em sociedades de referência eurocêntrica― o que parece ser o quadro em que crescentemente, infelizmente, embora seja muito difícil, ainda que necessário, fazer diferente, 231 Machimbombo designa ônibus, em Moçambique. 240 enquadra-se Moçambique em seu modelo de desenvolvimento e de inserção global― dominar línguas estrangeiras (as tidas como de prestígio, especialmente) é fator de distinção social. Precisamos, entretanto, ponderar que não temos por certo o quanto a sociedade moçambicana considera o português uma língua estrangeira. Imaginamos que essa apreciação mude muito de contexto a contexto. Mas mesmo tal questionamento evidencia a tensão ainda em jogo no convívio entre as línguas nativas― segundo o tradicional olhar eurocêntrico, “exóticas”― e o português. Gonçalves (2001, p. 978) afirma-nos que: [...] as novas gerações das classes mais favorecidas dos centros urbanos já não aprendem línguas bantu, podendo considerar-se que existe uma comunidade de locutores que não só se comunicam exclusivamente em Português (mesmo que esta não seja a sua L1), como escolhem esta língua como a única a transmitir às novas gerações. No assim chamado processo de nativização do português em Moçambique― e também válido para Angola― há o claro e autoevidente pressuposto de tornar a língua nativa a seus habitantes, ou melhor, fazer dos moçambicanos nativos em língua portuguesa. Rajagopalan (20003) põe em forte suspeição o conceito de falante nativo, tal qual caracterizado pela tradição linguística, especialmente a partir de Chomsky, em um processo que denomina “apoteose do nativo”, no qual se lidaria com um falante ideal. Mais que isso, alerta-nos para a necessidade de se redimensionar o tradicional conceito de competência linguística tal qual construído por essa teorização, apontado como insuficiente a um contexto efetivamente multilíngue. Tendo isso em mente, constatemos que a identidade moçambicana, hoje, está a se construir, também, em e pela língua portuguesa. Firmino (2008, p.25) diz-nos: a adopção de uma «língua de comunicação mais ampla», o que ocorreu na maioria dos países africanos pós-coloniais (Heine, 1992), tem sido justificada com o facto de ela ser vital para o funcionamento das instituições políticas, económicas e sociais dos novos Estados. Uma outra justificação é a de que a «língua de comunicação mais ampla» reforça a integração de diferentes grupos no sistema nacional, onde supostamente uma língua de origem local teria efeitos destrutivos. Adicionalmente, assume-se que as «línguas de comunicação mais ampla» facilitam a inevitável integração do país pós-colonial no sistema económico internacional. Por outro lado, adiante ele também nos informa que: 241 [...] algumas opiniões apontam que um olhar atento às justificações habituais para o uso das «línguas de comunicação mais ampla» levanta questões que as põem em causa, como, por exemplo, o facto de estas línguas serem acessíveis a uma pequena porção da sociedade e, portanto, tal como as línguas de origem local, poderem ter efeitos divisórios. [...] embora as «línguas de comunicação mais ampla» ajudem a integrar África na cultura mundial e sejam politicamente neutras dentro do contexto da diversidade étnica que caracteriza os países africanos, as línguas excoloniais não encorajam a integração nacional. Outros ainda questionam a continuidade do uso destas línguas com o argumento de que elas são entidades intrusivas cuja institucionalização se correlaciona com políticas elitistas [...] É preciso, em meio a todas as ponderações, levar-se em conta que a função social das línguas aborígenes está a se modificar no espaço moçambicano, em novos papéis sociodiscursivos. A análise da relação entre línguas nativas e o português não pode ser feita ingenuamente ou com purismos; “elas [as línguas nativas] já não podem ser consideradas exclusivamente como meras distorções folclóricas das línguas europeias.”232. A adoção de línguas autóctones pode servir a projetos divisionistas, de elitização e hegemonizantes como ocorreu no Zaire e em Malawi (cf. Firmino, op. cit., p. 26). Mia Couto, em entrevista à revista Língua Portuguesa, afirma: “As línguas têm sempre uma vocação hegemônica e é preciso cuidado para que não ocorra lá [em Moçambique] o que ocorreu no Brasil, onde os idiomas nativos foram dizimados.”233. O português escrito, em nível formal nomeadamente, em Moçambique, ainda é, fortemente, referenciado na norma do PE. Já o oral está, aparentemente, como seria de se esperar, a traçar acelerado caminho próprio― poderemos, ainda, constatar ou não isso, em nossa análise dos corpora moçambicanos. Indubitavelmente, a questão da identidade linguística moçambicana é de grande complexidade. Como nos afirma Rosa (2007, p. 12): E é nessa direcção que se devem analisar, e entender, tanto o processo de re-standardização do PB, cujas variedades cultas urbanas estão a substituir, também na escrita, a norma-padrão brasileira (utilizada em contextos limitados e ligados quase exclusivamente à modalidade da escrita – a exclusão da escrita ficcional –), quanto o interesse que está a acompanhar o processo de nativização das duas variedades africanas em formação. [...] a actual complexidade do panorama lusófono pode ser representada através de uma rede policêntrica de comunidades linguísticas e redes sociais (principalmente nos países africanos, onde, por consequência do plurilinguismo, há comunidades linguísticas e comunidades de comunicação), caracterizada pela existência de um continuum de 232 233 Firmino (op. cit., p. 27). A voz de Moçambique. Revista Língua Portuguesa, nº 76, fev. 2012. 242 variedades diatópicas, detectável quase exclusivamente nas variantes cultas urbanas. Como dissemos, a literatura moçambicana de língua portuguesa tem apresentado uma expressão virtuosa, muito prestigiada em nosso país e com repercussão internacional. Seu nome de maior vulto, publicado em 21 países, é, sem dúvida, Mia Couto, possivelmente, hoje― quanto mais após a lamentável perda de Saramago― o autor de língua portuguesa vivo de maior trânsito internacional. Além dele, são também nomes de destaque Aníbal Aleluia, Eduardo White, José Craveirinha, Marcelino dos Santos, Noémia de Sousa, Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli, dentre outros. A questão de se escrever em português, pretendendo, a partir daí, um lugar ao sol, não é simples também na literatura, ainda mais na africana. Mia Couto (2009, p. 22), sobre isso, diz: A África tem sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e folclorização, e muito daquilo que se proclama como autenticamente africano resulta de invenções feitas fora do continente. Os escritores africanos sofreram durante décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se que seus textos traduzissem aquilo que se entendia como sua verdadeira etnicidade. Os jovens autores africanos estão se libertando da “africanidade”. Eles são o que são sem que se necessite de proclamação. Os escritores africanos desejam ser tão universais como qualquer outro escritor do mundo. (...) Há tantas Áfricas quanto escritores, e todos eles estão reinventando continentes dentro de si mesmos. E arremata: “Os autores africanos que não escrevem em inglês – e em especial os que escrevem em língua portuguesa – moram na periferia da periferia, lá onde a palavra tem de lutar para não ser silêncio.”. Nesse escrever em português, eclode inventividade, agregando à escrita tanto termos de línguas moçambicanas, como o faz, por exemplo, frequentemente, Aníbal Aleluia quanto incorporando os moçambicanismos à literatura como se vê em muitos outros, como o próprio Mia Couto. A presença de línguas moçambicanas na esfera literária lusófona dá-se ainda em variados níveis de aprofundamento. Destaque-se, em tal quesito, Ungulani Ba Ka Khosa, que incorpora em seu texto, constantemente, vocabulário das línguas nativas, esclarecendo-as não por meio de glossários, mas na própria narrativa. Há também tendências à publicação em um uso que segue, escorreitamente o PE, como Albino Magaia. Dos escritores moçambicanos, até 1989, apenas Bento Sitoe havia publicado em língua bantu, o tsonga. 243 Hoje, da mesma forma que podemos falar de brasileirismos e lusitanismos no português, já é possível identificar moçambicanismos. No nível lexical, encontramos, por exemplo: machimbombo (utilizado em alternância com a forma de PE, autocarro), maningue (correspondente a muito), quinhentinha (cinquenta centavos), bacela ou saguate (gorjeta), biznar (vender, advindo de business, em inglês), boss (patrão, em vocativos principalmente, tratamento comum de vendedores, sobretudo, a turistas brancos), cacimba (neblina, nevoeiro), caniço (periferia da cidade, caracterizada pela construção improvisada de casas), capulana (pano multicolorido, usado principalmente em saias ou para sustentar o bebê junto ao corpo), Karingana wa karingana (expressão equivalente a Era uma vez), maca (problema, confusão, briga), mufana (rapaz, garoto), nice ou naiss (bom, bonito, agradável), tuga (termo utilizado também em Portugal, para se referir aos próprios portugueses; com conotação originalmente depreciativa em Moçambique, ao contrário de Portugal), bazar (fugir, sumir), xiconhoca (reacionário, e, também, egoísmo, preguiça, alcoolismo), xirico (rádio pequeno à pilha), caxico (bajulador), xuxudado ou chibado (bêbado), bumbar bué (trabalhar duro), lá nas mabululas (muito longe, “no fim do mundo”), dikuenzo (soldado, policial), kamba (amigo), muxima (coração, centro da cidade), dumba-nengue (mercado informal). Estes são apenas alguns exemplos de palavras já anexadas à língua portuguesa no cotidiano de Moçambique234. Por certo, seu número é bem maior e esse pequeno mostruário serve para ilustrar a vitalidade e renovação da língua no país. Gonçalves (2001) considera que é, justamente no período em que o português é L2, para a maioria de seus usuários, que a língua está mais sujeita a intensas mudanças em sua estruturação gramatical, em formato de PM. Assim, a futura norma de uso da variedade local do português, inevitavelmente, há de contar com o conjunto das contribuições já em trânsito para o idioma oficial, vindo das línguas autóctones. Segundo Petter (2009), das poucas fontes brasileiras com que pudemos contar, já é possível delinear pontos coincidentes, no uso linguístico, entre o PM e o PB e, ainda, entre também o português angolano (PA). A autora, ao traçar sua comparação de variedade do português, frisa que o PB, tal qual o PM e o PA, é uma 234 Veja-se também o Pequeno Dicionário de Moçambique, de Antônio Carlos Pereira Cabral, de 1972. Já para uma consulta virtual de caráter ilustrativo: http://machadoalbertocarlos.wordpress.com/2011/05/26/maputenseportugues-breve-glossario. 244 língua também não nativa, embora, usualmente, não seja esse o tratamento ou a percepção que receba. As línguas bantu, disseminadas em todo o território moçambicano e majoritárias dentre as nativas angolanas, foram as que, no passado, entraram fortemente em contato com o português, no Brasil, durante todo o vergonhoso e horripilante ciclo da escravidão. Para a autora, tal dado poderia sustentar que haja uma relação de continuum entre PB, PM e PA. Tratar-se-ia de um continuum afrobrasileiro, em suas palavras, apesar da separação espaço-temporal, devido à qual não se poderia vaticinar ou mesmo especular os rumos do PM e do PA. Segundo ela, há entre as três variedades, semelhanças em: a não marcação de concordância nominal em todo o SN, reservando a marcação morfológica apenas ao primeiro elemento do sintagma; a concordância verbal com um núcleo nominal generalizada em 3ª pessoa do singular; polissemias lexicais de sentidos semelhantes entre si e divergentes com o PE, como, em exemplo dado pela autora, do verbo falar por dizer; transição de verbos intransitivos no PE a transitivos diretos em PB, PM e PA; uso da forma reta ele e suas flexões como objeto direto; divergência quanto à colocação das formas pronominais átonas. Sobre, especificamente, o último item, Vieira (2003) debruça-se em estudo contrastivo entre PE, PM e PB quanto à colocação pronominal em contextos orais e escritos, junto a lexias verbais simples, e chega aos seguintes resultados: Quadro 23: colocação pronominal em PE, PM e PB. DIALETO PE PM PB ORAL 53% 48% 89% ESCRITO 55% 58% 54% ORAL 47% 52% 11% ESCRITO 44% 40% 46% COLOCAÇÃO PRÓCLISE ÊNCLISE 245 Acrescente-se que, nesse levantamento, não se verificou mesóclise na oralidade em nenhum dos três dialetos, registrando 2% de ocorrência na escrita tanto do PE quanto do PM, atestando o franco desuso dessa colocação. Ao contrário do propalado, vemos, no PE, uso proclítico e enclítico equivalentes. Por outro lado, no PB, confirma-se o uso categórico da próclise na oralidade e leve tendência à próclise na escrita. Já no PM, para nossa surpresa, a próclise e a ênclise apresentam distribuições próximas na oralidade e, na escrita, predomina a próclise. Isso contraria o que sustenta Gonçalves (2001), ao afirmar que a colocação categórica do PM é enclítica, mesmo nos contextos em que a norma do PE optaria por próclise, como em Há pessoas que opõe-se à religião. Registre-se ainda que os dados de escrita são todos advindos de jornais e revistas de grande circulação nos três países. Já em relação a locuções verbais, o uso dos clíticos mostrou-se majoritário, nas três variedades, em posição interverbal na escrita e na fala. Sobre as mudanças ocorridas e já verificadas no PM, há distintos olhares dos mais diversos autores. Focaremos, primeiramente, no que consideramos mais consensual e depois citaremos algumas observações mais específicas235. I. No campo fonético-fonológico236. Em tal seara, observamos que há, ainda, muita instabilidade e os autores procuram ser não taxativos aí. A língua nativa do falante parece ser ainda fator determinante para as mudanças verificadas, em processo ainda muito dinâmico. Assim, por exemplo, um falante de emakhuwa, segundo Firmino (2008), provavelmente, dirá [katu] por [gatu], já que sua língua não possui oclusivas sonoras. Talvez seja isso a que Vilela (1999b) também se refira, ao constatar que, por vezes, não se verifica, no PM, a distinção entre oclusivas homorgânicas: [d] ou [t] e [k] ou [g]. O mesmo autor afirma, genericamente, que a nasalização aí auscultada é incompleta em relação ao PE. Talvez esteja a se referir à queda de nasalização verificada na fala tonga, para o português: [kota], conta, [pote], ponte. Ao contrário, verificase, nos falantes de changana, frequente acréscimo de nasalização: 235 Todos os exemplos seguintes são recolhidos de VILELA (1999b), FIRMINO (2008) GONÇALVES (2001), GONÇALVES (1996) e REITE (2013). 236 Visando ao maior detalhamento da fonética e fonologia do PM, indicamos Ngunga (2012). 246 [ẽkonomya] para economia, por exemplo, a não distinção entre [l] e [r] para as línguas emakhuwa, makonde e yaawo; [kalu], tanto para caro quanto para calo. Gonçalves (1996) destaca a não redução das vogais átonas, em contraste com o que se observa no PE. Ainda, a alveolarização da líquida palatal: [trabalu] por [trabaλu], [fala] por [faλa], atestada em falantes de changana. Como se pode observar neste breve mostruário, a concretização das mudanças, no plano fonético-fonológico, no PM depende, fundamentalmente, da língua de origem. Como já observamos, para muitas dessas modificações, os linguistas locais e mesmo os portugueses, ainda hesitam em conferir-lhes um estatuto de mudança já atestada no PM. II. No plano da morfologia. Aí, diferentes autores constatam: a frequente ausência de artigo: Fui buscar livros; Todas pessoas chegaram. Concordância geral pela 3ª pessoa do singular: Eu esperou; Como eu trabalho, não tem tempo. Uso do pronome lhe em vez de o/a e vice-versa: Eu amo-lhe, Vi-lhe ontem, Disse-a a verdade. Sufixação inovadora, em relação ao PE: emprestação, ajudamento, perigosidade, falagem, em lugar de, respectivamente, empréstimo, ajuda, perigo, fala. Gonçalves (2001) constatará que há, no PM, uma tendência à rejeição à derivação regressiva. A autora ainda destacará alta produtividade, em PM, dos sufixos –ar, -ção, - gem, -idade e –mento. Neologismos verbais amplos: desconseguir, barulhar, confusionar, lagrimar, bichar (por formar fila). Composições inovadoras: predisponto ou predispronto (predisposto e pronto). Tal qual observamos no PB, o frequente uso de indicativo por subjuntivo: Talvez eu tenho vocação; Embora que eu sou mais novo, posso dar uma opinião; Talvez aquele professor trabalhava a muitos quilómetros daquela feira; Não há ninguém que fica satisfeito; Nós não dizemos que as 247 mulheres não devem beber. No plano morfossintático, o conectivo que, muitas vezes, não desencadeia uso de conjuntivo. Regularização paradigmática do imperativo237, passando a ser todo suprido por formas do subjuntivo. III. No plano sintático238: mudança no sistema de regência preposicional, em relação ao PE: Chegou cedo na escola (tal qual no PB), O pai volta em casa às sete (também válido para o PB), Visitei no museu de História Natural, Frequenta na escola primária. Vilela (1999b) acrescenta usos como eliminar com, insistir a, repercutir-se a. Junto a isso, ocorre, naturalmente, mudança profunda na transitividade de alguns verbos, também associada à reestruturação de regência preposicional: Ninguém protestou a iniciativa; Chegou na sala, entregou o emissário; Eu precisei muitas informações, Nasceu dois filhos na Suazilândia; O Fernando preferiu-se de tal rapariga; Os bandos armados sempre batiam as pessoas. Como consequência, as possibilidades de apassivação também são transformadas: Os rapazes foram sexualmente abusados por padres; Todos estes homens foram nascidos em Moçambique; Nós fomos ditos que hoje não há aulas. Gonçalves (1996) aponta que um fator determinante à alteração dos padrões de transitividade e regência no PM seja o SN conter o traço [+ humano], o que o colocaria em situação de proeminência e levaria à queda preposicional. Assinale-se que o traço [+ humano] é, gramaticalmente, relevante na maioria das línguas bantu. Já Firmino (2008, p. 18) assinala que “Parece que os falantes estão a anular a diferença nos papéis semânticos relacionados com os pronomes directos e indirectos”. Assim como no PB e já comentada, a não concordância marcada por morfema de plural em todo o SN, mas apenas em seu elemento de abertura. 237 Para estudo detalhado do imperativo em PM, recorra-se a GONÇALVES (1987). No plano da sintaxe do PM, a obra mais detalhada e aprofundada com que deparamos para maiores informações descritivas foi GONÇALVES (1996). 238 248 Utilização inovadora de verbos-suporte, com o verbo pôr: pôr um grito, pôr explicações, pôr uma mentira. Dequeísmo, incorporando também a mudança no quadro regencial: Toda a gente sabe de que um dirigente tem direito de regalias. Neutralização da distinção entre tu e você, por um lado aproximando-se do PB, mas com oscilação da concordância verbal, em usos, logo, distintos do PB, possibilitando realizações como: Se arrancas o salário, você vai passar mal. É possível, em PM, ouvir algo como: Você és... Em consequência disso, como no PB, prefere-se dele/ dela a seu/ sua, por perfazer maior clareza. Constante uso do infinitivo flexionado a que Gonçalves (2001) caracteriza como propriedade caracterizadora, desde já, do PM: As pessoas preferem ganharem naquela hora mesmo; Os professores não conseguem darem as aulas, Os namorados procuram conhecerem-se; Não sabemos como levarmos os depósitos de água. Queda de clíticos em típicos verbos pronominais, assemelhando-se ao que, internamente no PB, verifica-se no subdialeto mineiro: levantar, queixar, sentar, zangar. Utilização, tal qual no PB, de relativas copiadoras e cortadoras: O rapaz que ela gostava dele é moçambicano; Na banca que ela comprou o tomate estava mais barato. Negação simples, como constatado por Vilela (1999b): Nem difamou alguém. Vilela (1999b) também constata concordância do particípio com o complemento verbal, tal qual no português clássico: Ele tinha roubados gatos. IV. Em termos semânticos: comum ressemantização do léxico. A título de exemplos: Eu não sou boa historiadora (contadora de histórias); Nas escolas não apanham boa educação (por receber); Foram reunificadas 315 crianças aos progenitores (por reunidas); Minha mãe é muito doentia (que adoece facilmente); Não vi o Tino na semana antepassada (antes da passada, por analogia com antepenúltimo). Ainda, enunciados como O 249 carro dormiu lá fora; Eu oiço o cheiro da comida podre ou Eu vejo frio, produzidos sem intenção estilística e, possivelmente, devidos à interferência da percepção semântica da língua bantu de origem transladada ao português. V. Na área exclusivamente lexical: os exemplos são em quantidade enorme e provenientes de diferentes línguas. Com certeza, o empréstimo lexical de termos oriundos das línguas nativas é o que há de mais dinâmico no PM. Alguns desses casos já citamos, a título de moçambicanismos. VI. Há a possibilidade de um inventário colossal dos vocábulos de origem nativa emprestados ao português, mas não é nosso objetivo, aqui, a formação de um pequeno glossário luso-moçambicano239. Enfim, o PM apresenta já uma série de especificidades. Hoje, é ainda delicado, em algumas observações vaticinar quais sejam mais sólidas e as mais instáveis, inclusive na perspectiva do estabelecimento de uma norma para o PM. Destaquemos que os próprios professores não são usuários da norma do PE. Quanto a isso, Gonçalves (2001, p. 13) assinala que: um primeiro passo a dar tendo em vista a solução desta contradição entre a norma ideal e norma « real» é o estabelecimento de um padrão moçambicano para a língua portuguesa. Tal como tem sido feito noutros países, esta norma seria muito provavelmente estabelecida com base no discurso de pessoas instruídas [...] deveria ser escolhido como «Português Moçambicano Padräo» (PMP) o dialecto educado, «que é relativamente estável e suficientemente adequado para ser institucionalizado». [...] Adiante, a mesma autora dá-nos uma noção da complexidade de estabelecimento de uma norma para o PM: O estabelecimento da norma moçambicana culta do Português é uma tarefa particularmente complexa, uma vez que o discurso dos falantes de uma L2 se distingue por uma maior variabilidade do que aquela que se verifica em falantes de L1s, i.e., os traços elegíveis para esta norma não se distribuem uniforme e sistematicamente pelos falantes que podem ser classificados como «instruídos». 239 Para maiores dados sobre isso, consulte-se também REITE (2013), um estudo sociolinguístico abrangente, a partir de corpus de imprensa, sobre o PM. 250 Num estudo realizado sobre o PM, com base em informantes de várias regiões do país que frequentavam um Curso de Formação de Professores de Português (Maputo: 1986), verificou-se, por exemplo, que mesmo as construções que ocorriam de forma mais regular no seu discurso nunca chegavam a ser produzidas por mais de 60 % do grupo auscultado.240 O estabelecimento da norma culta para o PM está ainda por se construir no uso cotidiano. É tarefa para o séc. XXI, possivelmente, ainda para sua primeira metade e é fundamental para a pauta lusófona, em uma perspectiva plural e policêntrica para a mesma, assim como nos demais países que congregam, hoje, esse conjunto. Traçada, em linhas bem gerais e resumidas, esta mínima apresentação do PM, passaremos no próximo capítulo ao estabelecimento de considerações e exposição de metodologia para lidar com o corpus dessa variedade, bem como do PB e do PE. É importante ressaltar que, segundo consulta por nós feita, diretamente, à Cátedra Português: língua segunda e estrangeira da UEM foi-nos assegurado, por contato virtual, que não há muita investigação, no escopo dos estudos linguísticos em Moçambique ou em Portugal que seja do conhecimento da referida cátedra, sobre, especificamente, o futuro verbal português em PM. Assim, partiremos, em grande parte, de nossos apontamentos sobre esse tempus português em geral, junto ao mínimo suporte teórico complementar que obtivermos, e dos dados que os corpora moçambicanos, gentilmente ofertados pela cátedra da Universidade Eduardo Mondlane, apresentarem-nos, de forma direta ou indireta, para a descrição e estudo do futuro português e, também, lusófono. Como diz Mia Couto, em entrevista à Revista Brasil de Literatura241: “Há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas, das que estão a marcar parte de uma coisa que é ainda só um projecto: a moçambicanidade”. 240 241 GONÇALVES (2001, p. 14). Entrevista em 22 de abril de 2002. 251 6 OS CORPORA A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente. Albert Einstein Eis que alcançamos o ponto de apresentação de nossos corpora. Como temos comentado, ao longo desta tese, trabalharemos aqui com dados de três variedades da língua portuguesa: o PB, o PE e o PM. Já elucidamos no capítulo anterior que é preciso reconhecer uma assimetria entre, de um lado, PB e PE e, de outro, PM, já que este último não se configura ainda como variedade, efetivamente, nacional, nativizada e universal como aqueles. Óbvio que tal fato trará consequências na própria configuração dos corpora com que lidaremos. Para as três variedades, trataremos tanto de língua escrita quanto de oral, o que nos levará a necessárias considerações que tomarão curso um pouco adiante, sobre as duas esferas de realização linguística,. Para a conformação de nosso trabalho, valemo-nos de distintos corpora, todos acessados virtualmente, baseados em três grandes universidades de referência de cada um dos países em investigação: a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio dos projetos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras, especialmente o NURC-RJ (Projeto Norma Linguística Urbana Culta) e VARPORT (Projeto de Análise Contrastiva de Variedades do Português); a Universidade de Lisboa, a Clássica (UL), por meio de seu Centro de Linguística, através do qual tivemos acesso ao CRPC (Corpus de Referência do Português Contemporâneo), composto por 311, 4 milhões de palavras, constituindo-se no maior corpus de língua portuguesa no mundo e a Universidade Eduardo Mondlane (UEM), por meio da Cátedra de Português, Língua segunda e estrangeira, por meio da qual obtivemos dados escritos e orais do PM correspondentes à pesquisa linguística da universidade. 252 Procederemos à caracterização de cada um desses corpora obtidos, mas, antes, destaque-se que parte apreciável dos dados possui interface entre as fontes, estando presentes em mais de uma delas. Antes de prosseguirmos a esmiuçar nossas fontes, julgamos necessário ponderar sobre os limites, espaços e traços das esferas linguísticas oral e escrita, em relevo em nossa abordagem. 6.1 Língua escrita e língua oral Primeiramente, precisamos deixar claro em que plano o cotejamento pretendido entre realizações escritas e faladas do futuro do presente nos interessa. Nossa tese tem dois grandes eixos: um de descrição pancrônica dos tempora de futuro portugueses e outro de comparação entre os usos do futuro do presente entre três variedades da língua. Como já dissemos alhures, o futuro do presente corresponde, em nossa visão, ao protótipo cognitivo de futuridade gramaticalizado em expressão verbal na língua. Reconhecemos como expressão desse tempus: a sintética com desinências modo-temporais –ra/re; a locução verbal com ir no presente do indicativo, seguido por infinitivo; a também locução verbal formada por ir no futuro do presente, acrescido de infinitivo e o verbo morfologicamente como presente, expressando valor de futuro do presente. Haveria, talvez, ainda a possibilidade de haver + de + infinitivo, contudo, ao menos para PB, julgamos tal possibilidade tendendo à irrealização, salvo em contextos excessivamente formais ou muito estilísticos. Se deparamos com ela nas mencionadas situações ou ainda nos exemplos do PE ou do PM, haveremos de considerá-la. Assim, buscaremos, em nossos dados, aferir as frequências de uso de cada uma dessas formas a partir de realizações orais e escritas. Em seguida, passaremos ao cotejamento entre as variedades lusófonas pretendidas, no que tange ao uso do futuro do presente. Interessam-nos os resultados absolutos de uso de cada uma das 253 formas de futuro do presente, mas também atentaremos à distinção entre tais formas em meio escrito e oral, para os três dialetos e, se possível, buscaremos generalizações de uso escrito e de oral abrangentes ao conjunto da língua. Antes, aprofundemo-nos na discussão sobre língua falada e língua escrita. Há uma visão tradicional, ainda de grande fôlego, de que escrita e fala constituem meios de realização antagônicos dentro da língua. Em termos estritamente leigos, além disso, ainda deparamos com a recorrente crença da precedência da escrita sobre a fala, sintetizada numa formulação que poderíamos simplificar como “deve-se falar como se escreve”. Claro que isso não se dá à toa ou de forma alheia à sociedade. Em nossa sociedade, há clara primazia da escrita. Ela está intimamente ligada à gênese dos estudos gramaticais, normativos desde a Grécia, ou seja, a visão prescritiva em torno da escrita é muitíssimo ancestral242. É a escrita uma verdadeira tecnologia a serviço do homo sapiens que mudou definitivamente o curso da história e a nossa própria possibilidade de lidar com a transmissão de conhecimento nas sociedades que dela fizeram e fazem uso. Hoje isso continua fortemente flagrante. Aliás, nas palavras de Marcuschi (2011, p. 16): Numa sociedade como a nossa, a escrita, enquanto manifestação formal dos diversos tipos de letramento, é mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social indispensável para enfrentar o dia a dia. É preciso atentar também para o verdadeiro massacre cultural/linguístico por que passam as sociedades ágrafas em nosso mundo, em seu convívio com a escrita e com as sociedades que dela se servem. No capítulo anterior, já mencionamos a situação do extermínio linguístico histórico promovido em nosso país. A Associação Internacional de Linguística (SIL) contabiliza 176 línguas nativas no nosso país243. A esse dado, incluamos o número de 55 línguas já consideradas extintas em território brasileiro, também segundo informações da SIL244. Dentre as línguas nativas vivas, encontramos situações de extinção em curso acelerado. Há línguas com 132 falantes (Anambé, no Pará), a língua Apalaí (também no Pará) contabiliza 100 pessoas e, segundo as mesmas fontes, corresponde a um povo monolíngue, o 242 Além das considerações que já emitimos sobre tal assunto nesta tese, para maiores informações sobre a gênese e história dos estudos gramaticais, ver NEVES, Maria Helena de Moura. A vertente grega da gramática tradicional. São Paulo: UNESP, 2004 e NEF, Fréderic. A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 243 Dados disponíveis em http://www.sil.org/americas/brasil/SILling.html e http://www.ethnologue.com/show_map.asp?name=BR&seq=10. 244 Ver http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=Br. 254 idioma Aruá tem 40 falantes considerados (em Rondônia). Enfim, a maior parte das línguas nativas brasileiras tem populações na ordem de poucas centenas de pessoas, quando não menos. Uma minoria delas tem populações na casa dos milhares, e dezenas de milhares são enumeráveis nos dedos da mão245. Como nos diz novamente Marcuschi (2011, p. 17), sobre “os usos da escrita”, “quando arraigados numa dada sociedade, impõem-se com uma violência inusitada e adquirem valor social até superior à oralidade, e também, mais à frente, ainda a respeito da escrita, “... mesmo criada pelo engenho humano tardiamente em relação ao surgimento da oralidade, ela permeia hoje quase todas as práticas sociais dos povos em que penetrou”246. Ainda é preciso considerar que em uma sociedade possuidora de representação escrita para sua língua, “mesmo os analfabetos [...] estão sob influência do que contemporaneamente se convencionou chamar práticas de letramento”247. Nesse ponto, faz-se necessário esclarecermos o conceito supracitado de letramento. Valemo-nos, como já referido, da teorização de Marcuschi (2011), para isso. O autor parte da premissa de que a relação dicotômica escrita versus fala não corresponde à realidade de usos linguísticos. Ancorado no fato de que a língua concretiza-se sobre a forma de gêneros textuais e de que essa mesma língua apresenta-se na forma de gradientes linguísticos, propõe um continuum entre escrita e fala. Já é ponto mais do que esclarecido nesta tese nosso grande acordo com uma abordagem prototípica da língua. A apreensão tão difundida acerca da contraposição entre escrita e fala tem por referência justamente os protótipos do que sejam ambos. Nessa contraposição, teríamos, em linhas gerais, segundo Marcuschi (2011) e retomado por Rojo & Schneuwly (2006): 245 Informações mais detalhadas em http://www.ethnologue.com/show_country.asp?name=Br. MARCUSCHI (2011, p. 19). 247 Idem. 246 255 Quadro 24: traços prototípicos de escrita e de fala. Fala versus Escrita contextualizada descontextualizada dependente autônoma implícita explícita redundante condensada não planejada planejada imprecisa precisa não normatizada normatizada fragmentária completa À visão acima esquematizada, Marcuschi (2011) denomina das Dicotomias Estritas e cita importantes nomes da história da Linguística como seus defensores: Bernstein, Labov, Halliday (em dado momento) e Ochs. Aí, vemos uma caracterização polar entre fala e escrita. Decorre daí “o inconveniente de considerar a fala como o lugar do erro e do caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua”248. Em clara divergência quanto a essa visão, é necessário que sejamos capazes de perceber uma relação entre escrita e fala em que ambas se constituam como pontos polares, porém dentro de um gradiente linguístico. Como nos dizem Rojo & Schneuwly (2006): Não existe ‘o oral’, mas ‘os orais’ sob múltiplas formas, que, por outro lado, entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podem se aproximar da escrita e mesmo dela depender – como é o caso da exposição oral ou, ainda mais, do teatro e da leitura para os outros –, como também podem estar mais distanciados – como nos debates ou, é claro, na conversação cotidiana. Em outras palavras, toda a questão vai muito além da visão simplista de que a escrita é uma mera representação da fala. A língua falada é, para Castilho (2004), em princípio, um diálogo em presença. Assim, a língua escrita o seria em ausência. Isso, nos referidos protótipos. Compreendendo a enorme gama de gêneros 248 MARCUSCHI (2011, p. 28). 256 contemporâneos, poderíamos provisoriamente pensar em um esquema com a seguinte formatação249: Esquema 17: gêneros de fala e de escrita, em termos de protipicidade. No polo oral, teríamos a conversação espontânea; ao passo que, no da escrita, textos teóricos e científicos. É fundamental notar que, no limite diagonal com GF1 (Gênero de fala prototípico), teríamos, por exemplo, o bilhete pessoal que, tendo como suporte, em geral, o papel, incorpora vários traços prototípicos da oralidade. Em contraposição, no outro extremo, fronteiriço a GE1 (Gênero de escrita prototípico), encontraríamos possivelmente a conferência acadêmica que, manifestando-se por meio vocal, tem toda uma roupagem modelar de escrita, muito comumente correspondendo a leituras de textos escritos. Em meio a isso, tantos outros gêneros híbridos, com mais peso oral ou maior densidade escrita manifestamse. Rojo & Schneuwly (2006), sobre o mesmo tema, informam-nos: [...] A relação entre gêneros orais e gêneros escritos não é uma relação de dicotomia. É antes uma relação de continuidade e de efeito mútuo, isto é, gêneros orais podem sustentar gêneros escritos; gêneros escritos podem sustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cada gênero oral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cada gênero escrito trabalhado na escola pressupõe o oral. Então, de uma certa maneira, esta é uma distinção relativamente artificial, pois há um entrelaçamento contínuo. Além disso, cada gênero oral é sempre também sustentado por um outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral e um gênero oral sobre o gênero oral, um discurso sobre. Cada gênero é sempre também objeto de outros gêneros de alguma maneira. E então há sempre o falar para escrever, o escrever para falar, o escrever para escrever e o falar para falar, o que mostra que sempre um gênero é dependente de outros gêneros, o que é um fenômeno evidente de intertextualidade, mas que está sempre na base de nosso trabalho. 249 MARCUSCHI (op. cit., p. 38). 257 Em uma formulação mais ousada e complexa, com explicitação dos gêneros, Marcuschi (2011, p. 42) apresenta-nos esta sistematização250: Esquema 18: fala e escrita, gêneros prototípicos e periféricos, segundo Marcuschi. Assim, é preciso rever certos estigmas acerca do uso escrito e do falado da linguagem. A fala pode, por exemplo, não ser dialogada, ao passo que a escrita pode se dar em contexto dialógico. Pensemos na internet e no apreciável repertório de gêneros híbridos entre escrita e fala que a mesma apresenta. Mas, não construamos a visão de que tais gêneros componentes da escala escrita-fala são oriundos tão somente da contemporaneidade. Um texto teatral, por exemplo, lida com ambos os meios. E da mesma maneira, a representação dramática em si251. Um noticiário televisivo idem. E os exemplos são em número bastante elevado, enfim. Os gêneros são dinâmicos e multifacetados como reflexo da própria sociedade em que estão inseridos e como canais que são das variadas gamas de expressão dessas sociedades, como nos confirma Bazerman (2006), ancorado no 250 MARCUSCHI (2011, p. 41). A relação entre texto teatral e representação é deveras interessante, pois que parecem ser faces da mesma moeda. O texto parte do suporte escrito, mas tem por referência a fala; já a encenação se dá por suporte oral, mas está referenciada na escrita. 251 258 referencial de Bakhtin. Como exemplo desse dinamismo, pensemos, por exemplo, nos vários gêneros acessíveis por meio de um jornal diário. No séc. XIX, os gêneros aí contidos não abrangiam, naturalmente, algumas necessidades da sociedade atual. Mais que isso, sabemos pela tradição dos folhetins românticos desse mesmo século que os vários gêneros de um jornal impresso já foram mais objeto de interação oral do que hoje. Referimo-nos à família pequeno-burguesa (cremos que o termo classe média seria impreciso historicamente) típica do séc. XIX reunida para a leitura do folhetim, dando início ao percurso que sedimentou as atuais telenovelas. Para acrescentarmos mais um enfoque enriquecedor a essa reflexão, consideremos a distinção que Rojo & Schneuwly (2006) fazem entre o escrito e a escrita. Aquele conceito faria referência tão somente à materialidade gráfica; já este diria respeito à inserção do ato de se comunicar por escrito, em meio às práticas sociais, estando, portanto, sujeita a toda sorte de interferências e apta à variada gama de interações sociais. Eis que, então, a visão da escrita como regular e monolítica cai por terra. A escrita está também sujeita à heterogeneidade: incorporação de elementos supostamente da oralidade, símbolos auxiliares de ordem variadíssima, coexistência com elementos visuais e/ou pictóricos de vasta gama, formatação/ diagramação, tamanhos de letras, etc. Isso tudo sem considerar que, hoje, a escrita abrange dois grandes formatos distintos: o manuscrito e o digitado, este último de extensão muito mais ampla do que seu antecessor datilografado. Falar de escrita inclui ambos e outras manifestações híbridas entre esses. Já se tornou objeto, por exemplo, da ficção científica televisiva252 uma sociedade humana na qual só se digita, sendo objetos como lápis, canetas e afins fora do alcance do cidadão comum. É por todas essas razões que Marcuschi (2011) opta por falar em letramento253 e oralidade, em vez da dicotomia estanque fala versus escrita. Esses novos conceitos envolveriam todo um conjunto de práticas sociais e seriam amplamente intercomunicantes entre si, em uma relação claramente dialógica, no sentido mesmo bakhtiniano que esse adjetivo carrega. Como conclui, em reiteração, Bazerman (2006), o mundo da escrita e o da fala mantêm entre si uma relação complexa de efeito recíproco e de interferências, por meio de gêneros. Esse processo pode ser 252 Como visto na série Fringe, no ar, de setembro de 2008 a janeiro de 2013, dirigida por J.J. Abrams. Faz-se necessário, a partir deste ponto, entender, pois, o termo letramento em acepção distinta da mais usual, embora os sentidos em jogo aí não se excluam, sendo antes suplementares. 253 259 melhor compreendido em termos de um “sistema de atividades” que põe em circulação e em relação um “sistemas de gêneros”. Em sua obra, Marcuschi (2011) dedica-se, sobremaneira, à explicitação e proposição de análise do que seria a prática de retextualização da fala para a escrita e de aplicações e atividades envolvendo tal prática. Apresenta-nos, com tal preocupação, os aspectos cruciais que tomam curso nesse processo254 e procede à detalhada exposição desses processos no marco geral dessa retextualização. Compreendemos que não nos cabe, em face de nossos objetivos e opção metodológica, enveredarmos por tal seara que soaria como evidente digressão. O que, julgamos, cabe-nos é situar nosso corpus nos marcos da teoria aqui apresentada de continuum fala-escrita. Ao optarmos pelo bancos de dados aqui em jogo, já antecipamos nossa preocupação quanto à simetria de análise que teremos pela frente. Tanto os dados escritos quanto falados são oriundos de gêneros heterogêneos. Para o universo da oralidade, contamos, como gêneros: as conversações do tipo DID (entre documentador e informante)― predominantes nos corpora, as elocuções formais (EF), as conversações entre dois informantes (D2) e ainda entrevistas à televisão ou rádio(ETR). Dentre essas últimas, presentes nas mostras de PE e de PM, pelo menos uma delas possui características claras de elocução formal. Os temas das entrevistas/ inquéritos é variadíssimo e constará de nossos anexos, a cada inquérito nele presente, bem como a íntegra de cada um desses inquéritos. No conjunto dos dados orais, muito mais há de fala livre do informante, dentro de um determinado tema proposto pelo documentador que funciona como “âncora”, meramente, a manter o prosseguimento discursivo do entrevistado. Na verdade, nas entrevistas de PE, especialmente, o documentador― quando o há, o que só não se verifica nas quatro ETR― possui papel um pouco mais interveniente do que nos demais dados coligidos tanto de PB quanto de PM. Na totalidade dos inquéritos orais com presença explícita da fala do documentador, decidimos considerá-la também, como fonte de dados, por dois grandes motivos básicos. Primeiro, porque nosso objeto de investigação não é o objeto dos inquéritos em questão. Portanto, o entrevistador não haverá de manifestar afetações subjetivas quanto aos eventuais usos de formas verbais no futuro. Outro motivo deve-se à nossa premissa de que o 254 A idealização, a reformulação, a adaptação, a compreensão. Para maior detalhamento, ver MARCUSCHI (2011, pp. 67- 72). 260 futuro do presente é um tempus de baixa produtividade na maioria dos gêneros. Esperamos deparar mais vastamente com pretéritos ou com presentes do que com futuros em si, mesmo que aí inclusos presentes semantizados como futuros. Sobre os dados de oralidade, inicialmente pretendíamos enfocar tão somente os dados do NURC-RJ para o PB. Contudo, dada a caracterização do corpus de oralidade do PE, bastante heterogênea, resolvemos acrescentar à nossa mostra do PB também dados de fala popular do programa VARPORT, compreendendo entrevistas feitas com falantes com nível de escolarização até a 4ª série. Assim, o corpus do PB ficou composto por 2/3 de entrevistas de falantes considerados cultos e 1/3 representantes da fala, como considerada pelo VARPORT, popular. Já a composição dos inquéritos orais do PE é esta. Quadro 25: escolaridade dos informantes portugueses, corpus oral. Nível de escolaridade Quantitativo de falantes Analfabeto 3 Até o 6º ano (fim do 2º ciclo básico) 7 Até o 9º ano (fim do ensino básico) 5 Até o 12º ano (fim do ensino secundário) 5 Superior 9 Não declarado 1 30 Já o PM fornece-nos cinco fontes orais de estudantes universitários― o que os linguistas moçambicanos tomam como falante culto― e outras quatro de graus de instrução variada, desde o 4º ano pelo menos, envolvendo tanto falantes de português como L1 quanto, L2, todos de Maputo. Os últimos são oriundos do projeto Panorama do Português Oral de Maputo e toda a constituição desse trabalho pioneiro, iniciado em 1992, está registrada em GONÇALVES & STROUD (1997), projeto e obra a que tivemos acesso também via UEM. Os dados da oralidade moçambicana acabaram por ficar reduzidos, em comparação aos brasileiros e portugueses. Obtivemos acesso ainda, via UEM, a um corpus oral de crianças do 3º ano que, julgamos, poderiam criar sério disparate em nossa análise. O PM já apresenta a natural heterogeneidade oriunda do quadro de convívio amplo de L1 e L2. Se a isso, juntássemos dados de falantes aprendizes, 261 em idade tenra de escolarização, poderíamos esgarçar os limites dessa hereogeneidade. Além disso, via UEM/CRPC, acessamos dados moçambicanos no Corpus África do CRPC. Contudo, tais dados estão disponíveis para consulta por palavras ou expressões, catalogadas em células digitais de busca, sem acesso ao texto do qual provêm. Por isso, preferimos também não utilizar tais fontes. Retornando aos dados do PE, recolhidos junto ao CRPC, não localizamos qualquer corpus lusitano com a especificidade de falantes cultos. Paira-nos a impressão forte de que, como não fosse a discussão acerca do uso normativo em Portugal da mesma intensidade da verificada em suas ex-colônias, tal questão não evocaria o mesmo nível de primazia que no Brasil ou em Moçambique. Ainda acerca das fontes orais, há de se observar que, em uma escala dentro dos pressupostos levantados por Marcuschi (op. cit.), os dados de DID, predominantes, aproximam-se do protótipo de fala, já que se assemelham à conversação espontânea. Os do tipo D2, possivelmente, ainda mais. Mesmo os dados ETR recuperam elementos do protótipo de fala. Já no espaço da escrita/letramento, contamos com maior heterogeneidade entre as fontes de cada dialeto em estudo. Tanto para o PB quanto para o PE dispomos de três gêneros: anúncios, editoriais e notícias. Os veículos de informação utilizados do Brasil foram, predominantemente, Jornal do Brasil e O Globo, dois jornais de abrangência nacional, no que concerne ao público leitor e ao enfoque jornalístico pretendido. Ambos, ainda em sua caracterização jornalística, são voltados ao público leitor típico das camadas médias da sociedade brasileira, portanto, não afeitos a apelos de tom popularesco e/ou sensacionalista. Apenas nos editorias, há maior diversidade de jornais, alcançando, além dos supracitados, Jornal do Comércio, O Fluminense e O Dia. De Portugal, em veículos de caracterização equivalente, contamos com os jornais O Público e Diário de Notícias, como fontes do conjunto de nossos dados de PE escrito, em notícias e em anúncios. O universo dos editoriais portugueses, em todos os seus exemplos, é diverso dos periódicos citados, reportando-se ao semanário Expresso, conforme obtido na interface VARPORT/CRPC. Lidaremos com disparidade de fontes no PM. Os dados de que a UEM dispõe, em corpus, sobre a escrita moçambicana culta, provêm de textos de caráter dissertativo/acadêmico― com uma presença minoritária de cartas narrativas― produzidos por estudantes universitários. A grande clivagem que seu corpus estabelece é entre dados produzidos por estudantes oriundos de Maputo, 262 onde, como já sabemos, há um nível nomeadamente maior de uso do português, inclusive como L1, e de outras províncias. Ademais, na assimetria observada entre os gêneros escritos em questão, de um lado, fontes jornalísticas no PB e no PE, de outro, textos dissertativos no PM, consideramos que no conjunto dos gêneros escritos em questão paira uma busca por uso formal que, minimamente, equiparaos. Consideramos, inclusive, oportuno o gênero textual do PM escrito, uma vez que, segundo atestam os autores que tomamos como referência ao estudo dessa variedade, na mídia, especialmente escrita, ainda vigora a norma europeia. Portanto, para flagrarmos usos de maior marca identitária moçambicana― como observamos, por exemplo, no capítulo anterior, na questão da colocação pronominal, as dissertações são melhor fonte, no meio escrito, do que textos jornalísticos. Na verdade, os anúncios integrantes das fontes escritas de PB e de PE correspondem a textos publicitários, em que pese serem veiculados em jornais e serem catalogados, pelo próprio VARPORT, como jornalísticos. Espera-se neles uma linguagem menos formal do que das notícias e, certamente, quanto mais em relação aos editoriais. Do ponto de vista de usos escritos, estamos a trabalhar, portanto, com uma base que, por um lado, aproxima-se do protótipo de escrita. No caso específico dos anúncios, abre-se expectativa de uma linguagem que possa incorporar linguajar mais cotidiano. Assim, ao todo, lidamos com uma linguagem ao menos mediana de ampla aceitação social, sem estigmatização e, reiteramos, no geral, similar ao protótipo escrito. Fica, então, demarcado, claramente, que nosso estudo e análise, em corpus, recobre desde os usos entendidos linguisticamente como cultos a um padrão mais cotidiano, atingindo usos tidos e rotulados como populares. Aí, repousa a grande simetria geral dos dados a serem aqui analisados, dentre falados e escritos. Partimos de uma mostra representativa de falares e escreveres variados, mas que permite uma visão panorâmica que se aproxima dos protótipos tanto do universo escrito quanto do falado. 263 6.2 Metodologia, identificação e seleção de corpus Feitas todas as necessárias ponderações sobre a natureza falada ou escrita dos dados em jogo, esclareçamos ainda o método de análise, bem como a conformação dos corpora em si, em cada um dos dialetos portugueses em estudo. Quadro 26: composição dos corpora de língua portuguesa. PB ORIGEM PE ORAL ESCRITO NURC-RJ + VARPORT ORAL CRPC VARPORT ÉPOCA ESCRITO ORAL ESCRITO VARPORT/ UEM/CRPC UEM 2002/ 2003 CRPC Décadas De 1975 a Décadas De 1975 a 1986 de 70 e de 2000. de 70 a 2000. 1987, 1992 90. GÊNERO/ PM 90. DID e EF e e 2008/2009. a 1995. Anúncios, DID, editoriais, e ETR EF, notícias. Anúncios, DID, D2 e Dissertações, editoriais, ETR resenhas e cartas e notícias. narrativas de estudantes universitários. QUANTIDADES 32+ 3 22+ 7 + 30 26 + 1 + 3 41+ 10+ 12 6+2+1 35 + 37 35 59 30 63 9 72 (respectivas) TOTAL 94 93 81 Há alguns aspectos na configuração acima que merecem comentários. Primeiro, as interfaces entre os corpora. Aí, subentende-se a compreensão, construída no seio da comunidade científica das grandes universidades públicas envolvidas e no lastro de outras tantas que contribuem para essa cultura, de que dados como esses não são propriedade privada, fechada, inacessível ou restrita deste ou daquele grupo de pesquisadores, mas, pelo contrário, precisam estar à disposição do manuseio público e para fins igualmente públicos de difusão de conhecimento e aprofundamento e desenvolvimento de saberes, hoje, e, sobretudo, para as gerações futuras. 264 Vemos, especialmente, o CRPC como ponto privilegiado de interface, integrando em uma ponta o Brasil e em outra Moçambique, com dados partilhados com ambos. Dada a dimensão titânica do projeto em questão, seria mesmo bastante esperável que esse fosse, como é, um ponto de partilhamento, ancoragem e referenciação dentre os corpora sobre língua portuguesa no globo255. O CRPC256 possui sua base, marcadamente, em Portugal, apresentando também um volume de dados apreciável para os demais países lusófonos. A título de curiosidade, vejamos sua distribuição de dados por palavras coletadas e por país. Ilustração 7: composição e distribuição do CRPC. Quanto às datações, conseguimos, grosso modo, manter um perfil cronológico que julgamos equivalente, concentrado no último quarto do séc. XX. 255 Mais tarde, viríamos a descobrir a Linguateca, espaço virtual que é base de acesso a corpora de língua portuguesa, congregando endereços virtuais de 24 corpora de fala, 46 de escrita, 4 para aprendizagem de português e 20 de comparação linguística com outros idiomas. O acesso a tal banco de corpora é factível pelo endereço eletrônico http://www.linguateca.pt/corpora_info.html. Tendo sua base em Portugal, o Projeto Linguateca abrange fundamentalmente dados portugueses e brasileiros. 256 O CRPC tem início em 1988, sob coordenação da professora Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, da Universidade de Lisboa. 265 Em tempo, observemos que, especialmente nos corpora de PB oral e de PM escrito, procedemos a recortes do montante de que dispúnhamos, dentro das bases de pesquisa por nós escolhidas. Tais recortes deram-se de modo a manter o equilíbrio geral entre dados de oralidade cultos e não cultos entre os corpora e preservar o enquadramento cronológico referente ao quarto final do séc. XX, à exceção do PM escrito― contudo muitíssimo próximo da cronologia geral, mantendo-se variabilidade temática, sempre que possível e necessário, salvo o caso aludido acima do NURC-RJ. É importante frisar, entretanto, que nossa seleção desses textos foi anterior às suas respectivas leituras, de modo que pudéssemos lidar com a concretude de que, tal qual, pensamos, dar-se-á nas demais fontes, haverá inquéritos sem presença do futuro do presente, fato o qual pretendemos avaliar, caso de fato verifique-se, sem produzirmos, para isso, artificialismos. Nesse sentido último, estritamente falando, procedemos de forma aleatória, obviamente salvaguardadas as observações supracitadas quanto à manutenção de perfil geral de nossa mostra. Nos quantitativos, temos disparidades apenas nos dados do PM, o que, em visão relativa, em nada haverá de interferir quanto aos rumos de nossa investigação. Os quantitativos textuais de partida, não necessariamente, afetarão a observação final de nosso objeto de estudo, em termos absolutos e, muito menos, em relativos. A propósito ainda do PM, pela UEM, tivemos acesso a um corpus específico de 37 falas de crianças do 3º ano que julgamos por bem não fazer uso, uma vez que destoariam demais do perfil restante de todas as entrevistas, não pela escolaridade necessariamente, mas sim pela faixa etária, uma vez que todos os demais dados, dos três dialetos, com que trabalhamos são de adultos, portanto em um patamar bem distinto de aquisição e uso linguístico, quanto mais no contexto moçambicano de grande volume de falantes de português como L2. Buscamos, nas instituições por nós escolhidas, universidades reconhecidas e consolidadas, incontestemente, em seu respectivo país. No Brasil, a UFRJ, na origem a Universidade do Brasil, com vasta tradição em estudos linguísticos e de Língua Portuguesa, lar intelectual de muitos nomes de peso nesses estudos no país e maior universidade federal brasileira, uma das sedes originais do Projeto NURC, iniciado em 1969, tendo por cidades de estudo o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife e Porto Alegre. Em Portugal, optamos pela Universidade de Lisboa, Clássica, a maior pública do país. Embora não seja a mais tradicional, título correlato 266 a Coimbra e remontando ao longínquo séc. XIII, é a maior instituição pública do país, com inegável peso na produção científica do país, o mesmo se verificando na área de estudos linguísticos. Por fim, em Moçambique, a Universidade Eduardo Mondlane constitui-se na maior e mais tradicional instituição de ensino superior do país, tendo impacto na própria constituição da identidade cultural moçambicana pósindependência. Assim, julgamos ter reunido um suporte de grande respaldo, no meio científico, em geral, e linguístico, em especial. Quanto à análise de dados em si, interessar-nos-ão as frequências de uso de cada forma de futuro do presente em si, descritas tão somente a partir de seus valores percentuais, isto é, relativos. Também buscaremos estabelecer, para cada dialeto em estudo, suas produtividades em meio escrito e oral. Também faz parte de nossos propósitos o estabelecimento de valor de uso das formas observadas, em especial no que diz respeito às possibilidades de interpretação das perífrases em ir e da expressão de traços aspectuais em geral, nos usos das formas gramaticalizadas em futuro verbal. É preciso ainda tecer uma consideração bastante geral sobre os corpora de que nos valemos por empréstimo neste trabalho. Os fatores sociais, para além da condição culta ou não do falante, a idade, o sexo e mesmo o tempo de gravação no caso dos inquéritos orais é bastante diversificado, sem que nenhum deles tenha sido um foco de preocupação exaustiva. Pretendemos aqui a montagem de um painel de ocorrências verificáveis e eventuais tendências, desejavelmente, acompanhadas de justificativas e interpretações plausíveis a seu uso. 267 7 ANÁLISE DOS CORPORA O mar foi ontem o que o idioma pode ser hoje, basta vencer alguns Adamastores. Mia Couto Enfim, alcançamos o ponto da análise de nossos dados. Procederemos aos resultados e suas interpretações e problematizações, na ordem PB, PE e PM. E, em seguida, teceremos considerações conjuntas sobre os dados de lusofonia analisados de que dispomos. Como bem vimos, no capítulo 4, é bastante comum às línguas a diversidade de formas a conviver com valor de futuro. Assim, para a língua portuguesa, postulamos os seguintes possíveis futuros do presente: em forma simples/ desinencial com os morfemas temporais –ra/-re; em perífrase com verbo ir no presente do indicativo; em perífrase com verbo ir no futuro do presente do indicativo; semantizado pelo presente do indicativo e com verbo haver seguido pela preposição de e por infinitivo. Inicialmente, contávamos deparar com uma baixa produtividade do tempus em estudo. Na verdade, foi o que se verificou à exceção dos dados de oralidade do PB, por razões supostas que explicitaremos à frente. Pensamos que é esperável que os tempora futuros tenham produtividade mais baixa do que o presente ou os pretéritos, salvo, claro, gêneros e/ou temas específicos. Em um texto de previsão meteorológica ou de astrologia é de se supor ambiência propícia à alta incidência de futuro do presente. Da mesma forma, em um texto cujo tema de algum modo espraia-se para demandas de prospecção e projeções, imagina-se constatar futuros do presente. Então, salvo a oralidade do PB, trabalhamos com números absolutos tímidos. Oliveira (2006), em estudo em tempo real de longa e de curta duração, do séc. XIII ao XX e das décadas de 70 a de 90 do século passado, respectivamente, e de 268 tendência sobre o futuro do presente nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador, aponta para a hegemonia da forma perifrástica na fala, dominando todos os contextos, inclusive os de fala culta e para um ritmo crescente desta forma na escrita. Aqui nossos objetivos não são os de proceder a um levantamento nos moldes variacionistas, em tempo real ou aparente, em painel ou em tendências. Pretendemos a construção de um perfil de uso das formas de futuro do presente para as três variedades em estudo, a partir dos dados de oralidade e de letramento analisados. De todo modo, será interessante cotejar essas conclusões de Oliveira (2006) com as nossa para o PB. 7.1 PB O PB foi, marcadamente, a variedade que alcançou os maiores números absolutos de dados, sobretudo nas fontes orais. Creditamos isso simplesmente ao acaso de alguns inquéritos terem assumido oportuno grande tom prospectivo e à extensão de algumas entrevistas, especialmente do NURC nos anos 90, correspondendo a mais de 40 minutos de conversa, o que resultou, por vezes. em transcrições de mais de duas dezenas de laudas, por inquérito. Iniciaremos pelos dados de língua escrita. Recontextualizando, trabalhamos com anúncios variados, editoriais dos jornais O Globo, Jornal do Brasil, O Fluminense e O Dia, coligidos junto ao VARPORT e notícias do Jornal do Brasil e O Globo, também provenientes do mesmo projeto de pesquisa da UFRJ. São 22 anúncios, 7 editoriais e 31 notícias. Esses dados recobrem de 1978 a 2000. Os resultados advêm de um total de 119 ocorrências, sendo os seguintes: Quadro 27: PB escrito. Ocorrências da escrita- PB DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COM HAVER Número 69 26 23 1 0 Frequência 58 21,8 19,3 0,84 0 A prevalência do futuro sintético confirma o que parece ser a intuição geral, acerca de seu uso na escrita. Há de se considerar que, dos três gêneros, dois são 269 muito próximos ao protótipo de escrita: editoriais e notícias. Apenas o gênero anúncio afasta-se um pouco mais de tal polo. A frequência apurada para o uso da forma perifrástica carreadora da mudança linguística com relação à representação do futuro do presente não é desprezível, quanto mais se considere que estamos a lidar com um meio tendencialmente formal em seus usos linguísticos. Registre-se que não encontramos ocorrências que suscitassem dúvida interpretativa ou possibilidade de ambiguidade quanto ao uso de ir principalmente. Também não deparamos com nenhum “falso positivo”― termo que esclareceremos quando com ele formos lidar― nos dados de escrita do PB. Quanto à perífrase com ir no futuro, a mesma apresentou resultado que tendemos a interpretar como residual e inexpressivo. De modo geral, podemos tomar por usos relevantes do futuro do presente na, assim chamemos, escrita típica, o desinencial e o perifrástico. Quanto ao de futuro semantizado por presente, teceremos considerações um pouco adiante que, esperamos, nos resguardem a premissa de uma ajuizamento sobre tal uso que o diferencia dos dois anteriores. Sobre a possibilidade alternativa de formação da perífrase, com ir no futuro, já havíamos levantado as hipóteses de hipercorreção, formalidade, marca de ênfase do nível de comprometimento do enunciador. Também ponderamos que ela, possivelmente, poderia ser interpretada como uma forma híbrida entre a marcação morfológica desinencial e a composição morfossintática perifrástica. Sua única ocorrência dá-se em uma passagem em que, curiosamente, logo adiante, surge uma perífrase em vai, sendo esta a passagem: No início da noite, o ex-presidente da República informou que irá recorrer ao STF contra a decisão do Senado e prometeu para hoje, às 11h, um "duro pronunciamento." O presidente vai recorrer a todas as instâncias para preservar seus direitos políticos...257 No uso da forma irá identificamos possível objetivo de ênfase, de forma a marcar o grau de certeza correspondente à ação de se recorrer ao STF. Já logo adiante, em discurso direto, ocorre o uso do esperado, quanto mais em discurso direto, de fonte presumivelmente oral. Sempre que nos referirmos apenas à perífrase, estaremos a falar da forma usual, com auxiliar no presente. Para 257 Retiramos, aqui, da notícia as marcas de mudança de linha, preservadas no registro do VARPORT. Nos anexos tais marcas estarão presentes. 270 mencionar a segunda, faremos especificações que lhe venham a esclarecer a nomeação. Quanto ao uso do presente com valor de futuro do presente, embora estejamos diante de percentuais a serem, certamente, levados em conta, é preciso problematizar seus usos. Dos 60 textos que compuseram nossa mostragem de escrita, tal uso verifica-se em apenas 8, sendo 3 em três anúncios diferentes e 5 em notícias, não ocorrendo nenhuma vez em editoriais. Das notícias, em um único texto, registram-se 16 exemplos. Fazemos questão de trazer à baila o trecho da notícia com hipertrofia de presentes de valor futuro: Regime do AI-5 acaba à meia - noite de hoje A meia – noite de hoje o Brasil sai do mais longe período ditatorial de sua História. Dez anos e 18 dias depois de sua edição, o Ato Institucional no 5 que suspendeu liberdades individuais, eliminou o equilíbrio entre os Poderes e deu atribuições excepcionais ao Presidente da República, encerra sua existência. O Presidente Ernesto Geisel, que governou com o Ato e comandou a política de distensão que o revogou, passa a última noite do ano – e do regime – na Granja do Riacho Fundo. O General Figueiredo, que receberá o Governo sem poderes arbitrários, começará i abi ba258 Granja do Torto, também em Brasília. A partir de meia-noite O brasileiro volta a ter direito a habeas-corpus nos casos de crime político. Os mandatos parlamentares voltam a ser invioláveis. O Executivo não pode mais cassá-los. Os direitos políticos tornam-se permanentes. O Executivo não pode mais suspendê-los sem amparo judicial. O Congresso passa funcionar por delegação popular. O Executivo não pode mais colocá-lo em recesso. O Poder Judiciário recupera suas prerrogativas. Os funcionários públicos recuperam o direito de só sofrerem punição de acordo com as leis. O Executivo não pode mais demiti-los ou aposentá-los. O Direito brasileiro livra-se da pena de morte, da prisão perpétua e do banimento. Os Estados recuperam parte de | sua autonomia. O Executivo não pode mais colocá-los sob intervenção sem licença do Congresso. Desapareceram da legislação nacional as siglas AI (Ato Institucional) e AC (Ato Complementar). Exilados retornam Com a extinção do AI-5, prevê-se a chegada de diversos brasileiros que se encontram exilados, banidos ou simplesmente temerosos de voltar. Sabese, porém, que os dispositivos de vigilância dos principais aeroportos nacionais já estão efecientemente259 testados e prontos para a identificação de cada um, na ocasião do (3 linhas do jornal corroído) dente da República o decreto que anulou a pena de banimento aplicada a 127 brasileiros. Já o Cardeal Primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão Vilela, afirmava que a 258 259 Esse trecho consta tal qual transcrito. Tal qual transcrita. 271 revogação das penas de banimento e a extinçào da CGI representam um passo inicial para a anistia." (Páginas 3, 4, 5, 6 e 7 e editorial na página 10) Parece-nos claro que a temática no texto, afeita a projeções, não só possibilita e gera ocorrências semanticamente, no futuro do presente, como também justifica em grande medida a confluência de presentes do indicativo com valor de futuro do presente. Ao longo de nossa tese, problematizamos a premissa do presente ser utilizado com significação de futuro do presente quando da expressão de um futuro próximo, por considerar subjetivo o ajuizamento da referida proximidade. Poder-se-ia pensar que, a partir de uma redação de jornal comprometida com a qualidade do texto que leva a seu público, seria plausível um uso consciente do presente com valor de futuro do presente de forma a enfatizar a proximidade do término do famigerado ato institucional número 5. É uma hipótese pertinente; contudo julgamos que mais se trata de presentificar do que propriamente projetá-lo, confirmado, possivelmente, no tom celebrativo e de exaltação presente no texto. Cremos que, sobretudo em função do contexto histórico e do marco de que tal notícia faz parte, tal interpretação é perfeitamente plausível. É ainda curioso notar que há mais dois futuros do presente nesse texto, ambos no mesmo parágrafo e sob a forma desinencial. Tais verbos referem-se a um futuro cronológico mais distante do que aquele referente à revogação do AI-5, como que já presentificado e vivenciado. Julgamos que a grande concentração do presente semantizado por futuro em um único texto pode ter gerado uma mudança no perfil final de uso das fontes escritas consultadas. Por isso, referimo-nos ao uso desinencial e em perífrase como as formas típicas aferidas. Ambas apresentam uma distribuição muito mais homogênea no corpus. Inclusive, tal percentual de uso do presente por futuro não será encontrado em nenhum outro corpus de língua portuguesa com que aqui trabalhamos, como veremos ao longo de nossa exposição de dados. Segundo Oliveira (2006, p. 174), o uso do presente do indicativo com valor de futuro do presente é, diacronicamente, categórico só a partir do séc. XX. Nos dados por ela levantados, do século XIII ao XIX, esse uso é esporádico e sem impacto significativo na expressão do futuro do presente (o que, segundo ela, significa taxas de uso apuradas, abaixo de 2,5%). Notemos que, à exceção do superacúmulo de ocorrências em um único texto, temos apenas mais 7 ocorrências em todo o corpus, 272 perfazendo um percentual restante baixo, embora acima da média histórica a que se refere Oliveira (2006). Por essas razões e por crermos que o cerne da mudança em curso na língua portuguesa para as formas de futuro repousa na conservação do futuro sintético versus a adoção da locução de valor futuro, voltaremos nosso olhar, sobretudo a tal contraposição. Parece-nos necessário e oportuno explicitar quais os verbos correlatos a cada uso: desinencial: anunciar, começar (4 vezes), continuar, depender, dever, dizer, encerrar, entrar, estar (2 vezes), ficar, haver, indicar, lançar, manter, morrer, oferecer (2 vezes), passar (3 vezes), poder (9 vezes), realizar, receber , render, repicar, saber, sair (2 vezes), ser (18 vezes), ter (5 vezes), utilizar, ver, vir e voltar. perifrástico: aproveitar, colocar, consentir, continuar, cumprir, custar, dar (2 vezes), deixar, depender, desaparecer, determinar, entender, escolher, fixar, investir, oferecer, recorrer, recuperar, ser (2 vezes), sortear, ter (2 vezes), virar, voltar. presente: acabar, começar, comprar, encerrar, ganhar, livrar-se, passar (2 vezes), poder (5 vezes), retornar, reunir, sair, tornar-se, vir e voltar (3 vezes). perifrástico em futuro: ir. Há alguns fatos que, imediatamente, chamam a atenção na seleção de verbos de cada sequência. Primeiro, comparando perifrásticos e desinenciais, destaca-se o fato de haver, dentre os últimos, predomínio de formas no máximo dissilábicas, ao passo que, nos primeiros, vê-se hegemonia de trissílabas e polissílabas. Além disso, percebe-se maior concentração de ocorrências funcionais dentre os desinenciais e lexicais nas perifrásticas. Tal identidade entre dados desinenciais e a expressão do futuro sintético podem ser indiciais do quanto esse uso esteja a se restringir no PB, sendo, segundo tal levantamento, categórico nos usos mais gramaticais da língua e 273 menos fluente nos lexicais que se encontram, na amostra escrita, hegemonizados pela forma inovadora de futuro. Nas perífrases, de verbos de perfil categoricamente funcional na língua, só identificamos: ser, ter e dar, e, em menor ênfase de funções gramaticais: deixar, continuar, acabar e ainda virar. Por outro lado, dentre as ocorrências sintéticas, encontramos, comparativamente maior volume de formas lexicais do que de gramaticais nas perífrases, em números absolutos, como decorrência mesmo do número taxativamente mais elevado de usos de futuro desinencial; contudo, em termos relativos, o que ocorre é de outra ordem. Em termos percentuais, das 69 ocorrências desinenciais, consideramos 13, ou seja, 18,9% tipicamente lexicais, sendo as restantes de perfil, em maior ou menor grau de verbos mais funcionais correspondendo a 56 ou 81,1% dos exemplos atestados; enquanto, nas versões locutivas de futuro, encontramos 8 ocorrências com verbos mais funcionais, ou seja, 32% e 68% ou 17 exemplos de verbos mais lexicais. O fator verbo funcional ou gramatical foi o que mais chamou nossa atenção quanto a uma possível justificativa para a distribuição entre ocorrências desinenciais e de perífrase. Na transitividade verbal, não percebemos fatores que motivassem claramente uma realização ou outra. Também quanto aos sujeitos envolvidos, verificamos ocorrências em ambas as séries, sob quatro diferentes prismas observados: tipologia, anteposição ou posposição, papel temático, traço [+ humano] ou [+ inanimado]. Quanto à tipologia, voltamos nosso olhar, sobretudo à contraposição sujeito pleno versus sujeito desinencial e/ou zero. Considerando-se a marcante frequência do sujeito pleno, como confirma a literatura do tema, em relação ao PB, os casos de sujeitos à margem desse tipo surgiram nas duas séries em questão, sem disparidades. No que se refere à posição em relação ao verbo, a posposição, como seria de se esperar, surgiu bem menos do que a anteposição e em ambos os casos. Nos papéis temáticos, considerando-se agente e causador equivalentes para efeitos de nossos propósitos de aferição e, de modo similar tema e paciente, não verificamos marcação temática distintiva para os dois usos, com ocorrência residual de sujeitos tematicamente experienciadores, também presentes em ambas as séries. Por fim, quanto ao traço do sujeito, não apuramos em sujeitos oracionais e de SNs ancorados em substantivos abstratos, exemplos categóricos de [+ inanimado] identidade por esta ou por aquela formação do futuro do presente. Por razões já elucidadas nesta tese, não nos propomos ao olhar para futuros breves ou distantes pela própria subjetividade extremada encerrada em tal 274 abordagem, como explicitamos no capítulo 3, em seu item 3.2, em visão partilhada por Costa e Silva (2007). Assim, em termos cronológicos, só nos chamou a atenção quanto ao uso dos presentes do indicativo para marcação de um futuro mais definido, em contraposição ao futuro do presente desinencial, no mesmo texto, para indicação temporal mais indefinida. Quanto à oposição básica que estamos a explorar entre formas desinenciais e perifrásticas, não registramos marcas de ênfase de uso de uma ou outra para marcação de definitude ou não do futuro. Como fato correlato a esse, nas ocorrências desinenciais, verificamos também alta concentração de verbos irregulares, em contraposição ao alto indício de regulares nas perífrases. Segundo Bybee (2003), os itens de mais alta tendência na língua são os mais resistentes à mudança, uma vez que acabam por configurar padrões próprios, situando-se, comumente, à margem dos protótipos. Irregularidade morfológica, perfil funcional e alta frequência de uso são traços que apresentam grandes pontos de congruência. A irregularidade verbal influi diretamente na opacidade ou transparência do lexema para o falante. Quanto mais irregular, maior a tendência à opacidade, logo mais habilitado o lexema se torna a rumar da esfera lexical à gramatical da língua, exercendo papéis crescentemente funcionais, cada vez mais gramaticalizados e gramaticalizantes. E por fim, como sabemos, quanto maior é o nível de gramaticalização, maior é a tendência à frequência de uso na língua. Assim, tendo clara essa inter-relação, nossos dados acabam por corroborála, ao menos no que diz respeito à esfera da escrita do PB. Tudo isso apresenta estreita relação também com o número de sílabas dos verbos. Os verbos mais gramaticais, os que tendem a mais facilmente se opacizar e que mantêm os mais acentuados comportamentos irregulares são justamente os monossílabos e dissílabos. O fato de as ocorrências de perífrase concentrarem-se nos verbos pertencentes a paradigmas de padrão geral é típica e sintomática da mudança, já que os irregulares e/ou de alta frequência são os que mudam mais lentamente. Ainda lembramos que cremos na forma desinencial contendo, hoje, um sema vinculado a maior comprometimento e grau de certeza, como observado nesta ocorrência, proveniente de um anúncio: Você terá a certeza de que encontrou a resposta mais inteligente. 275 Das outras duas formas de futuro do presente, a perífrase de baixo rendimento apresenta, justamente, um verbo altamente funcional, em curiosa metaocorrência. Já o presente com valor de futuro expressa marcadamente formas dissílabas, com baixa ocorrência de verbos funcionais. Desses, chamam a atenção todas as ocorrências de poder. O mesmo verbo, que não se faz presente nem uma única vez, nos exemplos de perífrase, aparecendo, dentre os sintéticos, tanto com valor epistêmico quanto deôntico. Já em termos de distribuição das ocorrências por gênero, teríamos os seguintes resultados: Quadro 28: quantitativo de textos com ocorrências de futuro do presente. PRESENÇA DE FUTURO DO ANÚNCIOS EDITORIAIS NOTÍCIAS TOTAL/OBS. Números absolutos 12 (22)* 5 (7) 19 (31) 36 (60) Percentuais 54,5 71,4 61,3 60 PRESENTE * Em parênteses, seguem os números equivalentes ao universo compreendido em nosso levantamento, para cada item apurado. Quadro 29: PB escrito, por gênero textual. ANÚNCIOS EDITORIAIS NOTÍCIAS OCORRÊNCIAS Números absolutos 4 10 55 DESINENCIAIS Percentuais 3,4 8,4 46,6 OCORRÊNCIAS Números absolutos 7 8 11 Percentuais 26,9 30,8 42,3 OCORRÊNCIAS Números absolutos 3 0 20 EM PRESENTE Percentuais 13 0 87 Números absolutos 14 18 87261 Percentuais 11,8 15,1 73,1 PERIFRÁSTICAS EM PRESENTE TOTAL/OBS. Em relação ao universo de 69. Em relação ao universo de 26. Em relação ao universo de 23. COM VALOR FUTURO 260 QUANTIDADE TOTAL DE OCORRÊNCIAS 260 261 Julgamos, de fato, irrelevante o resultado da perífrase com ir em futuro do presente. Houve uma única ocorrência de perífrase em futuro. Em relação ao universo de 119. 276 Pelo que vemos acima, por gêneros, apresentaram alguma presença de verbo no futuro do presente 12 anúncios, 5 editoriais e 19 notícias, respectivamente 54,5%, 71,4% e 61,3%, em uma média de 60% de presença de futuro do presente nos textos de língua escrita em PB, perfazendo 1,97 ocorrência desse tempus por texto, uma produtividade que avaliamos como baixa, tal qual disséramos acima. O gênero editorial foi o que se demonstrou mais receptivo ao futuro do presente, com 71,4% de seus textos contendo tal tempus, perfazendo uma média de 2,6 ocorrências por editorial, contra 2,1 nas notícias e 0,64 nos anúncios. Portanto na outra ponta, os anúncios foram os menos propensos a abrigar futuros do presente. É interessante que pontuemos, agora, os percentuais de ocorrência dentro de cada gênero por forma de futuro do presente. Quadro 30: percentuais das formas de futuro no PB por gênero textual. DESINENCIAL PERIFRÁSTICO PRESENTE ANÚNCIOS EDITORIAIS NOTÍCIAS262 28,6% 55,6% 63,2% 50% 44,4% 12,6% 22,4% 0 23,0 Pensamos que tal visualização dos resultados, por gênero e forma de futuro, permite-nos compreender os gêneros em análise, em uma escala de nível de formalidade crescente seguinte: Esquema 19: nível de formalidade dos gêneros escritos. [- formal] ANÚNCIO [+ formal] NOTÍCIA EDITORIAL Na verdade, consideramos que a notícia esteja mais próxima ao polo formal, prototípico da escrita do que faça supor a esquematização acima. Quanto ao anúncio, é de se notar o percentual não desprezível de presente com valor futuro, sem nenhum fenômeno de superacumulação tal qual ocorrido nas notícias e o impactante percentual de perífrases, em plena consonância com ser um gênero que 262 1,2% restante e que falta para totalizar 100% refere-se à única ocorrência de perífrase em futuro. 277 incorpora alguns elementos de fala e de informalidade. Nos editoriais, a total ausência de presente com valor futuro denota o sentido contrário. Nesse mesmo gênero, são notáveis os percentuais próximos dos formatos desinencial e perifrástico. Não esqueçamos que os números da forma perifrástica são bastante expressivos, ainda mais se considerarmos que estamos a falar da escrita, esfera que tende à conservadora, se comparada, à fala, em relação às próprias perspectivas de mudança linguística em geral. Cuidemos, a partir daqui, dos dados de língua falada, para o PB. Como já pontuáramos, a oralidade do PB rendeu um volume de ocorrências de futuro do presente muito acima de qualquer outra fonte coletada em qualquer uma das três variedades lusófonas em estudo. Lembremo-nos de que os dados aqui são, majoritariamente, provenientes de DIDs, tanto de origem culta quanto “popular”, segundo rotulação do projeto VARPORT e de três EFs. Aqui, diferente do constatado com a escrita, surgiram formas ambíguas à interpretação e os por nós nomeados “falsos positivos”, correspondentes a construções em forma de futuro do presente, mas que, de modo algum denotam tal tempus. Em tais casos, estariam por exemplo o uso arquetípico da forma será em interrogativas, acompanhada ou não, tal estrutura clivada, por que, como, a partir do corpus: Por que será? Note-se que o uso e valor assumidos pela forma será acima são bastante distintos dos seguintes que, indubitavelmente, materializam o valor de futuro do presente. ... porque você tem tanta coisa pra fazer que você fica pô qual que será o melhor pra hoje? ... não sei se depois (riso) será oportuno lembrar. Óbvio que, em será, temos a expressão de uma flexão morfológica no futuro do presente, a partir do verbo ser, contudo não temos valor efetivo de futuridade aí. Ocorre que, claramente, optamos por uma investigação na qual lidamos com o futuro 278 do presente, não apenas no plano morfológico, mas em seu valor de uso aferível; não fosse assim, não estaríamos a considerar o presente semanticamente futuro do presente em nossos dados. Também depararemos com “falsos positivos” nos usos de ir, junto a infinitivo, que denotem imperativo, sobretudo na 1ª pessoa do plural na formular Vamos, com valor imperativo. Em alguns desses casos, somente a clareza do contexto interlocutivo elucidará tratar-se de futuro do presente ou de imperativo, quanto mais que este também denota natural futuridade. Destaquemos que tal uso, em todos os corpora de oralidade analisados, fizeram-se presentes. Vejamos este exemplo, oriundo do PB: Vamos ver agora alguma coisa da economia japonesa... Tal forma poderia ser interpretada como de futuro do presente. Seu contexto de uso, contudo, é de uma aula sobre o tema aludido sendo proferida. A partir daí, optamos pela leitura como imperativo. Esse último exemplo contrapõe-se ao seguinte em que a mesma sequência receberá leitura de futuro: ... depois vamos ver o que acontece aqui em torno... Não percamos ainda de vista que, à luz desse exemplo e de nossas considerações, haverá usos que, mesmo contextualizados, poderão receber leitura ambígua. É o que verificamos, por exemplo, em: Bom... então vamos falar de viagem... Tal forma ocorre logo à abertura do inquérito, sendo dita pelo documentador, admitindo, segundo nosso parecer tanto leitura de imperativo quanto de futuro do presente. Possivelmente só o acesso à entonação, se tanto, dirimiria tal dúvida. Na verdade, em todo o nosso levantamento na oralidade do PB, esse foi um dos raros (junto com o próximo) em que não conseguimos exarar um julgamento quanto a valor potencialmente ambíguo de uso. Sendo assim, mantivemos tal exemplo como possível uso de futuro do presente. 279 Atentemos ainda para a ocorrência seguinte, também de evidente ambivalência: ... então vamos acabar com as favelas, ou seja, não há outra maneira, esconder as favelas... Nesse caso, tanto a leitura de imperativo quanto a de futuro fazem-se plenamente habilitadas. Talvez o acesso à entonação ou a algum recurso extralinguístico, como feições faciais, elucidasse o uso, em favor de uma ou outra interpretação. Na ausência de tais possibilidades, há ainda a apreensão do tom irônico da passagem, em um contexto maior, abrangendo a rigor todo o inquérito, de um informante de postura sociopolítica crítica. Ainda assim, embora tais informações assegurem-nos a possibilidade de leitura como futuro, não invalidam a de imperativo. Há ainda outros casos de “falsos positivos” em nossa amostra. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que a sequência verbal ir junto a infinitivo não denota futuridade, mas apenas movimento ou intenção, como em: E quando você vai por exemplo remendar a malha da rede... ... quando o senhor vai pescar o senhor leva alguma coisa pra botar o peixe dentro? Aí eu vou lá ver a rede... No primeiro e no terceiro exemplos, a falsa condição locutiva é evidenciada, inclusive pela intercalação adverbial. Por outro lado, poderemos deparar com interlocuções, viáveis pela própria contingência de mudança ainda em curso, nas quais seja apurável valor de futuro, como podemos ver em: ... então ela vai, com a maior tranqüilidade, destruir aquela floresta e aí o problema não é desse governo nem de governo nenhum, nem do próprio país. Quer dizer, se vão dar sopa, eles vão destruir aquela e todas as florestas 280 Sobre o exemplo acima, na primeira sequência de vai destruir, temos uma intercalação adverbial claramente marcada, a qual, inclusive, possibilita leitura de movimento e/ou intenção. Já na segunda ocorrência, pensamos que a leitura de movimento já se oblitera, embora se possa ainda manter a de intenção junto a de futuridade. Oportunamente, percebamos na locução vão dar outro comportamento “falso positivo” do sequenciamento ir + infinitivo: o valor de subjuntivo. Tal ocorrência só a verificamos, nos corpora, em usos provenientes de fala. Ainda há o uso de ir, na forma vai, acompanhado ou não de aí ou de você ou a gente expletivo, como mero marcador discursivo. ... então a gente vai chega lá e vê um lugar baixinho... É preciso estar atento à leitura de a gente vai e chega lá― apesar da ausência de marcas de pontuação― como sintagmas distintos, para que se possa detectar o uso de vai como marcador discursivo. Ainda deparamos com usos outros com valor de presente ou mesmo um até então não cogitado valor especulativo que cabem ser reportados: ... aí é que está... nós vamos chegar lá e nós largamos uma rede, né? A gente botava a rede no fundo... ... outro dia a gente vai correr a rede e justamente a gente chega lá encontra é o pescado... É, mais tranqüilo, mas aí você corre o risco né, desses lugares muito, ermos, essa questão da da própria insegurança né, [ ? ] vai pegar o carro, eu morei, um ano no Grajaú antes de vir pra cá, esse apartamento tava em obras, e, a gente, depois de dez horas não tinha mais porteiro né, e era um breu. No primeiro exemplo, lidamos com uma enumeração de presente com valor de frequência. Já no segundo e terceiro, temos uma referência de ordem especulativa a fatos do cotidiano dos informantes. Ainda sobre “falsos positivos” no presente do indicativo, atentemos para esta outra ocorrência de frequência, com valor de movimento: 281 ... quinze pra meio-dia, às vezes, vou almoçar... Esse último exemplo é correlato ao seguinte, também de frequência e de movimento, com intercalação adverbial: Nunca vou em casa almoçar... Assim como vemos também em: Então ele vai ao quarto, bota lá uma camiseta, uma camiseta diferente da que ele estava, que combine melhor e [ tal ] né, e sai, vai comprar jornal, coisa que me chama a atenção, coisa que eu nunca fiz, eu saía direto, voltava. No segundo uso de ir, além de movimento, eclode também a ideia de intenção, mas, pensamos, não a de futuridade. Ainda, constatamos o uso do adverbial vai ver: ... a gente vai ver por exemplo ancorou... Notemos ainda que curioso este trecho com duas ocorrências homônimas de valores distintos, o primeiro de intenção e o segundo de futuro: E quando o senhor vai fazer uma malha como é que o senhor sabe a altura que o senhor vai fazer? Mais uma previsível vicissitude da condição intrínseca de mudança em pleno curso. Fica claro que, nos dados orais, as possibilidades de construções ambíguas, duvidosas, aparentemente enganadoras vieram à tona. Lembremos que nos dados oriundos da escrita não lidemos com nenhum caso que suscitasse as problematizações e especificações que nos vemos obrigados a fazer aqui. Óbvio que tal fato está ligado à própria natureza prototípica da fala e da escrita. Esta conta, em geral, com a possibilidade de planejamento, quiçá de revisão, de forma a evitar construções que possam ser tomadas como problemáticas, ainda mais se 282 consideramos que estamos aqui, em meio a nossos corpora, a lidar com gêneros escritos que orbitam em torno das funções referencial e apelativa da linguagem, muito menos propensas à dubiedade e /ou polissemia de suas construções. Na fala, sobretudo nas DIDs, superados os primeiros momentos do inquérito, tende a prevalecer uma linguagem afeita a traços de espontaneidade, resultando em grande propensão ao com que aqui deparamos: construções dubitativas, ambíguas e congêneres. Feitas tais necessárias ponderações, explicitemos o quadro ocorrencial de formas de futuro do presente aferidas na amostra de fala do PB. O universo de ocorrências perfaz 323 formas de futuro do presente em uso, com a média de 9,78 exemplos de futuro do presente por texto/inquérito, número absolutamente elevado se comparado ao aferido em todos os demais corpora de nossa investigação. Quadro 31: PB oral. Ocorrências da fala- PB Número DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COM HAVER 29 257 37 0 0 9 79,6 11,5 0 0 Frequência Os resultados para fala dão conta de um inequívoco uso categórico da construção perifrástica no PB, com a forma desinencial sendo a de menor utilização, superada, ainda que por pouco diferencial, pelo presente com valor de futuro. Quanto à perífrase de baixo rendimento, não houve nenhuma ocorrência, caracterizando um quadro final mais do que sintomático de uma única ocorrência em todo o universo aferido em fala e escrita do PB. Já sobre a possível forma com haver, já contávamos com não a encontrar fosse em dados orais ou escritos do dialeto brasileiro. Julgamos proveitoso analisar em separado apenas os dados das EFs. Tal qual caracterizamos, para a escrita, os anúncios como gêneros mais permeáveis a traços de escrita, ajuizamos que, para os gêneros de fala com que estamos a lidar, a EFs tendem a incorporar elementos típicos da interação escrita, ao contrário das DIDs, mais marcadas pela conversação fluída e espontaneidade de construções, portanto mais prototípica da fala. Comecemos por destacar a grande concentração de futuros 283 do presente nestas. Foram 115 ocorrências totais, para apenas três EFs, perfazendo a fabulosa frequência de 38,3 ocorrências por inquérito, constituindo-se como um grande fator responsável pela vasta oferta de futuros do presente na amostra oral do PB. A título de comparação, nas 33 DIDs restantes, foram apuradas 208 formas do tempus, em uma média de 6,3, ainda apreciavelmente superior ao perfil geral de nossos corpora lusófonos, mas incomparavelmente distante da virtuosa performance do futuro do presente em meios elocutivos formais, gênero que nos surpreendeu em suas taxas de produtividade de nosso objeto de estudo. Nas elocuções, justamente, formais, no caso de nosso corpus, duas aulas e uma palestra, com os temas respectivos Industrialização do Japão, Direito do Trabalho e uma palestra proferida por uma professora da Faculdade de Letras a estudantes formandos, aferimos 19 construções em futuro sintético, 89 em formato locutivo e apenas 7 em presente com valor de futuro. A se considerar tão somente o universo das EFs, teríamos, respectivamente: 16,5%, 77,4% e 6,1%. Verificamos, portanto, um incremento no uso das desinenciais, um pequeno decréscimo percentual nas construções perifrásticas e uma acentuada mudança de perfil de uso das formas em presente, como confirmação de sua identidade informal. Percebamos que, mesmo em contexto oral considerado formal, o uso perifrástico ainda é, inegavelmente, categórico. O aumento desinencial corrobora a faceta cada vez mais identificada e identificadora de formalidade que tal uso toma no PB, como claro confirmador do processo de mudança em si, relegando, paulatinamente tal formato de futuro do presente a contextos cada vez mais restritos e menos produtivos de usos linguísticos. Cabe ainda atentar ao fato de que seu universo em todo o nosso levantamento foi de 29 ocorrências; logo, 65,5% das formas sintéticas ocorreram no espaço de produção discursiva mais monitorada das EFs, restando apenas 10 ocorrências para todo o restante vasto universo de DIDs, o que, percentualmente, perfaz a irrisória frequência de 4,8%, constatados tão somente na fala de informantes cultos de nossas fontes, emoldurando um inquestionável quadro de gradual, acelerada e crescente asfixia por mudança do outrora vigoroso, assertivo e categórico futuro do presente desinencial português, em terras brasileiras. Foi no âmbito das EFs que apuramos os dois únicos exemplos de uso mesoclítico no PB, ambas à abertura da palestra na Faculdade de Letras, sob as formas ater-nos-emos e far-se-ão, em que o primeiro verbo principalmente é exemplar de contexto nomeadamente formal. Tais exemplos só reforçam o 284 ancoramento cada vez mais formal do futuro desinencial português no PB. Oliveira (2006) já afirmara que tal forma, no Brasil, apresenta mais caracteristicamente valor de formalidade do que de futuridade. Não concordamos de todo com a taxatividade dessa constatação, mas, sem dúvida, o valor formal já se encontra incorporado ao uso de tal futuro do presente em nossa variedade de português. Quanto aos residuais casos de presente em semantização futura, atribuímo-los aos momentos de maior descontração discursiva que, no curso de uma aula, podem se dar. É fato a se destacar que todos os sete exemplos advêm de uma mesma aula, sobre Direito do Trabalho, o que ainda pode permitir uma interpretação como marca de idioleto do informante. Ainda quanto aos presentes de valor futuro, os percentuais agora, por eles, auferidos parecem-nos mais concretos e fiéis ao uso do que o verificado e já discutido e problematizado na esfera da escrita. Tal uso, aqui, encontra-se em um nível que se coaduna com o verificado por Oliveira (2006) para a mesma forma. Não sabemos as razões que levaram o uso do presente em semântica de futuro a romperem a barreira dos cerca de 2,5% no século XX, tampouco intentamos investigar isso aqui. Contudo, é fato que a utilização do presente parece se dar à margem da “disputa” pela hegemonia de forma preferencial de futuro em português, já que não põe “sob risco” nem as construções desinenciais na escrita nem as locucionais na fala. Mais que isso, em meio ao processo de mudança, não o fez também, se é que não logrou crescimento justamente no “vácuo” desse processo, intensificado no séc. XX. De todo modo, vimos no capítulo 4 que é recorrente que muitas línguas sirvam-se do presente para a expressão futura, sendo mesmo a única opção em número não raro delas. Parece que, no português, historicamente, tal uso constitui-se como marginal e se consolidou em tal posição. Em nossa amostra da oralidade, o presente de valor futuro ainda carrega possíveis distorções ocorrenciais. Como dissemos, 7 ocorrências são advindas de uma única fonte de EF. Além disso, as demais aparições desse formato, majoritariamente, concentram-se nas DIDs de fala “popular”, sendo irrisórias, quase acidentais nos inquéritos conversacionais de falantes cultos. Nas formas escritas, encontramos, na caracterização dos verbos utilizados, segundo a observação de sua extensão silábica, valores lexicais ou gramaticais, regularidade ou irregularidade verbal e frequência de uso na língua, aportes para a análise do próprio processo de mudança em curso quanto à reconfiguração do futuro 285 do presente. Para as perífrases orais, encontramos mais de uma centena de verbos, os quais recobrem o espectro mais universal possível da língua, incorporando formas lexicais e funcionais, verbos desde o típico, gramatical e anômalo ser até os polissilábicos, regulares e lexicais manipular, verificar, prevalecer, aproveitar, por exemplo. Curiosamente, não surge uma única vez, em meio à ampla proliferação de formas verbais perifrásticas para futuro, o verbo ir, nem mesmo dentre as falas de perfil “popular”. A concentração de ir dá-se junto à série de presente de valor futuro. Julgamos que seria inócuo listar aqui cada um dos verbos das perífrases, dada a própria abrangência universal alcançada pelas formas perifrásticas em nossa amostra. Assim, ocupar-nos-emos da explicitação e análise das formas desinenciais, sobretudo, e das de presente de valor futuro. desinencial: ater, dizer, estar (2 vezes), fazer, gostar, haver, ir, poder (7 vezes), precisar, retornar, ser (3 vezes), tentar, ter (7 vezes) e voltar. presente: aparecer, controlar (2 vezes), conversar, cravar, dar (3 vezes), ficar, ir (6 vezes), jogar, juntar, levar, montar, pagar, passar, pedir, poder, reclamar sair, ser, ter (2 vezes), vender, ver, vir (4 vezes). Dessas séries, há algumas ponderações e correlações interessantes a serem tecidas, envolvendo ainda as ocorrências perifrásticas não listadas também. Primeiro, lembremos que tanto os casos desinenciais quanto os de presente rondam em torno dos 10%, em frequência efetivamente bastante similar. Contudo o perfil das formas verbais parece-nos de seleção distinta. A série desinencial continua a preservar seu perfil de mais afeita a verbos mais funcionais, mais curtos silabicamente, de maior frequência de uso, mais irregulares, corroborando nossas observações anteriores, quanto aos dados escritos. Vemos como única forma e ocorrência a fugir bastante de todo esse comportamento o caso de retornar. A rigor, é um exemplo fugidio, tanto quanto a artificial estilização por detrás de ater. Ainda sobre formas trissílabas, regulares e mais lexicais, mesmo precisar, pela carga modal, poderia ser aí abrigado em uma percepção escalar de papéis funcionais. Ao voltarmos nossa atenção à série do presente, o que primeiro nos toma a atenção é que, em ocorrências bastante próximas em números absolutos e relativos, 286 deparamos com uma diversidade de lexemas verbais claramente maior, aí compreendidas tanto formas bastante lexicais quanto funcionais. Não identificamos restrição a priori no uso do presente de valor futuro no PB, por tal viés. Isso reforça nossa suposição de um comportamento à margem, de nicho, para tal formato. Em outras palavras, é como se tal uso não compusesse o tabuleiro do jogo da mudança linguística em disputa em processo em nossa língua. Ainda nos verbos no presente, destoa controlar com duas ocorrências. Elas surgiram dentro de uma sequência discursiva contendo outra ocorrência de controlar, em presente frequentativo. Eis as passagens: ... vamos supor se eu vender ( ) vender em Campos aí eu controlo o preço na hora... Aí o dono do frigorífico que leva a semana toda o peixe do pescador e quando for sábado ele junta eles controla o peso... Sobre a manifestação de futuro em forma de presente, é importante frisar que, no PB, seu nicho está ligado, sem dúvida, à informalidade, como se pode ver em: Eu tenho uma série de livros, depois monto alguma coisa e passo. Retornando aos verbos de perfil mais gramatical, voltemos a atenção para a ocorrência geral de alguns bastante típicos no conjunto dos inquéritos. Quadro 32: distribuição de verbos funcionais por formas do futuro do presente. Número de ocorrências por formato de futuro do presente DESINENCIAL PERIFRÁSTICO PRESENTE Ir 1 0 6 Poder 7 3 1 Ser 3 18 1 Ter 7 11 2 Vir 0 2 4 287 Primeiro, sem nos esquecermos do montante bruto de 257 ocorrências perifrásticas, destaquemos que, para a dupla dêitica de movimento ir e vir, o presente em essência de futuro é a opção mais viabilizada. Um exemplo típico desses usos, vemos em: ... eu ainda não fui hoje eu ainda vou se Deus quiser. ... então no dia seguinte vem uma nova secretaria... No caso de poder, além do grande acúmulo, em termos relativos, no formato desinencial, ainda é preciso registrar que todas as ocorrências fora desse formato são de valor epistêmico. Isso implica dizer que, para o verbo poder, tanto na escrita quanto na fala, todos os exemplos aferidos de uso do PB a que tivemos acesso incluíram poder de valor deôntico apenas no formato desinencial. Eis o que pode ser um ponto nevrálgico de resistência à mudança. Afinal, tal identidade não nos parece gratuita. Lembremo-nos, como abordamos no capítulo 2, item 2.2, amparados por Santos (2003), que há pontos de identidade entre as noções deôntica e de futuridade. A concentração da modalização deôntica junto ao futuro desinencial assume, portanto, certa marca de manutenção da identidade de futuro junto à forma sintética. Sobre ter e ser, cabe observar que, estatisticamente, encontram-se bem mais concentrados no formato desinencial, mas o volume de ocorrências em perífrases dá a dimensão inequívoca da amplitude da mudança em curso. Ao cabo de nossa análise do futuro do presente no PB, observamos um uso geral da forma perifrástica para a fala. Na escrita, a forma desinencial mostrou-se majoritária, mas com pontos denotadores do curso da mudança e com presença já significativa das construções em perífrase nesse meio. Se pensarmos em gêneros escritos menos prototípicos, certamente, o ritmo da mudança haverá de ser mais intenso. Ainda para o PB, a perífrase em ir flexionado no futuro é de ocorrência inexpressiva, independente das razões que lhe fundamentem o uso, as quais são, inclusive, difíceis de, efetivamente, estabelecer, em face de tão ínfimo uso. Já a forma de presente com valor de futuro do presente mantém, no PB, uma frequência de uso a ser notada, mas, ao mesmo tempo, mantém-se à parte do processo central 288 de mudança, não constituindo um direcionamento à expressão hegemônica do futuro nessa variedade da língua portuguesa. Travemos contato, a partir de agora, com os dados restantes de nossa investigação lusófona, a iniciar por Portugal. 7.2 PE O PE vai nos reservar contextos de observação, em certa medida, bastante diferenciados daqueles ofertados pelo PB. O primeiro fato a se constatar é de um volume de ocorrências efetivamente mais restrito. Em fontes relativas à fala, de 30 inquéritos, apuraram-se apenas 42 exemplos de futuro do presente, em uma média de somente 1,27 ocorrência por texto. Já na escrita, obtivemos 39 tímidas ocorrências, na menor média de todos os nossos levantamentos, perfazendo apenas 0,63 por texto. Em um olhar, segundo o gênero, levando em conta apenas a relação texto ocorrência, chegamos a: Quadro 33: ocorrências por gênero, no PE. PRESENÇA DE ANÚNCIOS EDITORIAIS NOTÍCIAS FUTURO DO TOTAL/ OBS. PRESENTE Quantidade de Textos com textos ocorrências Quantidade de ocorrências 6 6 5 16 Total de textos 41 10 12 63 Números absolutos 11 18 10 39 Percentuais 28,2 46,2 25,6 100 Novamente, assim como nos dados de PB, o editorial apresenta-se como gênero afeito ao futuro do presente, com suas possíveis predições e vaticínios. Em termos rigorosamente relativos, frente ao montante textual, os anúncios demonstraram-se terreno muito pouco fértil ao tempus de nossa investigação, repercutindo nos frustrantes números gerais de nosso levantamento. 289 Os motivos para tão poucos dados, dentre outros possíveis fatores, pensamos, repousam no que disséramos sobre o futuro do presente ser um tempus de baixa ocorrência geral, salvo certos gêneros ou acasos temáticos. Ao que tudo indica, para a escrita lusitana, nossas fontes não contaram com tal sorte de fatores. Iniciemos nossa exposição sobre os dados do português luso por essa escrita. As fontes escritas do PE, dentro do rarefeito universo de exemplares de futuro do presente que nos ofertaram, forneceram os seguintes resultados, em um total de 39 formas: Quadro 34: PE escrito. Ocorrências da escrita- PE Número Frequência DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COMHAVER 37 2 0 0 0 94,9 5,1 0 0 0 De antemão, notamos apenas duas formas de futuro do presente dentre as utilizadas em nossas fontes. Dessas, há muito categórica hegemonia do uso desinencial no meio escrito. As duas únicas ocorrências de perífrase foram as seguintes, a primeira oriunda de uma notícia e a segunda, de um anúncio: ... os fundos estruturais para Portugal vão diminuir, e muito. ... a CIMPOMÓVEL decidiu transferir a sua sede social, a partir de 2 de Julho, para Santa Iria de Azóia, onde vai dispor de instalações mais amplas, mais funcionais e devidamente apetrechadas. Sobre o primeiro exemplo, há uma peculiaridade por comentar. Segundo a literatura específica de nosso tema, a mudança do futuro verbal português, um contexto privilegiado para o deflagrar de tal mudança foram as adverbiais finais, como expusemos no capítulo 3. Não vemos no exemplo essa estrutura, mas o trecho encerra um adjunto adverbial passível de ser lido como de interesse ou de finalidade, talvez em uma transição entre tais valores. Já o segundo, categorizado dentre os anúncios, tem ares de comunicado, como encaramos alguns outros exemplos de anúncios constantes do corpus português. A ocorrência, aí abrigada, ancora-se em uma estrutura relativa, como 290 indício claro de uma mudança já iniciada, uma vez que já se está a se acoplar em estrutura subordinada desenvolvida distinta de seu contexto adverbial de entrada. Nesses dois únicos exemplos, estamos diante de verbos bastante lexicalizados. Quanto às construções em que cada forma aparece, vemos, no primeiro caso, uma construção relativamente simples, embora com sujeito [animado], logo não prototípico, com intercalação adverbial; e, no segundo, uma estrutura um pouco mais complexa em oração relativa. A presença de níveis mínimos de uma complexidade um pouco maior pode denotar que, embora em muito diminuta presença, as construções perifrásticas já iniciaram um curso de mudança, muitíssimo inicial, no meio escrito do PE. Vejamos os verbos selecionados pelas construções desinenciais: coincidir, continuar, construir, dar, dever (6 vezes), ir, levar, manter, permitir (2 vezes), poder (4 vezes), retomar, seguir, ser (10 vezes), surgir, ter (5 vezes) Compreensivelmente, os verbos mais funcionais tendem a apresentar maior frequência, por razões já discutidas anteriormente. Nas ocorrências de dever e poder é de se destacar a ênfase modal deôntica, retornando à discussão por nós já empreendida, quando do PB, entre pontos afins entre tal modalização e o valor de futuridade. Apenas uma ocorrência de cada apresenta valor epistêmico. Pensamos que isso traz consequências a serem observadas com o devido cuidado. Dever deôntico surgiu nos textos com usos similares a este: Os candidatos deverão possuir cédula marítima. Atentemos para o fato de que não houve ocorrências para dever deôntico no presente, o que se observa no PB, com frequência, como nos exemplos de mídia digital e editais abaixo: O candidato deve acessar sua nota nos sites enem.inep.gov.br ou sistemasenem2.inep.gov.br/resultadosenem. (portal Globo.com, publicado em 13/01/2015) Candidatos devem ter atenção com material para as provas do Enem. (portal da Agência Brasil, publicado em 07/11/2014) 291 O candidato deve possuir Cadastro no Sistema PSS para realizar a inscrição. (edital para concurso da Secretaria de Educação do estado do Paraná)263 Embora também achemos, sem maiores dificuldades: O candidato que optar pela vaga regular deverá pagar taxa de inscrição... (edital do vestibular 2015, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná) Para ver sua nota, o candidato deverá inserir seu número de inscrição do Enem, CPF e senha de acesso. (portal Globo.com, publicado em 13/01/2015) No PB, há uma alternância entre os formatos morfológicos de presente e futuro do presente para a expressão desse valor deôntico. Nas fontes de PE, não encontramos nenhum dever deôntico (nem poder) concretizado em presente do indicativo. Claro que nossa observação corresponde a um corte muitíssimo restrito. Ainda assim, não nos soaria surpreendente detectar aí uma tendência do PE à expressão deôntica concretizada em futuro do presente, dados os vínculos entre os valores deônticos e de futuridade, os quais seriam elementos a reforçar a ênfase em temporalização futura explícita. Porém, nem mesmo no PB, em gramaticalização mais avançada da expressão de futuro verbal, encontraríamos, seja em leitura deôntica ou epistêmica, * O candidato vai dever trazer 2 fotos 3x4. Outro uso lusitano que nos chamou a atenção foi o do futuro do presente em construções em que, no PB, utilizaríamos, certamente, o futuro do pretérito, tal qual em discursos relatados, típicos de notícias, como: ... uma mulher que foi pedir emprego a Bill Clinton e que este terá apalpado... Deparamos com outras construções similares e, em todas elas, utiliza-se futuro do presente, em lugar de futuro do pretérito, fato com que já traváramos contato por 263 Acesso por consulta online, no endereço virtual: http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/pss/guia%20de%20inscricao/03comofazerminhainscri aoatualizado.pdf. 292 meio das mídias escrita, televisiva e virtual portuguesas. Tal semântica não se confunde, de modo algum, com a seguinte, também constante do corpus: Se conseguirmos fazer pelo menos um pouco neste sentido, teremos dado a nossa contribuição à causa do fortalecimento da paz. No último caso, temos uma projeção ao futuro que não toma o valor de suposição da situação anterior na qual o futuro do presente cumpre o claro papel de isentar o enunciador de sua afirmação. No exemplo anterior, pelo contrário, o futuro do presente ganha ares assertivos. O quadro apurado da escrita portuguesa, com tamanha hegemonia do futuro do presente morfológico simples leva, naturalmente, a que este recubra todo o escopo possível de construções, das mais simples às mais complexas. Seu uso é universalíssimo e as perífrases são ainda exceção. Já a situação, nos exemplos de fala portuguesa, é de uma ordem distinta dessa e com conformação bem mais heterogênea, denotando um processo de mudança visivelmente em curso. Numericamente, as ocorrências são também baixas. Os inquéritos portugueses, acessados via CRPC, são apreciavelmente menos extensos do que os brasileiros e apresentam, como explicitamos no capítulo anterior, composição bastante heterogênea quanto ao corte de escolaridade de seus informantes. Obtivemos um total de 43 ocorrências de futuro do presente, em uma média de 1,4 ocorrências por inquérito. A expressão de futuro do presente deu-se da seguinte maneira: Quadro 35: PE oral. Ocorrências da fala- PE Número Frequência DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COM HAVER 14 24 1 0 4 32,6 55,8 2,3 0 9,3 O demonstrativo da oralidade lusa traz-nos, já em primeira visualização, novidades apreciáveis. Das formas em uso, surge aqui o futuro com haver como auxiliar. Há uma única inexpressiva ocorrência para o uso de presente e nenhuma 293 para perífrase com ir conjugado em futuro. No balanceamento entre construções desinenciais e perifrásticas, o quadro é bastante diverso do analisado quanto à escrita. Se na escrita, o futuro do presente em morfemas temporais é categórico e universal, nos registos― respeitosamente, à lusitana― de origem falada, não resta dúvida de que a mudança linguística esteja em curso, em que pesem os usos desinenciais ainda serem de monta indubitavelmente significativa. Iniciemos pelas ocorrências em haver. Sua frequência é relativamente a mesma da verificada para o uso desinencial na fala do PB. Acrescentemos a essas ocorrências nosso juízo de que as mesmas correspondam a arcaísmos. São exemplos dessas, no corpus luso: ... que passos hei de dar para ela não ter nada a ver comigo... Ai, como é que hei de contar? As ocorrências com o conjunto haver de + infinitivo ocorreram dentro da seguinte caracterização de informantes: uma vez com um de nível superior, outra com um analfabeto e duas com um que estudou até o 4º ano. Claro que, diante de números tão rebaixados, não se pode exarar hipóteses ou princípios que se pretendam abrangentes e/ou muito sólidos, mas a simples identidade majoritária com informantes de baixa escolaridade reforça nossa inclinação ao uso arcaizante, já que o uso aí ligado a hipercorreção ou conservadorismo linguístico seria bastante recorrente em usos típicos de baixa escolarização. Além de dar e contar, regista-se mais uma ocorrência para este último verbo, em sequência à primeira em frase quase geminada, e uma para ter. Por crermos na hipótese arcaizante a justificar os usos da locução com haver, não tomamos por relevante o perfil dos verbos aí utilizados. Para o presente com valor de futuro, a única ocorrência aferida foi: Se não partir desde o princípio, não sei se dá muito resultado. Vemos aí o verbo dar, irregular, monossilábico, de papéis funcionais intermediários, sobretudo em construções com verbo-suporte e orações sem sujeito, 294 como no exemplo, em uso bastante afeito, por sinal, ao PB. Entretanto, em face da ausência de maiores resultados para o presente em tempus futuro, vemo-nos impedidos de emitir qualquer parecer sobre tal forma futura no PE. Justino (2011) postula, como usos categóricos do presente em valor de futuro, para o PE, o atestado em construções condicionais e temporais, em futuro do conjuntivo, tal qual encontramos também no PB. Se eles empurrarem, o carro pega. Os miúdos só podem ir às aulas, se os carros dos pais não avariarem. Se não chover neste trimestre, não semeamos nada.264 [grifos nossos] O único exemplo de nosso corpus enquadra-se justamente aí. Entretanto, tal meio morfossintático não nos ofertou maior exemplário, tampouco outros contextos, deixando-nos uma notável lacuna de observação para nosso suporte descritivo desse uso e valor no PE. Quanto aos dois principais usos, mais uma vez apliquemos o procedimento de explicitação dos lexemas verbais: desinenciais: chegar, continuar, dever, ficar, haver (2 vezes), sentir, ser (3 vezes), ter (4 vezes), vir e viver. perifrásticas: caber, descobrir, dizer (2 vezes), evoluir, fazer, fugir (3 vezes), haver, lançar (2 vezes), levar (2 vezes), ouvir, pensar, sentar, ser (3 vezes), ter, ver e viver. No caso das ocorrências apuradas do PE, não poderemos levar em conta, talvez pelo pequeno exemplário, o critério da extensão silábica, uma vez que esse não apresenta distinção marcante nas duas séries em cotejo. Também o critério da regularidade verbal parece-nos improcedente ou, pelo menos, ofuscado em nosso presente rol de verbos. Contudo, evidencia-se, mesmo em breve análise, mais uma vez o perfil dos lexemas em jogo, segundo seus papéis mais ou menos gramaticais na língua. Notemos que, dentre as formas sintéticas, a única que, em nenhum nível, é arregimentada a funções minimamente gramaticais e gramaticalizadas na língua é 264 Exemplos recolhidos de JUSTINO (2011, p. 24). 295 sentir. Todos os demais verbos, ainda que em diferentes graus, enquadram-se em perfil funcional. Vejamos. Quadro 36: valores funcionais de formas verbais do corpus. Forma Principais funções gramaticais verbal Chegar Expressão aspectual cessativa, função apresentativa, função interjectiva265. Continuar Demarcador aspectual e uso copulativo. Dever Formador de locução verbal, fortemente modalizada. Ficar Verbo copulativo e demarcação aspectual. Haver Formador de locuções verbais, em especial os chamados tempos compostos, e de orações sem sujeito. Verbo copulativo, formador de orações sem sujeito, valor ocorrencial Ser e existencial. Ter266 Formador de tempos compostos, uso transitivo direto periférico, papel modalizador. Vir Formador de locuções com ideia de movimento, de presente frequentativo e resultativo com valor de atenuação267. Viver Uso copulativo. Poderíamos, para cada um dos verbos acima, além de acrescentar-lhes funções na língua, discorrer sobre sua rede de funções gramaticais. Obviamente, isso não só é desnecessário como fugiria a nossos objetivos. Basta a constatação de que tais formas trazem consigo esse recorte em comum. Claramente estamos a pontuar que, também no PE, é possível observar aí o contexto que apontáramos para o PB, embora em um emolduramento distinto. Cumpre registar que 8 ocorrências desinenciais, ou seja mais de 50% delas, provêm de apenas três ETRs (entrevistas de televisão ou rádio). Ao menos uma dessas foi em claro tom cerimonioso, pois que o entrevistado era o presidente da república portuguesa. 265 Como exemplificado no item 3.1. Em PE, tal verbo não forma orações sem sujeito. 267 Como também visto no item 3.1. 266 296 Já nas formas perifrásticas, vemos, não fortuitamente, a prevalência dos verbos de perfil mais lexical, ainda que encontremos aí com presença longe de desprezível, verbos funcionais, como comprovação mesma da mudança em desenvolvimento. Cabe registar que, nos dados orais dos anos 90, em comparação com as décadas de 70 e de 80, é de quando advém o maior volume de exemplos de uso de perífrase, acentuando para nós, por meio de tal incremento, o sentido inequívoco da mudança e seu caminhar no tempo. Buscamos ainda outros fatores que pudessem justificar a escolha por forma desinencial ou perifrástica na oralidade do PE. Levantamos alguns fatores, como hipóteses de observação, ainda que cientes de que a baixa amostragem pode favorecer distorções e ofuscamentos. Primeiro, atentamos para o sujeito, em diferentes níveis: sua tipologia, incluindo concretização em SN ou não, animacidade/traço humano ou não e papel temático. Cotejando as duas realizações de futuro do presente, observamos: Quadro 37: comparação entre propriedades do sujeito de formas de futuro desinenciais e perifrásticas. DESINENCIAL Tipo de sujeito PERÍFRASE Predomínio de sujeito desinencial, Predomínio de sujeito simples, mas ocorre também com o simples e ocorrendo também com desinenciais, em orações sem sujeito. em orações sem sujeito impessoais e pessoais268. Animacidade/traç Predomínio dos traços [+ humano] e Predomínio dos traços [+ humano] e o humano Papel [+ animado], ocorrendo tanto com [- [+ animado], ocorrendo tanto com [- humano] quanto [- animado]. humano] quanto [- animado]. temático Sem do sujeito predomínio claro, bem Predomínio de agente, ocorrendo diversificado dentre agente, paciente também paciente, e tema. Ocorrendo minoritariamente experienciador. tema e como experienciador. Do que podemos observar acima, tornando à ressalva da limitação de dados, a única distinção que se destaca é a que diz respeito ao tipo de sujeito que, na verdade, equivale a dizer que, nas perífrases, predominam SNs sujeitos plenos, ao 268 Orações sem sujeito pessoais correspondem àquilo que a tradição consagrou como sujeito indeterminado. Ver NASCIMENTO (2011). 297 passo que, nas desinenciais, há hegemonia do, assim chamado, sujeito nulo269. Registe-se ainda que ambas as formas ocorrem com sujeito posposto. Elenquemos ainda mais pontos de visagem. Predomina vastamente em ambas as séries a terceira pessoa seja do singular ou do plural. As únicas ocorrências de 1ª pessoa, do singular e do plural, são todas correlatas às perífrases; porém seu número é muito diminuto, totalizando apenas 4 exemplos. Não houve ocorrência para a 2ª pessoa. Não captamos distinções quanto à transitividade verbal. No que diz respeito à ocorrência em construções passivas, aplica-se o mesmo. Tanto formas perifrásticas quanto sintéticas ocorrem em todas as estruturações oracionais: período simples, coordenadas, substantivas, relativas, adverbiais e principais. Ou seja, ambas se fazem presentes em estruturas mais simples e nas mais complexas, tais quais: ... julgo que não será. Já não são as senhoras que se vão sentar à frente... As duas formas também realizam-se com futuro definido ou indefinido. E, por fim, os fatores relacionados à presença de negação ou de estruturações interrogativas diretas também não as distinguem. A quem terá saído? Que virá por aí? E o próprio homem não sentirá que perde sua virilidade? O último exemplo vem ilustrado pelo verbo sentir, segundo nosso juízo, bastante afastado do protótipo das construções desinenciais de futuro do presente. E vejamos exemplos de interrogativas com locuções: E quando é que eles vão viver a sua vida? Para que é que a gente vai fugir? 269 Temos restrições á terminologia sujeito nulo, como expusemos detidamente em NASCIMENTO (2011), porém, por simplificação, e como não é esse o tema a ser aqui desenvolvido, valemo-nos dela. 298 Tal exemplo, a titulo de curiosidade, traz a gente em uso pronominal gramaticalizado típico do PB, mas não do PE. Tal inquérito retrata a fala de uma informante de nível superior. O verbo nele presente, por sinal, ocorre em um número de vezes, talvez, surpreendente. No mesmo inquérito, pouco antes, a informante dissera: Nós vamos fugir... Agora, vemos já um prototípico uso pronominal lusitano. Não nos é possível, dados os quantitativos com que trabalhamos, exarar justificativas de pretensão cabal aos usos desinenciais, ou talvez melhor, à sua resistência. No entanto, a tendência aos verbos funcionais, desde já, parece-nos perfeitamente pertinente, uma vez que é também verificada no PE e integra um olhar teórico mais completo sobre o processo de mudança, como já desenvolvemos neste mesmo capítulo. Quanto à modalização deôntica, supomos que possa, perfeitamente, haver aí um caminho plausível de observação a se trilhar. Também há a se cogitar algum nível de aderência entre formas sintéticas e sujeito desinencial e locucionais e sujeito pleno. Contudo, tendemos a julgar tal fator como de menor impacto, inclusive por termos encontrado exemplário não desprezível atestando o contrário. Assim, tal identidade para as duas formas em estudo nos parece, quando tanto, uma leve tendência. Havemos de considerar, outrossim, que a mudança do futuro do presente na fala portuguesa encontra-se em patamar menos desenvolvido do que na brasileira; logo é de se esperar maior diversidade de contextos a viabilizar as realizações desinenciais. Ainda dentro da oralidade portuguesa, encontramos também exemplos de “falsos positivos”, embora em menor afluência em termos absolutos e relativos, se comparados aos dos inquéritos brasileiros. Exemplificam-nos: Às vezes as pessoas vão entregar uma peça... E quando há festas, os amigos lá o vão buscar... Em ambos os casos, vemos, claramente, sequências verbais em que o verbo ir imprime ideia de movimento, sem possibilidade de interpretação de futuridade. 299 Concluída a apresentação dos dados da oralidade e do letramento portugueses, fica claro um perfil de mudança ainda com muito por desenvolver. Na escrita, as construções desinenciais reinam poderosamente. Na fala, estas ainda mantêm força, embora já não sejam majoritárias. Trata-se de um estágio da mudança bem distinto do brasileiro, mas em curso, certamente. Passemos, pois, aos dados do português moçambicano. 7.3 PM Eis que atingimos um ponto específico anunciado desde nossa apresentação. Incluir dados de descrição gramatical, especialmente da língua portuguesa falada em Moçambique, desde o início, era-nos muito caro. Claro que, de antemão, lamentamos o reduzido corpus oral, embora, metodologicamente, sintamo-nos tranquilizados por ter feito a opção que mais preserva um mínimo de homogeneidade para análise de dados. É preciso apontar que, de modo geral, há escassa literatura sobre descrição gramatical específica do PM. A maior parte dos textos voltados a lidar com a língua em Moçambique versa sobre a aquisição da língua, perfil geral de usos, afastamentos da norma lusitana, moçambicanismos, políticas linguísticas, enfim, se busca uma caraterização mais geral do PM, o que é bastante compreensível, em face das condições sócio-históricas efetivas que se aplicam ao país e, por extensão, à língua portuguesa nesse espaço. Trata-se, enfim, de lidar com a diversidade cultural em meio às adversidades sócio-históricas de que tratamos, sucintamente, no capítulo 5. Antes de cuidar de nossos dados apurados da fala e da escrita moçambicanas, pretendemos um muito breve esboço do pouco que obtivemos de contato com pontos mais específicos de descrição gramatical do PM, através de MACHUNGO (1986), PONDECA (1991) e JUSTINO (2011). Machungo (1986), em um precursor trabalho sobre os tempora do PM, inicia suas considerações sobre o futuro do presente, alertando para sua baixa frequência em seu corpus de trabalho. A autora aponta, nos usos moçambicanos do futuro do presente, quatro grandes valores: de promessa, de predição, de dúvida e de valores modais de necessidade, probabilidade, possibilidade, agrupados conjuntamente. 300 Uma primeira problematização nossa recairia em um dos exemplos arrolados como do uso de dúvida: ... mas quem será que está a banhar a estas horas? [grifo nosso] No exemplo, deparamos, justamente, com um dos usos que temos tratados em todos nossos corpora por falsos positivos. Mantemos aqui nossa interpretação. O que temos aí não é, a rigor, um uso verbal com valor de futuridade. Trata-se de um processo que muito mais se identifica com a clivagem, dada, inclusive, a constante posposição do que, tendo se especializado nas estruturas interrogativas diretas. Em seu recenseamento, a autora constata como auxiliar mais frequente ao valor de futuridade poder, seguido distantemente por ir e ter (que). A esse respeito, não levantamos, em nossa tese, usos de futuridade, o que ampliaria consideravelmente nossos dados de partida, embora mudasse apreciavelmente nossos objetivos, porém pudemos observar uma ocorrência não desprezível de poder nos três dialetos a construir futuridade, além de seus usos como verbo principal, como demonstram os corpora que temos apresentado. É curioso o tratamento marginal que recebe ir nessa abordagem de expressão do futuro verbal. Pensamos que, em se tratando de um trabalho de 30 anos atrás, ainda sob a forte égide da norma lusitana, seria essa uma abordagem bastante esperável. Muito possivelmente, o seja ainda hoje. A autora ainda nos expõe, com ênfase, o uso do presente com valor temporal futuro, aí incorporando as perífrases ancoradas em auxiliares flexionados no tempus presente. Inclui nesse rol as formas com ir, além das com haver: ... não sei, ou são esses alunos que foram formados que vão se ingressar no Instituto ou então, são os alunos que vão fazer a décima primeira que hão-de vir no Instituto. ... acho que vou gostar. 270 [grifos da autora] Machungo (op.cit.) também problematiza a ideia da proximidade ou não do futuro como critério efetivamente válido e aferível para seu uso, não restrito apenas ao PM. Ela vaticina “... contrariamente à opinião de alguns gramáticos, em relação ao tempo real, extralinguístico, um futuro com ir ou um futuro simples, podem ser 270 MACHUNGO (1986, pp. 104-105). 301 usados para enunciar factos situados a uma mesma distância temporal em que o enunciador pretende colocar-se...”271 (grifo da autora). Ela constata que, dentre os usos reunidos sob a alcunha de presente, o mais produtivo é, taxativamente, o da locução com ir, sobrepondo-se aos usos conjuntos da perífrase com haver e de presente morfológico isolado. Reconhece, por fim, nas formas perifrásticas, especialmente em ir uma produtividade notável na fala do PM, embora o futuro simples seja aí muito disseminado também. Já Pondeca (1991), tendo a professora Inês Machungo por orientadora, baliza seu trabalho na análise de tempora da esfera narrativa e da esfera do comentário, a partir do PM, pretendendo a análise da distribuição desses tempora na língua. Lembremos, pelo que já vimos nesta tese, que o futuro do presente compõe o mundo do discurso, do actual, do comentário. Observamos, a partir de tal trabalho, uma real baixa frequência de futuro do presente, mesmo na esfera do comentário, uma vez que a projeção não é, em geral, a tônica discursiva de tal meio. Nos dados escritos de PM especialmente, vimos uma ligeira elevação de ocorrências de futuro do presente, possivelmente associadas à utilização dos gêneros argumentativos dissertação e resenha, espaços abertos ao mundo comentado. A título de curiosidade, o corpus de trabalho de Pondeca (1991) é todo formado por professores primários, em clara interface sobre o uso da língua, em contexto escolar moçambicano. Já em Justino (2011), deparamos com variadas possibilidades de realização para o tempus aqui em estudo, no contexto sintático específico das adverbiais condicionais ou temporais em futuro do conjuntivo. Irei viver (para) fora se o ambiente continuar como tem sido.272 África vai crescer quando potenciar educação e aprendizagem. Se não puder, a alternativa é ir ao mercado à busca de emprego.273 Se um jogador tiver uma lesão, manda-se para a África do Sul. (JN) Quem tiver ferramenta terá que se virar, mas o grosso não. (JN)274 [grifos nossos] De início, observamos já nos exemplos acima uma rede de possibilidades de realização do futuro do presente que inclui as perífrases em ir, tanto no presente quanto no futuro do presente, o presente morfológico com valor de futuridade e o 271 MACHUNGO (1986, p. 107). Todos os exemplos da sequência recolhidos de JUSTINO (2011, p. 52). 273 Os três primeiros exemplos são de fala espontânea moçambicana. 274 Os dois últimos exemplos são do Jornal Notícias, de grande circulação em Moçambique. 272 302 típico futuro simples desinencial. Antecipamos que, nos corpora do PM, todas essas possibilidades, de fato, surgirão. Adiante, Justino (2011) ainda nos exemplificará mais um possível uso de futuro do presente em PM, tendo agora por suporte a estrutura relativa, como no exemplo de fala espontânea a seguir: Quem quiser ir, eu não hei-de achar mal. [grifo nosso] Eis que deparamos com mais uma variante em curso no PM para a expressão do futuro do presente verbal. Ou seja, no PM, tal qual na expressão sociocultural moçambicana mais geral, a diversidade faz-se valer. Enfim, Justino (2011) permite-nos um acesso e interessante visualização de dados do uso das variantes do futuro do presente, em função de seu estudo do futuro do subjuntivo em adverbiais temporais e condicionais do PM, também tratando colateralmente de alguns exemplos de adverbiais conformativas e relativas. O conjunto do exemplário aí disponível é bastante rico, embora circunscrito a um determinado contexto sintático bem específico. Além disso, constam também desse estudo oportunas ponderações sobre usos moçambicanos, bem como sobre possibilidades e perspectivas pedagógicas apontadas por tal levantamento, incluindo proposições bastante concretas e esmiuçadas. Tendo trilhado esse breve caminho pelas ainda poucas referências descritivas atinentes ao PM, iniciemos nossa exposição do que encontramos nas fontes desse dialeto. A exemplo do que fizemos para o PB e o PE, iniciemos pela exposição e análise dos dados de língua escrita. Primeiro lembremos que os dados escritos de PM, ao contrário do PB e do PE, não provêm de imprensa ou mídia, mas da produção escrita na forma de dissertações, resenhas, cartas produzidas e pequenos textos narrativos, intitulados Histórias do dia-a-dia, por estudantes universitários― reconhecidos pelos linguistas moçambicanos como o estrato a partir do qual se situa o falante culto― da Universidade Mondlane e da Universidade Pedagógica, ambas públicas, sendo aquela situada em Maputo, cidade, e esta com campi e unidades tanto em Maputo quanto espalhadas pelas províncias do país. De todo modo, os alunos são oriundos dos mais variados espaços de Moçambique. 303 Destaquemos que, para além de nosso objetivo de investigação, os corpora escritos obtidos quanto ao PM são todos transcrições que mantêm a íntegra de seus textos originais manuscritos, constituindo uma fonte de observação riquíssima dos mais variados aspectos linguísticos sobre os quais se possa querer se debruçar. Dito isso, apresentemos os dados escritos, em um total de 93 ocorrências, perfazendo uma média de 1,3 por texto, próxima à média obtida para a fala do PE. Quadro 38: PM escrito. Ocorrências da escrita- PM DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COM HAVER 63 24 0 6 0 67,7 25,8 0 6,5 0 Número Frequência Os verbos presentes em cada grupo foram: desinencial: acabar (2 vezes), acontecer, basear, chegar, condicionar, constituir, dar, designar, dever (2 vezes), enfrentar, escapar, estar (5 vezes), existir, fazer (2 vezes), ficar (2 vezes), haver, incidir, levar, passar, poder (4 vezes), reduzir, resistir, sentir, ser (15 vezes), servir, tentar, ter (4 vezes), trazer, usar, ver, vir (3 vezes), voltar. perifrástico: abordar, apender, apresentar, aterrar, contar, contribuir, facilitar, falar, ficar, fixar, haver, morrer (2 vezes), oxidar, permitir (3 vezes), procurar, ser, subornar, tomar e trazer. perifrástico em futuro: enfrentar, escapar (2 vezes), identificar, instalar e pôr. A série desinencial é menos homogeneamente funcional do que temos deparado em nossa explanação. É evidente que isso é devido mesmo à hegemonia dessa forma na escrita do PM, quanto mais ainda referenciada fortemente que é no PE. De todo modo, ainda assim, observamos na sequência, em olhar comparativo às séries restantes, que é no formato de futuro sintético que se acolhem, principal e enfaticamente, os verbos funcionais, segundo essa amostragem do PM escrito. Já 304 discorremos sobre o quão indicial isso é de mudança já em curso. Tal constatação ganha fundamento perante as ocorrências em número e percentual a se considerar certamente das construções perifrásticas típicas de futuro no português atual. Por outro lado, vemos, claramente, na série perifrástica, um domínio quase absoluto de formas verbais lexicais, encontrando, possivelmente, em oxidar (em uso de um falante L2) sua expressão mais plena. Apenas ser (em uma única ocorrência), haver, ficar, procurar e o exemplar e lexicalmente modal permitir, em gradação do mais ao menos funcional, destoam em alguma medida da tônica da sequência perifrástica em presente, em consonância com o que temos observado e desenvolvido acerca do uso de tal forma no PB e no PE. Por fim, a segunda série perifrástica surge em expressão muito reduzida― embora bem mais significativa do que a encontrada no PB― e, por isso, difícil de caracterizar. Chama a atenção, à óbvia exceção do irregular e monossilábico pôr, o predomínio de formas trissílabas e polissílabas, todas do espectro lexical. Assinalemos que todas as ocorrências dessa perífrase deram-se no uso de falantes de português como L1, o que, no contexto moçambicano, parece enfraquecer a hipótese de tal uso reduzir-se à hipercorreção. Possível hipercorreção poderia ser percebida, por exemplo, nos usos mesoclíticos com futuro do presente simples, apenas três, produzidos por dois falantes de português como L2 e um falante misto, ou seja que se declara tendo o português por L1, mas também fala outra língua, na mesma condição. Tanto na expressão desinencial quanto na perifrástica, flagramos basicamente usos de 3ª e 1ª pessoas do singular e do plural. Em todo o conjunto de textos escritos, houve apenas duas ocorrências de futuro do presente com 2ª pessoa, do singular. Houve, em ambas as construções perifrásticas, apenas dois exemplos de intercalação entre o verbo ir e a forma de infinitivo. Apesar disso, mantivemos uma leitura de futuro de ambas, não havendo sequer admissibilidade, no primeiro exemplo ao menos para interpretação de movimento, como se vê: ... vai aí haver uma degradação moral e a destruição do tecido social moçambicano. 305 Estes irão provavelmente enfrentar outras catastrofes275 de doenças... Note-se que, na comparação entre o futuro simples e a perífrase preferencial apenas, os dados do PM escrito não destoam muito, embora por gêneros textuais diferentes, dos obtidos no PB escrito. Diferente do procedimento que adotamos para o PB e o PE escritos, pensamos que o mais producente, no caso do PM, com toda sua especificidade de uso da língua portuguesa, quanto mais a se considerar a distinção de seus gêneros escritos frente aos dos demais dialetos, não seja destrinchar a relação entre gêneros textuais e uso do futuro do presente, mas sim entre a condição de uso cotidiana da língua portuguesa e o futuro do presente. Em outras palavras, levantar se a condição L1 ou L2 do falante demonstrou algum impacto na produtividade do futuro do presente. Óbvio que qualquer visão construída a partir daí terá que ser parcial, pois há outros fatores que, invariavelmente, condicionam isso, como o tema, por exemplo, não raramente, de forma decisiva. No corpus, houve cinco informantes caracterizados como L1 em português e em mais uma língua nativa. Consideramo-los, logicamente, todos falantes de português como L1 apenas. Lembremos que estamos a lidar apenas com os textos que trouxeram exemplificação de futuro do presente. De antemão, podemos afirmar que houve mais ocorrências do tempus sob qualquer forma, nos textos de informantes L1, já que esses compunham a minoria do universo de 72 informantes. O universo de partida era composto por 40 informantes L2 e 32 L1. Quadro 39: formas de futuro por condição do falante moçambicano em relação ao português. INFORMANTES DESINENCIAL PERÍFRASE I PERÍFRASE II Português L1 23 33 12 6 Português L2 18 30 12 0 Apreendemos, na distribuição de formas, uma equivalência bastante grande entre informantes L1 e L2, não sendo detectável identidade entre uma ou outra forma e a condição falante, exceção possivelmente feita, em nosso recorte, ao uso da perífrase de menor rendimento. Isso também pode ser indicativo de um ritmo de 275 Tal qual transcrito. 306 mudança homogêneo dentre falantes L1 e L2 em Moçambique; mais que isso, pode ser indício que tal processo atua decisivamente na instância PM e não mais acentuadamente em uma ou outra esfera de falante, no que diz respeito à sua condição linguística nativa. No mais, precisamos afastar de nossa análise qualquer suscetibilidade a encarar o falante L1 como primaz e o L2 como subalterno. No contexto moçambicano, não há qualquer sentido consequente em se considerar o falante L1 portador de maior legitimidade, autenticidade ou o que o valha; até porque a dinâmica do PM é vigorosamente ditada pelo ritmo de seus falantes L2. Na escrita do PM, deparamos com “falsos positivos”, notadamente, nas construções interrogativas com será: Será que é o tal fim do mundo que se fala por aí? Será que é possível banir a corrupção? Porque será que os diversos dirigentes aderem a corrupção? Passemos, então, à exposição dos dados de fala do PM. Quadro 40: PM oral. Ocorrências da fala- PM Número Frequência DESINENCIAL PERÍFRASE I PRESENTE PERÍFRASE II COM HAVER 6 12 4 2 5 20,7 41,4 14 7 17 Estamos agora a lidar com o menor universo recenseado, dentre o conjunto de nossos corpora, por razões detidamente explicitadas no capítulo anterior. Contudo, ao mesmo tempo, estamos diante do resultado mais enriquecido do ponto de vista da diversidade de ocorrências, com presença de todas as concretizações possíveis para o futuro do presente em língua portuguesa. Se o quadro da escrita já apresentava indícios de contexto linguístico eivado em variação, nos dados de fala, tal perspectiva consagra-se. Notemos que, em termos relativos, nenhuma ocorrência pode ser caracterizada como inexpressiva, ainda mais se considerarmos o ínfimo universo observado. Foram 32 ocorrências de futuro do presente, em média de 3,2 por texto. 307 Essa visualização da fala, ainda que restrita, coaduna-se com os apontamentos de Machungo (1986) que atribuem uma grande produtividade à perífrase com ir no presente. A grande variabilidade de expressão moçambicana, pensamos, há de ser creditada, em grande parte, ao próprio contexto sociolinguístico do país, bastante propenso à variação, em seu processo de conformação da língua portuguesa, com cores locais. É importante frisar que, nos dados de fala, não dispusemos de esclarecimentos sobre condição L1 ou L2 dos informantes. O quadro de distribuição dos lexemas verbais da oralidade moçambicana consideramos bastante ilustrativo e esclarecedor: desinenciais: ficar (2 vezes), poder (2 vezes) e ter (2 vezes). perifrásticos: andar, comprar, dizer, educar, estudar, falar (3 vezes), passar, perder , ser e viver. perifrásticos em futuro: falar e saltar. presente: dever, pagar e poder (2 vezes). em haver: estudar, ir, precisar, surgir e vir. As ocorrências desinenciais só englobam verbos de perfil funcional. As de perífrase de alto rendimento, por sua vez, são bastante lexicalizadas, exceção, naturalmente feita ao funcional arquetípico, ser. Inclusive andar e viver aí estão em sua faceta de verbos ditos significativos: Tu não vais andar na mota porque vais comprar um maço de cigarros na Baixa... Eh pá quando eu crescer vou viver lá... De todo modo, o grande grau de lexicalidade da série perifrástica em contraposição à funcionalidade desinencial atestar-nos-ia uma mudança em 308 momento bem demarcado, não fosse por dois claros aspectos que nos impedem ser taxativos quanto a isso. O primeiro, logicamente, é a diminuta dimensão do corpus. Não é possível a alegação de algo que ultrapasse a esfera do indício, em tal contexto. O segundo é a presença de ser dentre as construções perifrásticas, uma possível pista de que, em contexto mais amplo, a profusão de usos perifrásticos na fala moçambicana possa ser mais acentuada. Convém observar que, atentando apenas para os dados da perífrase principal e da forma sintética, mantém-se entre ambas uma proporcionalidade que se assemelha a apurada na fala do PE. Quanto às demais séries, na perífrase de baixo rendimento, chama a atenção o fato de as duas formas encontradas conterem intercalações, o que, junto à ocorrência na escrita, pode ser indício de um nível de menor coesão dessa perífrase, logo, menos gramaticalizada, como é de se esperar. Ambas as ocorrências advêm do mesmo inquérito: Eu irei portanto falar um bocadinho da arte... ... irei já saltar um bocadinho no, no ramo de pintura... Quanto ao presente em valor futuro, não há muito o que se caracterizar, a não ser um perfil verbal mais funcional, se comparado à perífrase secundária e a com haver. Tanto dever quanto poder presentes nessa série manifestam valor epistêmico. Coincidentemente, poder na série dos sintéticos comporta-se da mesma maneira. A série de haver é, de todas, a mais heterogênea, sem nenhum padrão mínimo de forma, papel linguístico ou uso que possamos estabelecer, o que pode ser interpretado como confirmador de uso arcaizante, embora no cenário moçambicano, tais ocorrências possam também ser tomadas por hipercorreção. Curiosamente, surge, nessa série, ir, que em todos os corpora de língua portuguesa aqui analisados teve ocorrência escassa, quase inexistente, como confirmação que ainda há curso de mudança adiante que habilite, por exemplo, vai ir ao uso pleno. As últimas três séries de formas analisadas, embora com presenças que não possam ser desprezadas, situam-se, a nosso ver, à margem da mudança no espaço moçambicano, levando em conta também os dados de língua escrita. Tal qual concluímos para o PB e o PE, as formas envolvidas na mudança, resolutamente, 309 são a sintética e a analítica. Na fala moçambicana, a perífrase principal ainda não conta com o uso hegemônico que a forma simples ainda detém na escrita, inclusive pelo curso de outras três formas variantes, na oralidade. No entanto, a mudança está já em curso no PM. Como ela irá interagir com todo o complexo quadro linguístico moçambicano é pergunta sem fácil resposta no curto prazo, mas, como sabemos as mudanças linguísticas, seguramente, não tendem a ser de curto prazo. Tendo percorrido, as três variedades de língua portuguesa, em seus corpora de escrita e de fala, pontuemos, agora, algumas muito breve observações gerais. 7.4 Visão geral dos dialetos lusófonos Ainda há algumas ponderações gerais sobre nossa investigação lusófona empreendida que cabe serem feitas. Antes, contudo, pensamos é oportuno ofertar uma visualização consolidada e comparada das três grandes variedades de língua portuguesa com que trabalhamos aqui. Para isso, julgamos que bastam os percentuais levantados. Quadro 41: comparativo de PB, PE e PM escritos e orais gerais. Ocorrências percentuais em língua portuguesa DESINENCIAL PERÍFRASE I PERÍFRASE II PRESENTE HAVER ESCRITO 58 21,8 0,84 19,3 0 FALADO 9 79,6 0 11,5 0 ESCRITO 94,9 5,1 0 0 0 FALADO 32,6 55,8 0 2,3 9,3 ESCRITO 67,7 25,8 6,5 0 0 FALADO 20,7 41,4 7 14 17 Futuro do presente PB PE PM A sistematização compacta dos percentuais para língua portuguesa permite uma visão mais geral a respeito do convívio de formas para o futuro do presente e do ritmo de mudança em cada variedade. Fica bastante claro que o PB é o dialeto 310 de nível de mudança mais avançado. No PE, encontramos o cenário mais conservador para a mudança na escrita lusitana. Por outro lado, a presença perifrástica na fala é já bastante difundida e majoritária. No PM, deparamos com o cenário mais híbrido, com claro vértice de mudança, a partir da forma perifrástica, em contexto ainda não hegemônico, por conta, inclusive, da intensa diversidade. Podemos, com base nos dados recolhidos e analisados, dizer, com certeza, que a conotação de formalidade que o futuro do presente sintético passa a expressar crescentemente não há de se verificar no PE nem no PM. Quanto às locuções em haver, insistimos em apontá-las como arcaísmo, embora de ocorrência considerável no PE e no PM, inclusive suplantando as formas de presente nas falas do PE e do PM, não tendo, por outro lado, ocorrências na escrita de nenhum dos dois dialetos. Já a perífrase com ir, no futuro, só pode ser levada em conta no PM, apresentando, muito possivelmente, um grau de coesão/gramaticalização menor do que o verificado com sua correlata em presente. Sua presença, intuímos, dá-se no “vácuo” de diversidade do PM, no que diz respeito às formas para futuro do presente, em especial e no contexto linguístico mais amplo, em geral. Seu volume de dados não permite, afinal, caracterizar tal variante, seja como de hipercorreção ou de ênfase no grau de comprometimento. Sobre o presente com valor de futuro, enquanto há línguas em que só existe essa possibilidade à expressão do futuro verbal, pensamos que, na língua portuguesa, essa é uma opção a mais, sem se configurar como principal. É importante registrar que nas três grandes variedades de língua portuguesa foram atestadas gramaticalizações correlatas a do futuro do presente em ir, embora não fossem objetos de nosso estudo aqui. Referimo-nos, por exemplo, a construções perifrásticas de imperativo ou de futuro do pretérito em ir, presentes nos corpora. Ainda em outra visualização, tomando apenas as três formas, em geral, mais produtivas, a iniciar pela língua escrita: 311 Gráfico 1: As formas de futuro do presente nas variedades escritas do português. 100 90 80 70 60 Desinencial 50 Perífrase I 40 Presente 30 Perífrase II 20 Haver 10 0 PB PE PM Já para a língua falada, tomando as mesmas três formas básicas, acrescidas da forma em haver, relevante no PE e no PM: Gráfico 2: as formas de futuro do presente nas variedades faladas do português. 90 80 70 60 Desinencial 50 Perífrase I 40 Presente Perífrase II 30 Haver 20 10 0 PB PE PM 312 Com o auxílio do último recurso visual, é ainda mais patente a quase inversão de cenário que se verifica entre formas sintéticas e analíticas entre escrita e fala, com o presente em configuração residual, possivelmente superestimado na escrita do PB. A tendência a tal visão reforça-se mediante as ocorrências do uso do presente com tal valor verificarem-se na fala nas três variedades em análise. Ainda assim, reiteramos a visão de que o presente com esse valor constitui um nicho de uso para a expressão do tempus em estudo, claramente à margem da mudança a se processar no cerne da própria expressão linguística. Na contraposição central do processo de mudança, verificamos nos três dialetos, uma configuração geral dos lexemas verbais da série desinencial como mais funcional, ao passo que a perifrástica, mais lexical. Tal constatação atesta fortemente o próprio processo de mudança e seu direcionamento: das formas mais regulares para as mais irregulares, da interface com o extralinguístico para o gramatical. Óbvio que as especificidades de cada contexto de mudança geram nuances de modificação em tal tendência. Assim, no PB, em que a mudança encontra-se mais aprofundada, observamos, na fala, as formas perifrásticas recobrirem um espectro amplo, incluindo verbos funcionais. De modo equivalente, constatamos algo similar para as formas desinenciais lusitanas e o espectro de verbos lexicalizados. Em tempo, lembremo-nos de que a mudança da forma sintética à perífrase implica duas perspectivações distintas para a expressão da futuridade: a primeira de uma modalização mais explícita e a segunda da própria referência temporal em jogo, uma vez que a locução de futuro permite uma projeção explicitamente ancorada no presente que se distende ao futuro. Trata-se da diferença, em termos de descrição de Reichenbach às duas formas de futuro do presente de que tratamos no item 3.1. A mudança é inequívoca e ainda com caminhos por trilhar, mesmo no PB, em que se encontra mais enraizada. Comprovação disso são os contextos nos quais ir ainda é incontestavelmente verbo de movimento apenas. Já em outros, indica intenção/volição, conjuntamente à ideia de futuridade, muitas vezes. Também atestam tal panorama os amplos contextos de ambiguidade. E, claro, confirma-se a mudança em processo na insignificante presença do verbo ir em todos os corpora aqui analisados. 313 Façamos uma observação ainda sobre dado externo à nossa pesquisa. As ocorrências de locução com ir e infinitivo, com valor de imperativo surgiram em nossos corpora, nas três variedades em ocorrências regulares e em volume maior do que esperávamos. Eis um tema merecedor de investigações em torno. Questionamo-nos se o estado do PM guarda paralelo com Angola. E ainda, como se dará tal quadro nos PALOPs de base linguística crioula. Naturalmente, essas são digressões que não tomarão curso aqui. Por fim, surpreende-nos, em certa medida, o fato de que as formas desinenciais encontram-se, pelos dados aferidos, mais enraizadas na escrita do que as perifrásticas na fala. Não intuíamos tal quadro e cremos que parte expressiva da literatura voltada a esse tema também não aponta para tal visão. Claro que nosso universo pesquisado foi bastante ínfimo e restrito quanto aos gêneros, em sua diversidade, relevância social e presença no cotidiano. Ainda assim, eis um resultado não esperado por nós. Caminhos da mudança e do futuro na lusofonia. 314 CONCLUSÕES Ontem choveu no futuro Manoel de Barros Iniciamos esta tese com dois claros objetivos: descrever abrangentemente o futuro verbal e proceder a um levantamento de usos do futuro do presente, protótipo do futuro verbal, em dialetos da lusofonia. Cremos ter cumprido a contento esses dois grandes objetivos, trazendo à luz o PM e sua inserção no quadro de estudos linguísticos descritivos. Há ainda muitíssimo para se descrever do PM, bem como das demais variedades de língua portuguesa em países lusófonos: Angola, Cabo Verde, São Tomé-e-Príncipe, GuinéBissau, Timor Leste, quiçá Goa e Macau276. A primeira metade deste século há de ser período crucial para o estabelecimento mesmo dessas variedades de língua portuguesa, bem como de definição dos rumos da lusofonia, que pode ser um grande projeto transnacional, calcado na língua portuguesa e na diversidade. Poder comparar o PM ao PB e ao PE permitiu-nos vislumbrar uma variedade com peculiaridades muito próprias, rompendo a visão de que, nos PALOPs, a língua é tão somente uma extensão do PE. Em nosso caminhar pelo futuro, culminando no cotejo entre os dialetos lusófonos, percorremos uma trilha bastante longínqua. Iniciamos no protoindo-europeu e na formação do futuro em tal língua teórica, passando ao latim arcaico, ao latim clássico, depois o vulgar, o período do romance, português arcaico, português moderno e, enfim, o português contemporâneo. Em seguida, dedicamo-nos a expor e dissecar diversas questões associadas a tempora e modos, como forma mesma de consubstanciar uma base de estudo ao futuro verbal, afinal, tempo e modo que é, em perspectiva prototípica inclusive. Para tanto, descrevemos o conjunto dos tempora e modos portugueses. Enfim, conseguimos situar, temporalmente, o futuro. Depois, enveredamos por considerações descritivas a respeito do futuro verbal, tendo em vista os planos da cognição, da mudança linguística em si e da 276 Lembramos que, diferente da situação de todos os países citados, em Guiné Equatorial, não se fala português. 315 consequente gramaticalização. A partir daí, tratamos de cada uma das formas de futuro verbal gramaticalizado na língua portuguesa: o futuro do presente, o futuro do pretérito, o futuro anterior (futuro do presente composto), o futuro do pretérito composto, o futuro progressivo (gerundismo), o futuro do subjuntivo e o futuro composto do subjuntivo. Para ampliarmos nossa visão sobre cognição e gramaticalização e o nível de universalismo dos processos de mudança que vemos na língua portuguesa, visualizamos um breve panorama do uso e formação do futuro verbal em várias outras línguas. Em seguida, definimos e problematizamos o espaço polissêmico da lusofonia e caracterizamos o PM, em linhas bastante gerais, bem como explicitamos o seu contexto sócio-histórico. Então, caracterizamos nossos corpora escritos e orais, assim como suas fontes, de PB, de PE e de PM. Por fim, procedemos à análise dos dados obtidos sobre o uso das possíveis formas de futuro do presente para cada uma das variedades de língua portuguesa em questão. Constatamos uma mudança inequívoca nos três dialetos, em ritmos distintos e, como esperado, bastante pronunciada na fala, porém com um longo caminho ainda por percorrer na escrita, crescentemente, no PB, no PM e no PE. Concluímos por uma mudança mais avançada no PB, em nível intermediário no PM e mais inicial no PE. Contudo, talvez ainda se possa problematizar o quadro de mudança do PM e do PE, afinal, a fala lusa apresentou dados ligeiramente superiores ao do PM quanto ao ritmo de mudança, embora a escrita do PE seja terreno altamente refratário à mudança de forma muito pronunciada. O futuro na e da lusofonia, em polissemia, foi reflexão central nesta tese, em sua dimensão linguística científica e política. Afinal, todos nós, seres lusófonos, partilhamos de toda uma amplitude de mundo emoldurado em português. Não obstante seja este um trabalho vinculado a uma linha de pesquisa de descrição linguística, pensamos também que há proveitosas projeções e contribuições ao ensino de Língua Portuguesa que se podem vislumbrar nesta tese. Inicialmente, o próprio reconhecimento da nova forma de futuro de amplo uso na língua, a ser, assim, sistematizada, para fins escolares, sem que se descarte, óbvio, a apresentação de sua versão simples. Além disso, em toda a nossa exposição, especialmente sobre os tempora portugueses, julgamos que há proveitosas 316 considerações sobre o funcionamento e uso desses tempos verbais. Finalmente, cremos haver substrato para uma perspectiva, para esse ponto, centrada na reflexão sobre o uso, perspectiva das mais salutares que enxergamos no ensino da língua vernácula. Certamente, chegamos ao cabo desta tese com questões ainda por se aprofundar. Uma delas é a extensão das gramaticalizações em perífrases com ir em língua portuguesa. Além do futuro do presente, vemos produtividade também no futuro do pretérito, no perfeito, no imperativo, em formas de subjuntivo. Outra é a grande gama de contextos ainda polissêmicos para a perífrase em ir, movimento, intenção/volição, futuridade, contudo, pensamos que isso é inevitável consequência do próprio processo de mudança, só dirimível pelo curso histórico. Naturalmente, uma questão por se aprofundar é a própria perspectiva de estudos comparativos entre as variedades de português nos países lusófonos não só quanto ao ponto aqui em estudo, mas toda uma plêiade de outros itens descritivos de língua. É preciso trazer à luz, no Brasil, o PM, o PA, o PST (tomeense), o PC (cabo-verdiano), o PG (guineense), o PT (timorense), como interesses acadêmicos e como política de Estado. Uma reflexão para o futuro; esperamos que não distanciado. Enfim, este é um trabalho sobre e para o futuro. Como se diz na frase final do filme A eternidade e um dia, do diretor grego―afinal, tudo começa com os gregos― Theo Angelopoulos: “O futuro é amanhã mais um dia.”277. Ao futuro. 277 ANGELOPOULOS, Theo. A eternidade e um dia, 1998. 317 REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Bernadete; RODRIGUES, Angela C.S. Gramática do português falado, v. 8: novos estudos descritivos. Campinas: UNICAMP, 2002. ABDEL-HAFIZ, Ahmed-Sokarno. 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