Renato Tadeu Veroneze - PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renato Tadeu Veroneze
AGNES HELLER: indivíduo e ontologia social - fundamentos para a
consciência ética e política do ser social
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renato Tadeu Veroneze
AGNES HELLER: indivíduo e ontologia social - fundamentos para a
consciência ética e política do ser social
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Serviço Social, sob
orientação da Profª. Drª. Maria Lúcia Martinelli
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
À minha secretária do lar Ana Maria dos
Reis dos Santos. Sem ela, não seria
possível a realização deste mestrado.
AGRADECIMENTOS
A todos e todas que de alguma forma
fizeram parte de mais esta fase de minha
vida.
A Profª. Drª. Maria Lúcia Martinelli pela
confiança e amizade.
A todos os professores e professoras da
PUC/SP que
compartilharam seus
conhecimentos e estiveram conosco
durante a realização desse mestrado.
E a CAPES ao UNIFEG pelo suporte
financeiro.
“Toda filosofia oferece uma forma de vida; toda
filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao
mesmo tempo, sugestão de outra forma de
vida”.
Agnes Heller
RESUMO
Agnes Heller, indivíduo e ontologia social: fundamentos para a consciência
ética e política do ser social
Renato Tadeu Veroneze
Esta pesquisa busca investigar a contribuição do pensamento de Agnes Heller,
formulado entre os anos de 1956 e 1978, para a construção da consciência ética e
política do ser social. Agnes Heller, nome de projeção internacional na filosofia
contemporânea, foi aluna e assistente de Georgy Lukács, principal expoente
marxista, sobretudo, no campo da Estética e da Ontologia do Ser Social. Heller foi
considerada por Lukács como o membro mais produtivo do grupo de intelectuais
denominado “Escola de Budapeste”. Este grupo tinha por objetivo formular uma linha
de pensamento baseada nos escritos teórico-filosóficos de Lukács e fazer uma
releitura da obra marxiana, no sentido de uma correta compreensão do método em
Marx. Até 1978 Heller permaneceu na Hungria e produziu obras que expressavam o
tipo de orientação dessa escola. Nesse período, comungava com as ideias de se
mestre e da proposta marxista. As perseguições ideo-políticas da Hungria, fizeram
com que Heller saísse de seu país natal, indo residir na Austrália juntamente com
Ferenc Fehér. Em 1986, vincula-se a cadeira de Hannah Arendt de Filosofia e Ciência
Política da New School for Social Research, em Nova Iorque e mantém até os dias
atuais em profícua atividade nos Estado Unidos e na Hungria. Suas obras, escritas
até 1978, ou seja, em sua fase marxista, trazem importantes contribuições para a
consolidação de consciência ética e política do ser social, tendo como base a
ontologia do ser social, a sua teoria sobre a vida cotidiana e de seus escritos
direcionados à consciência ética e política. Acreditamos que Heller buscou
complementar o “grande projeto” de Lukács de escrever uma Ética na visão marxista,
portanto, partimos da hipótese de que sua teoria aponta na direção de uma filosofia
da práxis e da vivencia de uma vida cotidiana não-alienada. Buscamos, desse modo,
compreender os principais fundamentos de sua teoria enquanto proposta para um
modo de pensar, ser e agir consciente na e para a vida cotidiana, nas relações e
inter-relações sociais, na proposição ética e política da vida social, rumo ao sujeito
revolucionário individual e coletivo. Para tanto, temos como objeto de pesquisa o
reconhecimento da individualidade enquanto condição sine qua non para a
consciência ética e política do ser social.
Palavras chaves: individualidade, ser social, consciência ética e política.
ABSTRACT
Agnes Heller, individual and social ontology: fundamentals for the ethical and
political conscience of the Social Being
Renato Tadeu Veroneze
This research intends to investigate the contributions of Agnes Heller’s thoughts,
which was formulated between 1956 and 1978, to the construction of the social been
ethical and political consciences. Agnes Heller, a name with an international
projection in the Contemporary Philosophy, was a Georgy Lukács’ pupil and
assistant, who was the greatest marxism exponent, mostly in the Esthetics and the
Ontology of the Social Being areas. She was considered by Lukács the more
productive member of group called “School of Budapest”. The objective of this group
was to creat a line of thought based on Lukács’s theoretical and philosophical
writings, re-read Marxian work to heve a correct understanding in Marx’s method.
She remained in Hungary until 1978 and produced some works in which we see
expressed the Budapest school’s kind of guidance. The ideo-political persecution in
Hungary, Heller did that come out of his native in 1978, to reside in Australia with
Ferenc Fehér. In 1986 she was bound to Hannah Arendt’s post of Political Science
and Philosophy at the New School for Social Research, in New York, and she is until
now in fruitful activities in the United States of America and Hungary. Her works
written until 1978, therefore, during the Marxist time, bring important contributions to
consolidate the ethical and political conscience of the social being, having for basis
the ontology of the social being, its theory about everyday life and its writings direct to
the ethical and political conscience. We believe Heller tried to complete the “big
project” of Lukács of writing an Ethics in the Marxist’s point of view, so we set from
the hypothesis that her theory points towards a praxis philosophy and non-alienated
everyday life experiences. We seek to understand the main fundaments of her theory
as a proposal for a way of thinking, being and conscientious acting at and to
everyday life, in the social’s relations and inter-relation, in ethical and political’s
proposition of the social life, towards the collective and individual revolutionary
subject. Therefore, our research objective is the recognition of individuality while the
sine qua non condition for ethical and political conscience of the social being.
Key-words: individuality, social being, ethical and political conscience.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14
I. A “INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER” SOCIAL ................................................. 34
1.1. Aspectos metodológicos ..................................................................................... 34
1.2. Elementos introdutórios: aspectos conceituais ................................................... 51
1.3. “Ser ou não ser, eis a questão” .......................................................................... 61
1.4. A “babel” capitalista dos tempos modernos: “salve-se quem puder” .................. 74
1.5. Reificação do ser social em tempos modernos: mecanização da vida ............... 83
1.5.1. Alienação e reificação no capitalismo: subserviência ao capital .................... 87
1.6. A representação dos “papéis sociais” no palco da vida cotidiana ...................... 98
2. PANORAMA DA VIDA COTIDIANA ........................................................................ 105
2.1. Indivíduo social e cotidiano: a vida como ela é .................................................. 105
2.2. Estrutura da vida cotidiana: o palco da vida ....................................................... 134
2.3. O cotidiano e o não-cotidiano: o ser ou não ser da mesma questão .................. 143
2.4. Valor e necessidades: duas faces da mesma moeda ........................................ 150
3. A ESSÊNCIA DE UMA VIDA FILOSÓFICA ............................................................ 159
3.1. “Um produto verdadeiro do século XX” .............................................................. 159
3.2. A história de uma vida ou a vida de uma história ............................................... 165
3.3. Heller e o marxismo ............................................................................................ 181
3.4. A “Escola de Budapeste” e seus escritos marxistas ........................................... 194
3.5. Heller e seu legado marxista: “o poeta habita o homem” ................................... 211
4. EMANCIPAR-SE PARA EMANCIPAR: “LIBERDADE AINDA QUE TARDIA” ...... 220
4.1. A gênese do ato ................................................................................................. 220
4.2. Emancipar-se para emancipar: a genericidade em questão .............................. 222
4.3. A liberdade como conceito ................................................................................. 226
4.4. O/a assistente social frente ao Projeto Ético-político-profissional ...................... 234
4.5. Para uma ética marxista: consciência ética e política ........................................ 239
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 247
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 262
OUTRAS REFERÊNCIAS ............................................................................................ 273
ANEXOS ...................................................................................................................... 274
AGNES HELLER: INDIVÍDUO E ONTOLOGIA SOCIAL – FUNDAMENTOS PARA
A CONSCIÊNCIA ÉTICA E POLÍTICA DO SER SOCIAL
(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10150849582273581&set=pb.35373273580
.-2207520000.1362245289&type=3&theater). Acesso dezembro, 2012.
AGNES HELLER
14
INTRODUÇÃO
“A história é tão mais humana quanto mais
consciente são capazes os homens de alterar suas
condições de vida, suas circunstâncias”.
Agnes Heller
A vinculação do pensamento de Agnes Heller no Serviço Social brasileiro,
remonta aos idos de 1980 e 1990, tendo como premissa a inserção do referencial
teórico-metodológico, técnico-operativo e ético-político de cariz marxista no âmbito
da formação e da atuação profissional do/a assistente social.
As discussões e a produção de conhecimento produzido no âmbito da
profissão, nesse período, apontavam para a necessidade de construir um projeto de
formação e atuação profissional que atendesse as transformações da vida cotidiana
nos últimos tempos, fundamentados pela tradição marxista enquanto referência
básica e hegemônica para as abordagens contemporâneas do Serviço Social
brasileiro (YAZBEK, 2009a).
As tensões provocadas pelas contradições da lógica capitalista e as
mudanças sociopolíticas da sociedade brasileira, fomentavam a constituição de
novas propostas profissionais, tendo em vista os novos desafios que se colocavam
para a atuação profissional, sobretudo, que vislumbrassem alternativas éticas e
políticas calcadas no protagonismo dos sujeitos sociais (IAMAMOTO, 2005).
Nesta ótica, pensar o Serviço Social contemporâneo requer dos/as
protagonistas sociais olhos abertos para o mundo conforme se apresenta para a
realidade social, buscando decifrá-lo e participar de sua recriação (YAZBEK, 2009a).
A partir da década de 1980, o Serviço Social brasileiro, apropriou do
pensamento de Gramsci, Lukács, Thompson, Hobsbawm dentre outros que
trouxeram contribuições importantes para analisar o Estado, a sociedade civil, o
mundo dos valores, a ideologia, a hegemonia, a subjetividade, a cultura, a ontologia
do ser social, as relações de trabalho, a historiografia, enfim, reflexões e
posicionamentos ideopolíticos para e do mundo contemporâneo. Neste universo,
também se incluiu o pensamento de Agnes Heller e à sua problematização do
cotidiano (idem).
Yazbek (2009a) aponta que a inserção e o processo de construção da
hegemonia dos novos referenciais teórico-metodológicos e interventivos, a partir da
15
tradição marxista, ocorreram através de um amplo debate no interior da profissão,
permeado pela produção intelectual, que gerou uma bibliografia própria do Serviço
Social no Brasil, principalmente com a criação e expansão da pós-graduação –
mestrado e doutorado – a partir da década de 1970, constituindo-se um elemento
impulsionador para a intenção de ruptura.
As condições sócio-históricas da sociedade brasileira, neste período,
contribuíam satisfatoriamente para a construção desses pilares, bem como para a
formação de uma identidade profissional capaz fazer uma leitura crítica ético-política
da realidade social, do desvendamento crítico das forças sociais presentes e das
ações efetivas que dessem concretude e materialidade às formas de ser da
profissão (MARTINELLI, 2009).
Histórica e coletivamente, estes pilares consolidaram-se para uma apreensão
crítica do processo histórico e social contemporâneo, percebendo - em sua
totalidade
-
as
particularidades
e
singularidades
da
constituição
e
do
desenvolvimento do capitalismo e do Serviço Social no Brasil, bem como, o
significado social da profissão, pautada em ações que atendessem à realidade
social contemporânea e que buscassem cumprir com as competências e as
atribuições profissionais estabelecidas na lei que regulamenta a profissão de forma
crítica e propositiva (CRESS/SP, 2008).
Também, passou-se a considerar o/a assistente social como um/a profissional
inscrito/a na divisão sócio-técnica do trabalho, na luta pelos interesses da classe
trabalhadora e em favor dos diversos projetos societários que visavam à superação
da sociedade capitalista e, posteriormente, à emancipação do ser social.
Porém, os interesses exclusivamente classistas não deram conta de atender
as diversas faces da questão social nem de construir um ethos profissional baseado
em princípios e valores universais e de liberdade.
Os anos que se seguiram à intenção de ruptura do conservadorismo – final
década de 1980 e início dos anos de 1990 -, revelou-se a necessidade de rever as
bases teórico-metodológicas e ético-políticas rumo à construção de um projeto
coletivo e hegemônico, fundado nos valores ontológicos e sociais da Teoria Social
de Marx, e que espelhasse a legitimidade teórico-prática, ético-político e ideopolítica
da profissão.
Os debates acerca do significado da ética no Serviço Social desencadeou um
esforço coletivo para um redimensionamento dos valores e compromissos ético-
16
político-profissionais. Deste modo, as bases para a formação ético-políticoprofissional foram direcionadas para uma proposta histórico-crítica, propositiva e
revolucionária, incorporando - sobretudo na aurora da década de 1990 - a ontologia
do ser social, buscando, assim, uma nova visão de mundo e de humano 1 para a
profissão.
Esta reviravolta no modo de pensar, fazer e agir da profissão, fez com que
grande parte dos/as assistentes sociais passassem a enxergar a vida social em suas
contradições, ou seja, inscrita no campo das contradições e desigualdades sociais,
causadas principalmente pelas grandes transformações do mundo contemporâneo,
da consolidação e do avanço da sociedade regida pelo capital, do modo de
produção capitalista e da luta de classes.
Subsidiado pelas categorias ontológicas do ser social, os novos parâmetros
para a formação e atuação profissional do/a assistente social foram pautados em
valores universais: liberdade, democracia, respeito aos Direitos Humanos, justiça e
equidade social, na luta contra qualquer forma de arbítrio e autoritarismo,
preconceito e/ou discriminação, enfim, valores que espelham os princípios
emancipadores segundo Karl Marx.
Estes princípios norteiam o projeto ético-político-profissional - construído
histórica e socialmente no âmbito da profissão -, e que foram inscritos no Código de
Ética Profissional de 1993 como fundamentos ético-políticos, na luta por uma nova
sociabilidade e na defesa intransigente dos direitos humanos e sociais.
O novo Código de Ética de 1993 não somente estabelecia normas e regras
para a conduta profissional, mas também trazia no seu bojo, princípios norteadores
para a práxis profissional, pautado na liberdade como valor ético-político central.
Nesse ponto, diante das desumanidades próprias da lógica do capital, a
reflexão ética e política implicava um determinado modo de ser e agir na e para a
vida social, assim como a permanente conexão entre os valores essencialmente
1
No decurso de nossas reflexões, utilizaremos diferentes conceitos que constituem a ontologia do ser
social que, aparentemente, apresentam semelhanças, mas possuem significados diferenciados.
Também, em conformidade ao reconhecimento da linguagem de gênero, que alterou o Código de
Ética Profissional do Serviço Social (Resolução nº 594, de 21 de janeiro de 2011), adotaremos no
texto a forma masculina e feminina simultaneamente, por acreditarmos e defendermos o
posicionamento ético-político das lutas lideradas pela categoria profissional, porém, para que não
fique uma linguagem cansativa para o/a leitor/a, optamos pela denominação de ser social ou humano
para designar homens e mulheres o que acreditamos que contempla essa questão de gênero. Porém,
no decurso das citações manteremos a forma original do autor ao se referir ao “homem” enquanto
referência a ambos os gêneros – masculino e feminino, atentando para a originalidade dos textos
trabalhados.
17
humanos emancipatórios e de coletividade. Desse modo, supunha uma atitude
consciente voltada à superação da alienação individual, social e profissional.
Estes novos pressupostos possibilitaram enxergar homens e mulheres,
enquanto sujeitos sociais, cidadãos/ãs de direito, que diariamente são violentados
pelo processo de industrialização, mercantilização, mecanização e globalização das
relações sociais, sobretudo, pela competitividade, imediatismo, consumismo e pelo
individualismo exacerbado na vida social. Em outras palavras, homens e mulheres
são cada vez mais transformados em coisa (coisificação) e/ou em mercadoria
(reificação).
Nesse processo, as relações sociais acabam por ser produzidas e
reproduzidas
de
forma
alienadas,
alienantes
e
de
exploração,
geradas
substancialmente pela lei do “mais forte”, do “mais rápido”, do “descartável”. Essa
violência e/ou autoviolência na vida individual e social contribui para gerar uma
autofragelação paranoica que, impulsiona os seres sociais a serem vítimas de si
próprios.
Portanto, ao buscar uma contribuição para o entendimento das contradições
da vida social e fazer uma reflexão sobre os fundamentos éticos e políticos que
balizam o Serviço Social brasileiro, percebemos que estes fundamentos tem como
alicerce a concepção de que os sujeitos sociais - enquanto criadores de si mesmo e
a história enquanto processo de autocriação - alimentam a formação e a práxis
social e profissional do/a assistente social (BARROCO, 1999; 2009).
Deste modo, buscando a compreensão dos fundamentos para a consciência
ética e política do ser social na vida cotidiana, percebemos que o pensamento de
Agnes Heller - pautado na perspectiva marxista - traz contribuições significativas
para as reflexões sobre a ontologia do ser social.
A tomada de consciência ética e política só pode ser uma tomada consciente
diante da vida e do mundo. Afirmamos que isso só pode ser considerado um ato de
coragem perante si mesmo – enquanto sujeito criador e transformador da realidade
– e perante a vida social – enquanto modo de ser e agir na e para a vida social.
Marx e Engels (2007) já chamaram a atenção de que o pensamento e as
representações humanas aparecem como emanações diretamente ligadas à vida
material e que a produção de ideias, das representações, da consciência é um
produto social - emanação direta da relação dos homens e das mulheres entre as
suas atividades materiais e o intercâmbio entre os seres sociais. Desta forma, a
18
consciência só pode ser a consciência do ser consciente de si mesmo e do mundo a
sua volta.
Sendo a consciência um produto da matéria, é ela que permite aos humanos
refletir sobre o modo de ser, estar e agir no mundo e do próprio mundo através do
processo histórico de autocriação. A consciência extrai do mundo real, os elementos
para a sua apreciação/formação e retorna a vida real através das objetivações
concretas.
Marx e Engels (2007) também definiram o ser social em sua relação com a
natureza e com a sociedade - em sua dimensão social, econômica, política,
produtiva e cultural – assinalando que as formas de alienação e suas fontes
traduzem uma determinada sociabilidade. O modo de produção capitalista e as
relações objetuais e coisais determinam a alienação política, religiosa e ideológica,
como
consonantes
inequívocas
das
condições
e
contradições
de
dominação/exploração do “homem pelo homem”.
A consciência, portanto, só pode ser o processo de humanização do ser
social. Não pode ser jamais algo diferente do ser consciente dos humanos (MARX;
ENGELS, 2007, p. 48). É o produto da “cabeça pensante” (MARX, 2011, p. 55), ou
seja, da capacidade teleológica de objetivar na vida material os elementos
essencialmente humanos na e para a vida social, por conseguinte, na manifestação
da vida individual e coletiva – expressão da atividade vital e social dos homens e das
mulheres.
Contudo, a vida individual e a vida genérica dos homens e mulheres não são
diferentes. O ser social – homens e mulheres – em sua genericidade tem atributos
imanentes comuns a todos os outros seres sociais, enquanto universalidades
existentes e do humano-genérico - carregam em si o conhecimento histórico e
socialmente acumulado da Humanidade.
Agnes Heller, em seus estudos sobre a vida cotidiana, buscou analisar esta
antropologia-ontológica2 do ser social enquanto consciência de-si-mesmo, em-simesmo e para-si-mesmo na vida cotidiana, numa verdadeira historiografia filosófica
2
A utilização dessa expressão neste trabalho tem como referência a obra de György Márkus (1974)
que atribui à ontologia trazida por Marx como uma “antropologia filosófica”, ou seja, refere-se à
vinculação do ser social com o seu processo histórico de autocriação. Heller em alguns momentos de
sua obra aponta para esta concepção – uma unidade entre a ontologia do ser social e a sua
antropologia.
19
e sociológica da tomada de consciência ética e política do ser social, bem como, da
formação do sujeito individual e coletivo revolucionário.
Deste modo, o ser social se apresenta na e para a vida social enquanto ser
particular e genericamente humano, como também singular, enquanto síntese de
múltiplas determinações – particular e genérica – real e dinâmicas. É o dínamo
criador, representante do desenvolvimento e substância da história.
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, Chaui (1999, p. 118), entendese por sujeito o indivíduo que “[...] cria e descobre significações, ideias, juízos e
teorias”, ou seja, o ser social consciente que descobre a si mesmo e o mundo a sua
volta.
Entendemos por indivíduo o ser social que é simultaneamente, “ser particular
e ser genérico”, produto e “[...] expressão de suas relações sociais, herdeiro e
preservador do desenvolvimento humano” (HELLER, 2004, p. 20-21).
Do mesmo modo, Heller (1974, p. 39) considera o indivíduo, o ser humano
singular que tem uma atitude consciente (e autoconsciente), a respeito da sua
condição de genericidade e é capaz de conduzir sua vida segundo suas atitudes
sensíveis e intelectuais - é o ser social consciente de-si-mesmo.
É nessa compreensão que Heller irá considerar a condição de individualidade
do ser social – ponto central de suas investigações e que nos ocuparemos nessa
dissertação, ou seja, quando o indivíduo social passa a assumir conscientemente a
sua própria personalidade/identidade - tem consciência de-si-mesmo -, assumindo,
assim, as rédeas de sua própria vida.
Portanto, é a condição em que o indivíduo reconhece sua “[...] capacidade de
conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento” (CHAUI, 1999, p. 118), em outras
palavras, é a capacidade de reflexão/abstração e ação de sua própria natureza
dinâmica e social – um projetar-se na e para a vida social.
É sujeito conhecedor de si e do mundo no qual se insere ou é inserido,
manifestando-se como percebedor, imaginante, memorioso, falante e pensante.
Porém, essas capacidades ou potencialidades só se objetivam e são fruto do meio
social (na e da vida cotidiana). Assim, o sujeito se apresenta enquanto síntese de
múltiplas determinações históricas e sociais.
No período compreendido entre os anos de 1956 e 1978, anos em que Heller
permaneceu na Hungria ou, se preferirmos, em sua fase marxista, ela desfrutou
juntamente com um grupo de amigos até 1971 da presença do filósofo húngaro e
20
marxista Georgy Lukács que, a partir de 1950 busca realizar uma sistematização
categorial de suas reflexões sobre a arte e a literatura, rumo à construção de uma
ética marxista.
Este grupo de amigos e intelectuais ficou conhecido no universo intelectual
como “Escola de Budapeste”. Esta denominação não indica uma escola formal, mas
sim uma expressão utilizada por Lukács para descrever os membros e os trabalhos
produzidos por este grupo num determinado período e contexto histórico.
Este grupo reuniu-se ao redor de Lukács, entre os anos de 1950 até o ano de
sua morte em 1971 e, posteriormente, mantiveram os laços de amizade, porém, não
com a mesma intensidade e nem com os mesmos propósitos.
Os nomes que se destacaram foram os de Agnes Heller, Ferenc Fehér,
Mihaly Vajda e György Márkus. Destaca-se desse grupo o nome de Agnes Heller,
considerada por Lukács como o “membro mais produtivo” e que a sua produção era
a que melhor expressava o pensamento da “Escola de Budapeste”.
Deste modo, ao nos apropriarmos do referencial helleriano nas experiências
da docente no curso de graduação em Serviço Social, em específico, na disciplina
de Ética Profissional, percebemos que este contribuía satisfatoriamente para
despertar uma mentalidade crítica e de uma possibilidade para a formação do sujeito
revolucionário, individual e coletivo.
Ao utilizar desse referencial em aulas, cursos, oficinas e palestras, bem
como, em nossas pesquisas acadêmicas, percebemos que muito mais que trazer
elementos para uma análise conceitual sobre os pressupostos da Ética, intervinha
na e para a vida cotidiana dos sujeitos sociais em formação, oferecendo elementos
propositivos e pró-ativos para uma determinada práxis social e profissional,
fundamentada para a consciência ético-político-profissional do/a assistente social.
Em 2008, ao assumir a cadeira da disciplina de Ética Profissional do curso de
Serviço Social do Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé –
UNIFEG, Guaxupé/MG, este pesquisador observamos que os/as alunos/as vinham
para a sala de aula sem nenhum, ou quase nenhum, conhecimento sobre Ética,
sendo que a principal motivação que os/as trazia ao Serviço Social, expressava o
sentimento de “boa vontade” e/ou de “ajuda ao próximo”, pensamento característico
de alguma formação moral/religiosa ou ético/religiosa e de uma visão destorcida
sobre a profissão.
21
Também,
observou-se
nos
vários
cursos
de
formação/capacitação
ministrados no mesmo período, que o discurso que imperava na grande maioria
dos/as profissionais era: “na prática a teoria é outra”, negando, dessa maneira, os
pressupostos ético-políticos que norteiam a profissão, por conseguinte, impedindo,
de certa maneira, a possibilidade de uma consciência coletiva e revolucionária,
histórica e socialmente constituída no interior da profissão.
Vinculado a estas características, ainda encontrava-se um nível de apatia e
conformismo com a realidade apresentada, onde os princípios e significados éticos e
políticos eram totalmente estranhos, tendo em vista a consolidação da barbárie
exposta pela lógica capitalista e neoliberal da atualidade, expressão mais cabal da
precarização e fragilização das relações de trabalho e de ensino no país.
Deste modo, estas concepções – visão de humano e de mundo - minimizam
as possibilidades de ações éticas e políticas conscientes, o que consolida a vivência
da ética maquiavélica na vida social: “os fins justificam os meios”.
Portanto, tornava-se necessário criar uma forma didático/pedagógica que
impulsionasse os sujeitos sociais em formação para o despertar da consciência ética
e política em conformidade com o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço
Social. Por conseguinte, buscamos nos referenciais teóricos marxistas uma
metodologia capaz de contribuir para este fim, ou seja, despertar para uma
consciência e postura ética e política na e para a vida social e profissional.
Contudo, observamos que, ao trabalharmos com os/as alunos/as aspectos da
vida cotidiana, referendados pela teoria marxista e, em específico, com a teoria
helleriana, constatamos empiricamente, ao longo de quatro anos na docência do
Ensino Superior, que este referencial teórico contribuía satisfatoriamente para uma
filosofia da práxis social.
A princípio, isso não parece novidade, porém, percebemos que o referencial
helleriano propiciava estímulos reflexivos para uma mudança de postura na vida
cotidiana, não só para o exercício profissional, mas, sobretudo, para uma proposição
crítica e revolucionária, ou seja, contribuía em-si para a consciência ética e política
do ser social, portanto, na e para uma práxis social revolucionária.
É importante destacar que o sentido de revolução empregado nessa
dissertação tem como referência à transformação parcial e/ou radical da vida
cotidiana dos sujeitos sociais. Para Heller (1982b, p. 08-09) a revolução não se
reduz ao problema da tomada do poder pelo proletariado revolucionário, mas sim na
22
reestruturação da vida cotidiana, ou seja, na abolição da alienação, de tal modo, que
para a construção da própria sociedade pelos sujeitos singulares torna-se
necessário que haja a revolução em-si-mesmo enquanto indivíduos sociais.
A fragilidade da própria individualidade – da consciência de-si-mesmo, em-simesmo e para-si-mesmo – provocada pelos estímulos da lógica capitalista, faz que
homens e mulheres - em sua particularidade-singularidade – alienem-se e vivam tão
somente voltados aos aspectos imediatos do cotidiano, eliminando as possibilidades
de vivenciar a não-cotidianidade – o momento de suspensão do próprio cotidiano
alienado.
[...] A vida cotidiana é o conjunto das atividades que caracterizam as
reproduções particulares criadoras da possibilidade global e permanente da
reprodução social. Não há sociedade que possa existir sem reprodução
particular. E não há homem particular que possa existir sem sua própria
autoreprodução. Em toda sociedade há, pois, uma vida cotidiana: sem ela
não há sociedade. O que nos obliga, ao mesmo tempo, a sublinhar
conclusivamente que todo homem – qualquer que seja o lugar que ocupe na
divisão social do trabalho – tem uma vida cotidiana (HELLER, 1982b, p. 09).
A incorporação da lógica capitalista e a mecanização da vida social e
individual, de certa maneira, produzem a alienação e o estranhamento de-si-mesmo,
enquanto ser genérico na e para a vida social. As relações e inter-relações sociais
nessa ótica acabam por serem relações coisais e objetuais.
A familiaridade com alguns textos de Agnes Heller desse pesquisador,
principalmente, os dispostos no livro O cotidiano e a História, editado em 1970 no
Brasil, pela editora Paz e Terra, deu-se, sobretudo, em 2006, quando concluímos a
pesquisa A introdução estética na visão lukacsiana: uma interpretação ontológica da
realidade social - (VERONEZE, 2006) -, sob a orientação, na ocasião, do Prof. Ms.
Ricardo Lara (hoje Prof. Dr.).
Nesta pesquisa, estudamos profundamente as categorias marxistas, a
estética de Georgy Lukács, as expressões artísticas e a interdisciplinaridade,
retomando os estudos desse pesquisador sobre a arte, bem como, sobre as políticas
de cultura. O objetivo desta pesquisa era entender a expressão artística como
instrumental capaz de captar a realidade social para o trabalho do/a assistente
social.
O universo desta pesquisa foi o Centro Educativo e Social de Guaranésia –
CESG, instituição de educação não-formal no município de Guaranésia/MG, criado
23
em 2003, para atender crianças e adolescentes em situação de risco e
vulnerabilidade social daquela cidade, com o intuito de oferecer atividades
esportivas, culturais, de lazer, de reforço escolar, de cidadania, de alimentação, de
saúde e de integração social.
O despertar para esta pesquisa aconteceu quando estagiávamos nesta
instituição em 2005. Ao analisarmos alguns desenhos produzidos pelas crianças
desta instituição, percebemos que os mesmos descreviam elementos do cotidiano
vivido e da realidade social na qual estas crianças estavam inseridas e suas
particularidades3.
Portanto, ao destacar os pressupostos filosóficos hellerianos (historicidade,
cotidianidade,
imediaticidade,
genericidade,
papéis
sociais,
axiologia,
comportamento ético/moral, ultragenericidade, juízos provisórios, objetividade e
subjetividade, entre outros, ou seja, os fundamentos antropológico-ontológicos do
ser social na perspectiva helleriana), percebemos que estes eram paulatina e
continuamente absorvidos pelos/as discentes e/ou cursistas, resultando, assim, num
despertar para a consciência ética e política profissional e social.
O trabalho pedagógico consistia em levar os/as discentes a refletir e a buscar
mediações duradoras à transformação revolucionária em-si e para-si, concomitante
e simultaneamente à vida social e consigo mesmo, numa interpenetração
transformadora e dialética do cotidiano, operando na mão dupla: teórico-práxis e
práxis-teórica.
Em outras palavras, propunha-se caminhar do real abstrato - do cotidiano
dado -, para o real concreto - ou concreto pensado -; do campo da abstração
intelectiva/reflexiva, para o campo correlacionado de forças operantes da realidade;
através da construção de mediações possíveis para compreender e transformar a
realidade social, no sentido de desvendar as contradições da vida social e da
ontologia do ser social, entre o particular/universal e o singular/genericamente
humano, ou seja, da aparência para a essência, no intuito de desvelar as vias de
resistência ultrageneralizadas que impedem a transformação dos nexos de
articulação do fenômeno estudado para concreto pensado.
3
Estes fatos foram analisados na pesquisa em questão e, posteriormente, apresentados no 2º
Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais em Belo Horizonte, no ano de 2009 (VERONEZE, 2009).
24
Para isso, pressupunha-se para o interlocutor uma concepção e apreensão
filosófica que contribuísse para um nível de autonomia individual/coletiva e
individual/social historicamente construída, ou seja, de princípios epistêmicos do
reconhecimento, da atividade, de sistematização e de totalidade do ser social, logo,
de mediação, conforme os apontamentos de Martinelli (1993, p. 136-141), de cuja
base teórico-metodológica, nos apropriamos.
A autonomia na visão de Heller (2004, p. 118), refere-se à possibilidade do
indivíduo de criar seu próprio destino e promover, mediata e imediatamente, sua
integração e a de toda a Humanidade e, por outro lado, de levar e conta tudo aquilo
que é necessário e do esforço de encarar os fatos e fenômenos sociais como eles
são.
Ao partirmos dos elementos simples e contraditórios do cotidiano,
transportando-os para um universo teórico-filosófico-conceitual, conseguíamos
elevar os sujeitos em formação para a capacidade intelectiva acima da
imediaticidade alienada e alienante da vida social, revelando um campo de
mediações conscientes ética e politicamente críticas e duradouras.
Partindo da hipótese de que as matrizes contidas no pensamento
metodológico/pedagógico de Agnes Heller contribuem para a formação da
consciência ética e política do ser social, interrogamos: qual seria então o
fundamento
primeiro
desta
teoria?
Como
ela
poderia
contribuir
para
a
formação/intervenção do Serviço Social, bem como de outras áreas do saber? De
que forma o Serviço Social poderia se apropriar – ou se apropriou - dessa
metodologia/pedagógica teórico-conceitual para a formação e/ou despertar de uma
consciência ética e política do e no ser social?
Tendo como base a Teoria Social de Marx, buscamos responder estas
perguntas, partimos do princípio de que deveríamos conhecer a totalidade dos
escritos de Agnes Heller. Num primeiro momento, percebemos que sua contribuição
estava relacionada às suas análises da vida cotidiana, portanto, de uma
determinada práxis social.
Isso implicaria numa determinada postura na e para a vida social em que o
sujeito social se afirmasse como tal, mas, como se sabe, a realidade social, na
lógica do capital, é contraditória, tornando, em grande medida, reificada a vida
social.
25
Desse modo, os sujeitos sociais - individual e coletivo - podem apresentar-se
alienados e a reproduzirem essa alienação. Portanto, como poderíamos trazê-los/as
para a realidade não-alienada, ou seja, como poderíamos contribuir para uma
postura consciente ética e política para a vida social?
Para responder esta pergunta, pressupúnhamos um caminho - uma filosofia
da práxis social. A que se apresentava de antemão, sem sombra de dúvida, era a
Teoria Social de Marx.
Porém, é sabido que as contradições dos dias atuais, tendo em vista ainda a
real condição de mercantilização da Educação, o tempo e a realidade social dos/as
discentes, muitas vezes, a formação profissional é prejudicada. Principalmente por
se deparar com um universo totalmente desigual e contraditório e que, nem sempre,
se consegue desvencilhar e elevar-se acima da imediaticidade e da cotidianidade –
para a não-cotidianidade. Portanto, era preciso algo mais dinâmico e que atendesse
aos nossos objetivos.
Porém, isso não implicaria em abandonar os referenciais primários e de base
– a Teoria Social de Marx -, indispensáveis, sobretudo, para estas análises, mas sim
em construir um caminho que induzisse ao universo marxiano - referente à própria
obra de Karl Marx -, e marxista - estudiosos e defensores da Teoria Marxiana -,
estranho para a grande maioria dos/as nossos/as alunos/as.
Buscávamos, então, uma contribuição metodológico/pedagógica possível
para a apreensão de uma filosofia da práxis social. A teoria helleriana contribuía
satisfatoriamente para este fim. Deste modo, apresentava-se a nossa frente um
gigantesco mundo a ser descoberto.
Tínhamos em mente, que a grande contribuição do pensamento helleriano
estava vinculada a sua Teoria do Cotidiano. Porém, por meio de uma análise mais
aprofundada, ou seja, ao estudá-la em sua totalidade, percebemos que vida e a obra
se entrelaçavam e complementavam-se.
Percebemos que muito mais do que contribuir para analisar as relações e
inter-relações sociais dos sujeitos sociais na e para a vida cotidiana, o pensamento
helleriano buscava revelar uma antropologia-ontológica especifica do ser social – a
sua condição de individualidade -, não em relação a sua condição individualista e
egocêntrica
no
sentido
liberal,
mas
em
sua
condição
ontológica
de
individualidade/singularidade, ou seja, do ser-em-si-mesmo e do ser-para-si-mesmo.
E que, como tal, caminha da condição de particular e genérico, para a de singular
26
e/ou de indivíduo social. A singularidade é o campo mais íntimo dos indivíduos
sociais, compreende também, a esfera dos sentidos, dos sentimentos e da
personalidade – da identidade4.
Nessa antropologia-ontológica do indivíduo social helleriano, pudemos
detectar que as pessoas comuns, podem ou não assumir uma atitude consciente,
ética e política, na e para vida social, tendo em vista os estímulos, necessidades e
interesses que recebem ao longo de suas vidas.
Atentamos nesta pesquisa, para a condição de individualidade do sujeito
social enquanto tomada de consciência em-si-mesmo, com possibilidades para uma
consciência para-si-mesmo, ou seja, uma consciência tal que propicie uma vida
social não-alienada e não-alienante. Contudo, sem desprezar a sua condição
enquanto particular e genericamente humano.
Não é possível, na realidade social do mundo capitalista, vivermos fora da
cotidianidade alienada e alienante, porém, é possível não se deixar tornar-se
alienando/a e alienante diante dos fatos mais corriqueiros e mecanizados da
cotidianidade e que, na maioria das vezes, não percebemos. Ao mesmo tempo, não
é possível viver num estado total de suspensão e fora da cotidianidade, isso também
é uma forma de alienação.
Para tanto, torna-se necessário e fundamental para o ser social assumir uma
consciência ética e política em sua singularidade-particularidade. É na condição de
singular que o ser particular e genérico, encontra condições para assumir uma
atitude consciente diante das determinações e posicionamentos alienados e
alienantes da vida social, sobretudo, sobre a égide da lógica do capital.
A tomada de consciência de sua genericidade permite ao indivíduo social se
desprender da condição de alienação - na qual, e muitas vezes, está condicionado/a
– para o despertar e aquisição de novos valores ético-morais e ético-políticos de
liberdade/responsabilidade - de valores éticos e políticos universais.
Por outro lado, também possibilita a abertura de novos campos de
possibilidade e de mediação. Para tanto, torna-se necessário desprender-se dos
sistemas consuetudinários, dos juízos provisórios e das ultrageneralizações,
portanto, situações estas de alienação.
4
Segundo Martinelli (2009), identidade é uma categoria sócio-política que se constrói no jogo das
forças sociais. Encontra-se enquanto síntese dialética entre os modos de ser e de afirmar-se
socialmente.
27
Estes pressupostos encontraram elementos para a reflexão filosóficoconceitual da autora a partir do momento em que esta tomou contato com os
fundamentos da Teoria Social de Marx, vinculados a “escola lukacsiana” (referente
às ideias defendidas e divulgadas por Georgy Lukács), em Budapeste que,
juntamente com os acontecimentos significativos de sua juventude e do momento
histórico (os anos compreendidos entre 1929 e 1956), contribuíram para o
afloramento das respostas aos seus questionamentos existenciais.
Contudo, nos deparamos, a princípio, com conflitos teóricos existentes em
fases distintas de sua vida. Conflitos estes que, acreditamos, refletem circunstâncias
reais e concretas, mas que, em nossa opinião, não interferem nas análises aqui
apresentadas.
Para sanar tais contradições, demarcamos nossas análises, aos textos
escritos no período compreendido entre os anos de 1956 e 1978. Nesse período,
Agnes Heller e o grupo de amigos intelectuais, reuniram-se ao redor de Georgy
Lukács, com o intuito de fazerem um profundo estudo nos escritos marxianos –
principalmente os de sua juventude -, tendo como base as dos próprios escritos de
Lukács.
As preocupações/reflexões deste grupo estavam diretamente vinculadas aos
estudos de Lukács sobre a Estética e à ontologia do ser social, na forma como estes
se apresentavam no pensamento lukacsiano e na restauração da essência filosófica
marxiana que, na opinião do grupo, estava-se desvirtuando de seus propósitos
originais.
Como cenário deste período, observamos uma grande efervescência política,
econômica, social e cultural na Hungria, no Leste Europeu e demais países do
mundo em decorrência das grandes guerras mundiais. Tais acontecimentos
marcaram profundamente a infância e juventude de Heller, somado, sob suas
impressões, ao holocausto nazista alemão e o comunismo stalinista. Em
contraposição, a formação de uma onda socialista fundamentada na liberdade e na
democracia.
Heller, ao longo de sua vida, passou por grandes dissabores internos em sua
vida pessoal e em seu país natal, sofrendo perseguições étnicas, políticas e
ideológicas, assim como os demais membros da “Escola de Budapeste”. Seus
questionamentos iniciais e, consequentemente, sua busca por respostas, estão
diretamente ligados aos episódios histórico-sociais, sendo que, para ela os horrores
28
do nazismo de Hitler e o totalitarismo nazi-fascista de Stalin, foram os mais
significativos.
Posteriormente, suas análises caminhariam para elementos relativos à
questão social, ou seja, as condições objetivas e subjetivas nas quais os sujeitos
sociais estão inseridos e que acabam por provocar tamanhas atrocidades aos
demais entes viventes. Seus questionamentos partem para entender que sujeito e
que mundo é este que provoca tamanha violência?
Sua trajetória intelectual indelevelmente passa por referenciais teóricos,
momentos históricos, países e culturas bem distintas, tendo como suporte inicial o
marxismo lukacsiano que, segundo Rivero (1996), seria o produto da uma nova
esquerda do leste europeu. Posteriormente, Heller se considerou como neomarxista
e, mais tarde como pós-marxista (RIVERO, 1996, p. 10).
Além disso, Terezakis (2009) aponta para as características posteriores a
estas fases, ou seja, existencialista e pós-moderna. Estas fases, segundo Prior
(2002) e Rivero (1996) apontam para períodos, países e culturas distintas de sua
vida, ou seja, a realidade da Europa e do leste europeu até 1978, sua estadia na
Austrália de 1978 até 1986 e sua posterior carreira enquanto docente no New
School for Social Research, ocupando a cadeira de Hannah Arendt de Filosofia e
Ciência Política nessa universidade, em Nova Iorque, Estado Unidos, desde 1986.
É preciso estar atendo à demarcação e contextualização das referências, dos
diálogos e dos momentos históricos das fases distintas do pensamento de Agnes
Heller, sem o quê, a compreensão e desenvolvimento do seu pensamento ficaria
prejudicado, sobretudo para não cair em análises preconceituosas, deformadas e de
analogismos como pluralista, revisionista e eclético, características estas das as
quais não concordamos.
A partir dessas prerrogativas – e da insuficiente realização de pesquisas, em
território brasileiro, que contemplem a totalidade das análises helleriana e de
estudos analíticos sobre Agnes Heller – considerando a sua temporalidade e
historicidade - justificamos a importância desse estudo.
O interesse e a escolha do tema dessa investigação, além dos fatores já
assinalados, também tiveram com prerrogativa os questionamentos e reflexões que
este pesquisador pode notar ao longo das experiências de vida e profissional
materializadas na construção do memorial para a qualificação enquanto mestrando
do curso de pós-graduação em Serviço Social. A temática da ontologia do ser social
29
sempre este presente nas várias pesquisas realizadas entre 2005 e 2011, bem
como, o interesse próprio de compreender a dinâmica antropológico-ontológica do
ser social na perspectiva marxista. Isso nos levou a empreendermos pelo universo
helleriano, como também de outros expoentes marxista, em específico, Georgy
Lukács.
É evidente que a percepção de certas escolhas e certos caminhos, só são
possíveis perante a influência de muitas pessoas, sujeitos sociais conscientes de
seu papel, que fizeram e fazem parte de nosso contexto social: nossa história.
Desse modo, nos propomos a buscar um “saber por inteiro”, procurando
entender os fatos “em suas raízes”, em outras palavras, não entendê-los apenas
pela sua aparência, mas na captura de sua essência, buscando, constantemente, o
significado axiológico das escolhas e para que lugar essas possa nos levar.
As questões ético-morais e ético-políticas envolvem questões relevantes à
vida
cotidiana
e,
portanto,
prescrevem
um
campo
de
possibilidades
e
impossibilidades nas relações e inter-relações sociais: “[...] a vida cotidiana
caracteriza-se pela unidade imediata de pensamento e ação”5.
A ética e a política só existem porque somos seres da práxis e vivemos em
sociedade e, para que possamos vivê-la, devemos observar regras e normas,
momentos históricos, culturas, necessidades e, principalmente, modos de ser
individual e social, além dos valores universais produzidos pelos sujeitos sociais.
Para tanto, é condição sine qua non entender o ser social, homens e
mulheres, como aqueles/as que apresentam em-si o processo de hominização passagem entre o reino animal e o reino nominal (este processo se deu na era
primitiva) – e de humanização - tornar-se sociável (relações entre os indivíduos). Em
outras palavras, é o ente que já passou do estado primitivo (ser natural), para o
estado de humano/social (ser social).
Segundo Lukács (2004, p. 48), homens e mulheres deixam a condição de ser
natural para a personalidade humana; de um gênero animal relativamente
desenvolvido, para o gênero humano e, deste modo, para a humanidade. Para
Engels, em seu texto O papel do trabalho na transformação do macaco em homem,
essa transformação se deu através do desenvolvimento de todos os sentidos através
do trabalho.
5
HELLER, 2004, p. 45. Grifos da autora.
30
Lukács (2004) aponta que o processo de hominização e humanização é
produto de uma série de fatores que se constituem num complexo da sociedade.
Este processo não tem, em si mesmo, algum fim. Sua evolução ascendente contém,
por si, a efetivação de contradições cada vez mais desenvolvidas, cada vez mais
fundamentais: “[...] o progresso é, sem dúvida, uma síntese de atividades humanas,
porém, não a sua realização plena no sentido de algum um conjunto teleológico”
(LUKÁCS, 2004, p. 48).
Há uma linha muito tênue nesse processo, haja vista que encontramos em
Marx e Engels elementos antropológico-ontólogicos que justificam esta passagem.
Porém, ambos irão compreender que a passagem entre ser natural e ser social se
dá desde o momento em que homens e mulheres se descobrem no mundo, ou seja,
ao transformar a natureza para sanar suas necessidades primárias, transforma a si
mesmo, num continuo processo de hominização e humanização.
Portanto, não há como ter consciência ético-moral e ético-política sem que
haja condições e estímulos e/ou possibilidades objetivas e subjetivas, reais e
concretas para a preservação dos componentes essencialmente humanos.
Na concepção de Marx, os componentes existenciais substantivos para a vida
humana são o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a
consciência, a linguagem e a liberdade, possibilidades imanentes à humanidade do
gênero humano, conforme os apontamentos de Heller (2004).
Portanto, escrever sobre Agnes Heller e sua contribuição intelectual, tornouse um grande desafio, primeiramente por encontrarmos poucas pesquisas a seu
respeito e, as existentes, tratavam de questões pontuais; por outro lado, escrever
sobre pensadores vivos é, ao mesmo tempo, uma tarefa muito gratificante que nos
permite fazer uma pequena homenagem, como também é um grande desafio,
principalmente, porque não permite ao pesquisador/a o distanciamento necessário
para uma análise menos apaixonada.
Ainda,
dado
essas
limitações,
optamos
por
fazer
um
estudo
analítico/exploratório sobre o pensamento de Agnes Heller, elencando os elementos
mais substanciais para uma filosofia da práxis. Desta forma, não é nossa intenção
realizar um estudo crítico/comparativo sobre o pensamento de Heller, mas sim
utilizar da criticidade e das categorias da teoria crítica para subsidiar nossas
análises.
31
Salientamos ainda que a hipótese aqui levantada não é a única de interesse
para a construção de uma filosofia da práxis. Não se pode excluir de nenhuma
maneira a possibilidade de outras concepções e de outras hipóteses para
compreender o pensamento helleriano, tendo em vista e, principalmente, as
contradições de sua temporalidade. Deixamos estes pontos nevrálgicos para futuras
análises.
Também, há de se observar que este estudo é, em certa medida, unilateral,
ou seja, ocupa-se de questões levantadas por Agnes Heller e que foram tratadas
com base nos seus apontamentos, não descartando, em alguns momentos, uma
comparação ou análise com outras fontes.
Na atualidade, a preocupação dos existencialistas e dos denominados “pósmodernos”, volta-se para as temáticas do ser que vive em sociedade ou do sentido
da existência, não cabendo aqui fazer uma análise crítica ao pensamento
existencialista, fenomenológico ou pós-moderno, mas sim, compreender a teoria
helleriana naquilo que tem de mais importante: o indivíduo social.
Para tanto, num primeiro momento buscamos fazer uma análise lato sensu
dos aspectos metodológicos na construção dessa pesquisa e que intrínseca e
extrinsecamente vinculam-se a substância do pensamento helleriano frente ao
cotidiano e do estado de alienação na qual estamos inseridos. Tendo como ponto de
partida nossas experiências em sala de aula.
O primeiro capítulo subdivide em seis momentos, ocupando-se dos aspectos
introdutórios e metodológicos aos principais conceitos desenvolvidos nessa
pesquisa, sobretudo, com relação à alienação da vida cotidiana em “tempos
modernos” e de como o ser social se insere ou é inserido nesse universo. Sua
extensão tem como justificativa a necessidade de apontamentos que situem no
cotidiano e na contemporaneidade o pensamento helleriano.
Num segundo momento, buscamos entender a complexa teia antropológicoontológica e sócio-histórico-filosófica da essência do pensamento helleriano em sua
historicidade, destacando, substancialmente, o indivíduo social como agente e
construtor de sua própria história.
Nesse capítulo buscamos entender o indivíduo enquanto sujeito social
consciente na e para a vida cotidiana, a estrutura da própria vida cotidiana e a
suspensão do cotidiano, tendo o valor como categoria central para a consciência
ética e política do ser social.
32
No terceiro momento, verificamos como Agnes Heller reagiu (ou se afirmou)
enquanto individualidade diante dos acontecimentos históricos de sua vida, seu
desenvolvimento intelectual, seus amigos, suas raízes, suas angústias, sua busca,
sua “causa”, sua produção, contextualizando e temporalizando os momentos mais
significativos de sua Lebensphilosophie. Heller, enquanto “produto verdadeiro do
século XX”, viveu sua própria individualidade.
A extensão desse capítulo tem como justificativa uma aproximação que
contemplasse a totalidade, historicidade e linearidade para construir uma biografia
aproximada de Agnes Heller naquilo que nos propomos analisar. Demarcamos e
buscamos contemplar os fatos mais significativos de sua vida e de sua obra.
Somente assim é que pudemos caminhar para a completude de nossas
ideias, entrelaçando-as no decurso dessa pesquisa com as falas/pensamentos de
Agnes Heller, no intuito de verificar sua contribuição e o seu significado para o
Serviço Social e demais áreas do saber.
O quarto capítulo foi construído diante da necessidade desse pesquisador de
preparar o caminho para as considerações finais, tendo com parâmetro nossos
estudos anteriores. Nesse caminhar, buscamos analisar que as escolhas dos
indivíduos sociais se dão na sua vida particular-singular.
A consciência ética e política do ser social é a condição sine qua non para os
fundamentos de uma ética marxista. Não se deve considerar que todas as
necessidades serão satisfeitas, mas que devem ser igualmente consideradas e
reconhecidas como legitimas no intuito de emancipar-se para poder emancipar.
Em nossas considerações finais, chegamos à conclusão de que o
pensamento helleriano, com forte inspiração humanista-marxista, contribui para a
tomada de posição frente à alienação da vida cotidiana, numa proposição
consciente, ética e política, do ser social, de modo que reconhecemos o seu valor
enquanto individualidade em-si e para-si enquanto sujeito revolucionário, enquanto
inspiração e fermentação de uma filosofia da práxis social.
É importante destacar que num determinado momento histórico e em
circunstâncias particulares, o Serviço Social brasileiro também buscou, num
determinado momento histórico, a sua consciência e autonomia de-si-mesmo, em-simesmo e para-si-mesmo, enquanto profissão, tentando se constituir, posteriormente,
enquanto projeto coletivo revolucionário e emancipatório rumo a uma nova
sociabilidade.
33
Desta maneira, a proposta dessa dissertação, é preencher, em nossa opinião,
uma lacuna no que se refere à contribuição do pensamento helleriano para o Serviço
Social brasileiro, não se restringindo, apenas, à profissão, mas também que possa
alcançar outras áreas do saber, contribuindo, assim, para uma reflexão sobre a
consciência ética e política do ser social.
Certamente, não pretendemos esgotar o assunto e os apontamentos aqui
apresentados são compatíveis para entender o pensamento helleriano enquanto
visão de humano e de mundo, inspirada pela concepção marxiana e marxista que
constrói uma filosofia radical, propondo em si uma postura ética e prática, portanto,
uma práxis.
Acreditar que é possível mudar a realidade dada e que esse movimento
depende inicialmente – mas não somente - de uma atitude consciente, em nossa
opinião, já é um posicionamento ético e político consciente. Agir radicalmente supõe
superar a alienação e o estranhamento dos valores humanos da vida social e do
“reino da barbárie”. Do contrário, regozijai por achar que nada vale a pena e que é
melhor ficar apenas reclamando de braços cruzados, tal é o estado absoluto da
alienação.
34
CAPÍTULO I
1.
A “INSUSTENTAVEL LEVEZA DO SER” SOCIAL
“A essência humana não é o ponto de partida, ou
o ‘núcleo’ para que as influências sociais se
sobrepõem, mas se constitui um resultado”.
Agnes Heller
1.1.
Aspectos metodológicos
Desde o início, este estudo foi orientado na busca de uma interpretação do
corpus teórico do pensamento helleriano, tendo em vista que, principalmente no
âmbito do Serviço Social brasileiro, até o presente momento, encontrarmos poucos
estudos específicos e direcionados a este fim ou sobre Agnes Heller, filósofa
húngara que é considerada por alguns intelectuais, como uma pensadora
secundária.
A princípio, esta consideração, nos incomodou, porque no ambiente da sala
de aula e as experiências cotidianas se mostraram acolhedoras para este
referencial. Conforme já apontamos na introdução, estas experiências se deram no
trato com os/as discentes em Serviço Social e em outras experiências
didático/pedagógicas, nas quais observamos que a teoria helleriana contribuía
satisfatoriamente para o despertar de uma consciência ética e política do ser social.
Tal constatação nos levou a buscar um conhecimento mais aprofundado
sobre o seu pensamento e a entender qual seria de fato sua contribuição. Assim,
iniciamos nossa busca nessa direção.
É necessário esclarecer inicialmente que o conceito de ética de que nos
apropriamos diz respeito à “tomada de consciência” do ser social, ou seja, do
momento em que se humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade 6´7, bem como
o conceito de política que, em seu sentido lato, refere-se a toda atividade humana
“[...] dirigida à transformação, à modificação ou à reforma da sociedade”8.
6
Para melhor leitura e clareza, omitiremos as referências das obras de Heller nas citações diretas e
indiretas no corpo do texto, apontando-as em notas de rodapé de acordo com as bibliografias da
autora utilizadas para a construção dessa pesquisa e contidas nas referências dessa dissertação.
Somente referenciaremos no corpo do texto as que acharmos estritamente necessárias.
7
HELLER, 2004, p. 121.
8
HELLER, 1983a, p. 41.
35
A hipótese de que há uma contribuição teórico-conceitual do pensamento
helleriano para o campo do estudo da consciência ética e da política na e para a
vida cotidiana, levou-nos a realizar, primeiramente, um estudo monográfico que
abordasse o conjunto de sua obra em sua totalidade. Porém, no início, não tínhamos
conhecimento do volume de sua produção intelectual.
Numa primeira pesquisa, buscamos verificar sua utilização no campo das
dissertações, teses, artigos, livros - enfim, onde e como Heller estava sendo
estudada e utilizada. Pouca coisa em português foi encontrada, mas o pouco que
encontramos, tinha como base, principalmente, a sua teoria do cotidiano.
Também notamos que Heller era muito estudada tanto na Europa como nos
Estados Unidos, de uma forma pluralista, principalmente no campo dos estudos
referentes à pós-modernidade. Tendo em vista que essa não era a nossa proposta
de estudo e ainda, dado a dificuldade em conseguir estes materiais, abandonamos
essa intenção.
Partimos para uma segunda pesquisa, tendo em mente que o pensamento
helleriano, segundo algumas opiniões particulares, constituía-se em duas fases
distintas: uma marxista e uma neokantiana. Fazer uma análise para demonstrar essa
hipótese, também nos parecia inviável no momento, acreditando que isso não traria
nenhuma contribuição para o Serviço Social, além do mais teríamos que fazer um
estudo em toda a sua obra e isso, conforme já colocamos, seria inviável.
Tendo em vista os fundamentos marxistas do Serviço Social brasileiro,
demarcamos um espaço temporal que contemplasse somente a fase marxista de
Heller ou os anos de sua permanência na Hungria - entre os anos de 1950 até o final
dos anos de 1970. Buscamos, então, levantar os seus escritos desta época.
Qual não foi a nossa surpresa ao verificar a extensão, a dificuldade e
complexidade do campo de análise teórico-filosófica desta pensadora, ao longo dos
seus oitenta e três anos de existência. Além disso, percebemos que a grande
maioria dos seus livros não foram escritos e editados obedecendo a sua cronologia e
linearidade.
Percebemos que havia uma distinção em suas fases assaz interessante, que
Ángel Prior apontou em seu livro Axiologia de la modernidad: ensayos sobre Agnes
Heller, publicado em 2002 pela Universidade de Valéncia, Espanha.
Nesse livro, Prior destaca três momentos de seu pensamento e que
circunscreviam aspectos distintos da vida cotidiana de Heller: a primeira fase
36
compreende o seu nascimento e a sua permanência na Hungria (1929-1977), a
outra contempla sua estada na Austrália (1978-1986) e a última quando passou a
viver nos Estados Unidos a partir de 1986 até os dias atuais.
Esta divisão cronológica apontava sempre para a temática central: a busca de
uma filosofia da vida, ou seja, “viver a vida de outra maneira” (MUÑOZ apud PRIOR,
2002, p. 11). Acerca disso, Muñoz, ao apresentar a obra de Prior, salienta que o
debate trazido por Prior afirma que essa perspectiva está diretamente relacionada
com o tempo e a própria evolução do pensamento de Agnes Heller, apontado para o
contexto histórico e social em que ela estava e está situada e que, portanto, na
atualidade, não poderia deixar de se preocupar com uma “filosofia moral e política
ocidental” (idem, ibidem).
Muñoz ainda pontua que em sua permanência na Hungria, Heller estava
envolta nas temáticas de sua época e pelas discussões e circunstâncias ao redor de
Georgy Lukács, ou seja, a busca de um “renascimento do marxismo” e na “possível
transformação socialista da cotidianidade herdada” (idem, ibidem).
Partindo do pressuposto de que os posicionamentos ético-políticos do Serviço
Social brasileiro contemporâneo, sintetizam a tomada de posição frente à realidade
regida pela lógica do capital, percebemos que a vida cotidiana está demarcada pelas
relações objetuais e coisais. O humano, eminentemente social, se coisifica, assim
como seu modus vivendi.
Deste modo, acomoda-se com os sistemas consuetudinários9 da vida
burguesa, com o modo de produção capitalista e seu aparente bem-estar
eminentemente econômico. Porém, para a grande maioria da população mundial,
isto apenas significa que uma minúscula população concentra a riqueza socialmente
produzida, gerando, assim, um ambiente contraditório e de exploração.
Nessa direção, a vida humana acaba sendo desvalorada e uma alta parcela
da população acaba por incorporar a lógica do capital e da mercantilização,
passando a ser vitima de si mesma. Para sair desse amalgama, dessa situação de
alienação/alienante, tem-se que buscar um posicionamento contrário a esse
processo de reificação da vida humana.
Assim, definimos que nossas análises deveriam circunscrever os anos de sua
juventude e aos acontecimentos mais significativos da vida de Agnes Heller deste
9
Entende-se por sistemas consuetudinários aqueles constituídos por normas, regras e costumes que
passam de geração em geração (ex.: sistemas conservadores, moral conservadora etc.).
37
período e os que mais influenciaram em sua produção intelectual - o encontro de
Heller com seu mestre Georgy Lukács, a “Escola de Budapeste”10 e a Hungria até o
final dos anos de 1970 -, constituindo, assim, a fase em que Heller comungava com
as ideias de seu mestre e o referencial teórico eminentemente marxiano e marxista.
Na medida em que fomos tomando contato com sua obra, surgiu a
necessidade de conhecer mais de perto esta filósofa e o contexto sócio-histórico em
que
fora
inserida.
Numa
verdadeira
garimpagem,
conseguimos
levantar
praticamente todas as obras da periodização demarcada, assim como algumas de
outros períodos.
Seus livros, em grande maioria, foram traduzidos para a língua espanhola,
sendo apenas dois deles, desta fase, foram traduzidos para o português: O cotidiano
e a história e O homem do Renascimento. Em sua fase intermediária, ou seja, entre
a Hungria e a sua estadia na Austrália, traduziu-se para o português as obras
Filosofia radical e Teoria da História. Algumas outras traduções de seus textos
posteriores também podem ser encontradas no Brasil.
Por conseguinte, mais um problema se colocava à nossa frente, dado ao
vasto material a ser analisado: por onde começar?
Pela carência de guias de estudos, sobretudo, sobre o seu pensamento em
sua totalidade e, principalmente, pelo espinhoso problema da evolução de suas
reflexões, tendo em vista ainda as polêmicas endereçadas a esta personalidade e
da ruptura com os posicionamentos defendidos até meados dos anos de 1980.
Desse modo, ficava ainda mais complexa esta empreitada.
Precisávamos entrar no universo de Agnes Heller, viver os seus dias,
introjetar tudo que fosse possível em nossas veias, num verdadeiro mergulho
helleriano “por inteiro”. Foi nesse momento que tivemos a oportunidade de tecer um
contato, via e-mail, com a própria Agnes Heller, que gentilmente respondia às
nossas primeiras indagações.
Ao “mergulhar de cabeça” nesse universo, ver suas últimas entrevistas - em
vídeo e publicações -, fotos, vídeos, seus amigos e amigas intelectuais, a Hungria,
os acontecimentos mais significativos de sua vida, filmes relacionados, o holocausto,
as guerras mundiais, a Revolução Húngara de 1956, os acontecimentos do Leste
10
Conforme já apontamos na introdução, esta expressão se refere a um grupo de jovens intelectuais
que se reuniu ao redor de Lukács entre os anos de final de 1950 até o ano de sua morte em 1971,
posterior a esta data, ainda mantiveram os mesmo laços, mas sob outros propósitos. Analisaremos
com mais detalhes este grupo no Capítulo III dessa dissertação.
38
Europeu e, sobretudo, Georgy Lukács, aquele que foi o principal responsável pela
sua trajetória intelectual, descobrimos um universo a ser desvelado. Assim, surgiu a
ideia de contextualizar, cronologicamente, os fatos mais relevantes de sua vida
particular e intelectual, num esforço de construir uma biografia aproximada de Agnes
Heller.
Depois de reconstruir rigorosamente sua vida e obra – da fase em análise -,
percebemos que alguns pontos delineavam basicamente seu modo de pensar: a
vida cotidiana, a democracia e a liberdade, tendo em vista o contexto histórico vivido
por Heller.
Mas, por que essas temáticas implicaram tão profundamente em sua
produção intelectual? Tal resposta pôde ser encontrada quando nos defrontamos
com os acontecimentos e com a história da Hungria que exprime o sentimento do
povo húngaro na luta pela transformação da realidade, ou seja, por meio de um
“socialismo verdadeiro”.
Até o final dos anos de 1970, tanto a Hungria como o restante do mundo,
passaram por grandes efervescências: duas guerras mundiais, crises econômicas,
políticas, culturais e sociais, a ascensão do comunismo no Leste Europeu, a
opressão dos regimes totalitários, o desenvolvimentismo avassalador do capitalismo,
a “Guerra Fria”, dentre outros acontecimentos que, sem sombra de dúvidas,
marcaram a história de Agnes Heller.
Desse modo, o contexto histórico em que Heller viveu, somados a ânsia por
uma “redenção” e “autoafirmação” enquanto sobrevivente do holocausto, foram
elementos constitutivos e constituintes que influenciaram a sua tomada de posição.
Como se não bastasse encontrou um amplo campo teórico, altamente
desenvolvido e a oportunidade de viver seu desenvolvimento intelectual ao lado de
Georgy Lukács, enquanto aluna e assistente, como também encontrou um berço de
colegas e amigos que comungavam com o mesmo ideal.
Outra questão está diretamente relacionada aos acontecimentos sóciohistóricos e políticos daquela época. Conforme os apontamentos de Heller (1982b),
só quem viveu naquele período os horrores do nazi-fascismo de Hitler e o
totalitarismo-fascista de Stalin, pode entender porque o sentimento de liberdade e
democracia são tão significativos para aqueles/as que estiveram diretamente
imersos neste universo, sobretudo, para aqueles/as que eram estimulados/as na
39
formação e consolidação do sujeito revolucionário individual e/ou coletivo – seja por
livre vontade ou por necessidade.
Portanto, levantar a história da Hungria até aquele período foi uma tarefa
assaz interessante e prazerosa. A história daquele país está indelevelmente
vinculada à luta pela liberdade e pela emancipação. Não é por mera coincidência
que os judeus se identificaram com aquele pequeno “país satélite” dos grandes
impérios invasores.
Pensar o cotidiano como um universo tão contraditório, constitui um campo
infindável e encantador a ser desvelado para alguém que buscava uma “causa” para
sua vida, como foi o caso de Heller. Por conseguinte, por que não extrair do próprio
cotidiano vivido os elementos para a construção de um arcabouço teórico-conceitualfilosófico, fundamentado numa determinada proposta ética e política? Não foi por
mero acaso que Heller empreendeu-se nesse desbravamento.
Já de início é preciso definir o cotidiano de vida social. O cotidiano é o “mundo
da vida” que se produz e se reproduz dialeticamente, num eterno movimento: “[...] é
o mundo das objetivações”11. O conceito de cotidiano está relacionado àquilo que é
vivido e a vida social ao que se apresenta, um e outro se relacionam.
O cotidiano é a vida em sua justaposição, numa “sucessão aparentemente
caótica” dos fatos, acontecimentos, objetos, substâncias, fenômenos, implementos,
relações sociais, história dentre outros fatores. A vida cotidiana aparece como a “[...]
base de todas as reações espontâneas dos homens ao seu ambiente social, na
qual, frequentemente parece atuar de forma caótica”12.
A existência humana implica necessariamente a existência da vida cotidiana.
Não há como desassociar existência e cotidianidade, assim como, não há como
viver
totalmente
imerso
na
não-cotidianidade
(estado
de
suspensão
da
cotidianidade). É o mundo da vida: “[...] é o conjunto de atividades que caracterizam
a reprodução dos homens particulares13, os quais, por sua vez, criam possibilidade
da reprodução social”14.
É na cotidianidade que homens e mulheres exteriorizam suas paixões, seus
sentidos, suas capacidades intelectuais suas habilidades manuais, suas habilidades
11
HELLER, 1977, p. 07.
LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 12.
13
HELLER, 1977, p. 19. Grifos nossos.
14
HELLER, 1977, p. 19.
12
40
manipulativas, seus sentimentos, suas ideias, suas ideologias, suas crenças, seus
gostos e pendores, enfim, todas as suas potencialidades e capacidades.
[...] A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma
exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e
físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-générica
a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário,
não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tãosomente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente.
(HELLER, 2004, p. 17).
A vida cotidiana é o espaço da vida dos sujeitos sociais15 em suas intrincáveis
e complexas relações sociais, dinâmica e dialética, ou seja, em sua forma de vida e
que
carrega
em
si
múltiplas
determinações
(historicidade,
contradições,
16
estratificação e estrutura social, ultrageneralizações, imanências etc.) .
Inseridos
nesse
contexto,
homens
e
mulheres
nascem,
crescem,
desenvolvem-se, educam-se, trabalham, reproduzem-se, vivem e morrem. São
atuantes, desempenham seus papéis ativos, passivos, receptivos ou não, nos mais
variados espaços da vida social (ou esferas heterogêneas).
Porém, muitas vezes, dado o alto grau de alienação das relações sociais, não
aguçam ou mesmo não percebem suas capacidades e/ou potencialidades em sua
intensidade.
No que diz respeito à Agnes Heller, as condições objetivas conspiravam para
que desenvolvesse suas capacidades/potencialidades “por inteiro”, porém, ainda,
tinha a possibilidade de escolha: deixar envolver-se pela cotidianidade ou buscar
uma vida reflexiva? E porque não dizer revolucionária?
Na busca pelo conhecimento, primeiramente, buscou nas ciências algo que
respondesse aos seus anseios, depois, mergulhou “por inteiro” no universo reflexivo
da filosofia - da arte, da ética e da política. Posicionar-se ética e politicamente num
cotidiano tão conturbado como os anos de sua juventude, muito mais do que uma
simples escolha, era também um dever-ser.
Heller (2004) aponta que o ser social, inserido na cotidianidade, pode
desenvolver ou não por si mesmo, ou seja, pode adquirir habilidades que o
mantenha ativo e receptivo diante da realidade apresentada. Esse amadurecimento
humano está diretamente ligado às suas habilidades e potencialidades de
15
16
Ser social consciente e ativo ética e politicamente.
Em momento oportuno, nos deteremos mais amiúde nessas categorias.
41
manipulação das coisas, como também, está relacionado às relações sociais que
estabelece ao longo de sua vida, o meio em que se insere (ou é inserido), as
respostas aos estímulos e aos interesses, singulares e particulares, que lhe são
colocados à sua frente. As respostas de Heller foram de uma vida reflexiva e
revolucionária.
Para uma vida reflexiva e revolucionária, consciente, ética e politicamente, há
de se fazer uma verdadeira “revolução do modo de vida” 17, enquanto “ser da
práxis18” (BARROCO, 2008).
Heller aponta em seu estudo Teoría, praxis y necesidades humanas19, que
práxis no sentido lato é “[...] todo tipo de atividade social e, em última instância, a
atividade humana em geral”20, em outras palavras, implica em toda atividade
humano-social que se objetiva teórico/práxis na vida cotidiana, que implique uma
atividade, ou ação dinâmica e de mudança, consequentemente, uma ação políticorevolucionária21.
A vida de Heller é um verdadeiro posicionamento teórico/práxis e
práxis/teórico na e para a vida social. Esta práxis-político-revolucionária implicava,
necessariamente, na transformação da hierarquia das suas necessidades.
Por conseguinte, para que uma teoria se converta em uma práxis
revolucionária22, deve se propor a observar determinado movimento social e suas
17
HELLER, 1978, p. 169.
O termo práxis (do grego – πράξις – ação) utilizado aqui em seu sentido lato como o conjunto de
todos os tipos de atividades humano-sociais objetivadas no cotidiano; e em seu sentido stricto como
ação transformadora do ser social através do trabalho, em outras palavras, ao transformar a natureza,
o ser social transforma a si mesmo concomitantemente, numa relação dinâmica e dialética. A ação
transformadora é entendida enquanto atividade específica do ser social. Atividade prática consciente
capaz de criar e re-criar necessidades e capacidades materiais e/ou espirituais, instituindo, por sua
vez, um ponto concreto, antes inexistente. Segundo Vázquez (2007, p. 28), “[...] a práxis ocupa lugar
central na filosofia que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também
como elemento do processo de sua transformação”, portanto, é uma atividade prático-consciente,
capaz de criar e recriar possibilidades objetivas às suas carências e necessidades objetivas e
subjetivas.
19
Este estudo se encontra como Apêndice da obra Teoria de las necessidades em Marx (1978),
compreendendo as páginas 161 a 182.
20
HELLER, 1978, p. 164.
21
Opção condicionada direta e historicamente a uma ação direcionada à alterar a realidade dada:
“[...] o que é a revolução sem a transformação profunda da vida dos homens?” (HELLER, 1982b, p.
121).
22
Entendemos aqui como práxis revolucionária o movimento de transformação social concreta e
dinâmica da vida social. Para Marx, em suas Teses sobre Feurerbach, “os filósofos apenas
interpretaram o mundo diferentemente, importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 29 –
grifos do autor). Não basta somente interpretar, expor, refletir sobre as condições ou circunstâncias
objetivas ou subjetivas de aspectos relacionados à vida humana, mas sim, ir além, procurar
condições e possibilidades concretas e objetivas de reverter ou minorar situações que impedem que a
vida humana se exponha a condições subumanas de sobrevivência.
18
42
situações concretas. A práxis contém em si os meios adequados para cada
situação/objetivação concreta e em sua totalidade (HELLER, 1978).
Heller, enquanto individualidade consciente do seu papel social e de suas
ações, por si só e pela própria condição de ser social inserida num cotidiano tão
diverso, plural e contraditório, merecia um estudo mais aprofundado. Deste modo,
passou a ser nossa preocupação apropriarmo-nos de seu pensamento, do seu
cotidiano, para somente depois, darmos sequência a nossa proposta investigativa.
Dada à dimensão e erudição de seus escritos, fixamo-nos em suas análises
sobre o cotidiano e o ser social, buscando a sua essência filosófica. Partindo das
contradições inerentes aos fenômenos e às mudanças dialéticas que ocorrem na
sociedade contemporânea e do universo helleriano, em sua totalidade, tendo como
objetivo entender a antropologia-ontológica produzida por Heller no intuito de
entender o indivíduo social em sua particularidade, singularidade e genericidade.
Deste modo, nos apropriamos dos referenciais teórico-metodológicos de cariz
marxiano e marxista, buscando apoderar do objeto em seus pormenores e em suas
diferentes formas de desenvolvimento, perquirindo uma conexão íntima entre elas,
para somente depois, descrever adequadamente, a(s) essência(s) velada(s) pela
aparência.
A vida de Heller, assim como a de qualquer pessoa, não estava livre das
implicações e determinações cotidianas e das vivências de outras pessoas,
principalmente as que dividiram o mesmo contexto histórico-social de sua época.
Sua vida, tanto objetiva como subjetiva, desenvolveu-se repleta de acontecimentos
constituintes de qualquer cotidiano, porém, no caso dela, acontecimentos
particulares e próprios daquele contexto, direcionaram-na para um determinado
modo de pensar e agir numa determinada direção.
Não podemos esquecer que em cada época e contexto social há
particularidades, estruturas, sistemas político-econômico-culturais, enfim, realidades
diversas e distintas em suas formas, tessituras, ritmo, substâncias dentre outros
elementos constitutivos e constituintes, como também, cada pessoa em sua
singularidade-particularidade reage de uma maneira a essas determinações.
É inegável que as particularidades e singularidades do ser social sejam
diferentes e que as respostas objetivas e concretas aos estímulos, interesses e
determinações
cotidianas,
também
sejam
distintas.
Contudo,
partimos
do
43
pressuposto de que os sujeitos sociais fazem a sua própria história, mas a faz em
condições previamente dadas (MARX, 1997; HELLER, 2004).
Desta maneira, Heller trata o ser social com particular:
[...] na vida cotidiana de cada homem são pouquíssimas as atividades que
tem em comum com outros homens, ademais estas só são idênticas num
plano muito abstrato. Todos necessitam dormir, porém ninguém dorme nas
mesmas circunstâncias e por um mesmo período de tempo; todos tem
necessidade de alimentar-se, porém não na mesma quantidade e do
mesmo modo. Cada um – considerando o homem particular na medida da
sociedade – deve ademais reproduzir a espécie, quer dizer, trazer filhos ao
mundo. Os homens, por conseguinte, tem em comum, entre outras
atividades que – fazendo abstrações de seu conteúdo concreto – são
comuns a dos animais. Trata-se das atividades que servem para conservar
o homem enquanto ente natural. (HELLER, 1977, p. 19).
É inegável que as particularidades e singularidades do ser social são
diferentes e que as respostas objetivas e concretas às determinações cotidianas
também sejam distintas. Contudo, partimos do pressuposto de que os sujeitos
sociais fazem a sal própria história, mas em condições previamente dadas (MARX,
1997; HELLER, 2004).
Ao nascermos, desenvolvemos nossas capacidades de comportamento
simbólico, ou seja, a linguagem, o pensamento racional, a orientação segundo os
valores, “nosso a priori se assim o quiser. [...] Somente a posteriori podem se
manifestar em total extensão”23, em capacidades/potencialidades.
É conhecido o caso das meninas-lobo, bem como, O enigma de Kaspar
Hauser24. Não somos guiados apenas pelos instintos, mas também produzimos
teleologicamente mediações e as objetivamos na vida social: “[...] são estas
objetivações sociais das quais devemos nos apropriar se queremos viver, as que
ocupam o lugar de guia atribuído aos instintos. O que há em nós de estritamente
biológico é nossa fronteira. A fronteira absoluta é a moralidade”25.
Não somos seres estritamente biológicos e instintivos. Mas sim, seres de
relações sociais, construtores e artífices de nossa própria história. Portanto, partimos
da premissa de que “[...] toda a história humana é, naturalmente, a existência de
seres humanos vivos” e que “[...] toda a historiografia deve partir desses
23
HELLER, 1982b, p. 142.
Referência ao filme produzido por Werner Herzog em 1974.
25
HELLER, 1982b, p. 142-143.
24
44
fundamentos naturais e de sua transformação pela ação dos homens no curso da
história” (MARX; ENGELS, 2004, p. 44).
Portanto,
[...] a produção de ideias, de representações e da consciência está no
princípio, diretamente vinculado à atividade material e o intercâmbio
material dos homens, como linguagem da vida real. As representações, o
pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como
emanação direta de seu comportamento material. [...] A consciência nunca
pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu
processo da vida real. (idem, p. 51).
Porém, não somos inseridos na vida cotidiana como uma “folha de papel em
branco”, mas sim, num contexto prévio e historicamente constituído por outros seres
sociais. Deste modo, é na vida cotidiana que os seres sociais adquirem todas as
habilidades e descobrem suas capacidades/potencialidades imprescindíveis à vida
social.
Para Heller, homens e mulheres, nascem e são inseridos numa dada
cotidianidade26 mas, o seu amadurecimento, em qualquer esfera e em qualquer
sociedade, se dá em sua fase adulta: “[...] é adulto quem é capaz de viver por si
mesmo a sua cotidianidade”27.
É na vida cotidiana que homens e mulheres “[...] fazem sua própria história,
mas em condições previamente dadas”28. É na vida cotidiana que homens e
mulheres defrontam-se diretamente com o legado anteriormente construído e
constituído antes mesmo do seu nascimento, e que é transmitido involuntário e
incondicionalmente.
Mesmo que aspire a certos fins, estes estão implicados pelas determinações
iniciais (estrutura e sistema social, momento e contexto histórico, lugar na
estratificação social, situação de classe, modo de produção, condições objetivas e
subjetivas etc.), mas homens e mulheres não estão fadados a um destino prévio a
condições e contradições anteriormente estabelecidas – ou em decorrência destas.
Pode ou não se acomodar diante dessa ou daquela realidade. Pode ou não
modificar esta mesma realidade.
26
Ou seja, num universo de determinações pré-concebidas anteriormente ao nascimento.
HELLER, 2004, p. 18.
28
HELLER, 2004, p. 01.
27
45
[...] As coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem
para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. (KUNDERA,
2007, p. 09).
Só o ser humano tem a capacidade de modificar as circunstâncias
inicialmente dadas. Na Teoria Social de Marx constatamos esta afirmação. Através
de esforços e aspirações, o ser social tem a capacidade de criar e recriar
alternativas possíveis de serem objetivadas na vida cotidiana e, ainda, escolher
dentre elas a que mais atendam seus objetivos, suas necessidades e/ou interesses,
tal é este o fundamento da liberdade29 e, por conseguinte, da consciência ética e
política.
[...] A liberdade só veio a conseguir um lugar importante e cada vez mais
significativo no núcleo da ética na época em que assumiu essa mesma
importância na própria realidade; quando as comunidades naturais de tipo
antigo se desenvolveram, a sociedade capitalista empreendeu o caminho do
seu desenvolvimento e, com isso, esgotou-se a inserção incondicional e
natural do homem numa situação dada; por conseguinte, pelo menos de
modo abstrato e de acordo com a mera possibilidade, o homem pôde já
escolher seu lugar no mundo e, com ele seus costumes e suas normas, o
que tornou desnecessária uma ética vinculada ao código de costumes.
(HELLER, 2004, p. 07).
Deste modo, homens e mulheres aspiram a certos fins, porém, as
determinações e circunstâncias muitas vezes impedem ou modificam tais esforços e
aspirações, e o que é produzido e/ou reproduzido, pode se diferenciar dos fins
inicialmente projetados30.
Esta referência de Heller às teses marxianas, já indicam o seu envolvimento
com as matrizes teóricas da Teoria Social de Marx. Ao tomar contato com a obra
helleriana, verificamos que ela incorpora de tal maneiro os enunciados de Marx e/ou
pelo próprio Lukács que, muitas vezes, não conseguimos detectar o que é realmente
de Heller, Marx ou de Lukács, tal é o estado de sua subsunção a estes pensadores
como também a outras matrizes filosóficas, destacando-se Aristóteles, Hegel e Kant,
além dos contemporâneos de sua época.
Dado ao alto grau de sua erudição, Heller também realiza um profundo
diálogo com outros/as pensadores, literatos/as, artistas de um modo geral,
sociólogos, antropólogos, historiadores dentre outros/as. Não estamos aqui
29
Entende-se por liberdade o “campo de ações reais das decisões entre alternativas realizáveis”
(LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 10).
30
HELLER, 2004, p. 01; MARX, 2002, p. 21.
46
desprezando estes diálogos, mas sim destacando as principais fontes em que Heller
bebeu para o desenvolvimento de seu pensamento.
Obviamente temos que considerar o contexto cultural europeu, em específico,
a Hungria aristocrática e popular, como também, o arcabouço teórico-metodológico
desenvolvido por Lukács e os demais membros da “Escola de Budapeste”.
Heller também aponta que é importante considerar que suas análises
compreendem o universo europeu e o norte americano. Não desconsideramos essa
limitação
analítica,
resguardando-se,
desse
modo,
de
analogismos
ultrageneralizados. Mesmo assim, sem sombra de dúvidas, os direcionamentos
dados por Lukács, propiciaram a Heller - e aos seus demais colegas - esta explosão
intelectual.
Nos anos que se sucederam à Revolução Húngara de 1956, Lukács
empenha-se numa verdadeira batalha para fazer uma releitura dos textos do jovem
Marx, principalmente depois dos acontecimentos na Hungria e no Leste Europeu31.
Heller, nesse período, caminha para a sua maturidade teórica e intelectual para
envolver-se nessa empreitada, juntamente com os demais membros da “Escola de
Budapeste”.
Por conseguinte, os fundamentos constitutivos de suas análises, ecoavam
para fundamentos de uma determinada consciência ética e política do ser social na
e para a vida cotidiana. Deste modo, este estudo não só se definiu em sua forma
teórico-conceitual, mas também, teórico-práxis e práxis-teórico, porque traziam os
aspectos de um determinado pensamento vivido, de uma determinada práxis social
revolucionária. Assim, buscamos entender qual seria o fundamento primeiro de sua
teoria.
Segundo Heller, a vida cotidiana é o “mundo das objetivações”, conforme já
apontamos. Portanto, é fato que o ser social se coloca na e para a vida social de
forma objetiva e propositiva. Mas, num mundo repleto, em grande medida, por
apelos alienados e alienantes, homens e mulheres se inserem ou são inseridos nas
diversas esferas heterogêneas por relações sociais coisais e objetuais. Assim sendo,
é possível o ser social se colocar ativo e conscientemente nesta mesma vida social?
A princípio, nossa resposta seria negativa, mas em análises mais
aprofundadas
31
encontramos
a
sua
afirmação:
sim,
é
possível,
mas
não
Ocuparemo-nos desses acontecimentos no Capítulo III relacionado a contextualização sóciohistórico de Agnes Heller.
47
genericamente e a todo o momento, nem mesmo por todos os seres sociais. Para
tanto, o ser social necessita de condições objetivas, concretas e conscientes para
este ato: “[...] a vida pode transformar-se totalmente em diversas direções e essas
transformações hão de ser voltadas segundo nosso ponto de vista” 32.
Parecia-nos, então, que era uma questão de circunstância ou de
oportunidade, mas poderíamos cair no campo do determinismo, da sorte ou do azar,
do destino e/ou do acaso, da fatalidade ou causalidade, ou até mesmo em sua forma
mítica e mística de dom sobrenatural ou de moral.
Se o ser social é capaz de fazer sua própria história, mas em condições
previamente dadas, conforme já apontamos, então, só pode ser nas situações
concretas que se encontram estas mesmas condicionalidades.
[...] Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e
não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-las nas
vidas posteriores. [...] não existe meio de verificar qual é a decisão acertada,
pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e
sem preparação. (KUNDERA, 2007, p. 14).
As condicionalidades, e/ou potencialidades, estão na vida cotidiana, mas não
são exteriores ao ser social, mas sim, em seu interior. No cotidiano, as
condicionalidades
e/ou
capacidades/potencialidades
são
construções
sócio-
históricas. Assim como fazemos escolhas inerentes a nossa vontade, também há
circunstâncias e/ou determinações de causalidade que modificam os fins almejados,
produzindo,
desse
modo,
resultados
inesperados
ou
diferentes
daqueles
inicialmente projetados.
Mais um problema se colocava: o campo da subjetividade. Ao reduzirmos a
realidade humana a um estado ou ato de plena responsabilização individual dos
sujeitos sociais, cairíamos, sem sombra de dúvida, no campo das escolhas
particulares e morais e/ou das preferências individuais, portanto, no terreno árido e
espinhoso da moralidade e/ou moralização.
Num determinado período histórico, por exemplo, as expressões da questão
social foram relegadas ao determinismo divino ou às questões particulares e
individuais, naturalizando as mazelas humanas e condicionando a responsabilização
do indivíduo pelos problemas, atos ou situações que por ventura pudesse se expor,
responsabilizando, desconsiderando as determinações históricas e sociais, a luta de
32
HELLER, 1982b, p. 121.
48
classes, os níveis de exploração e submissão, o campo das necessidades, enfim,
aspectos constitutivos da totalidade social.
Então, onde estava a saída? Onde Heller se apoiou para desenvolver suas
análises? Como encontrar um caminho para uma filosofia da práxis social ou de uma
contribuição para uma filosofia da práxis social? Como emancipar o sujeito na e para
a vida cotidiana? Como sair do estado de alienação?
Não vamos nos ocupar de desenvolver aqui um estudo mais aprofundado
sobre as matrizes teórico-ontológicas de Marx e Lukács, haja vista que estas já se
encontram largamente estudadas por intelectuais nas mais diversas áreas do
conhecimento,
das
quais
também
realizamos
alguns
estudos
em
outras
oportunidades33. Mas, acreditamos ser necessário fazer alguns apontamentos
significativos para situar a insustentável leveza do ser social.
Há um analogismo desse capítulo com o romance de Milan Kundera (2007),
que explora a ideia sobre as incoerências das ações humanas que, na maioria das
vezes, estão baseadas nas motivações mais obscuras e verdadeiras, não é por
acaso essa analogia: “[...] todo homem tem motivações que se referem apenas a sim
mesmo, finalidades que pacificam tão-somente suas próprias necessidades”34.
No interior do romance de Kundera, encontramos certa tipologia existencial,
ou categorias consoantes do modo de ser e/ou de viver na e para a vida social. Tais
categorias podem ser entendidas como a função dos papéis sociais que Heller
(2004) descreve em seu texto Sobre os Papéis Sociais, assunto este que nos
ocuparemos mais adiante.
Kundera (2007) nos mostra que temos a necessidade de olhares, ou seja, o
ser social carece de espelhos ou procura seu reflexo nos outros. Esta situação
reflete a necessidade de construir modelos e/ou estereótipos para a vida social, ou
até mesmo de eleger uma série de regras, normas e convenções sociais para o viver
cotidiano.
Histórica e socialmente a vida humana foi se constituindo um peso, um fardo
complexo que, muitas vezes, é difícil de ser carregado. Podemos fazer aqui uma
analogia perfeita ao Atlas da mitologia grega que fora condenado por Zeus a
carregar o mundo em suas costas, ou até mesmo ao mito de Sísifo que condenado a
33
Referências aos estudos anteriores deste pesquisador: As reflexões estéticas na perspectiva
lukacsiana: uma expressão ontológica da realidade social (2006) e Introdução ao pensamento
filosófico em Marx: a ontologia do ser social (2011).
34
HELLER, 2004, p. 47.
49
continuamente escalar uma montanha com uma pedra atada às costas e quando
chegava ao topo, escorrega, tendo que recomeçar a subida novamente, na busca de
sentido para um mundo aparentemente inteligível: “[...] No mundo do eterno retorno,
cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável” (KUNDERA,
2007, p. 11).
Os complexos sociais tornam-se, em grande medida, grilhões que prendem a
vida humana a convenções, a um repetir de normas e regras consuetudinárias e de
juízo de valor incondicionais: “[...] nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e
tudo é, portanto, cinicamente permitido” (KUNDERA, 2007, p. 10).
Sabina, um dos personagens de Kundera, reflete exatamente o desapego
destas convenções sociais. Sabina não carecia de nenhum olhar, era leve, vivia
continuamente a negação das convenções, dos estereótipos, dos juízos provisórios,
das ultrageneralizações, dos valores, dos costumes, das regras e normas histórica e
socialmente arraigadas no arcabouço humano-genérico, enfim, o romance chama a
atenção para a leveza da vida ou da vida de liberdade.
Seria leviano de nossa parte considerar a liberdade em seu sentido absoluto,
mas sim, relativa – ou de liberdades. Heller (1982) aponta para o conceito de
autonomia – ter responsabilidade pelas próprias ações – e de relativa, apontando
que, as situações concretas e os diversos sistemas normativos “definem os limites
no interior dos quais podemos interpretar e realizar determinados valores” 35.
Barroco (1999) já chama a atenção para os limites e as possibilidades da
ética profissional – e poderíamos também dizer para uma determinada postura ética
e política – diante das tendências estruturais e conjunturais da sociedade capitalista.
A vulnerabilidade na qual muitas vezes o ser social se coloca ou é colocado,
individual ou no coletivo, é o elevado preço que muitas vezes se paga para manter o
status quo dos papéis sociais – ou mesmo da própria vida que aparecem meramente
formais e/ou como negação da liberdade.
No romance de Kundera (2007), o amor, por exemplo, é revelado numa
complexa arqueologia de explosões e retrações, de liberdade e de exílio, de certeza
e de dúvida, enfim, de leveza e de peso: “[...] o peso, a necessidade e o valor são
três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem
valor àquilo que pesa”. (KUNDERA, 2007, p. 45).
35
HELLER, 1982, p. 151.
50
Heller transformou os momentos mais pesados de sua vida e suas
necessidades mais prementes, numa teoria de afirmação da sua própria
individualidade, numa completa negação e afirmação perante os fatos e fenômenos
mais significativos de sua história, numa valoração incondicional, na e para a vida
social, assim como muitos/as ao longo da história da Humanidade, conhecidos/as ou
anônimos/as, percebidos/as ou ignorados/as.
Também o romance de Chico Buarque, Budapeste (2011) - além de nos
trazer elementos históricos e cotidianos da vida em Budapeste, cidade natal de
Agnes Heller -, nos mostra o cotidiano duplo e dúbio de José Costa, personagem
central do romance.
Ali, José Costa divide momentos entre sua afirmação e negação, resolução e
problematização, persona e não-persona, fama e anonimato, identidade e nãoidentidade, enfim, numa vida transloucadamente paralela entre sua afirmação e sua
negação.
Dizemos que toda negação do personagem de José Costa era por si só uma
afirmação. Ao negar-se, afirmava-se contrariamente aquilo que negava, portanto,
afirmava aquilo que não queria ser, que não acreditava e que não concordava.
A obsessão de José Costa em aprender a “[...] única língua do mundo que,
segundo as más línguas, o diabo respeita” (BUARQUE, 2011, p. 06), nos aponta, um
desafio que a vida lhe colocava à sua frente. Era necessário jogar-se “por inteiro”
para resolver obstáculos aparentemente intransponíveis.
Ao negar-se como escritor e escrever uma biografia encomendada - O
Ginógrafo -, revela sua própria personificação obstinada pelas letras, pelas histórias
que mesmo sendo dele, escoavam pelas suas mãos assim como as letras que se
apagam ao banhar do corpo das musas de sua estória. Ao se afirmar, negava-se e
ao se negar se afirma enquanto ninguém.
Heller, por sua vez, ao querer se afirmar “por inteiro”, faz de sua teoria uma
causa, de sua vida uma filosofia e de sua filosofia uma vida filosófica. O espírito
analítico de Heller consiste em suprimir os parênteses que circunscrevem o objeto
analisado e encontrar nas mediações sua diferenciação desde o ponto de vista de
sua finalidade (teleologia), até a análise do processo e das etapas sucessivas que
podem coadjuvar ou obstaculizar a relação deste fim, tendo como principal categoria
a dialética.
51
Primeiramente, busca a causa imediata, depois as raízes e suas
deliberações, descartando as não-possibilidades. Por último, encontra a(s) base(s)
para a deliberação daquilo que se apresenta de mais premente no objeto em
análise. A primeira etapa retoma a última e, assim, parte do resultado para remontar
as causas constituintes de suas objetivações concretas.
Para chegarmos a estas afirmações, buscamos apreender o universo teórico
desenvolvido por Heller, apropriando-se sucessivamente dos diferentes momentos
de sua trajetória, da gênese de seu pensamento, da estrutura e desenvolvimento de
suas concepções de humano e de mundo. A síntese dessas aproximações permitiu
identificar, conhecer e trabalhar o objeto de nossa análise: a consciência ética e
política do ser social na vertente helleriana.
Porém, não se esgotaram aqui todas as aproximações encontradas.
Buscamos apresentar parte do real enquanto síntese destas aproximações. Todo
pensamento, toda ideia, todo ideal e toda filosofia não são adquiridos de uma só
vez,
mas
nascem,
frutificam-se
e
compõem
na
somatória
de
inúmeras
determinações que fazem parte do sujeito e, por que não dizer, da vida do sujeito.
O pensamento de Heller é a síntese de múltiplas determinações, de modo a
atribuir significado e intencionalidade condicionante à suas objetivações na e para a
vida social. Para que possamos visualizar as complexas estruturas e conjunturas da
sociedade capitalista, torna-se necessário buscar os elementos constituintes e
constitutivos dessa realidade, bem como, as formas de alienação a que estamos
submetidos/as.
Portanto, buscaremos no decurso desse capítulo os elementos constitutivos
desta investigação para visualizarmos a insustentável leveza do ser social
personificada nos escritos de Agnes Heller.
1.2.
Elementos introdutórios: aspectos conceituais
Entendemos o ser humano enquanto ser social, um ser real que se relaciona
histórica e socialmente com o mundo em que se insere ou está inserido. Esta
inserção se dá, num processo de construção e autoconstrução, dinâmico e dialético,
e que possui uma dupla dimensão: ontológica, a ser concebida como tendo uma
natureza comum e inerente a todos e a cada um dos seres, portanto, genérica; e
reflexiva que é elaborada pela mente humana. (BARROCO, 2005).
52
Portanto, é um ser real, concreto, histórico e dialeticamente constituído na
vida social, em contraposição a qualquer proposta idealista. Para Marx, a natureza
se transmuta em natureza humana, não apenas no sentido de reproduzir a
existência genérica - particular e singular - do humano de forma isolada, mas passa
a se socializar particularmente através das relações sociais, num processo intrínseco
e extrínseco de seu modo de ser socialmente válido. Em outras palavras, além de
estabelecer relações sociais objetivas, também estabelece relações subjetivas
consigo mesmo.
O liame que separa o ser natural - homem/natureza e natureza/homem - e o
ser social, ou seja, em seu processo de socialização, é muito tênue. Este processo
se deu numa determinada época da história da Humanidade36. A partir de então,
todos os homens e mulheres serão frutos das relações sociais, ou seja, do humanogenérico37.
Baseado nas análises de Heller, podemos ainda afirmar que o ser social
constitui-se enquanto ser natural, ser social e ser individual, assunto este que será
desenvolvido no decurso dessa dissertação.
Marx e Engels se detiveram nessas análises ao apresentaram a ontologia do
ser social no obra A Ideologia Alemã (2007), bem como Engels em seu texto Sobre o
papel do trabalho na transformação do macaco em homem (1876), como também
compreenderam os últimos estudos de Lukács e os membros da “Escola de
Budapeste”.
György Márkus38 trouxe à luz uma verdadeira síntese didática sobre a
ontologia do ser social intitulado Marxizmus és “antropología” traduzido do alemão
para a língua espanhola por Manuel Sacristán e editado pela Grijalbo, em 1974, sob
o título Marxismo y “Antropología”, onde estudou o conceito menschliches Wesen –
ser humano, essência humana -, contidos nos Manuscritos Econômico-filosóficos de
1844 de Marx. Constitui uma verdadeira construção antropologia-ontológica do ser
36
Para maiores detalhes, sugerimos a leitura do texto de F. Engels O papel do trabalho na
transformação do macaco em homem. (MARX/ENGELS. Obras escolhidas. V. 2. São Paulo: AlfaOmega, s/d, p. 267-280.
37
Processo acumulativo no desenvolvimento histórico-social do/a homem/mulher. É o homem/mulher
“um ser genérico [...] produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do
desenvolvimento humano” (HELLER, 2004, p. 21).
38
György Márkus nasceu em Budapeste em 1934, estudou na Universidade Lomonosov de Moscou,
retornando à Budapeste por volta do ano de 1957, onde foi lecionar na Faculdade de Filosofia da
Universidade Científica de Budapeste. Márkus foi um dos integrantes da “Escola de Budapeste”.
53
social, estudando o ser humano enquanto ser natural universal, o ser humano como
ser natural, social e consciente, e o ser humano e a história.
Não poderíamos deixar de apontar para a categoria ontológica mais
significativa na obra marxiana: o trabalho39. Para Marx, o trabalho é a categoria
fundante do ser social e que assume o caráter de protoforma do seu processo de
hominização e humanização.
É pelo trabalho que o ser social se relaciona com a natureza e os outros seres
de igual natureza – homens e mulheres - e, portanto, se tornam enquanto tal. O
trabalho é a primeira ação objetiva da atividade humana. É por ele que o ser social
transforma a natureza e, ao mesmo tempo, se transforma.
Para Marx (2006, p. 211), o trabalho é “[...] um processo de que participam o
homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação,
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza”. É pelo
trabalho que o ser social se objetiva no mundo através de suas prévias ideações 40 teleologia, e de mediações41’42.
É sob essas premissas que Marx e Engels dão o passo decisivo para
compreensão o ser social em seu processo de hominização e humanização, bem
como a sua socialização.
Para sobreviver, o ser social transforma a natureza pelo trabalho, criando as
condições para a sua sobrevivência e dessas, cria os complexos categoriais e
sociais que constituíram a Humanidade. Diferentemente dos animais que agem por
instinto de sobrevivência, o ser social age por teleologia e mediações e objetiva seus
resultado no mundo real e concreto através do trabalho.
39
Para maior aprofundamento, consultar Marx (2006, p. 207-219) e Lukács (2004).
Representações que surgem na mente humana enquanto reflexo do real captadas como
representações da consciência. (PONTES, 2002, p. 59).
41
Movimento intelectual processual que “ascende do abstrato (real caótico) representação do real
caótica do real ao concreto (real pensado), combinando representações ideais como observações
empíricas”. É o “movimento que a razão opera para apreender reflexivamente o movimento das
categorias histórico-sociais, desenhando-as de sua forma imediata de aparecer no pensamento,
como fatos isolados”. (PONTES, 1999, p. 40). “[...] o concreto é concreto porque é a síntese de
múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no
pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante
seja o ponto de partida efeito e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da
representação. Na primeira via, a representação plena foi volatizada em uma determinação abstrata;
na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por resultado do
pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que
sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de
ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de
reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio
concreto”. (MARX, 2011, p. 54-55).
42
Para maiores esclarecimentos sobre a categoria mediação, consultar Pontes (2002).
40
54
Esta imanência resulta na capacidade de formular possibilidades, finalidades
e alternativas de escolhas, dentre as condições possíveis, construindo mediações
para suas objetivações. Em outras palavras, é dentre as possibilidades dadas, que
se busca os meios e as formas para sair do estado primitivo (ou natural), para o
estado humano-social. Portanto, o ser social possui em-si a capacidade ontocriativa43, ou seja, o poder criativo e autocriativo de se objetivar.
Nos dizeres de Marx (2006, p. 64-65),
[...] o trabalho, como criador de valor-de-uso, como trabalho útil, é
indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de
sociedade -, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio
material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana.
Para Lukács (2004, p. 40),
[...] o trabalho se converte, não somente em um fato no qual se expressa à
nova peculiaridade do ser social, mas também – precisamente, de maneira
ontológica -, em modelo da forma de ser inteiramente nova.
O trabalho é, portanto, a manifestação mais original e premente de liberdade,
da capacidade humana de criar, histórica e socialmente, a sua própria forma de
existência. É pelo trabalho que foi possível criar (e/ou estabelecer) os primeiros
complexos de sociabilidade que, ao se multiplicaram, tornaram-se cada vez mais
complexos.
Contudo, estes complexos deram origem aos agrupamentos sociais, criando
novas formas de socialização, novos modos de vidas, culturas, estruturas sociais,
estratificação social, elementos constituintes para a vida em sociedade, e com eles a
sociedade, a linguagem, a escrita e os demais complexos sociais 44, até chegarmos
ao que denominamos por civilização altamente desenvolvida.
43
Este conceito é utilizado por Karel Kosik (2010) em sua obra Dialética do concreto. Entendida como
a capacidade ontológica do ser social de criar a realidade (humano-social) e que, portanto,
compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade), processo este de
luta constante para sua auto-emancipação e conquista da liberdade. (KOSIK, 2010, p. 222).
44
Entendemos por complexos sociais o “conjunto de relações sociais que se distingue das outras
relações pela função social que exercem no processo reprodutivo”. (LESSA, 1999, p. 25). Quando a
vida do ser social, ou as relações sociais, ou a própria sociedade se complexifica, abre-se um campo
novo de mediações, ou seja de novas possibilidade para as projeções teleológicas.
55
A caça e a pesca deram lugar à agricultura e a pecuária; a manufatura passou
para a acumulação primitiva e para as mais complexas formas de industrialização e
acumulação; a manipulação dos metais preciosos constitui-se o valor monetário - o
dinheiro; o trabalho individual e coletivo deu lugar à divisão social do trabalho,
determinando o modo e as condições de vida dos indivíduos que viviam em
sociedade; as construções rudimentares deram lugar as cidades, Estados e Nações;
a navegação primária e de subsistência organizaram-se em grandes navegações
exploratórias; a filosofia, a ciência e a tecnologia propiciaram meios para o status, a
dominação, a eterna controvérsia entre dominantes e dominados, até que as
condições sócio-históricas possibilitaram o surgimento da sociedade burguesa e o
modo de produção capitalista, abrindo as portas para a produção e acumulação de
riquezas, ou seja, o desenvolvimento universal das forças produtivas e a subversão
incessante da dominação da lógica do capital sobre a vida humana e dos interesses
privados e individuais.
[...] O marxismo considera todas as épocas históricas como complexos
particulares e totais em si próprios, apesar de cada uma se desenvolver
orgânica e dialeticamente a partir da época anterior; por essa razão rejeita
como estéril, tanto em teoria como na prática, toda a procura de
semelhanças que redunde numa procura de normas, e rejeita
particularmente o precedente como motivo para as decisões e ações sociais
concretas dos homens na história. (HELLER, 1982a, p. 77)45.
Articulado a este desenvolvimento histórico-social ao longo dos séculos, veio
também à propriedade privada, a dominação, a estratificação, a escravidão, a
possessão e subordinação, o poder, o status, o dinheiro, enfim aquilo que
conhecemos como luta de classe, apropriação, exploração, questão social,
alienação/reificação46, ou seja, as formas mais cruéis e concomitantes da dominação
dos “homens sobre os homens”.
[...] Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento
humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos
humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente
do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a mesma profundidade
em todas as camadas sociais; assim, por exemplo, fechou-se quase
completamente nas épocas de florescimento da polis ática e do
45
Grifos da autora.
Reificação está sendo utilizado aqui enquanto “submissão manipulada aos grandes mecanismos
sociais” (HELLER, 2004, p. 7).
46
56
Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se
desmesuradamente. (HELLER, 2004, p. 38).
Nas sociedades pré-capitalistas, ou pré-industriais, o trabalho estava
intrinsecamente vinculado à vida social e a força-de-trabalho produzia a sua própria
riqueza. Nas sociedades industriais, ou capitalistas, o trabalho perdeu o sentido
humanizador e a força-de-trabalho passou a ser mera mercadoria, parte passível de
compra e venda. Passa paradoxalmente a ser mero produto e produtora de capital,
de lucro e de “mais-valia”. Estabelece-se, desta forma, a regência do capital sobre a
vida social.
Quando a força-de-trabalho assume a característica de produtora de valor-deuso e de valor-de-troca no capitalismo, ou como diria Marx (2006),
[...] as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem de acordo
como que realmente são, como relações materiais entre pessoas e relações
sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos
em seus trabalhos. [...] Os homens não estabelecem relações entre os
produtos do seu trabalho como valor por considerá-los simples aparência
material de trabalho humano de igual natureza. Ao igualar, na permuta,
como valores, seus diferentes produtos, igualam seus trabalhos diferentes,
de acordo com sua qualidade comum de trabalho humano. [...] É porém
essa forma acabada do mundo da mercadoria, a forma dinheiro, que
realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em
consequência, as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés
de pô-las em evidência (MARX, 2006, p.95-97).
Deste modo, o caráter social do trabalho assume a fantasmagórica forma de
uma relação entre coisas. Sobre a lógica do capital, as relações sociais passam a
serem relações de produção de valor-de-troca, ou seja, de mercadorias, para cada
vez mais produzir e acumular mais capital – plus capital.
Ao sofrer esta profunda modificação, esse fetiche47, o ser social coagula
factualmente as objetivações sociais, coisificando-as, diminuindo, ou até mesmo,
anulando as suas particularidades históricas e sociais, numa generalização alienada
e alienante: reificada48.
47
Heller se refere ao fetichismo como relações de mercado. Para Netto (1981, p. 42) o fetichismo se
dá quando as “[...] relações sociais entre pessoas convertem-se em relações sociais entre coisas”.
48
O fenômeno da reificação (em latim, res = coisa; reificação, pois, é sinônimo de coisificação) é
peculiar às sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma típica da
alienação (mas não a única) engendrada no modo de produção capitalista. O fetiche daquela
mercadoria especial que é o dinheiro, nessas sociedades, é talvez a expressão mais flagrante de como
as relações sociais são deslocadas pelo seu poder ilimitado. (NETTO; BRAZ, 2007, p. 93).
57
O antagonismo entre o progresso e a exploração, entre a estratificação
classista – burguesia vesus proletariado - e a desapropriação do produto produzido
e o produto adquirido, entre a riqueza e a miserabilidade, enfim, quando há a
desumanização do próprio ser social, ascende um clima de insatisfação e
insurreição generalizada, gerando a organização do proletariado numa classe social
vigorosa, frente às decisivas subordinações opressivas e de exploração das
tendências burguesas e capitalistas progressistas do século XIX: “[...] A insatisfação
em face do modo de vida das gerações anteriores pode dar-nos a consciência da
necessidade da revolução”49.
É nessa perspectiva que Marx e Engels buscaram formular sua Teoria Social,
em outras palavras, uma teoria que aludisse para uma práxis social revolucionária,
que buscasse alterar radicalmente o sistema de opressão e exploração através da
mobilização e organização da classe trabalhadora e dos eflúvios dos movimentos
socialistas, comunistas e anarquistas, que se organizavam a época.
Romper com as barreiras do fatalismo e da naturalização da miséria, rumo à
consumação daquilo que se esperava ser a gênese de um sistema verdadeiramente
revolucionário - o socialismo/comunismo - era, então, a condição sine qua non para
a liberdade.
Do final de século XIX e início do século XX o socialismo/comunismo encontra
terreno fértil para levantar seus alicerces. Surge em vários países pelo mundo a fora
a consolidação daquilo que parecia ser a vitória contra a situação de penúria em que
encontrava uma grande parte da Humanidade.
É no Leste Europeu, especificamente na Rússia czarista que, no despontar
dos primeiros anos do século XX, o comunismo encontra solo fértil e se firma
enquanto sistema opositor ao czarismo e ao capitalismo, dividindo o mundo em dois
sistemas distintos e antagônicos.
Já no final dos anos de 1920, Heller foi inserida nesse mundo dividido entre o
capitalismo e o socialismo/comunismo. A Hungria de sua época era uma mistura
efervescente de alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, liberdades e opressão, uma
verdadeira pandemia pluralista - social, política e cultural -, típicas daquela época.
Em Budapeste, cidade banhada e cortada pelas “ondas do Danúbio”, Heller
teve suas primeiras experiências traumáticas. Buda e Pest, não foram somente
banhadas tão somente pelas águas do Danúbio, que tanto inspiraram compositores,
49
HELLER, 1982, p. 156.
58
poetas e literatos a um romantismo amoroso e patriótico, mas também por um mar
de sangue e mortes.
Foi nesse solo que Heller encontrou terreno fértil para firmar suas raízes.
Budapeste, apesar das efervescências políticas, sociais e culturais, apesar das
agruras daquele período, era herdeira de um vasto cabedal cultural aristocrático e
popular, principalmente, no que diz respeito a um afã de liberdade.
Vitimizada em sua juventude pelos horrores nazi-fascistas de Hitler, vê cair a
sua terra querida no totalitarismo-fascista de Stalin. Era preciso uma força
descomunal para não desfalecer diante de tamanhas atrocidades, como ela mesma
descreve.
Buscando ressurgir das cinzas cotidianamente como uma Fênix ao alçar voo
na busca pela sua autoafirmação, Heller se vê salva dos horrores do holocausto e
sente que precisa pagar “aquela divida”: “[...] eu sentia que tinha uma dívida a pagar
como uma sobrevivente”50, diz Heller em entrevista concedida a Csaba Polony51.
Precisava fazer alguma coisa pela Humanidade que não conseguiu sobreviver
como ela. Era preciso fazer alguma coisa grande, algo que realmente significasse
este salvo-conduto.
A ciência era a que primeiro lhe inspira, porém, seu encontro com Georgy
Lukács trouxe novos rumos. Na busca por uma “causa”, encontra na filosofia a sua
autoafirmação existencial, mas deveria escrever uma filosofia que impingisse um
dever-ser: “[...] escrevendo filosofia moral e filosofia da história para mim, então se
tornou uma maneira de pagar a minha dívida como uma sobrevivente para as
pessoas que não puderam sobreviver”52.
Nos anos que se seguem - os de 1950 até o final de 1970 -, Heller formula
sua filosofia inspirada e conduzida por seu mestre. Extrai da vida cotidiana - e até
mesmo de sua própria vida - os objetos para suas análises. Além dos objetos,
também extrai os elementos constitutivos de sua teoria. Juntamente com Lukács e a
“Escola de Budapeste”, buscou subsídios teórico-conceituais para estudar aspectos
distintos da ontologia do ser social.
50
POLONY, 1997.
Entrevista concedida a Csaba Polony, em 24 de março de 1997, por ocasião do Osis Liberary Club
and Bookstore, em Budapeste, Hungria. A entrevista é uma transcrição gravada em inglês. Disponível
em http://www.leftcurve.org/lc22webpages/heller.html, acesso em 12/05/2011.
52
POLONY, 1997.
51
59
No azáfama do projeto lukacsiano de construir uma Ética marxista, era
preciso dissecar o ser social, realizar uma verdadeira anatomia filosófica, sociológica
e antropológica da ontologia do ser social para construir uma ética de inspiração
marxista.
Firma suas bases na moralidade, na ética, na historiografia, na vida cotidiana,
no valor, nas necessidades e, sobretudo, alinhavadas pela democracia e pela
liberdade, temas que refletiam sentimentos tão profundos de sua genialidade, não
para externar sua inteligência – fruto de sua empiria vivida -, mas também para
externar a sua criatividade.
Aqui não nos cabe traçar uma biografia helleriana, principalmente que este
não é o nosso objetivo neste capítulo, mas sim, realizar uma análise do pensamento
e da práxis ética e política nos escritos de Heller, especificamente, em sua fase
marxista, ou seja, delinear o significado de sua contribuição para a formação e
construção da consciência ética e política do ser social, sobretudo no que possa
contribuir para a formação teórico-metodológica e ético-política do/a assistente
social, bem como, dos demais profissionais das diversas áreas do saber.
Porém, ao mesmo tempo em que desenvolvemos esta proposta, é importante
situá-la na história e perceber, através do diálogo estabelecido com os seus textos, a
sua posição como individualidade e como figura representativa de um grupo de
intelectuais que se preocupavam com questões relevantes da sua época.
Sua preocupação em afirmar-se enquanto intelectual preocupada com os
assuntos cotidianos e de sua autoafirmação, trouxeram ao longo de sua vida uma
filosofia da práxis e uma práxis filosófica.
A análise de um determinado modo de ser, pensar e agir na e para a vida
social, principalmente num período onde a forças produtivas, o capitalismo, a
violência, o despotismo, o totalitarismo, as desumanidades, o imperialismo e a
barbárie, enfim, para tudo que rege o que há de humano e, porque não dizer, da
vida terrena, não é uma tarefa fácil.
No atual estágio avançado das forças produtivas e do capitalismo, quando a
lógica do capital envolve todos os campos da vida humana, onde encontrar ou como
passar de um estado alienado/alienante para um estado consciente/emancipatório,
em outras palavras, elevar-se da condição de cotidianidade para uma situação de
sujeito social consciente e livre e que lute pela emancipação humana?
60
Heller afirma que é necessário ler as contradições sem convertê-las em um
conceito naturalista totalmente objetivo. As necessidades do ser social se
apresentam em sua particularidade, como por exemplo, as necessidades primárias
de tomar banho são diferentes em cada momento da vida.
Esta necessidade se diferencia na fase infantil e na fase senil, como também,
são totalmente diferentes nas fases produtivas, na vida adulta saudável. Em cada
momento da vida esta mesma necessidade passa a carecer de novas necessidades.
Deste modo, tendo em vista que o primeiro ato humano é a própria
sobrevivência, não há como fazer história e/ou tomar consciência do seu significado
enquanto sujeito social se sua própria existência se apresenta estranha à sua
consciência e se suas necessidades mais elementares ainda não foram satisfeitas.
Se a sua existência no auge do desenvolvimento social se apresenta
coisificada e, sendo ela social, portanto, inseparável da vivência humana do outro
que, enquanto tal, se apresenta, da mesma forma, enquanto coisa - estranha de si
mesma -, torna-se difícil para o ser social se reconhecer enquanto ente natural e
social, e, ainda, estabelecer relações conscientes sociais e consigo mesmo. Assim,
se o ser social e as relações que estabelece se apresentam objetuais e coisais,
como pode este mesmo ser humano se posicionar ética e politicamente na vida
cotidiana?
Não há dúvidas para os marxistas que isso seria possível somente num outro
modo de vida, numa outra forma de sociabilidade. Obviamente não estamos aqui
buscando reduzir ou simplificar, nem tão pouco eliminamos as formas de revolução:
“[...] Marx imaginou o socialismo como uma sociedade racional”53.
Para Heller (1982a), espera-se de um marxista uma harmonia entre sua visão
de mundo e a sua prática: “[...] todas as filosofias exprimem simultaneamente uma
visão de mundo e uma atitude ativa relativamente a ele”54.
Estes apontamentos se colocam para aqueles/as que objetivamente buscam
transformar uma determinada teoria em práxis social revolucionária, mesmo sendo
constante e peremptoriamente compelidos/as pelos apelos do capital, do fatalismo,
do naturalismo e do relativismo, e não encontram saída para o enfrentamento das
barreiras que se colocam ou são colocadas à sua frente.
53
54
HELLER, 1982b, p. 142.
HELLER, 1982a, p. 85.
61
1.3.
“Ser ou não ser, eis a questão”
Desde o princípio, deparamo-nos com uma questão que nos impulsionou a
nos embrenharmos nessa selva intelectual, na ânsia em descobrir a essência do
pensamento helleriano além da cotidianidade e da moralidade: como assumir a
consciência ética e política num mundo regido pela lógica do capital e por
necessidades?
Para analisarmos o pensamento helleriano, foi preciso recolher todos os
elementos que, de certa forma, foram produzidos no decurso de sua vida,
principalmente aqueles que, de alguma forma, pudessem contribuir para a
compreensão da tomada de consciência ética e política do ser social.
Os pensamentos, ideias ou ideais de vida do sujeito social não são adquiridos
de uma só vez. Eles nascem, frutificam e se objetivam da soma de inúmeras
experiências, contatos e relações sociais ao longo da vida. Encontramos e
recebemos influências sociais, culturais, políticas e econômicas, como também,
substratos pessoais conjugados às realidades específicas de cada momento vivido.
Além das relações externas e objetivas, há também aquelas inerentes a
estrutura
pessoal,
individual
e
subjetiva:
o
campo
das
emoções
e
da
intelectualidade, da paixão e da razão, da ação-reação-ação, do confronto com as
diversas realidades vivenciadas e, com elas, a própria mudança de atitude, de
interesses e de percepção das coisas e situações que nos rodeiam.
A proposta helleriana, baseada em Marx e Lukács, trouxe em seu bojo o
conhecimento da emancipação de-si-mesmo ou, se preferirmos, da condição de
individualidade do sujeito social.
Nessa perspectiva, o pensamento de Agnes Heller, assim como outros
marxistas contemporâneos, também influenciou o Serviço Social no final da década
de 1970 e nos idos dos anos de 1980 e de 1990, no sentido de buscar sua própria
emancipação enquanto profissão liberal: sua individualidade enquanto profissão.
Emancipação
essa
que
Martinelli
(2003)
traduziu
como
identidade
profissional. A necessidade de buscar uma consciência crítica própria, num esforço
para romper com as bases conservadoras da profissão que servia aos interesses da
lógica burguesa, do capital e do Estado conservador, conforme as conjunturas da
época e do contexto histórico.
62
Subordinado a esses interesses da classe dominante, a prática profissional do
Serviço Social brasileiro se resumia num funcionalismo estático e conservador. A
tomada de consciência crítica provocou a dinâmica para “[...] se libertar das formas
reificadas
de
prática
que
vinham
marcando
sua
caminhada
profissional”
(MARTINELLLI, 2003, p. 141).
[...] A consciência crítica dos agentes permitia-lhes, nesse momento,
apreender tanto a identidade do Serviço Social, como sua prática no mundo
capitalista, como contraditórias e complexas. A identidade atribuída,
esvaziada da contradição, do movimento, transformava-se em algo inerente,
sem nenhuma vitalidade; as práticas burguesas, atravessadas por
interesses de classe e produzidas a partir de interpretações técnicocientíficas, a distância dos primórdios usuários, não respondiam nem às
suas demandas nem aos desafios colocados pela realidade (MARTINELLI,
55
2003, p. 140) .
Somente a partir do momento em que se expandiu a base crítica no interior
da profissão, numa tentativa de se trabalhar com “[...] objetivos ligados à ideia de
luta de classes e a superação das contradições da sociedade capitalista, visando
superá-la”. (ESTEVÃO, 1989, p.83), é que se iniciou o processo de ruptura do
conservadorismo do Serviço Social brasileiro.
O pensamento vigente nesta época foi o de se intervir na vida cotidiana,
transformando-a através da luta política subsumida pela esfera das relações
capital/trabalho. Porém, perdia-se de vista o próprio cotidiano e as implicações da
sociedade do capital. O trabalho do/da assistente social se confundiu com a
militância política, ficando preso a um ethos classista, não repensando, assim, o seu
papel enquanto profissional inscrito/a na divisão sócio-técnica do trabalho (idem,
ibidem).
O profissional nesta concepção corre o risco de alienar-se no e do seu próprio
trabalho, como também alienar igualmente sua própria luta. O pensamento
helleriano traz importantes contribuições para entender essa necessidade de uma
consciência crítica para o Serviço Social brasileiro, de sua luta pela emancipação
dos laços conservadores e da afirmação de sua identidade profissional.
[...] Já não requer a superação da particularidade e já não se constitui
numa atividade social que surge de uma visão totalmente nova da
sociedade em seu conjunto. O fim é a satisfação das motivações
particulares no seio de uma determinada ordem social. Por essa razão, os
55
Grifos da autora.
63
movimentos econômicos têm podido ser rapidamente integrados na ordem
econômica capitalista. Quanto aos ideais, sua propaganda ideológica, não
se distancia muito da ideologia oficial do Estado de bem-estar social.
(HELLER, 1970, p 180).
A lógica capitalista tem levado os indivíduos que vivem em sociedade a
estarem cada vez mais alienados e a reproduzirem relações sociais alienantes:
[...] o homem passa cada vez mais a desdobrar relações sociais de
exploração, a vida social é cada vez mais baseada na violência que
possibilita que uma classe viva do trabalho (LESSA, 1999, p. 28).
A alienação nada mais é do que a desumanização social produzida pelo
próprio ser social (idem, ibidem).
Ao analisar a contribuição do pensamento de Agnes Heller, enquanto teoria
que carrega em si uma visão de mundo, uma antropologia-ontológica do ser social
na direção de uma determinada consciência ética e política - portanto, de uma
determinada filosofia da práxis - tivemos o intuito de consolidar valores favoráveis à
coletividade e à garantia de atitudes capazes de concretizar as potencialidades
eficazes nas ações politicamente éticas para a vida social.
[...] Basta pensar nos valores morais mais arcaicos e, ao mesmo tempo,
mais persistentes, como a honradez, a justiça, a valentia, para ter certeza
de que tais valores foram sempre – como normas, usos ou ideais – meios
de elevação da particularidade ao genericamente humano. [...] Temos que
acrescentar ainda que a arte cumpre também, enquanto autoconsciência e
memória que é da historia humana. [...] Não é casual que esta catarse, seja
propriamente uma categoria ética (HELLER, 2004, p. 06).
Nessa direção, a arte, para Heller, é uma das formas de suspensão das
relações alienadas/alienantes, uma vez que busca em si uma autoconsciência, um
autodesenvolvimento (liberdade) e uma autorrealização (atividade emancipatória).
Esta é uma coexistência harmoniosa que comprovamos através das experiências
empíricas no campo das artes por esse pesquisador.
A arte - enquanto verdadeira produção artística - é a materialização no plano
real do momento de catarse, ou seja, de auto-exteriorização do que há de mais
premente na complexidade do universo íntimo do ser social, onde todas as paixões,
desejos, formas, cores, texturas, sons, expressões de um modo geral, afloram “por
inteiro” e se materializam no momento da criação, onde a subjetividade se objetiva
não em sua forma de mercadoria, mas em objetivações concretas.
64
[...] Mas existe uma inter-relação entre o autoconhecimento e a práxis: só
podem atuar adequadamente aqueles que possuem um conhecimento de si
próprios, e este só pode ser ganho através da práxis, demonstrando a
integridade própria (HELLER, 1982a, p. 95-96)56.
Esta materialização acontece ao pintar um quadro, ao moldar uma escultura,
ao compor uma música, na dança, na poesia, dentre outras manifestações artísticas.
Esta catarse foi bem traduzida pela mitologia em Pigmalião e Galatéia57. A
expressão artística é o ápice da explosão de liberdade e criatividade que o humano
pode experimentar e externar. Nela, vida e obra se misturam.
Além dessa forma de elevação da cotidianidade, Heller também aponta para
outra forma de objetivação dessa suspensão – o conhecimento:
[...] as formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem
objetivações duradouras são a arte e a ciência. [...] o reflexo artístico e o
reflexo cientifico rompem com a tendência espontânea do pensamento
cotidiana, tendência orientada ao Eu individual-particular. a arte realiza tal
processo porque, graças à sua essência, é autoconsciência e memória da
humanidade; a ciência da sociedade, na medida em que desantropocentriza
(ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem singular); a ciência da
natureza, graças a seu caráter desantropomorfizador. Nem mesmo a ciência
56
Grifos da autora.
A mitologia grega nos conta que Pigmalião via tantos defeitos nas mulheres que acabou por
abominá-las, e resolveu viver solteiro. Era escultor e executou, com maravilhosa arte, uma estátua de
marfim, tão bela que nenhuma mulher de verdade com ela poderia comparar-se. Era, na verdade, de
uma perfeita semelhança com a jovem que estivesse viva e somente o recato impedisse de mover-se.
A arte, por sua própria perfeição, ocultava-se, e a obra parecia produzida pela própria natureza.
Pigmalião admirou sua obra e acabou apaixonando-se pela criação artificial. Muitas vezes, apalpavaa, como para se assegurar se era viva ou não, e não podia mesmo acreditar que se tratasse apenas
de marfim. Acariciava-a e dava-lhe presentes como jovens gostam: conchas brilhantes e pedras
polidas, pássaros e flores de diversas espécies, contas de âmbar. Colocou o vestido sobre seu corpo,
anéis em seus dedos e um colar no pescoço, brincos nas orelhas e cordões de pérolas no peito.
Vestiu-a e ela não pareceu menos encantadora do que nua. Deitou-a num leito recoberto de panos
coloridos com púrpura, chamou-a de esposa e colocou-lhe a cabeça num travesseiro de plumas
macias, como se ela pudesse sentir a maciez. Estava próximo o festival de Vênus, celebrado com
grande pompa em Chipre. Vítimas eram oferecidas, os altares fumegavam e o cheiro de incenso
enchia o ar. Depois de ter executado sua parte na solenidade, Pigmalião de pé, diante do altar, disse,
timidamente: - Deuses, vós que tudo podeis, dai-me por esposa... – não se atreveu a dizer “minha
virgem de marfim”, mas acrescentou:... Alguém semelhante à minha virgem de marfim. Vênus, que
estava presente ao festival, ouviu-o e compreendeu o pensamento que ele não se atrevera a
formular, e, como augúrio de sua benevolência, fez a chama do altar erguer-se três vezes no ar. Ao
voltar para casa, Pigmalião foi ver a estátua e, debruçando-se sobre o leito, beijou-a na boca. Os
lábios pareceram-lhe quentes. Beijou-a de novo e abraçou-a; o marfim mostrava-se macio sob seus
dedos, como a cera do Himeto. Atônito e alegre, embora duvidando, e receando que tivesse se
enganado, de novo, muitas vezes, com o ardor de um amante, toca o objeto de suas esperanças.
Estava realmente vivo! O corpo, quando apertado, cedia aos dedos, para recuperar, depois, a
elasticidade. Afinal, o cultuador de Vênus encontrou palavras para agradecer à deusa e apertou os
lábios de encontro aos lábios tão reais como os seus próprios. A virgem sentiu os beijos e corou, e
abrindo seus tímidos olhos à luz fixou-os, no mesmo momento, em seu amante. Vênus abençoou as
núpcias que propiciara, e dessa união nasceu Pafos, de quem a cidade, consagrada a Vênus,
recebeu o nome. (BULFINCH, 2001, p. 78-79).
57
65
e arte estão separadas da vida do pensamento cotidianos por limites
58
rígidos, como podemos ver em vários aspectos. (HELLER, 2004, p. 26) .
Isso é inegável, e a construção dessa dissertação é a prova mais viva desta
justaposição entre vida cotidiana, ciência e arte. No momento em questão,
experimentamos estes três elementos constitutivos num mesmo espaço de tempo: a
vida cotidiana conturbada, com todos os seus conflitos, contradições, gostos,
pendores e aflições, nos impingindo as mais puras turbulências, comuns a todos os
estudantes/pesquisadores que se propõem a dar continuidade à formação
intelectual/profissional, onde até mesmo o mais sublime momento – a construção do
conhecimento – é invadido pelos apelos do capital e pela balburdia cotidiana ou ate
mesmo por pequenos detalhes que retiram a nossa atenção e concentração; a
própria dissertação que é um mergulho no mundo das formas, cores, teorias,
experiências, enfim, do conhecimento produzido, reproduzido e constitutivo do
humano-genérico; e a arte, momentos em que, entre um intervalo e outro, entre uma
abstração e outra, recheamos e dividimos com o piano.
Lembrando Kundera (2007, p. 66),
[...] nossa vida cotidiana é bombardeada por acasos, mais exatamente por
encontros fortuitos entre pessoas e os acontecimentos, o que chamamos de
coincidência. Existe coincidência quando dois acontecimentos inesperados
se dão ao mesmo tempo, quando eles se encontram.
Porém, “[...] o acaso tem seus sortilégios, a necessidade não” (idem, p. 63). O
mundo das necessidades carece de muito mais do que sorte, coincidências,
encontros, providência, fé, crenças, dentre outras prerrogativas, carece de garra,
determinação,
posicionamento,
consciência,
lucidez,
condições
financeiras,
intelectuais e sociais - de condições objetivas - e, principalmente, vontade e atitude.
Com certeza as relações e situações sócio-humanas, e mesmo as relações e
situações econômicas, sociais e culturais que estão mediatizadas pelas coisas e que
perpassam pelo nosso viver, alteram significativamente o rumo de nossa vida e de
nossas aspirações.
Quando nos propomos ao conhecimento novo, a derrubar barreiras, a buscar
objetivos ou até mesmo, ideais, nos afirmamos enquanto sujeitos sociais, sem juízos
58
Grifos da autora.
66
provisórios ou ultrageneralizações, com certeza abrimos um campo novo de
possibilidades.
As vidas humanas, nos dizeres de Kundera (2007, p. 67), são compostas
como uma partitura musical. Homens e mulheres são guiados pelo senso de beleza,
transformam os acontecimentos fortuitos, casuais, num motivo que mais tarde vai se
inscrever na partitura de sua vida: “[...] voltará a esse motivo, repetindo-o,
modificando-o, descrevendo-o como faz o compositor com o tema de sua sonata”
(idem, ibidem).
Mas não vivemos sós. Nossa partitura musical é somada e se soma a outras
partituras musicais, a outros sujeitos sociais, a outras situações sociais, formando,
assim, um grande concerto musical.
Esta analogia nos parece assaz interessante quando visualizamos um
concerto sinfônico: observa-se que cada instrumento da orquestra tem sua
singularidade e particularidade (formato, timbre, material, função, extensão etc.);
cada nota em cada instrumento compõe um pequeno universo; cada frase musical
constitui o todo e a parte ao mesmo tempo, porém, não é parte do todo, nem o todo
em si.
Ao contrário, são complexos que se juntam num complexo ainda maior; cada
musicista traz suas características singulares e particulares, a expressão de sua
historicidade; o resultado só é percebido em sua totalidade onde cada parte é a
expressão do todo e o todo é a síntese das partes. Ali genialidade, originalidade,
criatividade, personalidade, enfim, todos os componentes substanciais se externizam
e eternizam em sua apoteose: a catarse.
É o momento da mais pura desantropomorfização consciente: a construção
da arte e do saber. É quando todos os juízos, pré-juízos, noções, valores, regras e
normas, herança cultural e social, enfim, as alternativas e escolhas se materializam
em parcos “espaços brancos”. Muitas vezes, ou quase sempre, experimentamos a
catarse, essa descarga emocional que nos coloca num ápice de liberdade e criação:
“[...] só aquele que é consciente de si como homem livre pode chegar a uma
catarse”59.
Obviamente, tudo isso não seria possível sem as condições objetivas para
este feito, pois, aqui somos, ou pelo menos deveríamos ser, “por inteiro”.
59
HELLER, 1982b, p. 147 – grifos do tradutor.
67
[...] A primeira premissa de toda a existência humana, e portanto também de
toda a história, é a premissa de que os homens, para “fazer história”, se
achem em condições de poder viver. Para viver, todavia, fazem falta antes
de tudo comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O
primeiro ato histórico é, pois, a geração dos meios para a satisfação dessas
necessidades, a produção da vida material em si, e isso é, sem dúvidas, um
ato histórico, uma condição fundamental de toda história, que tanto hoje
como há milênios, tem de ser cumprida todos os dias e todas as horas,
simplesmente para assegurar a vida dos homens. (MARX; ENGELS, 2007,
p. 50).
A tomada de consciência, por si só, já é um posicionamento ético e político da
e para a vida. Envolvem escolhas, interesses, valores, juízos, necessidades,
particularidades,
assim
como
sentimentos,
paixões,
egoísmos,
exigências,
aspirações e ações sociais, por isso, tem que partir do próprio ser social.
Permite ainda ao sujeito social, elevar-se da condição de ser particular,
conforme se apresenta na vida social, ou seja, na cotidianidade ou em seu estado
de alienação, para a condição genericamente humana ou para a não-cotidianidade
(ou estado de suspensão da cotidianidade).
Para tanto, toma-se necessário assumir a consciência de-si-mesmo, em sua
singularidade, dos valores ético-morais, ético-políticos, de liberdade e de
responsabilidade, na e para a vida cotidiana.
Mas, como chegar a um estado de consciência que nos afirme enquanto tal
perante a vida cotidiana alienada e alienante? Como construir essa atitude ética e
política? Estas interrogações necessariamente tem que ser uma tomada de
consciência na e para a vida: um para-si-mesmo.
Se a consciência é um atributo ontológico do ser social que, exatamente por
isso, não pode estar na vida cotidiana. É necessário extrair de suas contradições os
elementos constitutivos para uma atitude consciente. É uma tomada de posição do
ser social enquanto ser singular, particular e universal.
Como vimos, ser social e vida cotidiana, vida e obra, particularidade,
singularidade e genericidade, ocupam o mesmo espaço. Portanto, o fundamento da
ética e da política só pode se consumar na essência ontológica do ser social, ou
seja, em seu Eu.
Resumidamente, só para rememorar, a ética, conforme a entendemos, é uma
postura de vida, um determinado modo de ser e a política, por conseguinte, é
entendida aqui como uma determinação ativa – uma ação ativa e proativa -, um
modo de ser e agir consciente e objetiva na e para a vida social. Lembrando Marx
68
(2005, p. 52-53): “[...] não é a consciência dos homens que determina o seu ser,
mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.
Afirma-se, assim, que a tomada de uma consciência política, enquanto modo
de agir na e para a vida cotidiana, é uma postura ética e política perante situações
concretas do e no cotidiano.
[...] Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de
suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem compô-las
juntas e trocar os motivos, [...] mas, quando se encontram numa idade mais
madura, suas partituras estão mais ou menos terminadas, e cada palavra,
cada objeto, significa algo diferente na partitura de cada um (KUNDERA,
2007, p. 108).
Na medida em que prosseguíamos nossas análises, desvelava-se o universo
teórico-filosófico, antropológico-ontológico e histórico-social de Heller e fomos
percebendo que vida e obra coabitavam.
Observamos que muito mais do que analisar o comportamento e a postura do
ser social, das relações e sujeitos sociais, da vida cotidiana, o pensamento
helleriano buscava desvelar uma condição do ser social que Marx e Lukács já
haviam chamado à atenção: a condição de individualidade.
Já tínhamos em mente esta categoria, porém era necessário, buscar a
essência filosófica escondida em sua aparência: por que é na condição de
individualidade (ou singularidade) que o ser social encontra substâncias para a sua
afirmação consciente? Na proposta ontológica do ser social helleriana, em nossa
opinião, essa é a condição sine qua non do indivíduo social: a consciência de-simesmo60.
Heller verificou a condição de individualidade enquanto valor61 ontológico do
ser social, não na sua condição individualista – egocentrista -, no sentido liberal –
enquanto individualismo -, mas sim na sua condição ontológica de individualidade,
ou seja, na condição de ser-em-si-mesmo e de ser-para-si-mesmo62.
60
Buscaremos no decurso dessa pesquisa demonstrar os por quês.
“Valor é tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento,
contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais” (HELLER, 2004, p. 04-05). Os
componentes essenciais para Heller, dizem respeito aos componentes essenciais da vida humana
para Marx, ou seja, trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a
liberdade. O valor, portanto, se apresenta como uma “categoria ontológico-social; como tal, é algo
objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições naturais) e sim
objetividade social. É independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos
homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais” (idem, p. 05).
62
Esta categoria helleriana será desenvolvida mais a frente.
61
69
O ser social particular e genérico, também se apresenta simultaneamente na
vida social, enquanto indivíduo63 social64: “[...] cada indivíduo representa o gênero e
o gênero se transforma em cada individuo”65. Portanto, é necessário decompor o ser
social, numa verdadeira dissecação teórico-conceitual, para somente depois
encontrar os elementos valorativos de superação e suspensão da cotidianidade.
Essa dissecação do ser social é primordial para que possamos entender e,
sobretudo, intervir, ou até mesmo levar ao despertar da consciência para uma
determinada postura ética e política na e para a vida cotidiana. Não estamos aqui
nos referindo a uma atitude humanista cristã, mas a uma condição de humanidade,
de consciência das potencialidades constitutivas do ser social.
Acreditamos que é necessário primeiramente um despertar para esta
consciência, um autodesenvolvimento e uma autorrealização, enquanto ser-em-simesmo para que, somente depois, o indivíduo possa ter condições subjetivas para
sua autolibertação consciente para-si-mesmo.
Muitas são as alternativas para este despertar. Acreditamos que a educação
seja uma dessas alternativas. A educação moral, contida nos mais diferentes credos,
pode realizar este processo, porém, acaba apenas por atingir a individualidade
subjetiva do ser social e a uma dimensão maniqueísta da relação entre o bem e o
mal, exemplo disso pode ser encontrado nos vários catecismos, manuais de
educação moral e/ou de autoajuda.
63
Para Marx (2004, 107), “[...] o indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela
também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada
simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida
individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isso
necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais
universal da vida genérica, ou quando mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular
ou universal.
64
Também para Marx (2004, p. 106-107), “[...] o homem produz o homem, a si mesmo e ao outro
homem; assim como [produz] o objeto, que é o acionamento (Betätigung) imediato da sua
individualidade e ao mesmo tempo a sua própria existência para o outro homem, [para] a existência
deste, e a existência deste para ele. Igualmente, tanto o material de trabalho quanto o homem
enquanto sujeito, são tanto resultado quanto ponto de partida do movimento (e no fato de eles terem
de ser este ponto de partida reside, precisamente, a necessidade histórica da propriedade privada).
Portanto, o caráter social é o caráter universal de todo o movimento; assim como a sociedade mesma
produz o homem enquanto homem, assim é produzida por meio dele. A atividade (Tätigkeit) e a fruição,
assim como o seu conteúdo, são também os modos de existência segundo a atividade social e a
fruição social. A essência humana da natureza está em primeiro lugar, para o homem social; pois é
primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua
para o outro e do outro para ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da própria
experiência humana. É primeiro aqui que a sua existência natural se lhe tornou a sua existência
humana e a natureza [se tornou] para ele o homem. Portanto, a sociedade é a unidade essencial
completada (vollendete) do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o
naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito”.
65
HELLER, 1982b, p. 151.
70
O que temos em mente nesta investigação é uma postura que ultrapasse a
esfera da moralidade e da subjetividade do sujeito social. Buscamos um
posicionamento perante as armadilhas do capital, ou seja, na superação dos
entraves que condenam o ser social a uma vida alienada/alienante e ainda, buscado
um posicionamento político frente à barbárie na qual estamos vivenciando na
contemporaneidade.
Acreditamos que para o arcabouço teórico-metodológico, ético-político e
técnico-operativo do/a assistente social o conhecimento do ser social, cidadão/ã de
direito e usuário/a das políticas públicas, é fundamental para aqueles/as que se
dispõem a serem educadores/as sociais – ou agentes sociais de mudança - e aqui
se enquadram todos/as aqueles/as que se dispõem a este fim.
O valor na lógica do capital se apresenta em sua forma reificada, ou seja,
enquanto valor-de-uso e valor-de-troca monetarizado, assim como o conceito de
riqueza humana distanciado da concepção trazida por Marx enquanto essência
humana. Quanto mais apropriação da riqueza humana pelo capital, tanto mais
alienada esta sociedade se apresenta: “[...] a verdadeira riqueza do homem se
realiza nas atividades livres do tempo disponível”66’67.
[...] Através das relações humanas o homem coletivo realiza qualidades
cada vez mais novas que se colocam como fim; o homem rico é o homem
rico em relações humanas. (HELLER, 1978, p. 154).
As características evocativas de uma atitude consciente diante das
particularidades alienadas/alienantes da vida social podem ser superadas apenas
quando se tem consciência de sua magnitude genérica.
Desde o alvorecer da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista
que o ser social e a vida cotidiana, estão e são constante e violentamente
bombardeados pela lógica do capital.
66
HELLER, 1978, p. 140.
“Wealth is disposable time and nothing more” – riqueza é o tempo disponível e mais nada.
(HELLER, 1978, p. 154). Heller explica que esse tempo livre – ou “tempo para o ócio” – não é
sinônimo precisamente de “tempo livre” no seu sentido negativo, como por exemplo “liberdade de
trabalho” – aqui trabalho assume a condição de castigo, muito bem colocado na gênese bíblica, mas
sim, trabalho deve ser visto aqui como categoria onto-criativa do ser social. “Para Marx, ao contrário,
o tempo livre é ‘tempo para o ócio’, uma categoria inequivocamente positiva que indica o tempo
empregado em atividade propriamente humanas, mais elevadas”, ou seja, “em atividades livres”
(idem, p. 153).
67
71
Heller aponta para a necessidade radical de interrogações sobre as
contradições próprias do sistema capitalismo e, consequentemente, da alienação da
vida social. Necessidades de um determinado posicionamento ético e político, que
não só analise estas contradições, mas que também às modifique.
[...] O trabalho em favor do socialismo há de começá-lo antes; há que
mostrar na práxis que o socialismo não é idêntico ao bolchevismo e ganhar
a aprovação passo-a-passo para este socialismo novo e distinto (HELLER,
1982b, p. 112).
Neste fragmento, além de apontar a preferência de Heller por um tipo
determinado de socialismo, também faz uma crítica ao modelo comunista/socialista
vigente de sua época.
O processo de consciência do ser social em sua condição de individualidade
é fruto de sua inserção na e da vida cotidiana enquanto sujeito social. Apresenta-se
de forma objetiva e concreta, constituída e constituinte da realidade, do conflito real,
dialético e em sua totalidade.
As condições objetivas para essa emancipação (e/ou consciência social)
perpassam não só pelo individuo, mas também pelas condições sócio-históricas, o
território onde vive, as capacidades proativas que oferecem, as situações concretas,
os estímulos, os interesses, as particularidades e singularidades, as fatalidades,
causalidades, enfim, a vida como ela está posta.
Poderíamos citar, aqui, uma série de personalidades que superaram suas
limitações, mas nos reportamos, por exemplo, à surdez de Ludwig van Beethoven,
um dos maiores compositores clássicos, dentre muitos outros, que o mundo já
conheceu. Uma genialidade e criatividade que desponta em profunda surdez iniciada
logo em sua juventude que, hoje, poderia ser resolvida com uma simples cirurgia de
consultório.
Porém, nos parece mais próximo e significativo o exemplo do maestro e
pianista João Carlos Martins, um dos grandes interpretes e um virtuose brasileiro da
música erudita. Após um incidente trágico, em 2002, ele ficou impossibilitado
fisicamente de tocar piano, tendo que abandonar sua prodigiosa carreira de pianista.
Porém, esse acontecimento não o impediu de direcionar todo o seu
conhecimento, toda sua capacidade e habilidade para outra área: a regência.
Fundou a Bachiana Filarmônica e desenvolve um trabalho social com adolescentes
72
através da sua Bachiana Jovem. Criou ainda a Fundação Bachiana cujo trabalho
desenvolvido envolve a arte e a sustentabilidade 68.
Estava desvendado o “enigma da esfinge” helleriano. É necessário destruir
radicalmente o sistema que dinamizava as relações objetuais. Era necessário buscar
uma teoria das necessidades radicais 69.
Podemos trazer estas considerações de Heller para os dias atuais, ou seja,
quando o sujeito revolucionário marxiano está submetido aos apelos do capital.
Torna-se necessário um novo movimento. Nos ocuparemos mais a frente sobre este
assunto mais a frente.
Para Heller, naquele contexto histórico, este “novo começo” se desenhava
com a “sociedade dos produtores associados”. Por conseguinte, via nascer esta
possibilidade nos movimentos sociais de 1968. As necessidades radicais se faziam
presentes novamente e a proposta original marxiana tinha que ser reavivada e
deveria propor-se um novo sistema, diferente do que se apresentava no Leste
Europeu.
Portanto, era preciso construir novas mediações. Foi então que Heller buscou
na Teoria das necessidades em Marx70 - uma verdadeira monografia esquemática e
circunscrita à obra de Marx - o conceito de necessidades. Este estudo proporciona a
análise teórico-histórica sobre o conceito de necessidades (ou carecimentos) em
Marx. Contudo, também se dirige para despertar do sujeito revolucionário, portanto,
com uma determinada postura ética e política na vida cotidiana, rumo à sociedade
dos produtores associados71.
68
Para maiores detalhes consulte o site: http://www.fundacaobachiana.org.br
Entende-se por necessidades radicais (ou carecimentos radicais) “[...] todas aquelas necessidade
que nascem na sociedade capitalista como consequência do desenvolvimento da sociedade civil,
porém que não podem ser satisfeitas dentro dos limites da mesma. Portanto, os carecimentos
radicais são fatores de superação da sociedade capitalista” (HELLER, 1982, p. 133).
70
A Teoria das necessidades em Marx foi revisitada por Heller posteriormente. Nessa autorrevisão,
Heller altera significativamente e radicalmente o seu ponto de vista. Durante o período de construção
dessa dissertação, tivemos a oportunidade de adquirir uma versão em castelhano dessa revisão:
HELLER, Agnes. Una revisión de la teoría de las necesidades. Barcelona, Bueno Aires e México:
Pensamiento Contemporáneo, 1996. Tendo em vista que esta obra é de um período posterior ao aqui
analisado, e que, traz em si concepções polêmicas, deixamos este ponto para posteriores análises,
apenas utilizamos a parte da Introdução, escrita por Ángel Rivero que traz importantes contribuições
para a biografia de Heller que nos ocupamos no decurso dessa investigação.
71
Esta proposta, ao que nos parece, se mostra formalmente utópico, recheada de eflúvios
marcusiano, algo possível em micro comunidade, mas no sentido macro nos apresenta inviável,
porém deixamos estas analises para futuras investigações. Porém, ao nosso ver, não prejudica o
conteúdo da obra e a proposta de uma práxis revolucionária.
69
73
Ligada à temática axiológica, constitui e reconstitui os fundamentos críticos e
materialistas num idealismo72 ético e político para uma determinada vida em
comunidade, consubstanciados na proposta da “sociedade dos produtores
associados”.
Não estamos desconsiderando a questão da organização e consciência de
classe em-si73 e para-si74, enquanto classe revolucionária, e nem Heller
desconsidera esta condição. Este assunto, pelos menos ao que nos parece, já tinha
sido resolvido e reavaliado por Lukács em História e consciência de classe. Não nos
cabe aqui fazermos estas análises, o que despenderia novas pesquisas.
É importante frisar que as categorias em-si e para-si, estão sendo utilizadas
no mesmo sentido e com relação ao ser social e a categoria para-si-mesmo –
quando o ser social toma consciência e emancipa-se consigo mesmo, rompendo
com as barreiras ultrageneralizadas e consuetudinárias que o impede de objetivar a
sua própria liberdade – ou seja, sua condição de individualidade.
Portanto, para que possamos ter um ponto de partida, necessitamos fazer o
caminho inverso da estrutura do pensamento desenvolvido por Heller, analisando,
desta forma, a vida cotidiana na atualidade e como o ser social se insere nesse
universo contraditório para depois desvelarmos as sua antropologia-ontológica,
buscando apontar as contribuições do seu pensamento.
Na alusão a expressão shakespireana: “Ser ou não ser, eis a questão”, há de
ser ter em mente a complexidade dessa expressão. Não estamos aqui buscando a
essência existencialista do ser social, o que não deixa de contemplar alguns de seus
aspectos, mas nos referimos à essência humana, aos componentes essencialmente
humanos para a afirmação do ser social enquanto sujeito social (ou indivíduo social),
consciente do seu papel social na e para a vida social.
O ser social está sempre em movimento, na sua vida, na sua cultura, nos
seus valores, na sua história. Por isso, a ciência e a filosofia constantemente
buscam dar respostas para explicar a essência de todos os fatos que envolvem a
72
Utilizado aqui no sentido de algo projetado e que é possível.
Quando “[...] uma classe - por esta ou aquela razão - não toma consciência de seus interesses
reais e age inadequadamente ou até em condição contradição com os seus interesses. Casos destes
ocorrem, sobretudo, quando uma classe se encontra ainda em formação, não tendo ainda
consciência dos seus interesses e objetivos”. (LUKÁCS; SCHAFF, 1973, p. 10).
74
“[...] Uma classe social, já formada na base da relação dos seus membros com os meios de
produção e a partir dos interesses econômicos e sociais desses membros, será uma “classe em si”
até que a consciência da sua situação e dos seus interesses de classe se tenha propagado pelos
seus membros e que estes a tenham aceite; nesse segundo estágio, transforma-se em “classe e para
si”. (LUKÁCS; SCHAFF, 1973, p. 10).
73
74
vida humana e, consequentemente, dar respostas do próprio ser humano e sua
existência: “[...] o que faz a grandeza do homem é ele carregar seu destino como
Atlas carregava nos ombros a abóboda celeste” (KUNDERA, 2007, p. 45).
Segundo Batista (MARTINELLI; ON; MUCHAIL, 2001, p. 115),
[...] o saber que informa a ação profissional cotidiana é complexo: emerge
de uma combinação histórica específica de diversos modos de
conhecimento, simultâneos e interatuantes mas, de certo modo,
hierarquizados: um é dominante e impregna todos os demais, modificando
suas condições de funcionamento e desenvolvimento. [...] Este saber se
constrói na inter-relação entre conhecimentos já constituídos e postos à
mão e novos conhecimentos em processo de construção.
Kochê (1997), parafraseando Marx, afirma que:
[...] a ciência é ao mesmo tempo a revelação do mundo e a revelação do
homem como ser social, levando em conta o papel da cultura e do trabalho
que, em cada momento histórico, apresentam possibilidade de expansão e
aquisição de conhecimentos, pretendendo ultrapassar o nível da
“descrição” dos fenômenos, para chegar a sínteses explicativas; estas
sínteses, por sua vez, sugerem novas relações, novas buscas, novas
sínteses, que realimentam o processo do conhecimento. (KOCHÊ, 1997, p.
22).
O conhecimento nasce do resultado de uma relação entre o pensamento e a
realidade, entre o pesquisador e o objeto de estudo (MINAYO, 1994). A
responsabilidade da transformação é um fator significativo, considerando-se que
este acontece em vários momentos da vida e da história.
Desta
forma,
necessitamos
ainda
resgatar
alguns
apontamentos
resumidamente sobre o processo de alienação/estranhamento e reificação do ser
social na vida cotidiana em tempos modernos para apurarmos os elementos
transformadores e emancipadores do pensamento helleriano.
1.4.
A “Babel” capitalista dos tempos modernos: “salve-se quem puder!”
Em tempos modernos, no auge do desenvolvimento da sociedade burguesa e
do modo de produção capitalista, onde “[...] o sistema subsumido totalmente ao
capital” e a barbárie capitalista “omnilateral e polifacética” impera (NETTO, 2010, p.
31), a vida em sociedade é predominante e peremptoriamente regida pela lógica do
capital e as relações e inter-relações sociais se apresentam em sua quase totalidade
coisificadas e reificadas.
75
Numa analogia ao filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, podemos
juntamente com ele fazer uma crítica feroz ao processo acelerado de
“modernização” e da industrialização/robótica na sociedade globalizada, mostrando
como o operário, ou ser social, é constantemente engolido e subjugado pelo
capitalismo, tornando-se apêndice das máquinas (NALLE JUNIOR, 2009).
Essas reflexões introdutórias não tem o objetivo de apresentar uma pesquisa
rigorosa, mas sim demonstrar como o nosso cotidiano está constantemente sendo
bombardeado por acontecimentos que de uma forma ou outra afetam o nosso viver,
mesmo não sendo necessariamente percebido por nós.
Para exemplificar estas colocações, nos apropriamos de algumas manchetes
corriqueiras da atualidade para apontar o estágio atual da Humanidade e alguns dos
principais problemas, em nível mundial, que tem afetado, direta ou indiretamente, o
cotidiano mundial75.
Estas referências nos trazem um exemplo concreto de que fatos corriqueiros
do cotidiano simples de algumas pessoas, lugares ou circunstâncias, às vezes sem
a menor importância para muitos/as, podem repercutir em várias vidas, nas mais
extremas localidades do mundo.
Para uma averiguação desse assunto, sugerimos a projeção cinematográfica
Babel. O filme foi lançado no Brasil em 2007, numa produção de Alejandro González
Inárritu. A história gira em torno de um Rifle que atravessa o mundo, desencadeando
uma série de acontecimentos significativos para muitas vidas, pessoas, culturas e
países diferentes: Marrocos, Estados Unidos, Japão e México.
Outro exemplo é o filme Crash: no limite, lançado em 2005 e dirigido por Paul
Haggis, que apresenta também uma série de situações em cadeia, geradas pelo
preconceito e pela discriminação étnico-sociais e que traz trágicas consequências na
vida de muitas pessoas que, aparentemente, não estavam ligadas entre si.
Mas, para sair do universo cinematográfico e entrar no mundo real, tão bem
analisado pelo Prof. Dr. José Paulo Netto, no texto Uma face contemporânea da
75
Estas manchetes e acontecimentos referem-se ao momento-presente e em relação à construção
dessa dissertação, ou seja, acontecimentos relativos aos anos de 2011 e 2012, principalmente as
manchetes da primeira metade do ano de 2012 quando este item foi escrito. Nossa intenção é
demonstrar que o cotidiano é muito mais que o dia-a-dia. A escolha dessas manchetes não implica
numa intencionalidade, poderíamos aqui colocar qualquer manchete de qualquer tempo-presente.
Nossa inspiração tem com referência as análises de Lefebvre (1991) quando debruçou sobre
manchetes e periódicos do dia 16 de junho de um ano do início do século XX para explicar sua teoria.
Não foi nossa intenção fazer a mesma coisa que Lefebvre, mas sim, demonstrar que fatos
corriqueiros podem alterar a vida de pessoas que aparentemente nada tem haver com determinados
acontecimentos.
76
barbárie (NETTO, 2010), e nos textos de vários autores conhecidos mundialmente e
que foram compilados no livro OCCUPY: movimentos de protesto que tomaram as
ruas, publicado pela editora Boitempo (HARVEY, 2012), trazem de cara uma
pequena amostra do que vem acontecendo na sociedade, nos dias atuais e, sem
sombra de dúvida, refletem, de alguma forma ou de outra, na vida da população
mundial. Dois anos se passaram e a efervescência da Primavera Árabe ainda
continua a borbulhar.
Em entrevista a Caros Amigos (2012, p. 20-22), Leila Paulani, professora de
Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) faz uma
análise de conjuntura da crise atual. Mesmo com o seu posicionamento
pessimista/reformista, selecionamos alguns trechos que nos parecem ser relevantes:
Leila aponta que as crises atuais estão relacionadas à “[...] transformação na forma
como o capitalismo está se desenvolvendo, aquilo que alguns economistas chamam
de financeirização76 do processo capitalista” (NAGOYA, 2012, p. 20).
[...] Desde as décadas de 1970 a1980, a riqueza financeira cresceu em uma
velocidade muito rápida e começou a determinar uma série de
transformações, sendo a principal delas a ascensão do neoliberalismo. [...]
Um crescimento ainda mais rápido da riqueza financeira. (LEILA apud
NAGOYA, 2012, p. 20).
Leila destaca que dos anos de 1980 para cá, mundialmente falando,
acompanhamos constantes crises financeiras: “[...] não se fica três ou quatro anos
sem enfrentar uma. [...] Não teremos mais paz econômica, vamos viver
experimentando crises de tempos em tempos”. Também aponta que a crise de 2008
nos Estados Unidos, trouxe consequências para o Brasil, pois o crescimento
econômico que vinha despontando, caiu vertiginosamente - de 5% a 6%, caiu para
0,3% ao ano, porém, para ela, o Brasil tem hoje uma “[...] situação relativamente
confortável, do ponto de vista financeiro” (idem, p. 20-21).
Outro ponto a ser enfatizado é em relação à China que, para ela, “[...] é uma
grande incógnita, porque depende dela mesma e dos dirigentes chineses” que vem
aproveitando da situação de crise e investindo especulativamente em diversos
76
Para Leila Paulani (apud NAGOYA, 2012, p. 20) a financeirização “produz uma regime onde a
renda produzida é muito baixa, porem, é um sistema rentista, que depende da geração de produtos e
de renda para poder extrair o lucro, então é uma contradição muito complicada”.
77
países do mundo. É sabido que a força-de-trabalho na China é explorada ao máximo
(idem, ibidem).
Ao se referir ao Brasil, aponta para um crescimento na área das políticas
compensatórias, de crédito e de regulação dos juros, o que tem aumentado o
poderia econômico da “classe C” e do consumo.
É notório que as políticas de combate a pobreza no Brasil, controvérsias à
parte, tem sido analisadas como populistas, de “assistencialização economicista”77,
apesar de alguns avanços. Para finalizar, Leila acredita que “[...] a tendência é que,
de tempos em tempos, o mundo passe por crises” (idem, ibidem).
Com relação as questões ecológicas que, de certa maneira, afetam
diretamente a vida do planeta, Sandra Quinteiro, economista do Instituto Políticas
Alternativas para o Cone Sul – PACS e representante da Rede Jubileu Sul Américas,
faz uma análise sobre os resultados da RIO+20, grande evento realizado na cidade
do Rio de Janeiro, Brasil, de 15 a 22 de junho de 2012.
Sandra destaca que a “Cúpula dos Povos”, conferência que reuniu cerca de
200 delegações dos mais diversos países para discutir as questões ambientais não
apresentou resultados satisfatórios: “[...] o documento foi tão rebaixado que, de fato,
o que sai daqui fortalecido não é o multilateralismo, mas o poder corporativo” (SÁ;
JÚNIA, 2012, p. 36), e concluiu que:
[...] a Cúpula dos Povos foi anticapitalista. É urgente e necessária a criação
de uma novo modelo, minha gente. Não dá, o capitalismo está nos
matando, está colocando a vida sob o júdice do lucro. O lucro está acima da
vida e de qualquer racionalidade. As áreas que estão preservadas, que
estão nas mãos hoje das populações tradicionais do sul, estão sendo
mercantilizadas por mecanismos como o mercado do carbono. A Cúpula
conseguiu se manifestar contra tudo isso, é uma grande vitória política num
momento de muito dissenso e desarticulação. Em um momento também de
muita captura corporativa, de grandes ONGs, parte de alguns movimentos
que estão no campo e nas florestas ainda um pouco seduzidos pela ideia do
pagamento de serviços ambientais e outras coisas mais, mas eu acredito
que com a Cúpula isso vai mudar. (idem, ibidem).
O processo de industrialização, mercantilização, globalização e do
capitalismo
77
monopolista
e
financeiro,
sobretudo,
no
que
diz
respeito
à
Não nos cabe aqui defender ou refutar qualquer classificação ou análise das políticas públicas
brasileiras na área da Assistência Social, como nas demais áreas, apenas estão apontando alguns
resultados críticos que já aparecem no cenário acadêmico. Em nossa opinião, há verdades e mitos
nessa questão, porém, não é a temática a ser estudada nessa dissertação.
78
competitividade, à imediaticidade78 à lucratividade na e da vida social, são
características constitutivas do individualismo exacerbado e violento e da reificação
da vida humana.
Lembrando Heller:
[...] temos que imaginar uma sociedade em que todos os homens, com
maiores ou menores convicções morais e só com um common sense,
podem lograr uma vida digna de homens sobre a base da liberdade, da
fraternidade e da igualdade social. [...] Que é realmente a revolução se não
a transformação profunda da vida dos homens? (HELLER, 1982b, p. 12079
121) .
O quadro que se apresenta, não inclui problemas somente de natureza
política, econômica, social e cultural, como também de caráter ético-moral. Estas
palavras de Heller em outros momentos e contexto histórico parecem ecoar
significativamente nos dias atuais.
Apesar do pessimismo de alguns, do fatalismo de outros, ou mesmo de
algumas ações particulares contra exploração e reificação da vida humana, ainda
assim, torna-se necessário e tão somente uma revolução radical, conforme os
apontamentos hellerianos, no sentido de ter uma vida verdadeiramente humana e,
quiçá, podermos finalmente alterar este quadro caótico.
Também gostaríamos de destacar os últimos acontecimentos na Síria, região
característica dos regimes totalitários, extremistas e fundamentalistas. Protestos
pós-democráticos iniciados em março de 2011, tem gerado uma onda de violência e
morte naquela região, sob o comando do presidente Bashar Al-Assad. O número de
vítimas tem passado da casa dos 3.800, sendo, na maioria, civis. Estes nos parecem
remeter aos dias vividos por Heller nos anos de 1940 a 1970 na Hungria.
A crise econômica europeia, desde 2011, também tem gerado um clima de
descontentamento geral naquele continente e, por sua vez, vem repercutindo mundo
afora, deixando um rasto de trinta milhões de pessoas no limite entre a “classe
média” e a pobreza. Uma situação contraditória para uma região que historicamente
se afirma como “o primeiro mundo” em todos os sentidos.
78
Entende-se por imediaticidade ao agir humano enquanto resposta ativa e imediata aos
acontecimentos do cotidiano, ou seja, “o padrão de comportamento próprio da cotidianidade é a
relação direta entre pensamento e ação; a conduta específica da cotidianidade é a conduta imediata,
sem a qual os automatismos e o espontaneísmo necessário à reprodução do indivíduo enquanto tal
seriam inviáveis”. (NETTO; CARVALHO, 2010, p. 67). Grifos do autor.
79
Grifos do tradutor.
79
Da Índia e da África é corriqueiro recebermos notícias sobre a situação de
penúria e miséria, onde a vida humana, muitas vezes, é reduzida à condições
desumanas. Por outro lado, deparamo-nos com a situação social antagônica de
Dubai, um exemplo típico dos extremos entre a riqueza excessiva e a miséria
relativa.
Ainda na África, para escapar da miséria subumana, “jovens ugandenses”80
são recrutados pelos Estados Unidos como reforço do aparato de guerra. Os negros,
para não morrerem de fome no seu país, se dispõem a trocarem de lugar com os
“combatentes patriotas americanos” que historicamente alimentaram o mercado de
Hollywood, já que estes não mais valoram o sentimento de “amor à pátria”. Lembranos bem o filme O jardineiro fiel81.
O movimento Occupy, uma verdadeira reação que eclodiu, simultânea e
contagiosamente, sob a forma de movimentos sociais, rebeliões e protestos em
2011, teve suas primeiras manifestações na África e se espalhou rapidamente para
a Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Espanha, Grécia, Londres, Chile, Estados Unidos e
Rússia, com algumas expressões no Brasil.
Este movimento foi uma resposta dos/as indignados/as, numa verdadeira
amostra de consciência solidária aos acontecimentos que tem estourado em várias
partes do mundo desde a aurora do século XXI.
Tais acontecimentos nos parecem reportar aos idos de 1968, na Primavera de
Praga, a qual Heller descreve com profundo sentimento de coletivismo, solidarismo e
patriotismo. É possível reverter os acontecimentos, porém, ao invés de termos uma
“massa” politicamente dissensiosa e desorganizada, precisamos de um movimento
organizado: “[...] a alma carece de pré-história”82.
Esta vulnerabilidade da condição humana, individual e coletiva, reflete o
elevado preço que muitas vezes se paga pelas questões meramente formais e de
interesses privados ou em nome das convenções sociais. Assim, “[...] o peso da vida
está em toda forma de opressão” (KUNDERA, 2007).
No Paraguai, pelo que indicaram as notícias, a deposição do presidente
Fernando Lugo, no dia 22 de junho de 2012, foi um golpe de Estado, comparado ao
80
Matéria veiculada no jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, ano 05, nº 06, julho de 2012, tendo
como título Soldados africanos para guerras norte-americanas (VICKY, 2012, p. 21-23).
81
Filme dirigido por Fernando Meirelles, em 2005, aborda, dentre outras temáticas, as experiências
com os primeiros medicamentos contra o vírus da AIDS no Quênia, África.
82
HELLER, 1982b, p. 146.
80
de Hitler na Alemanha em 1936, que apenas favoreceu os interesses dos grandes
latifundiários do país (ZINET; MONCAU, 2012, 10-13). Lembrando Heller, “[...] Não é
a bondade humana que transforma a sociedade, mas sim contrainstituições as que
transformam os homens e a sociedade”83.
Vale ainda destacar a situação do ensino no Brasil que tem afetado
significativa e principalmente a formação educacional e profissional. A Educação
tem-se transformado nos últimos tempos num mercado altamente rentável, onde
tanto o ensino, quanto a educação estão a serviço do capital.
Nesse sentido, no âmbito do Serviço Social, o conjunto CFESS/CRESS –
Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social -,
juntamente com outros sujeitos coletivos, tem se posicionado e lutado contra o
ensino mercadológico e notoriamente precarizado, em prol da educação de
qualidade.
Dados emitidos pelo CFESS84 revelam que “[...] no Brasil o investimento
público direto em educação, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), é de 5% e,
desses, apenas 0,7% é investido no ensino superior” e ainda, de acordo “[...] com
dados do artigo Mercantilização do ensino superior, educação à distância e Serviço
Social, publicado em 2009, pela professora da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Larissa Dahmer, dos 332 cursos de Serviço Social existentes no Brasil, mais
de 205 (61,7%) foram autorizados a funcionar entre os anos de 2003 e 2009, sendo
91,7% de natureza privada” (CFESS, 2012).
A situação em relação aos outros cursos é igual ou pior. Ainda, o mais tinhoso
descaramento não poderia ser demonstrado nas instituições de ensino instaladas e
espalhadas pelo Brasil em shopping centers, comprovando vergonhosamente, que a
educação se tornou “artigo de vitrine” e que deve se adequar aos apelos do capital e
do mercado.
Concordamos com Netto (2010) ao sinalizar que a “questão social” não sofreu
mudanças, mas sim, as formas de sua expressão, em grande medida, se
modificaram.
83
HELLER, 1982b, p. 163. Grifos do tradutor.
Manifesto emitido pelo CFESS em comemoração ao Dia do/a Assistente Social e lançamento da
campanha Serviço Social de olhos abertos para a educação: ensino público de qualidade é direito de
todos/as. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta_diadoAS2012-site.pdf,
Brasília, 15/05/2012.
84
81
Ainda, a forma de organização dos/as manifestantes, também implica novos
formatos. Hoje o mundo é virtual, cibernético, o mundo do “silício – zeros e uns”.
Estudos nessa área, tem demonstrado uma nova realidade e novas formas de
organização dos movimentos sociais e das redes de movimento social85.
Esta pequena amostragem já demonstra a complexidade do nosso cotidiano e
de qual realidade estamos referindo. Segundo Heller, pensamento e ação devem
caminhar juntos na vida cotidiana.
[...] A transformação da vida cotidiana (quer dizer: das formas de vida) e de
todas as instituições que reproduzem e fixam esta forma de vida só pode ter
lugar inferior na guia de uma objetivação tal, que ofereça em si mesma uma
nova forma de vida, mas não a que já existe, sim a utopia, o dever-ser. Por
isso, que estamos insatisfeitos com a forma de vida dada, todos os que a
querem transformar, hão de recorrer à filosofia como ideia reguladora de
seu pensamento e de ação. Conscientemente, a necessidade da filosofia é
em si mesma radical: pré-supondo que não consideremos o dado como uma
necessidade, como um dado insuperável, mas que nos pré-dispomos a
transformar. (HELLER, 1982b, p. 186).
Nessa ótica, a filosofia para Heller era concebida com uma filosofia radical e
que deveria direcionar para uma determinada forma de vida e de sociedade. Um
direcionamento para a formulação de uma teoria da e para a práxis social. A
filosofia, para Heller, nada mais é do que uma vida reflexiva ou de uma reflexão da
vida cotidiana – uma Lebensphifosophic.
À primeira vista, quando nos detemos nesta fala de Heller, pensamos numa
tal filosofia salvacionista, que espelhasse um humanismo cristão ou uma utopia aos
moldes de Thomas Morus ou Campanella, por exemplo. Heller não se referia à
filosofia clássica, mas sim, a uma filosofia de vida, tendo em vista que a sua própria
filosofia foi construída sobre matrizes revolucionárias.
Heller - fazendo uso da liberdade em seu mais alto grau - optou por matrizes
teóricas que expressassem esse movimento, essa dialética, essa historiografia, essa
85
Para maiores detalhes sobre este assunto, destacamos as pesquisas e estudos encabeçados pela
Profª. Drª. Ilse Scherer-Warren, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, assim
como e outros/as pesquisadores/as desta temática. Recomendamos a leitura de: SCHERERWARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma Revolução no Cotidiano? Os novos movimentos
sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987; SHERER-WARREN, Ilse. Redes de
movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993; ROSSIAUD, Jean; SHERER-WARREN, Ilse. A
democratização inacabável: as memórias do futuro. Petrópolis: Vozes, 2000; SHERER-WARREN,
Ilse; FERRERIA, José Maria Carvalho (org.). Transformações sociais e dilemas da globalização:
um diálogo Brasil/Portugal. São Paulo: Cortez, 2002; SHERER-WARREN, Ilse; LÜCHMANN, Lígia
Helena Hahn (org.). Movimentos sociais e participação: abordagens e experiências no /Brasil e
na América Latina. Florianópolis: UFSC, 2011; GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e
redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2010.
82
totalidade, enfim, uma matriz que apresentava em si uma práxis revolucionária, que
possibilitasse desenvolver a riqueza humana ou, em outras palavras, em
desenvolver todas as “[...] faculdades materiais, psíquicas e espirituais adequadas
ao gênero humano”86.
Não podemos deixar de esclarecer que a filosofia helleriana espelha uma
filosofia, no sentido platônico, do “[...] uso do saber em proveito do homem”
(ABBAGNANO, 2007, p. 514). Neste caso, primeiramente busca-se adquirir um
determinado conhecimento que fosse ao mesmo tempo válido e o mais amplo
possível.
A utilização desse conhecimento em favor dos seres vivos é que implicava na
alteração da(s) situação(ões) que não contribua(iam) para o enriquecimento da
“riqueza humano” ou da “essência humana”: “[...] toda filosofia oferece uma forma de
vida; toda filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de
uma outra forma de vida”87.
Esta pequena amostra, permite visualizarmos algumas situações do cotidiano
atual no qual estamos inseridos. Enquanto tudo isso acontece, perguntamos: o que
fazemos?
Buscando responder e finalizar estas exposições de forma bem cotidiana, nos
apropriamos das palavras do músico e compositor brasileiro José Geraldo Juste (Zé
Geraldo), para responder e resumir esta questão:
Enquanto esses comandantes loucos ficam por aí/ Queimando pestanas
organizando suas batalhas/ Os guerrilheiros nas alcovas preparando na
surdina suas Mortalhas/ A cada conflito mais escombros/ Isso tudo
acontecendo e eu aqui na praça/ Dando milho aos pombos / Entra ano, sai
ano, cada vez fica mais difícil/ O pão, o arroz, o feijão, o aluguel/ Uma nova
corrida do ouro/ O homem comprando da sociedade o seu papel/ Quando
mais alto o cargo maior o rombo/ Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça/
Dando milho aos pombos.[...].
Diante de uma sociedade que parece uma “torre de babel” a ruir e desabar, a
única coisa que os sujeitos sociais pensam, na maioria das vezes, é salvarem a si
mesmo. Este individualismo exacerbado tem alimentado a mente de muitos/as, que
não conseguem enxergar ou encontrar um projeto coletivo e revolucionário,
86
87
HELLER, 1983a, p.174. Grifos da autora.
HELLER, 1983a, p. 31. Grifos da autora.
83
consistente e coerente, que inspire para uma nova sociabilidade. Isto não quer dizer
que estes não existem.
Nesse sentido, busca-se o sucesso individual, o bem-estar e a realização
pessoal, onde o outro é visto como concorrente - rival ou inimigo. Estampa-se nas
feições o horror ao fracasso.
Esta postura de indiferença às coisas mais comuns da vida cotidiana ou do
indivíduo, faz com que os escândalos sociais e políticos, a grande quantidade de
crimes e a violência em suas diversas expressões, as desumanidades, a
sobrevivência, as expressões da questão social, enfim, a barbárie, se justifiquem ou
caiam no relativismo e na sua naturalização, ou até mesmo num determinismo. Nas
palavras de Viviane Mosé: “[...] talvez este seja o sinal para destruir aquilo que não
temos coragem de transformar”88.
Nessa Babel do “salve-se quem puder!”, um número considerável de pessoas
prefere estar alheios/as, ou deixa-se submeter aos “reflexos condicionadores”, ou
seja, aos interesses e fetiche do capital e, por conseguinte, se alienam e estranham
de-si-mesmo.
Portanto, para que possamos pensar a problemática da reificação do ser
social, ou seja, a sua condição objetiva e concreta na cotidianidade em tempos
modernos, necessitamos recuperar o conceito de alienação.
1.5.
Reificação do ser social em tempos modernos: mecanização da vida
Depois de um período obscuro da história da Humanidade – o período
medievo ou da Idade Média – uma nova fase despontou – a Modernidade. Os novos
eflúvios revolucionários provocaram,
de
certa
forma,
um desenvolvimento
antropológico-ontológico para a sociedade europeia. Passado, presente e futuro
aparecem como criações humanas – homens e mulheres são sujeitos de sua própria
história.
A história de Abelardo e Heloísa é um bom exemplo dessa passagem.
Abelardo traduz os princípios tomistas de sua época, atrelado às determinações e
concepções da igreja católica medieval e do destino vinculado ao castigo divino.
88
Referência à fala da filósofa Viviane Mosé, na série Ser ou não ser? Do programa exibido pela
Rede
Globo
de
Televisão
(Fantástico),
no
dia
26/10/2006.
Disponível
em
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,MUL696172-15607-157,00.html;
e:
http://www.youtube.com/watch?v=jL_OR0OaGnA, acesso 13/04/2012.
84
Heloísa89, por sua vez, enfrenta os padrões de sua época e entrega-se aos
sentimentos mais puros do amor e de sua individualidade.
Heller faz uma brilhante análise sobre este período no livro O homem do
Renascimento (1980; 1982a), uma verdadeira sociologia-histórica. Através da
literatura, principalmente das shakespearianas, Heller colheu rico material para suas
reflexões, mostrando o quê o Renascimento propiciou à Humanidade.
A literatura, assim como a arte - ou expressão artística -, é o espelho da
sociedade em suas determinadas épocas e do que há de mais premente na
substância do ser social. Uma pintura, uma partitura musical, uma escultura, um
livro, uma dança, enfim, as formas de arte escondem um universo a ser descoberto
e revelado. Um bom filósofo, antes de tudo, tem que ser um leitor ávido e Heller,
sem sombra de dúvidas, fez de seus escritos filigranas de conhecimento.
Neste período, no Renascimento - assim como num determinado período da
Antiguidade Clássica90 -, Heller aponta que o ser social encontrou condições
objetivas
para
assumir
capacidades/potencialidades,
a
consciência
tanto
na
de
vida
que
social,
pode
como
dinamizar
na
esfera
suas
da
individualidade, objetiva e subjetiva.
Por séculos, o conceito místico e mítico - primeiramente referente a mitologia
greco-romana e, posteriormente, ao conceito de pecado original e o Juízo Final,
impostos pela ideologia cristã medieval - limitaram concretamente a vida social à
subjugação supra-humana ou metafísica, ou ainda, a forças onipotentes, oniscientes
e onipresentes inalcançáveis e incompreensíveis à natureza humana.
O ser social, nesses períodos, passa a criar a sua própria história, a ter e
desenvolver a sua história. Principalmente com o Renascimento, o conceito de
dinâmico, segundo Heller, ocupa todas as esferas heterogêneas da natureza
humana. A “liberdade”, a “igualdade” e a “fraternidade” nascem como categorias
ontológicas imanentes.
Heller (1982a) aponta que o Renascimento constituiu a primeira onda do
adiado processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Este conceito surge
89
Esta história foi muito bem representada no filme Em nome de Deus, filme se passa na França do
século XII e foi produzido pelo cineasta inglês, Clive Donner (1926-2005).
90
Este período é analisado por Heller em seu livro Aristóteles y el Mundo Antiguo (HELLER, 1983)
num profundo estudo da ética aristotélica e o mundo Antigo. Ao analisar a ética de Aristóteles e o
mundo Antigo, Heller aponta a harmonia dialética do individual e do autodomínio representada no
desenvolvimento dos escritos desse pensador. Anteriormente a Aristóteles não havia aparecido ainda
no âmbito da filosofia uma concepção assim.
85
entre dois sistemas sociais e econômicos mais estáveis - entre o feudalismo e um
determinado equilíbrio entre as forças feudais e burguesas -, particularmente,
remonta aos idos dos séculos XV e XVI. Compreende um processo revolucionário
tanto social, como histórico, total e generalizado, mas, tipicamente específico de
alguns países europeus.
A estrutura básica da sociedade foi alterada e afetada naquilo que é mais
premente no reino da humanidade: sua essência. Estas alterações atingiram todas
as esferas da vida social: econômica, política, social, cultural, religiosa e moral,
social e individual.
Para Heller, o Renascimento constitui uma determinada época na história da
Humanidade em que houve a transição do feudalismo para o capitalismo. Surge
entre dois sistemas sociais e econômicos: de um lado o feudalismo, do outro um
estado de equilíbrio entre as forças feudais e burguesas e os primórdios da
acumulação primitiva.
[...] Engels designou-o corretamente como “revolução”. Nesse processo de
transformação, foi abalada toda uma estrutura econômica e social, todo um
sistema de valores e maneiras de viver. Tudo se tornou fluido; sucederamse levantamentos sociais com uma rapidez incrível, os indivíduos situados
“mais alto” e “mais baixo” na hierarquia social mudaram rapidamente de
lugar (HELLER, 1982a, p. 10).
Com o Renascimento, surge o conceito de “homem dinâmico” e também a
sociedade burguesa, a acumulação primitiva, o capitalismo mercantilista, industrial e
financeiro, o modo de produção capitalista, o aparecimento do Estado nacional
unificado, aniquilando o sentimento de comunidade e dando vazão a individualidade
egocentrista e, mais tarde, ao egoísmo individualista. É nessas circunstâncias que o
ser social encontrou condições favoráveis para a objetivação plena na vida
cotidiana91.
É inegável o desenvolvimento trazido pelo Renascimento, tanto históricosocial, científico, tecnológico, antropológico-filosófico, como ontológico-social e
ontológico-individual, não negando, sobretudo, porém, que com ele também
ascendia os primórdios do capitalismo, destruindo a “relação natural entre indivíduo
e comunidade”, dissolvendo os laços que ligavam o humano a hierarquia das
91
Para maiores detalhes voltaremos a este assunto mais a frente.
86
estruturas sociais coletivas. As relações se tornam efêmeras, fluidas e objetuais,
conforme o que Marx demonstrou em seus escritos.
Com a emergência e consolidação do modo capitalista de viver, a alienação
se apresenta no campo social e individual. Na sociedade do consumo e do
descartável, esse processo é ainda mais avassalador, por que não dizer violento.
Em grande medida, induz, reduz e provoca condições para que o ser social
assuma características inferiores a sua própria condição humano-genérica, ou
mesmo, passe a expressar sentimentos, atitudes, hábitos, costumes, culturas,
formas de expressão na vida cotidiana estranhas a sua natureza.
A mídia e a cibernética, na sociedade atual, não totalmente nem
exclusivamente, contribuem para esse processo. Acostumamos a presenciar dos
realitys shows ou mesmo programas que ideologicamente conduzem a inferiorizarão
da natureza humana, num nível tão exacerbado que ficamos a pensar até que pondo
o homem e a mulher se sujeitam à humilhação para “ganhar um prêmio”.
O condicionamento ideológico é tão acentuado que homens e mulheres se
sujeitam a passar por situações das mais inesperadas possíveis e impossíveis.
Literalmente desumanas, podendo ser verificadas nos programas televisíveis No
Limite, Hipertensão, Pânico, Cante se puder, dentre outros, ou a um nível de
maquiavelismo, competitividade e individualismo expostos nos realitys shows.
Programas como estes são exibidos em várias partes do mundo e muitas vezes
aplaudidos.
A vida privada se tornou pública, mas os aspectos mais prementes da
essência humana acabam por ser banalizados. Por outro lado, o público – os/as
espectadores/as – acabam por serem algozes daqueles/as que se submetem a tais
situações.
Não estamos aqui fazendo uma apologia à censura e/ou liberdade de
expressão, mas sim, buscando exemplificar a que limites de desumanização homens
e mulheres se submetem em busca de um enriquecimento rápido e fácil, como
também ao poder e status que a mídia lhes oferece.
Há também outras formas de desumanização como é o caso do trabalho
escravo, da exploração do mundo do trabalho, da todos os níveis de violência, do
não respeito aos Direitos Humanos, do mundo do narcotráfico, dos vícios de
qualquer natureza, da miséria, dentre outros.
87
Portanto, podemos observar que o cotidiano alienado92 é real, concreto e
objetivo e nos inserimos nele. Neste estágio de condicionamento as relações sociais,
e consigo mesmo, se mostram como relações objetuais, em alto grau de reificação,
como também fetichizadas, ou seja, como “caráter místico” e fantástico das coisas.
Vários estudos já chamaram a atenção para esta relação coisal e objetual que
a genialidade de Marx colocou às claras para a Humanidade, portanto, acreditamos
não ser necessário aprofundar esta questão.
No campo da ética no Serviço Social, Barroco (2008) é a referência para que
se possa compreender a ética numa concepção marxista. Apenas para contemplar o
conceito de alienação, nos apropriamos do estudo desenvolvido por Netto (1981),
intitulado Capitalismo e reificação parafraseando alguns apontamentos hellerianos
contidos em sua Teoria das necessidades em Marx (HELLER, 1986).
1.5.1. Alienação e reificação no capitalismo: subserviência ao capital
Acreditamos que Heller demonstra claramente como as necessidades mais
vitais do ser social coisificam-se na sociedade regida pela lógica do capital. Ao
estudar a categoria necessidade em algumas das obras principais de Marx, Heller
construiu a sua Teoria das necessidades em Marx que, conjugada com o texto
Teoria, práxis e necessidades humanas, apresenta um verdadeiro estudo
monográfico stricto sensu em que Heller verifica o desfalecimento e a necessidade
de reavivar o sujeito revolucionário marxiano – a classe operária para-si em Marx.
Poderíamos complementar estes estudos como o texto O lugar da Ética no
Marxismo (HELLER, 2004, p. 111-121), onde Heller apresenta a natureza da ética
no marxismo e a proposta de uma consciência coletiva revolucionária.
92
Para Lefebvre (2009, p. 42), a “alienação do homem não é teórica e ideal, ou seja, algo que se
representa exclusivamente no plano das ideias e dos sentimentos; ela também é, acima de tudo,
prática e se encontra em todos os domínios da vida prática. O trabalho é alienado, escravizado,
explorado, tornado exaustivo e esmagador. A vida social, a comunidade humana, tornou-se
dissociada pelas classes sociais, arrancadas de si mesma, deformada, transformada em vida política,
enganada e empregada como meio de dominação do Estado. O poder do homem sobre a natureza,
do mesmo modo que os bens produzidos por essa potência estão açambarcados, e a apropriação da
natureza pelo homem social se transformou em propriedade privada dos meios de produção. O
dinheiro, esse símbolo abstrato dos bens materiais criados pela mão do homem (isto é, pelo tempo de
trabalho social, meio necessário para produzir este ou aquele bem de consumo), comanda e domina
aqueles que trabalham e produzem. O capital, essa forma de riqueza social, essa abstração (que, em
certo sentido, e em si mesmo, é somente um jogo de escritas comerciais e bancárias), impõe suas
exigências à sociedade interna, implicando uma organização contraditória da sociedade, ou seja, a
escravização e os empobrecimentos relativos da maior parte dela”.
88
A discussão que Heller desenvolve em torno do conceito das necessidades,
tem extrema ligação com a categoria valor que, precisamente, constitui o
fundamento materialista da consciência ética e política do ser social.
Para suas análises, Heller parte de alguns pressupostos:
1. O trabalhador não vende ao capitalista seu trabalho, mas sim a sua forçade-trabalho;
2. Elaboração de uma categoria geral de “mais-valia”93 (plus-valia) e sua
demonstração (beneficio, salário e renda da terra são apenas forma
fenomênicas de “mais-valia”).
3. Descobrimento do significado de valor-de-uso (Marx escreve que as
categorias de valor-de-uso e valor-de-troca não são novas, mas sim que
procedem da economia política clássica). (HELLER, 1978, p. 21).
É a prova mais cabal de que não faz um estudo lato sensu em Marx94, em
busca da categoria necessidade, mas sim, stricto sensu, na busca da essência
filosófica dessa categoria.
Heller parte da tese de que “[...] o lugar ocupado na [ou dentro da] divisão do
trabalho determina a estrutura da necessidade ou ao menos seus limites”95,
apontando, deste modo, que cada indivíduo se coloca, ou se apresenta, na e para a
vida cotidiana como um conjunto de necessidade diferenciadas.
Mas vai mais além, ao verificar a estrutura das necessidades. Heller
demonstra que não é somente a estrutura da divisão do mundo do trabalho que
influencia na diferenciação das necessidades e, por conseguinte, na estrutura e na
hierarquia dos valores.
Há determinações que antecedem o próprio mundo do trabalho, vamos dar
um exemplo: suponhamos que por algum motivo, uma pessoa esteja impossibilitada
de satisfazer suas necessidades primárias através do trabalho, ou seja, estaria
impossibilitada de inserir-se na divisão sócio-técnica do trabalho, sendo que, na
sociedade capitalista, essa inserção é condição sine qua non para a sobrevivência e,
até mesmo para um determinado reconhecimento.
Preferimos empregar a expressão “mais-valia” entre aspas por designar uma categoria de análise
em Marx. Sendo ela uma categoria pode conter em si outras formas de interpretações. Originalmente
Marx fez uso da terminologia plus-valia, que é utilizada originalmente por Heller, para designar o
excedente de trabalho não remunerado pelo capitalista.
94
Em sua entrevista a Laura Boelle, Guido Neri e Amadeo Vigorelli, publicada num conjunto de texto
intitulado La revolução de la via cotidiana (HELLER, 1982b), Heller descreve metodicamente como
chegou e concretizou seus estudos em Marx.
95
HELLER, 1978, p. 23. Grifos da autora.
93
89
Portanto, a princípio, suas objetivações já estariam prejudicadas e, contudo,
sendo esta impossibilitada de se objetivar naturalmente na vida social, passaria,
assim, a depender de outras pessoas. Deste modo, sua vida e a de outras pessoas,
estariam fadadas por fatalidades, causalidades e determinações estranhas a sua
vontade. As reações à esta situação seriam imprevisíveis e diferenciadas.
Ao passo que a sobrevivência deste indivíduo estaria automaticamente
condicionada a outrem, alterando todo o quadro da estrutura social e cotidiana em
que se inserisse, a ponto de até mesmo desenvolver outras necessidades e/ou
potencialidades que inicialmente não foram projetadas e/ou computadas.
Este assunto é assaz complexo para apresentarmos nessas notas
introdutórias, necessitando, de tal forma, um estudo a parte, a princípio, nossa
intenção é apenas apresentar um quadro sintético e geral da estrutura da vida
cotidiana na contemporaneidade, tendo em vista que quando estamos nos referindo
ao indivíduo social, não estamos de modo algum buscando individualizar o sujeito
coletivo marxiano, nem mesmo, individualizar o ser social, mas sim, demonstrar que
situações particulares e singulares podem alterar a natureza dos posicionamentos
éticos e políticos dos indivíduos na e para a vida social.
De acordo com as indicações hellerianas: “[...] nossas necessidades – e entre
elas, sobretudo, as radicais – são forças materiais que podem ser capazes de
transformar nossa sociedade”96. Portanto vamos apenas recuperar o conceito de
alienação segundo Netto (1981), tendo como alicerce a Teoria Social de Marx.
Conforme já apontamos, somos eminentemente sociais, ou seja, nos
constituímos humanos – hominização - com a internalização das experiências
individuais e grupais que realizamos. Humanizamo-nos, ou seja, nos constituímos
enquanto ser social, através da relação com a natureza e com os grupos sociais. Ao
introjetar elementos hominizadores e humanizadores, significado e significância
passam a ser a síntese do particular.
Quando as relações sociais aparecem estranhas a sua própria natureza – a
humana – ou seja, relações entre mercadorias, por exemplo, acabam por se tornar
relações entre coisas, passando a ter uma relação de mercado, na qual se perde o
caráter essencialmente humano. Agregada ao fetiche da mercadoria, estas, por sua
vez, passam a se constituir por relações sociais reificadas.
96
HELLER, 1982b, p. 138.
90
Essa
tautologia
é
necessária
para
diferenciar
as
relações
sociais
verdadeiramente humanas com as relações sociais objetuais, ou seja, quando estas
se convertem em relações entre coisas, estranhas a sua própria natureza. Quanto
mais uma sociedade apresenta formas coisais entre pessoas, maior é o grau de
alienação/estranhamento dessa sociedade – tanto maior é o grau de sua reificação.
A circunscrição fundamental do fetichismo é a supressão das mediações
sociais, subsumindo-as a meras substâncias coisais e autônomas. No estágio atual
do capitalismo, as coisas em si, assumem uma valoração substantiva, inerente ao
seu valor real, como por exemplo, a posse de meras mercadorias representa um
status de poder ou de socialização – a vida em sociedade fica condicionada ao ter e
não ao ser.
[...] A resposta marxiana é clara: na sociedade contemporânea a realização
da vida genérica do homem que se torna em instrumento para a
consecução da sua sobrevivência física (orgânica, animal, natural). Nas
condições desta sociedade, o trabalho, portanto, não é a objetivação pelo
qual o ser genérico se realiza: é uma objetivação que o perde, que o
97
aniquila. (NETTO, 1981, p. 56) .
Homens e mulheres passam a utilizar do outro como mero meio, como
instrumento para as suas necessidades. Mas não só o outro é utilizado desta forma:
sua própria existência torna-se um meio e não a teleologia da vida. O imperativo
categórico kantiano aqui é totalmente revogado.
Desse modo, todos os atributos da vida humana são transmutados em sua
forma de mercadoria e/ou coisa. O valor monetário passa a ser condição
imprescindível de toda a existência: lazer, trabalho, tempo, sobrevivência, vida
social, por fim, a vida “por inteiro” passa a ser reduzida à dimensão de lucratividade.
Nesse sentido, segundo Netto (1981, p. 56-57), a manifestação da vida
(Lebensäusserung) passa a ser a alienação da vida (Lebenstäusserung). A
alienação é uma forma específica e condicionada de objetivação do ser social no
cotidiano. Lukács demonstrara que há formas não alienadas de objetivação. É com
essa percepção – de objetivação não alienadas – que Heller desenvolve seus
estudos da não-cotidianidade e de uma vida social não alienada.
Para que o indivíduo possa assumir uma atitude ou consciência ética e
política, primeiramente é necessário que ele/ela tenha consciência de que é um ser
97
Grifos do autor.
91
humano e não uma coisa qualquer e, enquanto humano, estabelece relações sociais
humanas e não objetual ou coisal.
A vida cotidiana alienada, regida pela lucratividade, mercantilização e
imediaticidade,
anula
as
possibilidades
de
consciência
de-si-mesmo.
Por
conseguinte, anula as condições de liberdade e expressa um modo de ser altamente
destrutivo e perecível. Portanto, se a ética implica um modo de ser consciente, a
pessoa alienada - do ponto de vista do estranhamento de-si-mesmo - apresenta-se
na vida cotidiana tendo um comportamento não-ético.
O termo não-ético se refere à ideia de um comportamento não consciente e
negativo no que diz respeito a desvaloração dos componentes essencialmente
humanos. Assim, ao se objetivar na vida cotidiana elementos alienados/alienantes, o
ser social provoca sua própria destruição ou aniquilação, assim como a do outro e à
própria vida do planeta: cada negação é a afirmação dos seus contrários.
Nessa perspectiva, é importante frisar que as questões ecológicas, por
exemplo, estão diretamente ligadas a uma postura ética e política consciente, ou, a
um determinado modo de ser, de agir ou de se afirmar no mundo.
Contudo, se o modo de ser está condicionado a um não-ético –
alienado/alienante e estranho a sua natureza -, sua afirmação/objetivação – sua
ação -, na vida social, também se apresenta prejudicada, portanto, num sentido
negativo da ação política.
Se o ser social se vê ou se apresenta como coisa, como mercadoria, como
algo descartável e não-humano, como pode ele/ela ter ações revolucionárias? Como
pode assumir compromissos, atitudes, posicionamentos, responsabilidades, lutas
sociais, ou seja, uma vida social ética e um comportamento político?
Se o ser social é um ser da práxis e se essa práxis se coloca
alienada/alienante, estranha a sua natureza, por conseguinte, reificada, como pode
ter ou apresentar uma práxis revolucionária, consciente, constituída e constituinte?
Se a ação política está condicionada às relações objetuais ou coisais, se os
interesses apresentam-se regidos pela lógica do capital ou pelos interesses
privados, como essas ações podem visar à coletividade ou à liberdade? Se não há
uma relação de comunidade, de coletividade - um para-nós -, as relações e ações
políticas passam a vislumbrar interesses escusos ou estranhos aos sujeitos sociais e
à sociedade.
92
Nesse caminhar, a categoria propriedade privada também se apresenta como
uma forma de alienação. É sabido que esta categoria surge num momento histórico
em que o ser social delimita algo ou pessoa como sendo exclusivamente seu –
aquilo-que-é-meu, eliminando o caráter social das coisas ou pessoas – aquilo-que-énosso. Como se vê, há uma alusão da categoria valor às coisas, situações e
pessoas. A categoria valor aqui e no pensamento de Heller tem um caráter
altamente ontológico.
Na sociedade individualista – no individualismo -, aquilo-que-é-nosso
praticamente é eliminado, passando a valer apenas aquilo-que-é-meu. Não é a toa
que o sentimento de comunidade é uma categoria primaz no pensamento helleriano.
Em suas análises sobre Aristóteles e o mundo Antigo, Heller demonstra claramente
como a polis grega, ou o sentimento de comunidade (o público), passou do sentido
natural para o sentimento privado (individual).
A comunidade constituía um vínculo natural entre os cidadãos da polis grega
que impedia a aparição da moralidade individualizada. Respeitando-se suas devidas
especificidades e particularidades, Heller apresentava a própria comunidade grega
como um valor ou para um entendimento d’aquilo-que-é-nosso. O sentimento
defendido por Platão e Aristóteles não poderia ser mais característico.
[...] O indivíduo que não está em situação de realizar-se dentro da
comunidade, que se sente importante ante a realidade objetiva, busca na
ética somente a solução do problema de como estruturar sua própria vida. A
moral se reduz, em consequência, à pergunta que o indivíduo se formula a
propósito de “como viver” (HELLER, 1983, p. 368).
Desta forma, na polis grega, ou pequenas comunidades, os homens de bem
(aqueles que cuidavam dos assuntos econômicos, políticos, religiosos e militares –
da res pública), estavam envolvidos por inteiro como os assuntos da polis,
lembrando que o trabalho no mundo Antigo era constituído por sistema escravista e
que as mulheres eram excluídas dos assuntos da cidade-estado, porém, a dimensão
ética e política dos indivíduos expressavam diretamente o seu pertencimento à
comunidade.
Portanto, a consciência ética e política de comunidade era um elemento
natural e universal entre os cidadãos gregos (homens de bem). Segundo Heller
(1983), quando o centro político-administrativo da polis passa a centralizar-se num
determinado centro político imperial, paulatinamente, a consciência e a postura ética
93
e política deixam de fazer parte da vida social, passando, assim, a ser ocupada por
um sentimento de como se comportar na e para a vida social (o quê fazer e o quê
não fazer; o que é certo e o que é errado; o que é bom e o que é mau). A ética,
deste modo, fica restrita ao campo da moral, das regras e normas ou de um código
de conduta moral para a vida em sociedade.
Já em suas análises sobre O homem do Renascimento, Heller (1982a) aponta
que quando o conceito de homem estático passa para homem dinâmico, ou seja,
quando “[...] o indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento
pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento, e
[...] a relação entre indivíduos torna-se fluida; o passado o presente e o futuro
transformam-se em criações humanas”98, afasta-se cada vez mais do sentimento de
público, passando a imperar o sentido de privado.
[...] O desenvolvimento do conceito renascentista do homem, tinha as raízes
no processo através do qual os primórdios do capitalismo destruíram a
relação natural entre o indivíduo e a comunidade, dissolveram os elos
naturais que ligavam o homem à sua família, à sua situação social e ao seu
lugar previamente definido na sociedade, e abalaram toda a hierarquia e
estabilidade, tornando as relações sociais fluidas tanto no que se refere ao
arranjo das classes e dos estratos sociais como ao lugar dos indivíduos
neles (HELLER, 1982a, p. 11)99.
No âmbito da mercantilização, da lucratividade, da competitividade e da
imediaticidade, ou do capitalismo altamente desenvolvido, aquilo-que-é-nosso - o
para-nós - é totalmente aniquilado, até mesmo no corporativismo essa categoria se
apresenta em sua forma unitária e unilateral, enquanto fenômeno objetual.
[...] Há uma razão profunda e decisiva que obriga Marx, em distintos
momentos da sua evolução, trabalhando com a economia política, a
tematizar frontalmente a alienação e o fetichismo: é que ele se vê compelido
a explicar porque precisamente o modo de produção capitalista, que
assenta numa organização puramente social, engendra formações
econômico-sociais que manifestam o seu ser social como se fora a-social.
Desde que foca de maneira não-especulativa a realidade sócio-histórica,
este é o problema primeiro que a reflexão marxiana se põe: desvendar o
mecanismo fluido e dinâmico que faz com que aquelas formações
econômico-sociais que articulam um ser social puro, produto radical e
exclusivo da interação dos indivíduos, expurgado de componentes
extrínsecos e adventícios (laços de sangue, vinculações territoriais etc.),
sejam também aquelas onde a forma fenomênica deste ser se coloca de
modo a que os agentes sociais particulares, os homens vivos e atuantes,
98
99
HELLER, 1982a, p. 09.
Grifos da autora.
94
não reconheçam nela a resultante das suas múltiplas inter-relações reais.
(NETTO, 1981, p. 68)100.
Esta objetivação a-social do próprio ser social – do indivíduo social - constitui,
na vida cotidiana, uma das preocupações de Agnes Heller, esclarecendo que a
questão de interrogar como as coisas acontecem ou como se pode entender isso ou
aquilo, já era própria de sua natureza – do seu ser-assim.
Obviamente, a influência de seu pai e o contexto histórico vivido por ela,
contribuíram nessa direção. Juntamente a esta empiria, somou-se a experiência do
holocausto e o resultado dos regimes totalitários: “[...] Isso trouxe questões muito
semelhantes em minha alma”101.
A busca e a investigação mundial para tais acontecimentos formavam o
alicerce para seus primeiros questionamentos: “[...] como isso pôde acontecer?
Como podem as pessoas fazer coisas como estas?”102
Para Heller, estas questões de cunho moral103, e por isso mesmo própria do
campo das escolhas particulares e singulares dos sujeitos sociais, passam a ser
entendidas como éticas, quando se tem consciência, real e concreta, do movimento
da vida e das circunstâncias e determinações sociais:
[...] então, eu tive que descobrir o que a moralidade é tudo, qual é a
natureza do bem e do mal, o que posso fazer sobre o crime, o que posso
descobrir sobre as fontes da moralidade e do mal? Essa foi a primeira
indagação. [...] O outro inquérito era uma questão social: que tipo de mundo
pode produzir isso, que tipo de mundo permite que tais coisas aconteçam?
(POLONY, 1997).
Nesta fala, é notório o entendimento humano-sócio-histórico de Heller. O
acaso,
o
místico
e
mítico,
a
fatalidade/causalidade,
a
naturalidade
dos
acontecimentos, não aparecem como formas de objetivações estranhas ou
100
Grifos do autor.
POLONY, 1997.
102
POLONY, 1997.
103
Para Heller (2004, p. 05-06) a moral “é uma relação entre as atividades humanas. Essa relação é
– para empregarmos uma expressão bastante abstrata – a conexão da particularidade com a
universalidade genericamente humana. [...] A moral é o sistema das exigências e costumes que
permitem ao homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior – em
necessidade natural – a elevação acima das necessidades imediatas (necessidades de sua
particularidade individual), as quais podem se expressar como desejo, cólera, paixão, egoísmo ou até
mesmo fria lógica egocêntrica, de modo, a que a particularidade se identifique com as exigências,
aspirações e ações sociais que existem para além das causalidades da própria pessoa, ‘elevando-se’
realmente até essa altura” – grifos da autora. Portanto, a moral – que é estritamente social –
apresenta-se como um modus operandi regulador na e para a sociedade.
101
95
metafísico/sobrenatural à natureza humano. A práxis, na concepção materialista, é
ou se apresenta, em todos os aspectos (sociais e históricas).
Tendo em vista o caráter distintivo da sociedade contemporânea, que
apresenta um estágio de alienação altamente generalizado, podemos dizer que:
[...] a autonomia104 dos indivíduos é puramente ilusória, eles estão
subordinados a mecanismos e processos que não controlam e sequer
reconhecem como oriundos das suas próprias relações. A escravidão dos
indivíduos resulta tanto do fenômeno objetivo da exploração econômica (de
que a propriedade privada é o índice mais evidente) quanto da
internalização psico-social dos efeitos dela decorrentes, cujo resultado é a
sua desvinculação do todo da sociedade, do todo da existência social
enquanto são agentes sociais particulares. Através do conceito de
alienação, o que Marx aponta é a cisão operada entre o indivíduo, que se
toma a si mesmo como unidade autonomizada e atomizada, e a
coletividade, que é percepcionada como uma natureza estranha – a
alienação conota exatamente esta fratura, este estranhamento, esta
despossessão individual das forças sociais que são atribuídas a objetos
exteriores nos quais o sujeito não se reconhece. (NETTO, 1981, p. 69).
A visão de totalidade que Marx nos trouxe implica em conceber o mundo da
vida como um sistema de inter-relações, não no sentido sistêmico em que as partes
se interligam num todo, e o todo é a resultante das partes, mas sim, enquanto
complexos sociais particulares e singulares constituintes de um sistema mais
complexo e ainda maior – o todo se apresenta nas partes, mas estas não são o
todo, nem parte do todo; assim como a parte contém as representações do todo.
Em outras palavras, pensamos, por exemplo, numa obra de arte: o todo está
contido na obra, pois expressa o conhecimento humano-genérico do artista – o
conhecimento e desenvolvimento histórico-social – mas não é o todo, e sim
expressão do todo, assim como não é o artista, mas expressão do artista. Por outro
lado, o artista se reconhece na obra – sua produção -, mas não é a obra, assim
como a obra não é o artista, mas espelha toda a subjetividade e objetividade do
artista, que se reconhece nela. São complexos que se somam e se dividem ao
mesmo tempo e na mesma unidade.
104
Entende-se por autonomia “[...] o que sucede quando, na eleição entre alternativas, o feito da
eleição, seu conteúdo, sua resolução etc., estão marcados pela individualidade da pessoa.
Evidentemente, no plano ontológico, tem o primado da alternativa: sem alternativa não há autonomia,
assim como sem autonomia sempre pode haver alternativas”. (HELLER, 1977, p. 58). Heller (2004, p.
103) ainda complementa que “[...] para a média dos homens, é prática e teoricamente impossível
distinguir entre as estruturas valiosas ou relativamente valiosas da tradição, etc., e a sua função de
papel”.
96
O dinamismo do capitalismo promove simultaneamente a dessacralização do
mundo extra-humano – a antropormofização social e a alienação social – a
desantropormifização social. Em outras palavras, assim como o Renascimento
provocou o desenvolvimento do ser social em seu mais alto grau – as possibilidade
objetivas de ser “por inteiro”105, também potencializou as possibilidades para a
individualização da vida social (a vida privada), a cumulação primitiva e,
consequentemente, o desenvolvimento do capitalismo, das relações de exploração,
da luta de classes e da alienação/reificação da vida social.
Porém, isso não quer dizer que todos/as, naquela ocasião, agiram ou
potencializaram tal intensidade/possibilidade da mesma forma, ou até mesmo, houve
aqueles/as que negassem ou se abstivessem dessa situação106.
O Renascimento não foi um acontecimento casual. As condições, contextos,
situações, potencialidades e objetivações, tanto sociais quanto individuais, ou seja, o
contexto sócio-histórico contribuiu para que houvesse um desenvolvimento em todas
as esferas heterogêneas107, assim como, na época de Marx, a classe operária
encontrou elementos sócio-históricos para a sua organização, mobilização,
movimentação e ação libertadora.
Netto (1981, p. 81) aponta que,
[...] enquanto a organização capitalista da vida social não invade e ocupa
todos os espaços da existência individual, como ocorre nos períodos de
emergência e consolidação do capitalismo (nas etapas, sobretudo, do
capitalismo comercial e do capitalismo industrial-concorrencial), ao individuo
sempre resta um campo de manobra ou jogo, onde ele pode exercitar
minimamente a sua autonomia e o seu poder de decisão, onde lhe é
acessível um âmbito de rotoalização humana que compensa e reduz as
mutilações e o prosaísmo da divisão social do trabalho, do automatismo que
ela exige e impõe etc.
Porém,
[...] na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida
social preenche todos os aspectos e permeia todos os interstícios da
existência individual: a manipulação desdobra a esfera da produção, domina
a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que
105
Estado em que homens e mulheres participam na vida cotidiana “com todos os aspectos de sua
individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos,
todas as suas capacidade intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões,
ideias, ideologias” (HELLER, 2004, p. 17). Porém, isso não implica que possam ser realizadas em sua
intensidade.
106
Esta dualidade da vida social será estudada no próximo item.
107
Estruturas sociais que se diferenciam entre si.
97
penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares é o
inteiro dos indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo psicosocial se destila de todos os poros da vida e se instila em todas as
manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia
reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização
doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação dos imagináveis, a
gratuidade do ócio etc.) convertem-se em limbos programáveis. (idem, p.
81-82).
Cremos que estamos mergulhados “por inteiro” nesse universo reificado e
fetichizado, mas, será então verdade que chegamos ao “fim da história”
fukuyamiano? Acreditamos que não, pois ainda há espaços para que possamos
reverter esta condição.
Porém, as possibilidades muitas vezes aparecem como utópicas, no sentido
de algo idealizado e sem possibilidade de realização. Mesmo que assim apareça,
ainda assim apresenta-se como uma crítica ao modo de vida contemporâneo e atual.
A vida cotidiana é essa fruição, justaposição de objetos, substâncias,
implementos, circunstâncias, dinamismo, extremismo, contradições ou, como diria os
pós-modernos, esta ambivalência: homem e mulher na cotidianidade são atuantes e
fluidores, ativos e receptivos, “[...] mas não tem nem tempo nem possibilidade de se
absorver inteiramente”108.
Tal é o estado de sua subserviência aos apelos e apetites do capital que, em
seus aspectos mais prementes da hominização, o ser social não pode ou não
consegue se entregar “por inteiro” e aguçar todas as suas possibilidades e
potencialidades.
Desta forma, não consegue assumir um estado de consciência ética e política
que implique numa
determinada ação revolucionária. Torna-se necessário
desmanchar os elos, os grilhões que nos prendem a essa submissão. Tal é o “papel”
do/a agente revolucionário/a - coletivo ou individual. Mesmo sendo individual, o paranós deve está implícito em-si-mesmo e para-si-mesmo.
Há aqueles/as, que por situações concretas, conseguem por si só chegar à
condição de individualidade e romper com os grilhões da alienação, porém, grande
parte ainda se perde no emaranhado da lógica capitalista. Outros, por sua vez,
conseguem se libertar dessas armadilhas pela sua inserção nos grupos sociais
revolucionários - nos sujeitos sociais coletivos. É essa dialética que trinca o
monolítico granito estrutural do capitalismo.
108
HELLER, 2004, p. 17-18.
98
Para finalizar estas exposições iniciais e introdutórias, necessitamos ainda
verificar como nós, indivíduos sociais, inserimos ou somos inseridos na vida
cotidiana: condicionados/as a representações desde o nascimento, ou seja,
condicionados/as a representar papéis sociais estampados, em grande medida, num
determinado estado de alienação.
1.6.
A representação dos “papéis sociais” no palco da vida cotidiana
Ao nascermos, segundo Heller, assumimos continuamente “papéis sociais”
na e para a vida cotidiana. Conforme já apontamos, o indivíduo é inserido num
mundo repleto de contradições, normas, regras, valores, costumes, culturas,
instituições,
sistemas
e/ou
estruturas
consuetudinários,
juízos
provisórios,
ultrageneralizações, representações, ou seja, “num mundo já dado” – já constituído
antes mesmo de nascermos.
Nascemos em condições sociais reais e concretas, em sistemas, estruturas,
determinações, expectativas, instituições, modos de ser social e historicamente
determinadas. A assimilação deste contexto, as ciências da psique já explicam - se
dá pelos sentidos e através de representações – ou se quisermos, por
condicionamentos.
Aprendemos primeiramente a usar e manipular as coisas, a apropriar
mecanicamente dos elementos/substâncias, em conformidade aos hábitos e
costumes de cada época, da estrutura e estratificação social, dos contextos sociais
distintos, momentos históricos diferenciados, enfim, de acordo com os padrões
sociais já estabelecidos.
Heller109 aponta que essa assimilação é realizada, particularmente, através
de imitações110 (mímesis111). A mímesis está relacionada à característica constitutiva
109
HELLER, 2004, p. 87-110.
Segundo Guimarães (2002, p. 16), em termos helleriano, a imitação se considera como “a primeira
ação do cotidiano, pois antes de os sujeitos terem consciência, obedecerem a regras e normas etc.,
existe o comportamento que se constitui por imitações e que se faz presente a partir dos primeiros
anos de vida das pessoas. [...] A imitação constitui-se numa objetivação em si, porque, a partir da
imitação de um comportamento ou pensamento, passo a me apropriar de algo ou de alguma coisa.
Esta característica pode permanecer presente durante toda a vida das pessoas, pois é um
comportamento, que muitas vezes é reforçado socialmente”.
111
Mímesis ou mimese (do grego – μίμησις – imitação), conceito utilizado inicialmente por Platão, no
Livro X d’A República, que, segundo Gagnebin (1993, p. 68) se referia a um “modelo a ser seguido”
através da imitação ou representação desse modelo. Contra Platão, Aristóteles, no livro Poética,
reabilita a mímesis enquanto “forma humana privilegiada de aprendizagem” (idem, p. 70), conceito
que acreditamos mais apropriado nesta investigação.
110
99
e particular de aprendizagem do ser social, sobretudo, na infância. Portanto, a
mímesis faz parte da natureza humana.
Ao assimilar as imagens112, modos, condutas, ações, representações,
opiniões, usos e costumes, ou seja, ao tomar contato com as coisas e situações do
cotidiano, o indivíduo traz para sua mente as imagens e representações da
realidade. Em sua particularidade, o ser social se adapta as formas sociais
(LUKÁCS, 1971, p. 09).
Para Aristóteles (1984), “[...] o imitar é congênito no homem”. É por meio da
mímesis que o humano aprende as primeiras noções das coisas e da vida social.
[...] Nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas
mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as
representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o
aprender não só apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais
homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo
por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e
discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo, “este é
tal”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 243).
Diferente dos animais, o humano é capaz de imitar não apenas momentos e
funções isoladas, mas também modos inteiros de conduta e de ação. No exemplo já
referido das meninas-lobos, o processo de imitação/representação se apresentou
restrito ao mundo animal, tal a similitude encontrada. Ao serem introduzidas no
universo social, não foram capazes de assimilá-lo em sua totalidade. Este é um caso
assaz interessante para análises, porém, não nos cabe aqui nem é nosso propósito
fazê-las.
Mas esta imitação/representação não se apresenta de modo absoluto. O ser
social não só se apresenta enquanto simulacro, mas parte da mímesis para os
diversos estágios do desenvolvimento social: “[...] o homem não pode alienar-se de
sua natureza de um modo absoluto [...]”113.
[...] A sociedade não poderia funcionar se não contasse com sistemas
consuetudinários de certo modo estereotipados. Esses sistemas
constituem o fundamento do sistema de “reflexos consuetudinários” do
homem, sistema que permite aos membros de uma sociedade mecanizar a
maior parte de suas ações, praticá-las de um modo instintivo (mas instintivo
por aquisição, não como resíduo de uma estrutura biológica), ou seja,
112
Imagem aqui é usada enquanto representação dos cinco sentidos do ser social – visão, olfato,
audição, paladar e tato.
113
HELLER, 2004, p. 88.
100
concentrar o pensamento, a força moral etc., nos pontos concretos exigidos
pela realização de novas tarefas. (HELLER, 2004, p. 88).
A vida cotidiana se tornaria complicada, ou até mesmo impossível de ser
realizada sem as imitações/representações. Os nossos atos mais corriqueiros se
tornariam impossível de serem realizados se parássemos a cada momento para
refletir sobre eles. Por exemplo, o simples ato de escovar os dentes pela manhã,
tornar-se-ia complicado se já não absorvêssemos os mecanismos próprios para a
sua realização. Se fossemos refletir a cada manhã sobre o seu processo ou
significado deste ato, não conseguiríamos nem mesmo sair de casa ou realizar as
demais tarefas cotidianas114.
A reciprocidade social é substantiva e resultante das relações sociais que, em
outras palavras, é o reconhecimento mútuo dos seres diante da mesma espécie e
que partilham as mesmas atividades, portanto, social, plural e heterogênea 115.
Na imediaticidade116, em sua particularidade e singularidade, os indivíduos
respondem117
à
sua
sobrevivência
e
manutenção
imediatamente.
É
na
imediaticidade que se instaura o processo de alienação, ao produzir e reproduzir as
imitações/representações sociais carregadas de
114
juízos provisórios 118 e
de
As tarefas cotidianas são realizadas, em sua grande maioria pela repetição. Guimarães (2002, p.
13-14) salienta que podem acontece na esfera do particular/individual – repetição de movimentos já
treinados e assimilados -, ou seja, ações que desempenhamos sem mesmo nos darmos conta (abrir e
fechar portas, janela, torneiras, escovar os dentes etc.) – ações automáticas, repetitivas, objetivas e
sem concentração. Como também na esfera do economicismo, ou seja, no intuito de economizar
tempo, ações rápidas e breves, como por exemplo, “para obter alimento, não preciso plantar, esperar
crescer, colher, vou direto ao supermercado e compro o que desejo” (idem, p. 14), ou seja, na esfera
da imediaticidade.
115
A heteroneidade da vida cotidiana compreende as “atividades que compõem o conjunto das
objetivações do ser social” (NETTO; CARVALHO, 2010, p. 67). Em outras palavras, compõe a
hierarquia concreta das atividades intrínseca, extrínsecas e estritamente humanas incomum,
heterogêneas e variáveis. Para Guimarães (2002, p. 13), essa heteroneidade “se caracteriza por
sermos todos diferentes; não há pessoas iguais, é a alteridade a partir da singularidade”.
116
Relativo às ações (ou objetivações) imediatas da vida cotidiana que, na sua grande maioria, se
apresentam na esfera do pragmatismo, ou seja, “ações baseada num pensamento essencialmente
prático, empírico, que não necessita de teorias que explique, pois a prática diária confirma que aquilo
é o verdadeiro” (GUIMARÃES, 2002, p. 16).
117
Lukács (2004, p. 39) em sua Ontologia do ser social afirma que o ser social é “capaz de dar
respostas”.
118
Heller (2004, p. 43-63) traz uma importante contribuição para as análises sobre os preconceitos –
uma forma de juízo provisório. As formas de preconceitos impedem categoricamente as
possibilidades de liberdade do ser social. Buscaremos mais a frente detalhar com melhor clareza esta
categoria vinculada ao pensamento helleriano. Para Guimarães (2002, p. 17), os juízos provisórios
“são assim considerados porque não possuem nenhuma teoria que os sustentem, ou seja, são
pensamentos empíricos baseados na experiência cotidiana e social das pessoas, sendo que a prática
os confirma como verdadeiros” ou não.
101
ultrageneralizações 119 - portanto, representações miméticas alienadas -, se
afirmando, deste modo, enquanto ser-ai120 alienado/a.
Para Heller (2004, p. 102-103),
[...] o capitalismo desenvolvido aliena todas as relações humanas,
cristalizando em papéis todos os sistemas consuetudinários, todas as
hierarquias de comportamento etc., de tal modo que os fatos vitais
imprescindíveis para a convivência humana, tais como a imitação, os
estereótipos básicos, a relação com a tradição, os costumes etc., passam a
aparecer sob forma de papéis.
No mundo regido pela lógica capitalista as imitações/representações sociais
aparecem, genericamente, estranhas e hostis à natureza. Para Heller, “[...] o caráter
estruturado do uso, a presença simultânea de várias reações consuetudinárias
(sistema tanto mais complexo quanto mais desenvolvida é a sociedade), é um dos
pressupostos da função papel” 121.
Ao objetivar-se no cotidiano, em sua imediaticidade122, o ser social apropriase somente de alguns aspectos de suas capacidades genéricas123, outros, porém,
podem não aparecer ou aparecem como estranhos, necessitando, assim, de
estímulos para a sua consciência:
[...] apropriar-se das habilidades do ambiente dado, preparar-se124 para o
mundo dado, significa, portanto, não somente interiorizar e desenvolver as
capacidades humanas, mas também e ao mesmo tempo – tendo em conta
119
A ultrageneralização é um “tipo de juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento:
provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra
confirmação no infinito processo da prática” (HELLER, 2004, 44-46 – grifos da autora), podendo ser
científicas ou cotidianas, com base em fatos e/ou dados reais ou do senso comum, verdadeiros ou
falsos.
120
Referência ao ser-assim (LUKÁCS apud HELLER, 1977, p. 9-10).
121
HELLER, 2004, p. 88. Grifos nossos.
122
O ser social, em sua imediaticidade, assimila os aspectos e substâncias da sua própria realidade,
daqueles que estão circunvizinhos a sua esfera de possibilidades, outros lhe aparecem estranhos. A
serem estimulados (consciente ou inconscientemente) ou ser social pode ou não apropriar-se destas
novas situações que podem apresentar-se inesperadamente. A falta de possibilidades também pode
ser fator de procura e descoberta, portanto, aparecem como estímulos. Em sua Teoria das
necessidades em Marx, Heller traça um horizonte para entendermos mais amiúde como podem se
manifestar ou não os estímulos. Não é nossa proposta entrar no campo da psicologia para
compreendermos melhor estes aspectos, apenas de trazer a tona alguns dos aspectos mais
relevantes das obras de Heller.
123
Entende-se enquanto humano-genérico a totalidade das ações e reações humanas social e
historicamente constituídas, ou seja, é “sempre representado pela comunidade ‘através’ da qual
passa o percurso, a história da humanidade” (HELLER, 2004, p. 21).
124
No original em espanhol, o tradutor utiliza o verbo madurar que, segundo tradução quer dizer
“alcançar ou haver alcançado um desenvolvimento completo” (VOX, 2010, p. 710), portanto, processo
pelo qual o ser social assume a sua maturidade.
102
a sociedade em seu conjunto – apropriar-se da alienação. (HELLER, 1977,
125
p. 29) .
Ao produzir/reproduzir ações sociais alienadas, alienantes e reificadas, em
outras palavras, fundamentadas pela lógica do “mais forte”, do “mais rápido”, do
“descartável”, o ser social passa a reproduzir “papéis” objetuais, negando a sua
própria natureza e enquanto ser de consciência 126, ou seja, enquanto ser ético e
político, enquanto ser de liberdade.
Contudo, o ser social paralelamente ao desenvolvimento social, e em
proporção crescente, transforma suas próprias carências e necessidades em
potencialidades, que podem ou não serem objetivadas. O êxito, a falta dele ou a sua
negação, podem contribuir para que o ser social procure superar a sua situação
imediata, como também pode não reagir ou, até mesmo, criar novas formas de agir:
“[...] a negação é um importante impulso para a realização de novas formas de
vida”127.
Para Heller128, “[...] toda negação é, ao mesmo tempo, afirmação: esse
princípio também se amplia plenamente ao caráter”, conforme já exemplificamos
anteriormente. Contudo, ao negar a sua própria negação - negação enquanto
humano-genérico -, afirma-se na sua singularidade enquanto ser consciente de simesmo e ao objetivar-se enquanto ser consciente de si-mesmo, objetiva-se
particularmente em-si-mesmo.
Quanto maior a sua exposição à realidade fetichizada, maior será a sua
identificação particular com os “papéis sociais” alienados e alienantes, por
conseguinte, contribui para o aumento das suas objetivações alienadas e alienantes.
Contudo, quanto mais se afirmar em-si-mesmo enquanto ser consciente de-simesmo, maior será o campo das possibilidades que se abrem para uma consciência
ética e política para-si-mesmo, por conseguinte, maior será a extensão das
possibilidades e liberdades.
125
Grifos da autora.
Kosik (2010, p. 241-242) define consciência humana como a “atividade do sujeito que cria a
realidade humano-social como unidade de existente e de significados, de realidade e de sentido”,
portanto, onto-criativa. Porém, para nossas exposições, este conceito se apresenta muito restrito, não
contemplando nossas análises. Desta forma, o estágio de consciência do qual estamos trabalhando,
merece aprofundamentos mais detalhados que apresentaremos mais adiante.
127
HELLER, 1982, p. 156.
128
HELLER, 2004, p. 108.
126
103
Este jogo de palavras – que não são palavras soltas, mas sim categorias
constitutivas e constituintes da ontologia do ser social – indicam a complexidade da
ontologia do ser social.
O ser social é sempre e simultaneamente, ser particular e ser genérico:
particular enquanto resultante da síntese de múltiplas determinações genéricas;
genérico porque é a sínteses de múltiplas determinações histórico-sociais; e, por fim,
singular enquanto síntese entre o particular e o genérico.
O indivíduo social – enquanto consciente de-si-mesmo -, não expressa a sua
singularidade enquanto ser isolado, mas sim enquanto síntese de múltiplas
determinações sociais - é o ser social em sua singularidade-individualidade,
simultaneamente social e consciente de seu lugar na e para a vida social.
Não representa a essência da Humanidade – ou o humano-genérico -, mas
contém em si sua substância. Ao mesmo tempo em que é singular – enquanto
indivíduo social – é particular e genérico – enquanto ser social. Tal é a antropologiaontológica de sua genericidade.
Essas objetivações fundam e enriquecem a sua própria atividade
teleológica129, estabelecendo mediações bastante articuladas, de modo que não só
a responda no campo da imediaticidade, mas também a pergunte, produzindo na
sua consciência as possibilidades de objetivação e, dentre elas, escolhe a que
melhor satisfaça às estas suas carências e necessidades (LUKÁCS, 2004, p. 39).
É na tensão e contradição dos acontecimentos cotidianos que se expressa o
palco da vida e a vida de todos nós. Historicamente, homens e mulheres, delegaram
a outrem ou a instituições a sua colocação na vida social, representando “papéis
sociais”, deixando-se conduzir por caminhos já traçados e planificados por outras
pessoas ou por interesses que nem sempre constituem a satisfação das
necessidades
mais
prementes
da
genericidade
humana,
determinando
e
condicionando vidas, muitas vezes, a modos de ser alienados e alienantes.
129
Vázquez (2007a, p. 77) aponta que “[...] toda ação especificamente humana exige certa
consciência de um fim, ou antecipação ideal do resultado que se pretende alcançar”, portanto,
teleologia é a “capacidade humana de projetar finalidade às ações; finalidades que contêm uma
intenção ideal e um conjunto de valores direcionados ao que se julga melhor em relação ao presente”
(BARROCO, 1999, p. 122). Segundo Abbagnano (2007, p.1110), teleologia é “a parte da filosofia
natural que explica os fins das coisas”. A dimensão teleológica compreende a capacidade do ser
social de “projetar antecipadamente na sua imaginação o resultado a ser alcançado pelo trabalho, de
modo que, ao realizá-lo, não apenas provoca uma mudança de forma da matéria natural, mas nela
realiza seus próprios fins” (IAMAMOTO, 2006, p. 40).
104
Contudo, o modo de ser e a consciência ética e política não pode se
reconhecer na alienação. Desse modo, torna-se necessário lutar contra qualquer tipo
ou modo de alienação, jamais podemos permitir que outrem o/a reduza à “condição
de verme”, contudo, “[...] quem se considera como um verme, não pode depois
reclamar de ser pisoteado”130.
130
KANT apud HELLER, 1984, p. 95-96.
105
CAPÍTULO II
2.
PANORAMA DA VIDA COTIDIANA
“A diferença radical ‘apenas’ – e este ‘apenas’
representa o mundo inteiro – está basicamente no
fato de que a totalidade do mundo ‘dado’ não
assume para o indivíduo a sua quase
transcendência”.
Agnes Heller
2.1. Individuo social e cotidiano: a vida como ela é
O indivíduo é o ser social em sua singularidade-particularidade e genericidade
e é em sua individualidade que se apresenta consciente de-si-mesmo e em-simesmo – autoconsciência -, deste modo, pode ou não conduzir sua vida segundo
suas próprias atitudes e capacidades - para-si-mesmo, como também pode objetivar
sua consciência do para-nós – viver em prol da coletividade.
Para Lukács (1978, p. 13),
[...] a individualidade131 já aparece como uma categoria do ser natural,
assim como gênero. Esses ‘dois’ polos do ser orgânico132 podem se elevar à
pessoa humana e ao gênero humano no ser social tão-somente de modo
simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade cada vez mais
social.
Marilda Iamamoto (2006) já se ocupou de analisar a estrutura e ação do
sujeito social e o mundo do trabalho, trazendo importantes contribuições para as
análises do indivíduo social, que ora nos ocupamos, porém, acreditamos ser
oportuno para nossas análises, transcrever a referência a Coutinho (1990)133 trazida
por ela:
[...] o que importa é que o conjunto da reflexão marxiana é dominado pela
ideia que, no social, se dá uma articulação entre o mundo da causalidade e
da teleologia, ou seja, entre o fato de que as ações humanas são
determinadas por condições externas aos indivíduos singulares e o fato de
131
Ser-em-si-mesmo. (HELLER, 1977; 1978; 1983; 2004).
Ente natural e biológico.
133
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Serviço social e Sociedade,
nº 34 ano 11. São Paulo: Cortez, dez. de 1990, p. 21-40.
132
106
eu, ao mesmo tempo, o social é constituído por projetos que os homens
tentam implementar na vida social. A ontologia marxista dirá que o ser social
é formado por determinismo e liberdade. Ou, em termos mais modernos
utilizados pelas ciências sociais contemporâneas, que a sociedade é
formada simultaneamente por momentos de estrutura e momentos de ação.
134
(COUTINHO apud IAMAMOTO, 2006, p. 37) .
Partimos do pressuposto de que o desenvolvimento histórico e social da
sociedade é dado pelos indivíduos sociais e que a história é a substância da
sociedade: “[...] a sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem,
pois os homens são portadores da objetivação social, cabendo-lhes exclusivamente
a construção e transmissão de cada estrutura social”135.
Heller chama a atenção para o fato de que a história não só se constitui de
individualidades e particularidades, mas também, da continuidade de toda a sua
heterogeneidade – o humano-genérico -, e que a estrutura social dessa sociedade é
composta pelas suas esferas heterogêneas (ex.: produção, relações de propriedade,
estrutura política, vida cotidiana, moral, ciência, arte etc.), numa relação de
alteridade.
É importante salientar que, segundo Heller (1982),
o conceito de
particularidade e individualidade, não são categorias substanciais e absolutas, mas
sim, relativas, e que se “[...] desenvolvem no curso da relação sujeito-objeto, ou seja,
representam apenas dois pontos extremos de possíveis condutas vitais, entre uma e
outra existem infinitas mediações”136.
A particularidade ao extremo aproxima-se do estado de alienação e da
imediaticidade; por outro lado, a individualidade extremada é a substância do
egoísmo individualista. Acreditamos que o melhor seria o justo meio aristotélico,
visto por um novo prisma - não o da virtude, mas sim, o da liberdade.
Nesse ponto, entendemos que a diferença entre o mundo Antigo e a Idade
Média estava relacionada ao conceito de estático e de transcendência, ou seja, a
visão de humano vinculava-se a subserviência de forças míticas e místicas. O
destino estava nas mãos da natureza ou de seres sobrenaturais.
Heller se ocupa em suas inquirições da tese da imanência e da objetividade
que contém em si o conceito de dinamismo social. Porém, a objetivação social pode
estar determinada por causalidades, situações inesperadas ou ser inerente à
134
Grifos da autora.
HELLER, 2004, p. 02.
136
HELLER, 1982, p. 161-162.
135
107
vontade humana e às determinações circunstanciais. É por essa razão que o
resultado inicialmente projetado, pode ou não ser diferente daquilo que se é
esperado.
[...] A história é o processo de criação e continuidade do homem por sua
própria vontade, por seu próprio trabalho, no sentido de sua universalidade
e uma liberdade crescente, e a característica primordial do homem é
precisamente essa autoatuação que forma o próprio sujeito. O indivíduo
chega a ser indivíduo humano ao isentar-se ativamente em seu processo
apropriando-se de certas realizações objetivadas da prévia evolução da
humanidade de acordo com a altura de seu tempo e de suas concretas
137
possibilidades sociais (MARKÚS, 1974, p. 54) .
Para Heller (1982a), o marxismo considera todas as épocas históricas como
complexos particulares e totais em si mesmos, apesar de cada uma se desenvolver
orgânica e dialeticamente a partir da época anterior. Por essa razão, rejeita como
estéril, tanto em teoria como na prática, toda a procura de semelhanças que redunde
em normas, como também rejeita particularmente o “[...] precedente como um motivo
para as decisões e ações sociais concretas dos homens na história”138.
Desta forma, ao atingir um determinado nível de consciência histórica, os
seres sociais deixam de ter qualquer necessidade de procurar um precedente para
os motivos. Pelo contrário, “[...] fazê-lo impedi-los-ia de avaliarem corretamente a
situação e de tornarem as suas decisões em função dela”139.
Destacamos na referência a Markús, que a condição de individualidade, na
qual Heller se apoia para suas análises e estudos, não é a única condição em que o
ser social se apresenta na e para a vida social.
A condição de individualidade, mesmo pertencendo à esfera da singularidade
do indivíduo social, ou seja, daquilo que é mais singular e íntimo do indivíduo, não
desconsidera a influência do social. O singular é a síntese da relação concreta do
particular e do genericamente humano, enquanto o particular é síntese da relação
concreta do universal e do individual.
O ser social não é simplesmente ser singular, mas sim, simultaneamente
individual e particular e, ao mesmo tempo, genérico. Sua objetivação social também
é simultaneamente individual-particular e genérica:
137
Grifos do autor.
HELLER, 1982a, p. 77. Grifos do autora.
139
HELLER, 1982a, p. 77.
138
108
[...] em outras palavras: o ente singular humano sempre atua segundo seus
instintos e necessidades, socialmente formados mas referidos ao seu Eu, e,
a partir dessa perspectiva, percebe, interroga e dá respostas à realidade;
mas, ao mesmo tempo, atua como membro do gênero humano e seus
sentimentos e necessidades possuem caráter humano-genérico. Todo
homem se encontra, enquanto ente particular e singular, numa relação
consciente com seu ser humano-genérico nessa relação, o humanogenérico é representado para o indivíduo como algo dado fora de si mesmo,
em primeiro lugar através da comunidade e, posteriormente, também dos
costumes e das exigências morais da sociedade em seu conjunto, das
normas morais abstratas etc. em sua atividade social global, o homem está
sempre “em movimento” entre sua particularidade e sua elevação ao
genericamente humano; e é função da moral conservar esse movimento.
(HELLER, 2004, p. 80).
Essa antropologia-ontológica do ser social particular é necessária para
entender que o particular torna-se singular na medida em que produz a síntese do
seu Eu e que transforma conscientemente os objetivos e aspirações individuais e
sociais em objetivos e aspirações particulares de-si-mesmo e em-si-mesmo para as
aspirações para-si-mesmo: “[...] o indivíduo na vida cotidiana é sempre e
simultaneamente ser particular e ser genérico140”.
Nessa simbiose antropológico-ontológica, o particular se torna indivíduo
quando a sua vida se constitui, conscientemente, objeto de sua existência, assim se
apresenta como ente consciente de sua genericidade e, como tal, escolhe
conscientemente as suas aspirações e possibilidades para suas objetivações
concretas.
A esfera particular do ser social - a sua particularidade -, não expressa
apenas o ser isolado, mas significa, ainda, a síntese de sua singularidadegenericidade, aquilo que há de mais premente na esfera de sua individualidade: “[...]
todo particular é ao mesmo tempo único e genérico-universal, [...] o particular
começa a madurar para transforma-se em indivíduo quando deixa de aceitar a
‘circunstância definitiva’ e em ambas as direções”141.
[...] o homem nasce num mundo – concreto – que está mais ou menos
alienado. Porém, nem todos os particulares devem aceitar obrigatoriamente
este mundo, nem aceitá-lo precisamente tal como é; nem todos estão
obrigados a identificar-se com as formas alienadas de comportamento
(HELER, 1977, p. 55).
140
141
HELLER, 2004, p. 20.
HELLER, 1977, p. 55.
109
Na vida cotidiana, homens e mulheres tendem a conservar e se subordinar as
formas, estruturas, convenções, regras, enfim, às estruturas ou situações conforme
se apresentam. O novo, o diferente e o diverso causam estranheza ou, até mesmo,
repulsão, externando, muitas vezes, nas mais diversas formas de violência,
preconceitos e discriminações.
[...] A particularidade do homem está vinculada aos sistemas de
preconceitos pelo fato de, também na própria sociedade, predominarem –
embora em outro plano e com variações – sistemas de preconceitos sociais
estereotipados e estereótipos de comportamentos carregados de
preconceitos (HELLER, 2004, p. 50).
A relação preconceituosa, na ótica helleriana, é uma relação de amor e ódio.
Esta relação é bem visível, como por exemplo, nos extremismos religiosos. Nessas
situações, defende-se arduamente determinada concepção religiosa como verdade
absoluta, odiando qualquer outra forma de expressão diferente daquela defendida. O
embate entre duas ou mais concepções diferenciadas, muitas vezes, é estabelecido
por conflitos violentos: “[...] os preconceitos servem para consolidar e manter a
estabilidade e a coesão da integração social”142.
Este sentimento é ainda mais forte quando implica as questões éticas e
morais. O sistema de normas e regras foi estabelecido diante da necessidade de se
viver harmoniosamente em sociedade. É dessa necessidade que surge a moral.
Na Antiguidade clássica o objeto e objetivo da vida humana era a felicidade.
O modo de ser, estar e agir, consentia em viver uma vida feliz ou em criar formas
para que a vida assim se estabelecesse. Na Idade Média, a felicidade foi relegada
às questões de transcendência e de espiritualização da vida social – deificação da
vida social. Os homens e mulheres deveriam buscar na beatitude para uma vida
verdadeiramente feliz.
Heller fez um estudo detalhado desses dois momentos distintos da história da
Humanidade e do desenvolvimento singular do ser social. Nesses estudos, Heller
aponta a construção e a desconstrução dos laços comunitários, o despertar da
consciência individual, a autonomia e a liberdade do ser social (quando esse passa
a agir por si mesmo), e os primórdios elementares de uma vida alienada/alienante.
Nesses estudos, não deixa de perpassar pelo período medievo e o surgimento da
sociedade burguesa.
142
HELLER, 2004, p. 53. Grifos da autora.
110
Não vamos nos ater a estes dois períodos em seus pormenores, ou seja, o
mundo Antigo (HELLER, 1983) e o “Renascimento” (HELLER, 1982a), mas
buscaremos apresentar alguns apontamentos importantes para entender o processo
histórico para à emancipação da individualidade.
Ao estudar a ética aristotélica e o mundo Antigo, Heller (1983) traça uma
fronteira entre duas épocas e situações bem distintas: a polis grega (onde o
sentimento ético e comunitário era uma questão natural) e a fragmentação dessa
relação; o legado jônico e o legado de Ática.
Baseado
uma
concepção
moral-comunitária,
os
gregos
clássicos
expressavam o conjunto de problemas estudados e elaborados pela comunidade
natural, mas ao mesmo tempo refletiam o acúmulo de sentimentos e ideias do ser
social privado que constitui o perfil dominante da época helenística, tanto no plano
prático como teórico.
Heller aponta que a ética aristotélica é a primeira ética imanente da história da
filosofia e a primeira a valorar o aspecto humano da moral. Uma ética científica e
completa, edificada sobre a base do zóon politikón, sobre a análise das
particularidades da consciência do ser social e sobre a teleologia do trabalho,
apreendendo pioneiramente os elementos particulares e genéricos do indivíduo e da
dialética que medeia a relação entre o ente e a comunidade, da moralidade e da
moral.
Em Aristóteles o homem (sendo que a sociedade grega desconsiderava a
mulher enquanto cidadã) aparece com um ente que vive a própria moral no social,
na medida em que, como indivíduo, possui um caráter social ativo e teleológico.
Graças a atividade analítica de Aristóteles, se desintegram os pontos de vista
unilaterais
e
absolutos
e
que
se
manifestavam
nas
relações
humanas
heterogeneamente míticas e místicas.
Na época helênica, as comunidades não se constituem como formas naturais
de existência da vida individual. O homem não se encontra na vida política da polis
nem na vida pública. As cidades passam a ser governadas por centros políticos
distantes e inacessíveis da comunidade.
Os cidadãos passam a se constituir enquanto povo e a serem dominados e
subordinados por um poder central (imperialismo). A política se separa da ética e a
vida política se separa da vida comunitária.
111
Com a dissolução dos laços comunitários, a atitude eudemônica 143 é
conduzida a uma teoria dos prazeres vulgares: “[...] para Epicuro, como para os
estóicos, o fim não é a felicidade individual, mas sim a virtude. O fim do indivíduo é a
virtude, a vida “boa”, ou, todavia, a vida suportável, mas não a felicidade”144.
Quando o cristianismo passa a ser a religião oficial do império romano e o
imperador assume a figura de representante do poder divino sobre a Terra, o povo
fica submetido ao poder a-temporal e divino, antropomorfizado na figura do
imperador. A própria descrição dos atributos da divindade assume o caráter
antropomórfico centrados na figura do imperador.
Nesse período, que remonta ao século III da era cristã, a vida humana fica
submetida aos desígnios onipotentes, onipresentes e oniscientes da divindade
antromorfizada e o mundo regido por uma força divina e sobre-humana - Deus. Tudo
o que desafiava esta força, teria que ser destruído.
Um bom exemplo disso é a projeção cinematográfica Alexandria (Ágora). O
filme, dirigido por Alejandro Amenabár, lançado em 2009, conta a história da suposta
primeira filósofa mulher – Hipátia – que ensinava filosofia, matemática e astrologia
na escola da Alexandria, no Egito, por volta dos anos de 355 a 415 da era cristã.
Neste período, Alexandria vivia sob o domínio do Império Romano de
Alexandre Magno e se vê invadida pelo fanatismo do cristianismo intolerante judaicocristão. Um dos pontos centrais do filme é o incêndio da grande biblioteca da
Alexandria, resultante das intolerâncias religiosas da época. Mostra ainda o
enfrentamento entre os cristãos, os judeus e a cultura greco-romana.
Hipática teria sido a filósofa que primeiro descobrira a teoria heliocêntrica do
sistema solar, porém, a intolerância abismal à ciência e, principalmente, à mulher,
acaba por eliminar esta grande personagem da história. No filme, é impressionante
os acontecimentos mais violentos e bárbaros que o ser humano pôde cometer numa
época em que compreende a passagem da cultura greco-romana para a cultura
medieva e o descaso ao conhecimento científico.
Nessa época, a ética é concebida enquanto postura moral, ou como código
de conduta moral para elevação da situação de beatitude. As desigualdades passam
a ser naturalizadas, determinando homens e mulheres e serem joguetes do poder
divino e do próprio destino. O poder e a fortuna são relegados ao azar: “[...] os
143
144
Relativo a felicidade enquanto princípio e fundamento da vida moral (ABBAGNANO, 2007, p. 455).
HELLER, 1983, p. 368-369.
112
motivos mais individuais são sociais, ainda que seja de maneira diferente segundo
os imperativos (normas e usos) da sociedade” 145.
Voltando ao mundo Antigo, Heller (1983) aponta que Aristóteles foi quem pela
primeira vez separou a moral humana da divina, afirmando que os deuses não
podem ter uma moral, dado que não podem cometer nenhuma transgressão às leis
(princípio da perfectibilidade). Esforça-se em estabelecer uma relação harmoniosa
entre a esfera da ontologia e da ética, desmitologizando o universo da ética e da
política,
dizendo
que
o
mundo
está
determinado
qualitativamente
e
quantitativamente.
Para Heller (1983), Aristóteles foi o primeiro a compreender a essência
ontológica e o caráter social do humano. Compreendeu o papel da estrutura da
teleologia - sobretudo a teleologia do trabalho - e constituiu formas de valores que
eram próprias da natureza hominal.
Porém, devido às características de sua época, a ética aristotélica acabou
representando um código de conduta moral, individual e social, não havendo ainda
lugar para o rompimento dos costumes e das finalidades determinadas: “[...] a ética
de Estagirita pressupõe uma moral dialética e flexível, porém, num determinado
contexto sócio-histórico dado”146.
Porém, Heller ainda aponta que “[...] nos dois milênios que se passaram
desde então não tem sido suficiente para que volte a superfície a complexidade que
está contida na ética de Aristóteles”147.
No mundo Antigo, todos os valores integrantes da unidade individual e social,
são decisivos na relação com a comunidade. A justiça, por exemplo, passa a ser
uma questão de caráter, de respeito, de hombridade, de virtude; já na Idade Média a
justiça passa a ser um atributo da divindade (de Deus) e cabe aos seus
representantes (a igreja) aplicar as correções/punições necessárias para a
eliminação do pecado (mancha venial que impede a beatitude). Com a secularização
da sociedade e a formação dos Estados nacionais, estas questões passaram a ser
de domino do Estado e da Lei.
O pensamento da era da cristandade, dominado pelas paixões humanas, fez
com que o ser social submetesse toda a sua particularidade aos imperativos morais
145
HELLER, 1983, p. 337.
HELLER, 1983, p. 326.
147
HELLER, 1983, p. 366.
146
113
dos interesses privados das esferas religiosas. No Renascimento, a religião perdeu
seu papel enquanto ideologia dominante e a concepção secular ganhou espaço na
vida cotidiana. As expressões artísticas permitem a volta da categoria de medida, ao
mesmo tempo – em consequência do declive das normas religiosa – aflora a ideia de
autonomia moral e, consequentemente, a individualidade do ser social.
Quando a unidade imediata entre indivíduo e comunidade começou a romper,
em momentos distintos da história da Humanidade, o interesse individual constitui-se
a mediação entre o particular e o social. Quanto mais se despreza a unidade entre
indivíduo e comunidade, maior é o papel do interesse privado enquanto regulador
para as ações humanas.
Somente durante o desenvolvimento da sociedade burguesa, quando a
existência do interesse regulador se consolidou entre o público e o privado é que os
imperativos individuais criaram raízes nas relações sociais e se consolidaram como
interesses extremamente egoístas. Heller (1983) aponta que na sociedade do
privado, os interesses destroem a unidade entre indivíduo e comunidade.
Heller (1982) assinala que o individualismo burguês é um fenômeno ambíguo:
ao mesmo tempo em que expressava a dissolução das velhas hierarquias de valor,
possibilitando organizar uma nova escala de valores e necessidades próprias;
também possibilitou a consolidação do egoísmo cotidiano, transformando as mentes
enquanto calculadoras, a fim de valorar a luta pela concorrência econômica: “[...] o
individualismo
burguês
apresenta-se
como
uma
função
particular
dessa
individualidade”148.
A consciência de que o humano é um ser histórico e social, é um produto do
desenvolvimento burguês, contudo, a condição de realização do ser social é a
negação da existência burguesa.
[...] O egoísmo burguês não é apenas uma prática comercial, mas o único
princípio que deve ser consequentemente realizado para conquistar o
poder. O indivíduo forte tem o direito de não levar em conta nem mesmo os
preceitos morais que são aceitos pelo homem médio egoísta; e define,
abertamente, o segredo da sociedade capitalista: conquistar o poder sobre
os homens médios (HELLER, 1982, p. 158).
Com o Renascimento o conceito de dinamismo do humano e da sociedade,
transformava o passado, presente e futuro em criações humanas. Tempo e espaço
148
HELLER, 1982, p. 157-158.
114
se humanizam. Reportamos-nos as próprias palavras de Heller para uma síntese
desse período:
[...] a revolução do Renascimento foi uma revolução na concepção do
homem. A liberdade, a igualdade e a fraternidade juntas tornaram-se uma
categoria antropológica, com o que a humanidade despertou pela primeira
vez, como humanidade, para a consciência de si própria. Do mesmo modo,
a liberdade, o trabalho, a multilateralidade, a ausência de limites
representaram juntas a essência do homem, a sua “natureza”, sendo,
portanto, declarado que o homem era capaz de tudo. Mas as primeiras
explosões da Terra e, presentemente, do universo, mostraram que no
processo de realização das potencialidades do homem o presente não
constituía o fim, mas apenas o início. Por entre os cataclismos do século
XVI, no entanto, tornou-se cada vez mais duvidoso que o homem pudesse
viver com as suas próprias potencialidades. As devastadoras guerras
religiosas e as desumanidades da acumulação primitiva pareciam ainda
mais terríveis porque eram levadas a cabo por uma humanidade que os
homens sabiam ser “grande”, “sublime”, “capaz de tudo”, “capaz de guiar o
seu destino”. Durante algum tempo, o panegírico foi substituído pelo
ceticismo e pelo desespero. Mas este estado de espírito não persistiu
durante muito tempo na antropologia. A filosofia da sociedade burguesa
emergente não rejeitou a noção de autocriação, nem a de multilateralidade
(técnica), nem a das capacidades infinitas. Mas explorou numa nova
direção; procurou o motivo que levava o homem a criar. E encontrou esse
motivo – que já não era sublime, nem moral – na motivação real do
individuo burguês: o egoísmo (HELLER, 1982a, p. 361).
O conceito de “Renascimento” trazido por Heller (1982a) significa uma
determinada época histórica em que houve um processo total de remodelação
social. Toda a estrutura social, econômica, cultural e política da sociedade foi
afetada e alterada. O domínio da cultura envolveu a vida cotidiana em todas as suas
esferas heterogêneas, alterando as maneiras, o pensar, as práticas morais e os
ideais éticos e cotidianos, as formas de consciência religiosa, a arte e a ciência.
[...] Só podemos falar de Renascimento quando todos estes aspectos
surgem ligados e, num mesmo período, fundamentados em certas
alterações da estrutura social e econômica: em Itália, Inglaterra e França e,
em parte, na Holanda. (HELLER, 1982a, p. 09-10).
As primeiras forças produtivas capitalistas e as relações sociais burguesa
surgem a partir do desenvolvimento da imanência 149. Na medida em que a produção
de riqueza se transformava na meta a atingir, todas as características sociais
previamente existentes tornavam-se restritas.
O conceito estático de humano é substituído pelo de dinâmico. O indivíduo
passa a modelar o seu próprio destino, não apenas no sentido ético, mas em relação
149
Próprio do EU. (IMMANENCE – latim - in – manere = permanecer dentro).
115
ao dinamismo impingido à vida humana e social, transformando-se em categoria
central da condição dialética da sociedade: “[...] o homem é um ser relativamente
autônomo que cria o seu próprio destino, luta com a sua sorte e faz a si próprio” 150.
Do ponto de vista ético, a secularização da vida social durante o
Renascimento, abriu caminho para o ceticismo e o espírito crítico, para a
investigação científica e a discussão racional: “[...] é cada vez mais comum verificar
que a atitude do indivíduo perante a Igreja é uma atitude de indiferença ou desdém,
e que esta indiferença não tem qualquer relação com os sentimentos ou o seu
comportamento religiosos”151.
Nessa fase, a base social da concepção cristã de humano começa a ruir. Ao
lado da subordinação ao Estado unificado e da religião, surge outra forma de
subordinação:
a
subordinação
nacional,
primeiramente
à
lealdade
local,
posteriormente, no sentido moderno de nação.
Com a secularização da vida social, a religião, paulatinamente, perdeu o seu
conteúdo ético sobre a vida social: “[...] o indivíduo era capaz de aperceber-se do
seu destino com relativa clareza, e podia enfrentar com relativa segurança a ligação
entre suas intenções, ações e escolhas, por um lado, e as suas consequências, por
outro”152.
Na Idade Média as questões éticas e morais estavam submetidas aos
dogmas e sanções religiosas. Durante o período do Renascimento, estas questões
passaram paulatinamente a serem restritas a uma determinada moralidade individual
e a um sistema individual de valores. Com a secularização cada vez mais crescente
da sociedade, estas questões a ficaram a cargo das Leis.
A ética constantemente é atribuída ao princípio maniqueísta do bem e do
mau. Heller (1982, p. 158) coloca que “[...] é preciso separar a ética dessa tradição:
“[...] é preciso interpretar de modo novo as normas éticas”153.
De maneira alguma estamos aqui nos referindo a anulação da moral e da
moralidade, porém, tanto a moral como a moralidade tornam-se rígidas “[...] quando
alguém segue unicamente as prescrições recebidas de fora, sem operar nenhum
150
HELLER, 1982a, p. 21-22.
HELLER, 1982a, p. 56.
152
HELLER, 1982a, p. 60. Grifos da autora.
153
HELLER, 1982, p. 159.
151
116
tipo de seleção. [...] Quanto mais pensarmos com nossa cabeça, tanto menos
seremos rígidos”154.
Heller (1982) traz uma importante colocação sobre o princípio maniqueísta: a
tese da imanência e da historicidade destrói, de certa forma, as duas faces da
mesma moeda, segundo qual, fazemos nossa própria história. É inegável que
fazemos coisas boas e más, o mal não é tão somente a ausência do bem, conforme
as teses agostinianas, mas a destruição ou anulação daquilo que é bom, com base
na concepção aristotélica.
Do ponto de vista ético, o mal é a desvalorização dos componentes
essenciais da genericidade do humano e do mundo. Se o bem é construção
histórica, assim também o mal se desenvolve e é construído no desenvolvimento
histórico pela ação dos homens e das mulheres: “[...] na verdade, bem e mal são
determinações reflexivas”155. Não vamos nos ater a esta discussão já que foge aos
nossos propostos, mas deixamos aqui registrado para futuras reflexões.
Com o Renascimento, é cada vez mais crescente o processo de humanização
do mito e, simultaneamente, a deificação do humano. Na medida em que “[...] Deus
se torna homem, também os homens são divinizados”156. A desantropomorfização
da divindade propicia o desenvolvimento das potencialidades humanas e do
conhecimento social e individual do ser social.
Acreditamos, assim como Heller, que o conhecimento de si próprio só pode
se dar através da práxis. É no conflito diário entre as exigências sociais, a educação
social e a própria moralidade individual que nos conhecemos. A justa posição de
experiências vividas, reunidas com as experiências que se tem vontade de viver
provoca a emancipação da individualidade.
O ser social envolve-se numa força absolutamente enérgica, onde cada
detalhe torna-se parte dos anseios, das paixões, das decisões, dos sentimentos, do
caráter, enfim, do Eu.
Esta vazão subjetiva e objetica do Eu provoca a impressão de um
conhecimento novo, algo que não se pareça com nada aquilo que já tivesse sido e
conhecido antes. Entrar num universo desconhecido, num território do qual não se
154
HELLER, 1982, p. 160.
HELLER, 1982, p. 161.
156
HELLER, 1982a, p. 67.
155
117
tem nenhuma ideia, é permitir-se conhecer a cada momento incondicionalmente e
sem estar condicionado às ultrageneralizações ou sistemas consuetudinários.
O autoconhecimento envolve, de certa maneira, a destruição das barreiras
ultrageneralizadoras, dos juízos provisórios e dos sistemas consuetudinários. Tal é o
estado para a liberdade. É preciso, desse modo, estar aberto para o novo.
Não se pode perder esse sentido de liberdade, que é a oportunidade de
explorar o desconhecido. Todo ser humano é um território escondido a ser
explorado, com todas as experiências pessoais e sociais adquiridas ao longo do
tempo:
[...] o autoconhecimento, como estudo da natureza humana, significa duas
coisas. Equivale primeiramente a uma antropologia geral – a aquisição de
conhecimentos sobre a “natureza humana” e a investigação de cada um de
nós como indivíduos pertencentes à espécie “humana” (HELLER, 1982a, p.
190).
Nessa aproximação psicanalítica conforme exposto por Heller, é inevitável o
conflito porque somos obrigados paradoxalmente a decidir e, em grande medida,
essa possibilidade nem sempre surge de forma positiva: “[...] O homem deve
participar na vida pública, dar-lhe forma e ser formado por ela; mas não deve ser
completamente absorvido por ela. O seu comportamento combina a participação e a
distância”157.
Heller aponta que é necessário conhecer a natureza humana para definir as
características e potencialidades existentes que podem e devem ser desenvolvidas
em função de certos objetivos e tendências. Com o Renascimento, a autorrealização
e a autoafirmação e acrescentaríamos, a autolibertação da personalidade
transformou-se num objetivo – numa teleologia.
A vida privada, paulatinamente, criou substância em relação ao público. Do
ponto de vista ético, quanto mais o público e o privado se separam, mais os
aspectos da vida privada são acentuados e, de igual maneira, quanto mais os
interesses e as relações monetárias capitalistas passam a comandar as esferas da
particularidade, maior é a força do egoísmo ante as mediações e objetivações
concretas da vida social.
Nesse sentido, a moralidade e a eticidade não podem decorrer da utilidade,
bem como não podem decorrer do conceito de medida: “[...] o utilitarismo burguês
157
HELLER, 1982a, p. 96.
118
não se preocupou [em] dar qualquer explicação dos valores que eram hostis ao
mundo burguês e que, além disso, negavam a universalidade das relações de
utilidade”158.
[...] A moralidade tem dois aspectos: o da intenção e o da consequência.
Ambos fazem parte da responsabilidade moral. Se minha intenção é do tipo
ético, se se refere a valores, temos todas as premissas para que minha
ação seja moral. Mas isso não basta: faz parte do dever moral reconhecer
as consequências da ação. Evidentemente, só podem ser consideradas as
consequências previsíveis (HELLER, 1982, p. 155).
Para Heller (1977, p. 143), os indivíduos extraem sempre do mundo real – ou
daquele em que se nasce – os valores, as normas, os conceitos morais, como
também, a repulsa à ordem dos valores pré-estabelecidos por uma determinada
sociabilidade.
Quando se vive particular e unicamente de acordo com os padrões préestabelecidos, os indivíduos reprimem suas necessidades particulares ou as
canaliza para zonas não proibidas, por outro lado, o indivíduo consciente de-simesmo, se “educa”, “cultiva as qualidades que crê carregadas de valor e se
distancia de outras”159: “[...] não há moral inata em nós” 160.
Heller (1977) define a consciência como “comparsa das exigências genéricas
do sujeito”:
[...] não é o “sentido” moral, nem tem relação necessária com a
espontaneidade. [...] A consciência só pode funcionar quando se conhece o
bem e o mal; nela se há explicito o saber concernente a ambas as coisas
(naturalmente só o saber referido a um bem e a um mal concretos)
(HELLER, 1977, p. 145).
Nesse sentido, Heller traz do conceito kantiano, uma definição para a
moralidade e para a legalidade: a moralidade implica num dever; já a legalidade,
numa determinada obrigação – na força da lei.
Portanto, a moralidade impõe padrões universalmente válidos de conduta
para o bem comum. O indivíduo moral, de certa forma, é aquele/a que
conscientemente defini o bem do mal e busca agir de acordo com um determinado
sistema de valores.
158
HELLER, 1982a, p. 204.
HELLER, 1977, p. 144.
160
HELLER, 1983, p. 318.
159
119
Por outro lado, o moralista – ou moralismo – é aquele/a (ou sistema) que
impõe, na maioria das vezes, ferozmente e coercivamente aos outros padrões ou
sistemas pré-estabelecidos, podendo ou não utilizar da legalidade: “[...] a moral de
um mundo alienado é sempre alienada”161.
O utilitarismo não pode e não deve ser nunca a referência para a moralidade,
muito menos para a ética. O utilitarismo burguês provocou a redução de todos os
fenômenos da existência humana e o princípio da utilidade passou a governar a
atitude moral e ética na e para a vida social.
Também é importante destacar que o ritmo da vida individual e social foi
alterado significativamente no período renascentista. O tempo nas diferentes épocas
históricas decorre em alguns casos “lentamente” e em outros “com maior rapidez” 162,
mas não é o tempo que possui um ritmo, mas sim os acontecimentos e estes, por
sua vez, são irreversíveis.
[...] O tempo é a irreversibilidade dos acontecimentos. O tempo histórico é
a irreversibilidade dos acontecimentos sociais. Todo acontecimento é
irreversível do mesmo modo; por isso, é absurdo dizer que, nas várias
épocas históricas, o tempo decorre em alguns casos “lentamente” e em
outros “com maior rapidez”. O que se altera não é o tempo, mas o ritmo da
alteração das estruturas sociais. Mas esse ritmo é diferente nas esferas
heterogêneas. É esse o fundamento da desigualdade do desenvolvimento,
que constitui uma categoria central da concepção marxista da história.
(HELLER, 2004, p. 03)163.
A temporalidade e a historicidade164 é um fator primordial na perspectiva
helleriana. O momento histórico e suas implicações certamente trazem novos
elementos para os sistemas filosóficos, como também, para o arcabouço humanogenérico. Com o desenvolvimento das forças produtivas dos primórdios da
sociedade burguesa, o humano universaliza-se - se bem que esta universalização
ocorreu sobre formas cada vez mais alienadas e alienantes.
161
HELLER, 1977, p. 151.
HELLER, 2004, p. 03.
163
Grifos da autora.
164
Para Goldmann (1986, p. 22-24), “o fundamento ontológico da história é a relação do homem com
os outros homens, o fato de que o eu individual só existe como pano de fundo da comunidade. O que
procuramos no conhecimento passado é a mesma coisa que procuramos no conhecimento dos
homens contemporâneos”. Portanto, a historicidade não se desvincula da ontologia do ser social. A
categoria da historicidade na concepção marxiana é fundamental para entendermos estas questões,
sobretudo, porque “estudar a história é primeiramente tentar compreender as ações dos homens, os
móveis que os moveram, os fins que perseguiram, a significação que para eles tinham seus
comportamentos e suas ações”.
162
120
Os níveis de consciência racional e de liberdade aconteceram durante
estágios, períodos e condições distintas na história da Humanidade.
Heller pontua que num determinado momento do mundo Antigo e no período
renascentista, as condições objetivas propiciaram meios para uma consciência
racional e de liberdade, porém, propiciaram também os primórdios da acumulação
primitiva, ensaiando os passos para o desenvolvimento do capitalismo. O
individualismo surge quando se rompe a relação natural entre o indivíduo e a
comunidade.
Na sociedade feudal, o ser social estava vinculado ao local de nascença na
escala da estratificação social. Com a divisão social do trabalho nascida do
capitalismo e a abertura da hierarquia social, tornava-se possível que uma mesma
pessoa ocupasse diferentes degraus na escala social:
[...] podia ser ativo em ramos completamente diferentes da divisão do
trabalho, ser barbeiro num dia e escritor no seguinte e condottieri no
terceiro, adaptando formas de comportamentos diferentes umas a seguir às
outras e continuando apesar disso a ser o mesmo homem (HELLER, 1982a,
p. 170).
O ser social só se afirma como ser criador através do trabalho, portanto, não
é somente indivíduo pensante, mas indivíduo que age consciente e racionalmente
(IAMAMOTO, 2006, p. 41). Portanto, o trabalho constitui a categoria fundante da
objetivação concreta do ser social na vida social conforme já apontamos.
Conforme os laços com a comunidade estreitavam-se e o lugar ocupado na
divisão social do trabalho tornava-se representativo, a vida comunitária foi perdendo
paulatinamente a sua importância. Neste ponto, o capitalismo obrigou a dissolução
dos sentimentos comunidades.
A vinculação com a condição de sociabilidades coincide com a vinculação do
indivíduo à comunidade ou grupo social, contudo, quanto maior for essa integração
social, maior será o caráter comunitário, maior será sua afirmação e identificação
com a comunidade ou grupo social em que se insere ou é inserido. Com a
dissolução dos laços entre indivíduo e comunidade, a vida privada tomou o lugar da
vida pública.
A sociedade e o modo de produção capitalista possibilitaram as relações
sociais cotidianas em sua forma alienada e alienante. Concordamos com a
colocação de Estevão quando aponta que a obra de Heller “[...] tem como objetivo
121
discutir a possibilidade de uma vida cotidiana não-alienada, tendo em vista que a
filosofia sempre se ocupou em colocar a vida cotidiana fora de seu espaço (com
Hegel) ou referir-se ao cotidiano como algo alienado por princípio (com Heidegger)”
(ESTEVÃO, 1989, p. 57).
Quanto mais heterogênea e estruturada for uma sociedade concreta, tanto
menos poderá se constituir, ela própria, numa unidade comunitária de homens e
mulheres.
Heller (2004) traça um perfil de como se dá a relação do indivíduo com a
comunidade. Primeiramente expõe a relação entre indivíduo e grupo que pode se
basear perfeitamente pela causalidade, por exemplo, quando um indivíduo é
matriculado numa determinada sala a ou b de um determinado curso, independente
das condições internas ou externas, é uma questão casual.
Seguindo o mesmo raciocínio, podemos também afirmar que essa inserção
pode ser intencional ou individual. A título de exemplificação dessa afirmação, nos
reportamos a um caso particular desse pesquisador: lembro-me165 que quando
estava cursando o 2ª Grau, havia várias salas do 1º Colegial, que assim se
denominavam: 1º A, 1º B, 1º C, 1º D, 1º E e 1º F. As letras denominavam o nível
dos/as alunos/as que obtinham as melhores notas no ano anterior (8ª série do 1º
Grau).
Sendo assim, a sala do 1º A compreendia os/as alunos/as que tiravam o
melhor desempenho e as maiores notas, ou seja, que obtiveram um bom
comportamento, consequentemente, a sala do 1º F compreendiam os/as alunos/as
com as menores notas e que não tiveram um bom comportamento, de acordo com o
que se pensava na época.
A intencionalidade da direção da escola provocava certa disputa e certo
preconceito e discriminação entre os/as alunos/as das outras salas para com os/as
do 1º E e 1º F, principalmente, aos/as do 1º F, considerada a sala dos/as mais
fracos/as.
Esse tipo de atitude compreende uma intenção e não uma causalidade e, por
conseguinte, os vínculos estabelecidos pelo grupo seriam em conformidade com a
relação estabelecida entre seus membros. A causalidade implicaria àquele/a aluno
ou aluna que, aleatoriamente, fosse matriculado numa dessas salas. E a dimensão
165
A referência na 1ª pessoa do singular justifica-se por se referir a assuntos particulares desse
pesquisador.
122
individual, quando a inserção se desse sob a forma de uma escolha pessoal e
consciente.
Na medida em que os fatores deixam de ser casuais e se constituem por
escolhas, do ponto de vista da sociabilidade, o indivíduo constrói o grupo ou
comunidade a que pertence e a relação estabelecida integra os vínculos
comunitários.
[...] Nem todo grupo, portanto, pode ser considerado como uma
comunidade, embora qualquer grupo possa chegar a ser comunidade. Para
acrescentar um outro aspecto: o indivíduo pode pertencer a numerosos
grupos, na medida em que o fato de pertencer a grupos define-se através
de uma certa analogia de interesses e de objetivos, bem como mediante
uma certa atividade em comum. Mas há finalidades, interesses e atividades
importantes, ao lado de outros que não o são na mesma medida. Isso
origina uma hierarquização de “nossos” grupos, distinguindo principalmente
entre os grupos que representam nossos principais interesses, atividades e
objetivos secundários, inessenciais (HELLER, 2004, p. 66-67).
A vinculação do indivíduo a grupos sociais resulta, diretamente, em sua
condição de individualidade e na hierarquia dos valores, que porventura, constituem
o campo do caráter e da personalidade, por que não dizer de identidade166. Do ponto
de vista da consciência ética e política, essa vinculação tem implicações diretas no
seu modo de ser, pensar e agir em-si e para-si.
O pertencimento a este ou naquele grupo e/ou comunidade está diretamente
vinculado também à hierarquia heterogênea de necessidades (as necessidades
naturais ou primárias, as necessidades naturalmente necessárias e/ou socialmente
determinadas, necessidades necessárias, as necessidades espirituais e as
necessidades radicais).
Heller (1978) ao analisar o conceito das necessidades em Marx, coloca que
as necessidades primárias, físicas ou naturais, compreendem o conjunto das
necessidades
biológicas,
essenciais
à
conservação
das
condições
vitais
(autoconservação), podemos citar, por exemplo, que o trabalho, em sua condição de
manutenção da vida, é estritamente necessário, portanto, comum a todos os
humanos.
As necessidades naturalmente necessárias são aquelas construídas e
surgidas historicamente, que carregam em si os componentes culturais, morais e os
166
As identidades ou a identidade são constituídas pela positividade e negatividade da relação que se
estabelece com a estrutura e conjuntura histórica e social e com o cotidiano, portanto, é um produto
social.
123
costumes para uma determinada vida social e se distinguem em cada indivíduo,
como por exemplo, a necessidade de comer com talheres ou não.
As necessidades necessárias são aquelas que geralmente são geradas
mediante o crescimento da produção material. As necessidades espirituais ou
morais167 se distinguem na coletividade e se relacionam à esfera das condições
individuais.
Na esfera das necessidades individuais, podemos colocar também as
necessidades livres (ou de liberdade). As necessidades radicais, conforme já
pontuamos, são aquelas geradas pelo próprio sistema capitalista.
A sociedade capitalista cria necessidades de ostentação, poder, status e
necessidades necessárias; paradoxalmente cria riqueza e pobreza; sua dinâmica
está motivada pelas necessidades de valoração do capital, compondo, assim, o
reino da produção material, como o reino das necessidades.
No capitalismo a mercadoria apresenta-se como uma coisa apta a satisfazer
as necessidades humanas em qualquer classe ou estamento social, assim como
para satisfazer as necessidades físicas como os fetiches (ou desejos e fantasias) da
vida social. Por conseguinte, a satisfação das necessidades constitui condição sine
qua non e hic et nunc da substância da mercadoria.
Mas o capitalismo não produz somente mercadorias, o seu fim não é apenas
a satisfação das necessidades, mas também, a valoração do capital, a produção de
“mais-valia” e de “mais-capital”, ou seja, o aumento da riqueza social, mas esta, por
sua vez, não está dividida igualitária e socialmente; está concentrada nas mãos de
poucos: “[...] os indivíduos particulares não participam do conjunto da riqueza
social”168.
Neste sistema, homens e mulheres se convertem em escravos de si
mesmo/a. Colocam-se como escravos/as do tempo, dos objetos, das máquinas, da
tecnologia, enfim, reificam-se. O trabalho se constitui uma carga (um peso) porque é
executado como consequência de pressões externas e de necessidades, portanto, é
um elemento que aliena em sua própria natureza.
O trabalho se apresenta como algo repulsivo, oneroso, forçado, imposto
desde o exterior; por outro lado, o não-trabalho aparece como “liberdade e
167
O surgimento da moral, ou seja, o conjunto de regras e normas válidas para todo o mundo e que
determina a conduta da vida em sociedade ( viver em harmonia socialmente) é uma necessidade que
surge com os complexos da vida social. Portanto, uma necessidade histórica e social.
168
HELLER, 1978, p. 51.
124
felicidade”169e, por conseguinte, o tempo disponível – disposable time -, passa a ser
preenchido pelo consumo e desfrute dos bens materiais.
[...] A ideia é clara e coerente. Os problemas surgem quando analisamos as
relações do disposable time com a produção e o consumo. Disposable time
é o tempo do consumo (HELLER, 1978, p. 140).
Nesse sentido, podemos também relacionar a educação ou as atividades
intelectuais que, a passos largos, tem se tornado mercadoria e a sua efetividade tem
sido condicionada à lucratividade e à imediaticidade, assim como, muitas vezes, são
encaradas como algo forçado, imposto, desagradável, desestimulante, dentre outros
adjetivos pejorativos.
O ócio, no sentido grego, ou conforme é entendido na contemporaneidade
como ócio criativo, passa a não fazer sentido no capitalismo e não tem sentido
também separar o tempo em que homens e mulheres trabalham para satisfazer suas
necessidades necessárias do restante, pois, todo o bem produzido, de modo
imediato ou mediato, busca satisfazer os interesses do capital.
[...] É a sociedade capitalista que provoca a manifestação das necessidades
radicais, produzindo, desse modo, suas próprias sepulturas; necessidades
que são parte constitutiva e orgânica do “corpo social” do capitalismo, mas
de satisfação impossível dentro desta sociedade e que precisamente por
isso motivam a práxis que transcende a sociedade determinada (HELLER,
1978, p. 106).
Eis o paradoxo. Ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista produz a
satisfação das necessidades, também produz as desumanidades, por conseguinte,
também produz as necessidades radicais de superação dessas mesmas
desumanidades e necessidades.
Com relação às desumanidades, nos reportamos a Heller em suas análises
shakespearianas, acreditando que possa contribuir para sintetizar esta violência do
capitalismo:
[...] os vilãos sentem-se em casa num mundo que pensam destituídos de
quaisquer valores, enquanto heróis ingênuos, desiludidos, são infelizes –
pois o desprezo pelas pessoas é um sentimento frio e desapaixonado,
enquanto o ódio é apenas o amor invertido (HELLER, 1982a, p. 182).
169
HELLER, 1978, p. 142-143.
125
Diferentemente das Sociedades Antigas, o destino dos indivíduos não está
determinado pelo nascimento, mas sim, pelo lugar que ocupa na divisão social do
trabalho, portanto, é relativo ao modo de produção conforme já apontamos. Cada
um/a se propõe a realizar os seus próprios fins, porém, muitas vezes, os resultados
diferenciam do que inicialmente foram projetados, tendo em vista a heterogeneidade
das necessidades e dos valores.
Nesse sentido, a pergunta sobre o significado das ações e relações humanas
irá demandar a vinculação do ser social com as necessidades e finalidades sociais
com as quais se ocupa, bem como, com a consciência que tem sobre o seu lugar na
escala dos valores essencialmente humanos.
O processo de consciência se dá com a inserção dos sujeitos sociais nas
situações concretas da vida cotidiana, ou seja, na realidade social; na sua inserção
no conflito real e concreto e em sua dialética substancial.
Do ponto de vista ético, o espaço específico do pensar, do agir e do modo de
ser está relacionado ao espaço em que o ser social ocupa na vida cotidiana, as
determinações sociais, os grupos e comunidades a que pertence e o lugar e as
condições que ocupa na divisão social do trabalho.
O cotidiano é constituído de um espaço contraditório e complexo onde a
história se faz e onde os sujeitos sociais devem ter centralidade e serem vistos “por
inteiro”. É o espaço das possibilidades de construção individual e coletiva, da
intervenção do tecido social, como também, o espaço para a construção de
identidades.
A ética e a política só existem porque vivemos em sociedade e porque somos
seres da práxis. As questões éticas, morais e políticas envolvem questões da vida
cotidiana. A ação ética e politicamente consciente, visa o despertar do sujeito
individual e coletivo revolucionário 170 para a erradicação e/ou superação das
desumanidades.
Podemos exemplificara formação do sujeito coletivo mais concretamente um
momento brasileiro em que este se fez presente “por inteiro”, ou seja, nos anos que
antecederam aos acontecimentos de 1988 e o momento da consolidação da Carta
Magna do Brasil – conhecida como Constituição Cidadã -, momento este em que a
170
O sujeito coletivo revolucionário é uma construção que se faz histórica e socialmente. Também
aqui o sentido revolucionário não está implicitamente vinculado à revolução armada, mas sim, a
qualquer mudança profunda da coletividade – pacífica ou violenta.
126
sociedade brasileira lutou por mudanças. Na vida de Heller destacam-se a
Revolução Húngara de 1956 e a Primavera de Praga de 1968.
As condições objetivas para a consciência ética e política do indivíduo
perpassaram não somente pela sua individualidade, mas também pelas condições
sócio-históricas, territoriais, econômicas, coletivas, individuais com que se relaciona
e os grupos ou comunidades em que se insere ou é inserido, enfim, por todas as
esferas e sistemas heterogêneos. No capitalismo, é imprescindível considerar
também a esfera econômica.
O pertencimento a este ou àquele grupo ou comunidade está vinculado
diretamente à hierarquia das necessidades, exterior ou interior (em consequência de
sua escolha individual) aos interesses comuns. Disso decorre que a classe social
não é, necessariamente, uma comunidade. Nascer numa determinada classe nos
dias atuais implica numa causalidade:
[...] desde a aparição da sociedade capitalista, o homem deixou de ser um
ser comunitário por nascimento. A partir de então é possível transcorrer toda
a vida sem converter-se em membro de nenhuma comunidade (HELLER,
1977, p. 82)171.
Segundo Heller, a comunidade é uma categoria da estrutura social, da
integração dos indivíduos à vida social, porém, esta integração depende em cada
ocasião do conteúdo concreto dessa mesma integração, do modo como as relações
(materiais, sociais, morais etc.) se convertem num conjunto social.
A relação indivíduo, grupo e comunidade só se estabelecem quando este
decide conscientemente pertencer a um determinado círculo social (ou grupos
sociais), ao se inserir ou ser inserido/a. Contudo, a relação dos indivíduos com a
sociedade prescreve uma relação mediatizada por comunidades orgânicas172.
[...] Quando pensamos no futuro da humanidade, é quase impossível
imaginar que a integração total possa chegar a converter-se em
comunidade; mais plausível aparece a imagem de uma estrutura social
articulada em comunidades orgânicas (HELLER, 2004, p. 66).
Heller (1977) distingue dois tipos de comunidades: as comunidades que
surgem ou se formam naturalmente tendo em vista a ordem econômica, produtiva e
social. São comunidades que se formam naturalmente para a produção ou
171
172
Grifos da autora.
Comunidades constituídas conscientemente.
127
administração de uma determinada coletividade e representam a parte orgânica da
sociedade, possibilitando o desenvolvimento do caráter comunitário entre seus
membros.
Estas comunidades diferem daquelas que surgem ou se formam fora dos
interesses da vida material da sociedade, mas que se constituem a partir das
necessidades da atividade política e do desenvolvimento da individualidade, da
intenção consciente e da vontade que o ser social tem, através da integração dada,
de modo a estabelecer uma relação consciente com a sua genericidade. Estas
comunidades estão organizadas em torno de um fim único: o de cumprir com os
objetivos conscientemente genéricos e comunitários.
A concepção de comunidade helleriana jamais pode instaurar-se de forma
institucionalizada; apenas enquanto unidade de base em sua totalidade e de valores
comuns. O veículo direto da forma de vida é a unidade.
Estevão
(1989)
traz importantes
contribuições
para
entendermos
a
comunidade como valor, vinculada às concepções hellerianas: “[...] a comunidade
faz parte do mundo das objetivações em si e para si, podendo situar-se tanto na vida
cotidiana como fora dela” (ESTEVÃO, 1989, p. 60)173.
Nessa concepção,
[...] a vida do indivíduo já não está fracionada em pura sucessão ou
justaposição de atividades heterogêneas - embora a heterogeneidade
continue presente - mas cada atividade tem seu posto, conscientemente
atribuído, na vida do homem. Deste modo, a personalidade poderá
objetivar-se em um sujeito de tipo definido. A personalidade particular é o
sujeito em si, a personalidade individual é o sujeito que é para-si
(ESTEVÃO, 1989, p. 76).
Para Heller (2004, p. 69), sociedades, classes, grupos, estamentos,
comunidades, são efetivamente categorias de uma esfera homogênea de
estruturação da sociedade.
[...] Para Agnes Heller, comunidade é uma categoria essencialmente
axiológica. E por valor, devemos entender o conjunto de todas as relações
sociais, produtos, ações, ideias etc., que promovem o desenvolvimento da
essência humana num estágio histórico dado.
Valor, neste sentido, é objetivo, não depende da “avaliação” humana. Terá
um conteúdo axiológico positivo tudo aquilo (relações, produtos, ações,
ideias) que fornecer aos homens maiores possibilidades de objetivação, que
173
Grifos da autora.
128
integrar sua sociabilidade, que configure mais universalmente sua
consciência e que aumente sua liberdade social (ESTEVÃO, 1989, p. 81).
Para Heller (2004) um grupo ou comunidade jamais pode ser uma “massa”,
pois o ser social estará sempre articulado e estratificado, ao passo que na ação
comum, a “massa” pode perfeitamente aparecer não-estratificada e não-articulada.
A “massa” pode ser traduzida como multidão, representa, de certa forma,
alguma coisa amórfica. Uma multidão nem sempre é algo estruturado que pode ser
organizado. Como exemplo: temos as torcidas esportivas, as passeatas, ou seja, as
ações que são “de massa”, realizadas por pessoas conjuntamente, como reação a
alguma coisa, um acontecimento ou uma necessidade.
[...] A multidão pode ser representante, nas ruas, de uma comunidade
determinada, com interesses e objetivos comuns, e, portanto, pode-se
entendê-la nesse caso como uma entidade organizada, estruturada e de
modo algum casual.
Alguns autores, de modo simplista, contrapõem a multidão à comunidade,
supondo que existe multidão precisamente onde não há comunidade
(HELLER, 2004, p. 69).
Desse modo, podemos traduzir o conceito de multidão, conforme a
concepção helleriana, como um agrupamento de pessoas com traços, objetivos e
interesses comuns. Isso não implica na abolição da condição de individualidade,
mas sim a suspensão provisória de suas aspirações heterogêneas, porém, pode
estar vinculada ou submetida à interesses particulares e totalmente privados.
Uma “massa” pode ser facilmente manipulada: “[...] em consequência da coexistência massiva, aumentam as possibilidades de manipulação quando a multidão
é formada por indivíduos pouco desenvolvidos ou quando pertence a uma
comunidade não-estruturada” (HELLER, 2004, p. 70).
Heller ainda aponta para a expressão “sociedade de massa”, que consiste, no
sentido lato, em uma expressão metafórica para designar ou descrever uma
sociedade conformista e altamente manipulada.
Nessa direção, poderemos nos apoiar na descrição de Marx sobre formação
da “Sociedade beneficente” em suas análises sobre o Estado bonapartista:
[...] A pretexto de formar uma sociedade beneficente o lúmpen-proletariado
de Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agente
bonapartistas e sob a cheia geral de um general bonapartista. Lado a lado
129
174
como roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado
a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia
vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados
foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas,
175
trapaceiros, jogadores, maquereaus , donos de bordéis, carregadores,
líterati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldados,
mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada
de ceca em meca, que os franceses chamam la bohème; com esses
elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade 10 de dezembro.
“Sociedade beneficente” no sentido de que todos os seus membros, como
Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação
laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lúmpen-proletariado,
que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente
persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse rebotalho de
todas as classes a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente,
é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phase. Velho astuto roué,
concebe a vida histórica das nações e os grandes feitos do Estado como
comédia em seu sentido mais vulgar, como uma mascarada onde as
fantasias, frases e gestos servem apenas para disfarçar a mais tacanha
vilania (MARX, 2002, p. 78-79).
A noção de classe definida por Marx está diretamente vinculada ao processo
de produção: burgueses e proletariado. Marx não considera aqueles/as que estão
em situação inferior à condição de proletariado.
Para Marx o lumpén-proletariado é considerado como a “[...] putrefação
passiva das camadas mais baixas da velha sociedade” e que “pode, às vezes, ser
arrastadas ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de
vida o predispõem mais a vender-se à reação” (MARX; ENGELS, 1999, p. 49).
Esta camada da sociedade era constituída por aqueles que estavam
entregues a condições subumanas de sobrevivência ou que não inspiravam
confiança, mas encontravam-se com os níveis de pertencimento totalmente
esgarçados, fragilizados ou inexistentes. A identificação com a comunidade, em seu
sentido positivo, não se estabelecia.
A comunidade, por outro lado, compreende uma unidade estruturada,
organizada, de grupos, dispostos sob uma hierarquia homogênea de valores e na
qual se estabelece necessariamente a necessidade de pertença – ou pertencimento.
Essa necessidade pode decorrer do fato do indivíduo “estar lançado” nela ao nascer
– caso em que a comunidade promove posteriormente a formação da
individualidade; ou de uma escolha relativamente autônoma do individuo já
desenvolvido (HELLER, 2004, p. 70-71).
174
175
Pode ser traduzido por libertino; devasso, homem dissoluto, espertalhão, finório, dissoluto.
Alcoviteiros.
130
Na sociedade burguesa, a relação natural (ou unidade de substância) do
indivíduo e da comunidade passa a ser submetida às leis do movimento e de
interesses de classes, no qual o ser social se converte num indivíduo não
necessariamente comunitário:
[...] a relativa “vacuidade” da vida cotidiana atual é só em parte devida à
falta de comunidade; por outra parte, é devido ao fato de que o livre
desenvolvimento da individualidade está bloqueado, embora haja forte
exigência de tal desenvolvimento. A comunidade mais a individualidade
autônoma são as objetivações ideais cujo carecimento permaneceu até hoje
insatisfeito (HELLER, 1982, p. 166).
No mundo Antigo, a relação entre indivíduo e comunidade, era uma relação
natural – para aqueles que eram considerados “homens de bem” ou “cidadãos da
polis”. Já no Renascimento o desenvolvimento da individualidade projetou-se sem
precedentes. Posteriormente, esta condição enriqueceu-se com características
inteiramente novas (subjetividade, interioridade, alteridade, liberdade, superioridade,
secularidade etc.), mas o individualismo egoísta burguês atrofiou ou mesmo desviou
o sentido de comunidade: a individualidade e a comunidade como valor. Nessa
relação, os indivíduos apresentam-se com diferentes graus de desenvolvimento.
Este modo de sociabilidade, também propiciou a subordinação do indivíduo à
sua classe, às leis econômicas e de mercado, abolindo, de certa forma, as
possibilidades de liberdade, tornando, os indivíduos escravos da alienação, até ao
ponto de se verem como inferiores, negando, assim, a sua condição de gênero
humano e do próprio desenvolvimento humano-genérico.
As relações submetidas à lógica do capital alteram significativa e
substancialmente as esferas axiológicas e a hierarquia moral e social dos valores,
transforma a relação indivíduo/comunidade em relações objetuais e coisais,
conforme exposto na primeira parte dessa pesquisa - ao negar-se enquanto
essência humana, afirma-se enquanto coisa.
Ao negar os componentes genericamente humanos, nega a si mesmo e,
portanto, nega a sua individualidade, nega, assim, sua condição pró-criadora e próativa, nega sua própria história, em outras palavras, passa a incorporar elementos
estranhos a sua própria natureza e a não se reconhecer enquanto riqueza humana,
portanto, passível de destruição e de indiferença.
131
A indiferença é o descaso ao outrem e a tudo que não se enxerga ou não se
quer enxergar à sua volta. As coisas ou situações aparecem como estranhas em sua
essência. É a banalização da vida humana (ou “reino da barbárie”) - é o abandono
de qualquer tentativa de possibilidade, de alteração ou de mudança. É a banalização
daquilo que consideramos como mal.
Uma atitude ética é um posicionamento político consciente, é um estado de
atenção a tudo aquilo que pode impedir as possibilidades de liberdade 176. A conduta
ética é, sobretudo, uma tomada de posição, de atitude, de escolha, de afirmação.
Quando esta atitude é em prol de uma causa comunitária, passando a incorporar o
para-nós, passa a reconstruir os vínculos entre indivíduo e comunidade.
A banalização nos leva à indiferença que, por sua vez, implica em
desconsiderar e desqualificar aquilo que é próprio da essência humana. Uma
pessoa ignorada é como um objeto sem vida, sem importância, algo do qual
podemos nos desfazer, jogar fora, destruir e dispensar quando não nos é útil ou
necessário.
[...] A explicitação da sociedade burguesa acarretou também a dissolução
das hierarquias axiológicas, fixas, inclusive das comunidades naturais. A
partir de então, a tarefa do indivíduo não mais consiste apenas em aplicar
uma hierarquia de valores já dada a cada ação correta (embora também
isso seja imprescindível), mas igualmente em escolher os valores e construir
sua própria hierarquia valorativa no interior de certos limites, mais ou menos
amplos (HELLER, 2004, p. 75-76).
O indivíduo burguês que despontava com o Renascimento, de modo
particular – e, especialmente, por estar fora do campo das necessidades mais
prementes - aumentava as possibilidades de externar sua individualidade, identificase conscientemente enquanto indivíduo livre.
Porém, com o nascimento da acumulação primitiva e dos interesses privados
e mercantilizados, esta libertação se expressou sob a forma de poder, em
superioridade e de status, e submeteram-se aqueles/as que não conseguiram estar
nessa mesma situação ao domínio dos/as mais abastados/as.
O poder social que esse status lhe permitiu, converteu-se de modo explícito
nos interesses particulares e privados, de maneira que as ações acabaram por
espelhar também esta condição.
176
Voltaremos mais a frente a tratar da questão da liberdade.
132
Heller (2004) coloca que isso não significa necessariamente o carecimento da
comunidade, o que altera é apenas sua relação com a comunidade. Esta relação
pode ou não contar com uma hierarquia axiológica de valores constitutivos da
essência humana, porém, para que estes valores se convertam em interesses
comunitários, há que se ter consciência de sua condição de gênero e de mundo e
que suas projeções teleológicas expressem ações em prol da coletividade.
Sobre essa questão, Heller exemplifica com relação a consciência de classe
do trabalhador:
[...] o trabalhador que atinge a consciência de classe e cria uma
comunidade para abolir a existência das classes, colocando novos valores
no lugar da ordem e da hierarquia axiológicas existentes, é o representante
de tudo aquilo que a própria sociedade burguesa criou no plano de
desenvolvimento da individualidade (HELLER, 2004, p. 76-77).
Porém, no estado avançado do desenvolvimento das relações sob a lógica do
capital, as condições e possibilidade de liberdade individual e coletiva encontram-se
bem problemáticas: o indivíduo experimenta agora a falta de comunidade, a falta do
sentimento de pertença. A solidão, a infelicidade, o medo, a angústia, enfim
sentimentos próprios do mundo atual, não significam o “medo da liberdade”, mas
sim, do modo como lidar com essa liberdade.
A preocupação com a identidade ou identificação é visível na formação das
redes sociais virtuais ou dos inumeráveis grupos que se constituídos na atualidade,
nas mais diversas expressões, sobretudo àqueles que congregam os mesmo
sentimentos, valores, objetivos, sejam religiosos, políticos, sociais, culturais ou de
identidade.
Ao se referir aos movimentos revolucionários que floresceram no século XX,
Heller assim se expressa: “[...] a busca de uma atividade em comunidade, que
elevasse o indivíduo “nas asas da comunidade” somou-se à exigência de uma nova
sociedade na qual o homem pudesse voltar a ser um ente comunitário”177.
Esta busca do “ente comunitário” é facilmente visível na formação dos grupos
sociais da atualidade, especificamente, no que diz respeito às políticas públicas
(grupos de idosos, mulheres, negros, índios, homossexuais etc.), porém, as
iniciativas
177
existentes,
muitas
vezes,
HELLER, 2004, p. 77. Grifos da autora.
desprezam
a
construção
do
sujeito
133
revolucionário. Sem sombra de dúvida, a conscientização paulofreiriana visava este
interesse.
Contudo, acreditamos que esta constante formação de grupos segregados, o
que ora ainda é necessário, gera certo particularismo e individualismo, multifacetado
e polifacetado, provocando, muitas vezes, um ceticismo com relação aos demais
grupos e comunidades. Isso é facilmente observado no ceticismo, fundamentalismo
e extremismo dos grupos religiosos e nazi-facistas.
A falta de uma postura consciente da genericidade pode, em grande medida,
constituir-se em fanatismo, fundamentalismo, extremismo e ultrageneralizações, por
conseguinte, juízos provisórios e/ou preconceitos e discriminações, como também
auto-preconceito, auto-discriminação e violências.
Do ponto de vista da elevação (ou suspensão) da cotidianidade, a categoria
valor178 assume aqui a substância axiológica mais premente e imprescindível para a
consciência ética e política da condição de individualidade do ser social, ou seja, o
enriquecimento dos valores essencialmente humanos é uma das necessidades mais
radicais numa sociedade esfacelada, desigual, violenta, excludente, multifacetada e
polifacetada.
Heller também demonstra que o conteúdo de uma determinada comunidade
ou grupo pode exprimir uma hierarquia de valores negativos e que, por conseguinte,
jamais podem desenvolver a condição de individualidade.
O pertencimento nessas comunidades ou grupos (ex.: as comunidades
fascistas ou nazi-fascistas, os skinheads, os grupos extremistas islâmicos179 etc.),
pode estar condicionado ao medo e ao sentimento de superioridade perante outros
grupos ou comunidades, ou até mesmo de aversão às diferenças e/ou diversidades.
Nessas comunidades ou grupos a liberdade de escolha é suprimida e o que
prevalece é a superioridade e a violência: “[...] o desprezo pelo “outro”, a antipatia
pelo diferente, são tão antigos quanto a própria humanidade”180.
Devemos considerar que a “livre escolha” expressa maior substância de
liberdade. A orientação teleológica, nesse sentido, resulta numa maior valoração da
essência humana e dos sentimentos de comunidade.
178
Tendo em vista a importância dessa categoria, buscaremos tratar dessa questão separadamente.
Notícias veiculadas pela Internet nas redes sociais apontam que os grupos extremistas, de ódio
radical e xenofóbicos, tem aumentado progressivamente em todo o mundo. Só nos Estados Unidos,
estes aumentaram em 69% nos últimos 12 anos, atualmente existem mais de mil organizações desse
tipo.
180
HELLER, 2004, p. 55.
179
134
Nesse sentido, é importante considerar a educação não enquanto fim em si
mesmo, mas como mediação para o desenvolvimento consciente dos valores
essencialmente humanos (trabalho, objetivação, sociabilidade, universalidade,
consciência e liberdade). Isso não quer dizer a ausência de conflitos singulares e
particulares.
A resistência aos valores negativos (ou desvalores) é por si só uma atitude
consciente. Ao se colocar contrário a qualquer situação ou circunstância
desvalorativa, o ser social se afirma conscientemente na e para a vida social. Ao
decidir pelos valores essencialmente humanos, o indivíduo decide em prol da
integração comunitária de liberdade: “[...] quem escolhe um valor e aspira à sua
realização (e as duas coisas são inseparáveis) escolhe também, no mais amplo
sentido da palavra, uma comunidade”181.
Desta forma, Heller demonstra que a relação social é constituída por um
sistema de valores, de escolhas e interesses individuais, singulares e particulares,
porém, estes podem se mostrar influenciáveis pelas circunstâncias e determinações:
“[...] todos os preconceitos se caracterizam por uma tomada de posição moral, já que
[...] são amo mesmo tempo falsos juízos de valor”182.
Do ponto de vista ético, as escolhas são individuais. O fim estabelecido
determina efetivamente a natureza dos meios e o cumprimento total do fim. Esta
relação, por sua vez, é determinada pelos valores a que estão submetidos os meios
das objetivações concretas.
Homens e mulheres desenvolvem uma relação individual com a comunidade,
grupo ou sociedade, na qual refletem sua vontade, determinação, necessidade,
enfim, sua liberdade. É nessa situação que estão implicadas a consciência ética e a
ação política, individual e coletiva, na e para a vida social.
2.2.
Estrutura da vida cotidiana: o palco da vida
Conforme vimos no item anterior, homens e mulheres percorreram um longo
itinerário que constitui o acúmulo da empiria da vida humano-genérica. Da chamada
pré-história até os dias atuais a História, a Filosofia e as Ciências Humanas e
Sociais dão notícias da evolução cultural e social ao longo dos tempos.
181
182
HELLER, 2004, p. 83.
HELLER, 2004, p. 56.
135
Temos estudado ao longo de nossa vida acadêmica o processo e a razão de
ser para a vida em sociedade. Para tanto, apropriamo-nos dos elementos que
aparecem na vida cotidiana, situações específicas que, de certa forma, espelham os
entraves das diferentes faces da vida em sociedade.
Ao
verificar
nossa
trajetória
acadêmica,
observamos
que
esta,
indelevelmente, está marcada pela nossa trajetória pessoal, em outras palavras,
pelas nossas vivências: nossa história. As interrogações do passado são hoje a
base de nossas investigações.
[...] A negação completa do passado significa uma dependência do passado
ainda maior do que a redefinição dos valores tradicionais, ou sua aceitação,
ou sua recusa argumentada. A História é, ao mesmo tempo, continuidade e
descontinuidade. Ela não pode ser reconstruída sem levar em consideração
a continuidade. [...] Tudo o que quisermos negar, só podemos fazê-lo com
falsa consciência. Mas, a meu ver, a reflexão consciente faz parte da
necessidade de conservar uma organicidade na relação com as gerações
que nos precederam (HELLER, 1982, p. 155-156).
A negação do passado é a negação da história, é a negação do humanogenérico. Heller exemplifica dizendo que se um filho tivesse como objetivo fazer tudo
que o seu pai lhe determinou, teria uma relação de completa dependência do pai,
pois, não teria nenhuma iniciativa autônoma, nenhuma avaliação sobre os
acontecimentos, sobre a opinião do pai, ou sobre sua própria vida. Sua motivação
seria sempre, e com referência, uma contraposição às alusões do pai.
Ao assumirmos as rédeas de nossa própria vida, externamos nossos
posicionamentos, nosso modo de ser, de estar e de agir, nossos gostos e pendores,
nossas paixões e sentimento, enfim, nos colocamos na e para a vida social “por
inteiro”.
Nas palavras de Bertold Brecht, “há homens que lutam um dia e são bons; há
outros que lutam um ano e são melhores; há outros que lutam toda a vida, e estes
são imprescindíveis”. Com certeza a vida é sempre perpassada por muitas lutas,
vitórias e derrotas na busca da essência do ser e do significado da vida e, por que
não dizer pela busca de uma filosofia para a vida ou de vida.
No acúmulo teórico que desenvolvemos, gostaríamos de destacar duas
pesquisas: a primeira, da qual já fizemos referência logo na introdução desse
trabalho - A introdução estética na visão lukacsiana: uma interpretação ontológica da
realidade social (VERONEZE, 2006); a segunda refere-se ao Trabalho de Conclusão
136
de Curso desse pesquisador, intitulada - As expressões sexuais diferenciadas: um
grito de liberdade na luta contra a discriminação e o preconceito (VERONEZE,
2007), sob a orientação do Prof. Ms. Fábio César da Fonseca.
Este último trabalho nos ocupamos sobre a diversidade sexual e a
homossexualidade enquanto uma das expressões sexuais de homens e mulheres
que buscam espaço no campo das identidades, das políticas e dos direito; uma
afirmação de si mesmo em prol da coletividade homossexual, bissexual e
transgênica.
Buscamos entender os tabus, preconceitos e discriminações relacionados à
sexualidade humana, principalmente, a homossexualidade, estabelecida hoje como
um conceito cultural, um comportamento visível que soma uma grande população de
homens e mulheres que relacionam-se afetiva e sexualmente com pessoas do
mesmo sexo (VERONEZE, 2007).
Ao analisar obra de Edith Modesto: Vidas em arco-íris: depoimentos de
homossexuais183, colhemos nas falas de muitos/as homossexuais, homens e
mulheres, a realidade vivida por este grupo, muitas vezes, carregada de
preconceitos e discriminações individuais e sociais.
Essa pesquisa possibilitou verificar a necessidade de uma autoafirmação para
uma
autorrealização
e
autolibertação.
Os/as
homossexuais,
por
exemplo,
coagidos/as historicamente a viverem negando sua própria sexualidade, causa
consequências traumáticas e, em grande medida, violentas, para consigo mesmo e
para o próprio grupo.
Embalados/as
pelas
conquistas
do
Movimento
Feminista,
os/as
homossexuais assumiram uma atitude conscientemente passaram a buscar um
espaço na sociedade e a defender coletivamente sua própria libertação e
emancipação, ou seja, a lutarem pelos seus direitos, a desconstruir os entraves da
omissão e submissão e a lutarem por de respeito, dignidade e a favor da diversidade
sexual. Apesar dos grandes avanços nessa área, muito ainda esta por fazer.
Desse modo, o indivíduo transforma em perguntas as suas próprias
necessidades e possibilidades através de mediações cada vez mais articuladas de
acordo com o nível de consciência que expressa na vida social.
183
MODESTO, Edith. Vidas em arco íris: depoimentos sobre a homossexualidade. Rio de
Janeiro: Record, 2006.
137
As interrogações se multiplicaram sobre esta questão – e muitas outras - na
busca do conhecimento, assim como outros entraves exposto na cotidianidade e na
vida social. A Ciência, que se constituiu na pesquisa e no estudo, cada vez mais se
aprofunda no conhecimento dos intrincáveis paradoxos que envolvem o humano e a
sociedade.
Nessa interação contínua da vida cotidiana, é que homens e mulheres
produzem
formas
de
inter-relação
como
os
símbolos,
a
linguagem,
as
representações e os costumes, componentes do que chamamos de cultura,
entendida como o conjunto das relações humanas que elabora e produz, simbólica e
materialmente, referente a um circuito socialmente organizado para a vida em
sociedade (BARROCO, 2005).
A partir da totalidade da vida social, o indivíduo social apreende em suas
intrincadas e múltiplas relações, de modo real e dinâmico, a exteriorização de sua
individualidade-particularidade por meio de elementos culturais, de modo a
compreender os elementos mais essenciais para a vida humana em sociedade.
A todo o momento surge a necessidade de criar formas para apreender e
compreender a complexidade da vida social e da ontologia do ser social. As
mediações para as objetivações concretas na e para a vida social só podem ser
constituídas na vida cotidiana.
Conforme temos demonstrado ao longo desta pesquisa, o capitalismo
submete o ser social cotidianamente ao enigma da vida, tendo em vista que está
subsumido às alienações e fetiches que o próprio sistema embute no imaginário
individual e coletivo, de forma até mesmo a transformar sua própria essência em
coisa ou mercadoria.
A vida alienada/alienante deixa de ter o valor intrínseco da sua genericidade.
No momento em que entra no sistema das relações alienando/alienante, cessa sua
autonomia, sua liberdade e, por conseguinte, suas possibilidades de autorrealização,
autodesenvolvimento e autolibertação. Minimiza o campo das mediações duradouras
e de liberdade.
Segundo Pontes (2002, p. 187),
[...] a categoria de mediação possui um notável poder heurístico, se se
considerar a sua legítima apreensão no prisma marxiano e lukacsiano.
Apreendido como categoria central do método dialético marxiano,
responsável pela complexidade da totalidade e pela dinâmica parte-todo no
138
interior do ser social, a mediação o compõe ontologicamente. Também
assume a forma de categoria reflexiva, criada pela razão, para captar o seu
movimento.
Heller aponta que é possível viver uma vida não alienada, aliás, está é sua
grande preocupação, conforme já apontamos. Ela coloca que a arte, o conhecimento
e a filosofia, sobretudo, a filosofia revolucionária, cumprem este papel.
Referimo-nos ao longo dessa investigação varias vezes a arte ou às
expressão artística para tecer comentários ou exemplos sobre a suspensão da
realidade ou à não-cotidianeidade. Salientamos que esta preferência tem haver com
a proximidade desse pesquisador aos assuntos relacionados a ela, não
desconsiderando, em nenhum momento as outras formas de suspensão da
realidade ou da não-cotidianeidade.
As expressões artísticas entendidas pela Estética como o estudo das
condições e dos efeitos da criação artística, tradicionalmente, o estudo racional do
belo, quer enquanto possibilidades em sua conceituação ou como diversidade de
emoções e sentimentos suscitados pela essência humana, permite que expressões
corporais, palavras, cores, formas, figuras, desenhos, sons, timbres, enfim,
elementos constituintes e constitutivos da arte, não sejam somente meios materiais
de produção do fazer artístico, mas sim, formas/condições do pensar artístico,
momentos e processo de criação, parte integrante e constituinte da expressão do ser
ontológico (VERONEZE, 2006).
Lukács e os membros da “Escola de Budapeste”, em especial, Agnes Heller,
buscaram compreender a arte, a filosofia e o conhecimento como ponto culminante
no qual o ser social expressa sua subjetividade e a sua objetividade na e para a
realidade cotidiana que o cerca, como a confluência do que é subjetivo (singular) e
do objetivo (universal), o que Heller entende por singularidades-particularidade do
indivíduo social. Tem-se assim, a substância dos conceitos de singularidade,
universalidade e particularidade.
Para ela, o artista, o filósofo e o cientista devem refletir a totalidade de modo
intensivo que é particularizada, em outras palavras, ao ser particular, é única e
concentra tanto os traços específicos de sua singularidade, quanto os que se
integraram às circunstâncias, ao ambiente, à história, por conseguinte, ao
genericamente-humano.
139
Para Lukács, toda obra de arte é uma totalidade e que deve refletir em sua
dinâmica a dialética entre o singular e o universal, numa totalidade particular. Essa
particularidade vai indicar o tipo, ou seja, algo característico que reúne em si aquilo
que é essencial e as unidades cambiantes dos fenômenos (LUKÁCS, 1970, p. 178180).
Destacamos que a arte constitui uma forma específica de consciência, ou
seja, a consciência estética, uma questão peculiar de refletir a realidade e a própria
essência do artista: “[...] ela não se constitui em uma faculdade anímica do homem
nem possui uma história autônoma, mas sim, um produto da evolução social do
homem que se torna homem através do trabalho” (DUAYER apud VERONEZE,
2006, p. 61).
Para Lukács (1970, p. 181),
[...] a subjetividade dos que participam criativamente da obra unitária tem
assim valor positivo, significativo do ponto de vista estético, tão-somente
enquanto for capaz de se tornar um elemento estrutural orgânico da
individualidade da obra. As subjetividades imediatas, particulares, são,
porém incomensuráveis em sua singularidade de mônadas.
A arte, para Lukács,
[...] é a elevação acima da subjetividade imediata como abstrata
singularidade ou particularidade, mas ao mesmo tempo é também algo
ainda subjetivo, pessoal. A sua objetividade é aferida pelo modo como uma
subjetividade assim universalizada na particularidade – subjetividade que
com isso, ao mesmo tempo, [...], introduz também a universalidade como
momento no seu meio organizador – é capaz de dar uma reprodução da
realidade, verdadeira e original, que possua eficácia imediata. A
objetividade, portanto, não pode ser separada da subjetividade, nem mesmo
na mais intensa abstração da análise estética mais geral. A proposição “sem
sujeito não há objeto”, que na teoria do conhecimento implicaria num
equívoco idealista, é um dos princípios fundamentais da estética, na medida
em que não pode existir nenhum objeto estético sem sujeito estético; o
objeto (a obra de arte) é carregado de subjetividade em toda a sua
estrutura; não existe nele “átomo” ou “célula” sem subjetividade, o seu
conjunto implica a subjetividade como elemento do princípio construtivo.
(idem, ibidem).
Na visão lukacsiana, a Estética propicia uma profunda compreensão da busca
da essência e dos fenômenos presentes na expressão artística e, ao refletir seu
tempo, torna-se patrimônio de toda humanidade.
Encontramos desde a pré-história elementos artístico – assim como sistemas
filosóficos e científicos - que registraram o cotidiano e as impressões dos seres que
140
viveram em determinadas épocas. Por exemplo, observamos nas pinturas rupestres,
nos hieróglifos das civilizações do passado, nas inscrições dos antigos povos das
Américas e dos índios brasileiros dentre outros inumeráveis exemplos, o registro
mais premente da cultura, do habitat, das vidas, dos meios, do tempo, dos animais e
hábitos cotidianos desses povos e de suas épocas: “[...] se nós compreendermos
corretamente a cultura de uma época compreenderemos, em suas raízes, o
desenvolvimento do conjunto dessa época, como se tivéssemos partindo da análise
de suas relações” (LUKÁCS, 1920 , p. 01).
De acordo com Lukács (1970, p. 275),
[...] o reflexo estético cria, por um lado, reproduções da realidade nas quais
o ser em-si da objetividade é transformado em um ser para-nós do mundo
representado na individualidade da obra de arte; por outro lado, na eficácia
por tais obras, desperta e se eleva a autoconsciência humana.
Ao conceber a arte como ponto culminante do ser humano, Lukács defende
que ela contém tanto a síntese da consciência do ser social singular-particular diante
da realidade, como sua capacidade de transformar a realidade, característica esta,
marcante e motriz da história.
A essência humana e sua integridade se manifestam na valorização de sua
humanidade (de sua genericidade) e, da relação com o exterior (sua possibilidade
de transformação). Na arte ou expressão artística, o essencial é aquilo que
permanece, encontra-se sob o estímulo do desenvolvimento dos fenômenos ou do
dinamismo da história: a essência está implícita nos fatos e os fatos demonstram a
essência (VERONEZE, 2006, p. 63).
Não pretendemos fazer aqui um estudo sobre a concepção lukacsiana sobre
a Estética, tendo em vista que estes já foram analisados em outro momento.
Também aqui não buscamos fazer apologia à arte como única forma de suspensão
da cotidianidade, as mesmas análises também poderiam ser feitas com relação o
conhecimento (a ciência) e a filosofia, formas estas também de suspensão da
cotidianidade.
A arte aqui foi destacada tendo em vista a aproximação desse pesquisador ao
este assunto e que melhor contextualiza o ambiente interno e externo em que Heller
estava imersa. Para Heller, assim como a arte, o conhecimento e a filosofia, também
apresentam estas mesmas características no mundo das objetivações.
141
[...] O mundo das objetivações, por sua vez, apresenta-se enquanto esfera
das objetivações em si: a linguagem, o sistema de hábitos e o uso dos
objetos. E num nível superior de objetivação, aquelas não quotidianas, que
se dirigem à genericidade (aquilo que é genérico) para si, que são a arte, a
ciência e a filosofia, mediadas pela ética.
As objetivações não são apenas formas de exteriorização dos homens e
não acontecem somente no seu sentido estrito, objetual. Para Heller,
constituem-se em processos que precisam ser apropriados pelos indivíduos
e representam distintos níveis: o homem, na sua vida cotidiana, objetiva-se
de numerosas formas (ESTEVÃO, 1989, p. 58).
Acreditamos que a arte, o conhecimento e a filosofia transcendem as
limitação e fragilizações da vida cotidiana e, por sua vez, educam os homens e as
mulheres. Produz a elevação (suspensão) daquilo que os/as separam de sua
genericidade, mas sempre retornam para o mesmo ponto, pois não é possível viver
em completa e eterna suspensão, sendo esta, também, uma forma de alienação.
Barroco (1999) sobre esse assunto, assim se expressa:
[...] várias atividades permitem a elevação ao humano genérico: a práxis
política, a práxis artística e filosófica, a ação ética. São atividades onde o
indivíduo não perde a sua singularidade mas se eleva à sua universalidade,
comportando-se como individualidade ou indivíduo particular. Para a
tradição marxista, a ética é uma forma de relação consciente e livre entre
indivíduo e sociedade, que possibilita ao mesmo adquirir consciência de si
mesmo como ser humano genérico (BARROCO, 1999, 126).
Segundo Tertulian (2010),
[...] a ação ética ultrapassa, ao mesmo tempo, a norma abstrata do direito e
a irredutibilidade das aspirações individuais à norma, pois ela implica, por
definição, levar em conta o outro e a sociedade, uma socialização dos
impulsos e inclinações pessoais, uma vontade de harmonizar o privado e o
espaço público, o indivíduo e a sociedade. A ação ética é um processo de
“generalização”, de mediação progressiva entre o primeiro impulso e as
determinações externas; a moralidade torna-se ação ética no momento em
que nasce uma convergência entre o eu e a alteridade, entre a
singularidade individual e a totalidade social. O campo da particularidade
exprime justamente esta zona de mediações onde se inscreve a ação ética
(TERTULIAN, 2010, p 26).
É nesse movimento enriquece tudo aquilo que faz parte do ser genérico do
humano e contribui, direta ou mediatamente, para a sua explicitação enquanto
essência humana – ou riqueza humana - na esfera individual, espiritual e social.
142
[...] A reflexão ética possibilita a crítica à moral dominante pelo
desvelamento de seus significados sócio-histórico, permite a desmistificação
do preconceito, do individualismo e do egoísmo, propiciando a valorização e
o exercício da liberdade (BARROCO, 1999, p. 126).
É no mundo das objetivações (ou vida cotidiana) que a reflexão e ação ética e
política, os valores, as paixões, os desejos, as escolhas, os costumes, enfim, toda
subjetividade e objetividade do ser social se interiorizam e se exteriorizam não de
forma arbitrária, mas, geralmente, de acordo com as determinações históricas e
sociais.
É parte constituinte e orgânica da vida cotidiana a organização do trabalho e
da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o
intercâmbio e a purificação; é também o palco da construção dos valores, ou da
degenerescência, acaso desse ou daquele valor, e das esferas heterogêneas que
constituem a substância da sociedade em seu desenvolvimento histórico.
[...] Mas a significação da vida cotidiana, tal como seu conteúdo, não é
apenas heterogênea, mas igualmente hierárquica. Todavia, diferente da
circunstância da heterogeneidade, a forma concreta da hierarquia não é
eterna e imputável, mas se modifica de modo específico em função das
diferentes estruturas econômico-sociais.
O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do
homem significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as
habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada
social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua
cotidianidade (HELLER, 2004, p. 18).
O cotidiano, para Lukács (1966, 11-12), é como um rio em permanente fluxo,
dentro da qual tudo se movimenta, transforma-se, espalha-se e retorna ao seu leito.
É nesse fluxo contínuo e dialético que as formas superiores de recepção e
reprodução da realidade, da ciência e da arte; diferenciam-se de acordo com suas
funções teleológicas específicas dos indivíduos, alcançando sua forma mais pura.
A vida cotidiana é o ponto de partida e de chegada. É dela que provém a
necessidade do ser social de se objetivar, ir além dos limites habituais e é
novamente na e para a vida cotidiana que retornam os produtos de suas
objetivações: o rio é sempre o mesmo, mas nunca é igual. A cada afluente, a cada
queda, a cada percurso, por onde passa, agrega novas experimentações, porém,
continua a ser aquele que nasceu num mero fio d’água que foi transformado e, ao
mesmo tempo, transformando as coisas ao seu redor (VERONEZE, 2006, p. 66).
143
Não podemos analisar aqui a totalidade dos aspectos da vida cotidiana
segundo as exposições helleriana em sua heterogeneidade, tendo em vista a sua
extensão e complexidade. Além disso, este tema tem sido o mais estudado no
âmbito do Serviço Social brasileiro contemporâneo, quando se refere ao nome de
Agnes Heller. Portanto, buscaremos realizar apenas alguns apontamentos
importantes para esta dissertação.
Acreditamos, ainda, que esta questão produziria por si só, um estudo
monográfico. Além das fontes aqui analisadas, Henri Lefebvre 184 e José de Souza
Martins185 também se ocuparam desse assunto, além de outros estudiosos do
Serviço Social, da Educação, da Psicologia, entre outras.
Assim, optamos por fazer uma análise do cotidiano e do não-cotidiano,
enquanto espaço heterogêneo dos sentidos e aspectos mais diversos e, por
conseguinte, como se dá a objetivação de homens e mulheres “por inteiro” na vida
social.
2.3.
O cotidiano e o não-cotidiano: o ser ou não ser da mesma questão
Conforme vimos, é na vida cotidiana que os indivíduos e grupos vivem, se
articulam, se relacionam, constituem unidades e pluralidades, exteriorizam suas
paixões, gostos, pendores, necessidades, enfim, é o mundo da vida.
Segundo Heller, a vida cotidiana é a vida de todos nós. Todos, sem exceção,
independente de qualquer coisa ou situação estamos inseridos num determinado
contexto social: “[...] ninguém consegue identificar-se com sua atividade humanogenérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade”186.
A vida cotidiana é o palco onde todas as atividades através das quais homens
e mulheres reproduzem a si mesmo para poderem produzir e reproduzir a
sociedade: “[...] as relações da vida cotidiana, na moderna sociedade burguesa,
perderam cada vez mais sua autenticidade”187.
Essa inserção não só estabelece uma relação individual e grupal, como
também contribui para a construção do humano-genérico e de suas particularidades.
184
Para maiores detalhes, ver: LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Trad.
Alcides João de Barros. São Paulo: Ática, 1991.
185
Para maiores detalhes, ver: MARTINS, José de Souza. Sociabilidade do homem simples. 2ª Ed..
São Paulo: Contexto, 2008.
186
HELLER, 2004, p.17.
187
HELLER, 1982, p. 164-165.
144
O conceito de particularidade-totalidade significa a síntese entre o particular (ou
parte integrante do mundo) e a totalidade social (a vida cotidiana), conforme já
apontamos.
Heller (1977; 2004) aponta que a vida cotidiana não representa em si mesma
um valor autônomo, pois, a cotidianidade só tem sentido porque é constituída e
construída pelos sentidos e aspectos mais diversos dos indivíduos particulares e
singulares e, por isso, é heterogênea.
Mas é na vida cotidiana que homens e mulheres desempenham e
exteriorizam com vigor todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais,
habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, ideais, ideologias, crenças etc.
Nela, homens e mulheres expressam seu modo de ser, sentir, agir, relacionar,
pensar, ou seja, vivem-na “por inteiro” e é nela, também, que o mundo, a sociedade
e os grupos se constituem e são constituídos.
A vida cotidiana ocupa todas as capacidades/potencialidades do ser social,
porém, nem sempre ao mesmo tempo ou a todo o momento. Desde os sentidos
mais primários até os superiores (a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato, as
habilidades físicas, o espírito de observação, a memória, a sagacidade, a
capacidade de reação etc.). Estes, por sua vez, operam nos afetos mais diversos
(amor, ódio, desprezo, compaixão, participação, simpatia, repugnância, veneração
etc.).
Heller (1977) exemplifica isso no processo de trabalho: dependendo do lugar
ocupado na divisão sócio-técnica do trabalho, alguns sentidos serão mais ativados,
enquanto outros poderão afloram em menor intensidade (por ex.: num trabalho mais
embrutecido, mais rude, a força física tende a aflorar com maior vigor, enquanto que
num trabalho mais intelectualizado, o intelecto, a capacidade de abstração é que
afloram com maior intensidade), isso não quer dizer que num e noutro processo
alguma das capacidades sejam atrofiadas ou subsumidas.
Mas o ritmo e o resultado podem alterar-se conforme a relação íntima que se
estabelece com aquilo que se faz. Esta relação, por exemplo, pode estar carregada
de ódio, implicando, assim, num determinado resultado e numa determinada relação
e reação.
Vamos dar um exemplo mais concreto para melhor explicitar esta relação:
numa sociedade escravista, a relação com o trabalho por daqueles que estão
145
privados de liberdade é diferente daqueles que o fazem livres e conscientes de sua
condição essencialmente humana e genérica.
Para o/a escravo/a, o trabalho pode aparecer na forma de castigo, de peso,
de opressão, de dominação, enfim, no sentido negativo da ação; para aqueles que
se encontram livres de qualquer determinação, o trabalho poderá aparecer com algo
prazeroso e carregado de significados.
O trabalho em si não é a causa desse ou daquele sentimento ou situação. O
processo de trabalho não impede qualquer sentimento de ódio, vingança, amor,
prazer etc., mas as determinações e as condições em que esse ocorre podem
alterar a aparência e a essência de um mesmo processo, tanto para o lado positivo
como para a sua negatividade.
Diferentemente das necessidades necessárias – ou situações obrigatórias -,
Heller aponta que na arte (e também no conhecimento) todos os sentidos e
sentimentos estão aflorados (tanto os físicos como os subjetivos). Isso é facilmente
observado, por exemplo, quando se executa uma peça musical ou teatral. Sua
expressão contém todos os elementos mais prementes da esfera individual do
compositor/ar, do ator ou da atriz, assim como os elementos constitutivos do
cotidiano. Todo o conjunto põe em relevo uma antítese (os afetos, gostos, desejos,
motivação, circunstâncias, historicidade etc.).
Para melhor exemplificar, apresentaremos uma análise de uma das sonatas
mais tradicional composta pelo compositor vienense Ludwig Von Beethoven - a op.
27, nº 02 – conhecida popularmente como Sonata ao Lua.
A forma sonata é uma peça instrumental composta em três movimentos188
distintos entre si, mas que contém o mesmo tema: o 1º movimento contém a
exposição do tema; o 2º movimento exprime um contraste – uma tensão estabelecendo, assim, uma ponte para um novo movimento; e finalmente o 3º
movimento, que geralmente explode numa evolução do tema (o resultado).
Beethoven compôs a Sonata ao Luar em 1801, logo, aos 31 anos de idade,
portanto, num momento em que sua maturidade já podia demonstrar a sua
consciente paixão pela música, suas impressões amorosas com Juliette Guicciardi e
Thérèse Bruswick, a ingratidão do seu amado sobrinho e o drama de sua surdez.
Esta sonata foi composta para piano e dedicada ao seu primeiro amor, a
Condessa Juliette Guicciardi. Podemos observar duas impressões totalmente
188
Podem também conter mais movimentos
146
distintas e co-relacionadas: as impressões do despertar do primeiro amor e o drama
de sua surdez, ambas, concepções carregadas de elementos cotidianos.
Além disso, não podemos descartar os fatores históricos e sociais daquela
época e o momento presente da composição. Porém, aqui vamos nos ater aos
elementos relacionados às nossas análises: cotidiano e não-cotidiano.
A sonata refere-se ao reflexo da lua sobre as águas, daí o seu nome. O 1º
movimento inicia-se por um andamento vagaroso, calmo, repetitivo, quase sonolento
- um Adágio e Sustenuto189. Técnica e estilo se complementam. Este movimento
refere-se ao reflexo da lua sobre as leves ondulações das águas, compondo um
cenário bucólico e reproduzindo nas notas musicais um “estado de espírito” em que
a vida aparece como um leve reflexo e que, às vezes, é agredida por pequenas
brisas (o peso dos acontecimentos e das emoções) – o despertar para o amor no
caso em questão.
Esse movimento representa a juventude de Beethoven, como também, as
emoções do primeiro amor, à leveza da vida, o desabrochar de sua genialidade –
sua adolescência. Já no 2º movimento, um alegre (Allegretto) brincar (Scherzando)
sobre as notas, constitui um intermédio, um interlúdio, d’onde Beethoven brinca com
a vida e os sentimentos; um ar de mistério esconde as experiências do primeiro
amor que explodem em sentimentos próprios da adolescência, como também, expõe
as primeiras impressões sobre sua surdez.
O 3º movimento é constituído de uma rápida (Presto) furiosa tempestade
sobre as águas, não escondendo sua harmoniosa essência. É o momento da
agitação, da fúria dos ventos, como também do amor, embalado pelo desespero
acarretado pelo descobrimento de sua surdez.
Estes três movimentos trazem em si toda subjetividade, sentimentos, paixões,
impressões, emoções, enfim, o “por inteiro” numa única justaposição. Os elementos
mais comuns do cotidiano aí estão expressos de maneira “sublime” e de uma
genialidade essencialmente humana.
Obra e compositor se identificam. O compositor se vê na obra e a obra
contém os traços mais singulares e particulares do compositor, mas a obra não é o
compositor, nem tão pouco, parte do compositor. A obra expressa a síntese entre o
Sustenuto refere-se ao sustenido – acidente ascendente que faz subir meio tom uma determinada
nota musical, normalmente exprime um som nasal.
189
147
singular, o particular e o universal da genericidade humana, conforme já
introduzimos ao descrever o mito de Pigmalião e Galatéia190.
O cotidiano compõe o não-cotidiano e este, retorna ao próprio cotidiano. Esta
suspensão momentânea (momento da criação e elevação da cotidianidade), não
representa a anulação do cotidiano, assim como a cotidianidade não nega a nãocotidianidade. Em momento algum acontece à negação total do cotidiano, por isso, o
não-cotidiano não exprime o contrário do cotidiano: “[...] a diferenciação entre
cotidiano e não-cotidiano em absoluto é um fenômeno de alienação por principio,
mas sim um único produto da específica dialética entre reprodução social e
individual”191.
O cotidiano não é por si só alienado, mas pode expressar o fenômeno da
alienação, conforme já expusemos. Isto se dá quando o cotidiano aliena-se
(estranha-se) dos componentes essencialmente humanos. Quando as relações,
tanto íntimas como coletivas, se estabelecem estranhas em sua natureza, dando
lugar a coisificação/reificação da vida social.
Esta suspensão da cotidianidade é que exprime a não-cotidianidade. Ambas
são dois estados distintos da mesma expressão. O grau de utilização e de
intensidade na vida cotidiana, expressa-se de diferentes formas: todos devem
aprender como comer, beber, vestir, ou seja, manipular as coisas simples e próprias
da vida diária, porém, nem todos podem ter a mesma destreza de um/a cozinheiro/a,
costureiro/a, arquiteto/a etc.
[...] Se dizemos que na vida cotidiana operam os sentidos e todas as
capacidades, dizemos ao mesmo tempo, que seu grau de utilização, ou
seja, sua intensidade fica muito por baixo do nível necessário para as
atividades orientadas acima das objetivações genéricas e superiores
(HELLER, 1977, p. 94)192.
Por outro lado, as atividades e habilidades direcionam-se na vida cotidiana
em múltiplas dimensões e com a mesma intensidade. As atividades genéricas
exigem habilidades e intencionalidades ainda maiores, um conhecimento da
natureza orgânica de si mesmo e do mundo que o cerca. Também o particular pode
se encontrar num nível superior em sua reprodução.
190
Ver nota nº. 54.
HELLER, 1977, p. 101. Grifos da autora.
192
Grifos da autora.
191
148
Nessa direção, se coletivamente os sujeitos particulares e singulares estão
insatisfeitos com alguma coisa, situação ou época e se juntam num mesmo objetivo,
ideal, num mesmo compromisso e interesses ou por necessidades, constituem-se o
sujeito coletivo revolucionário e, por conseguinte, caminha de forma organizada na
direção de projetos coletivos, rumo à determinada ação revolucionária.
Assim, a união dos sujeitos sociais em torno de projetos sociais coletivos
resulta, em grande medida, em melhores e significativas possibilidades de
revolução193: “[...] as mudanças não derivam de uma pessoa particular, mas sim de
uma simultânea pluralidade de particulares”194.
O entendimento desse dinamismo da vida, dos processos de mudança,
individual e coletivo - de sua historicidade -, propiciam elementos avaliativos e
propositivos para projeções e ações verdadeiramente revolucionárias.
Os desejos e as necessidades - numa determinada escala valorativa - podem
ou não se distinguirem daqueles verdadeiramente humanos: “[...] cada afeto é
medido pelo seu conteúdo de valor”195.
A valoração da essência humana requer, diante dos diferentes estímulos da
cotidianidade, sentimentos e atitudes que valorem o trabalho, a sociabilidades, a
universalidade, as capacidades criativas e proativas do ser social, teleologia, as
possibilidades de mediação numa determinada direção, a consciência, a liberdade, a
linguagem, enfim, os elementos essencialmente humanos.
Depende de uma atitude – um modo de ser, pensar e agir – diferente
daqueles
estimulados
pela
heterogeneidade
da
vida
cotidiana:
“[...]
a
heterogeneidade das formas de atividade não se evidenciam só porque estas são de
espécie diferentes, mas também, porque tem distinta importância e, desde logo, não
em último lugar, porque mudam de importância segundo o ângulo visual em que as
considera”196.
Os aspectos da vida cotidiana são muito diversos e tem relação direta com o
tempo histórico e o lugar ocupado na estratificação social. A vida cotidiana é, em seu
conjunto, um ato de objetivações, sendo, portanto, a “[...] base do processo histórico
universal”197.
193
Alteração do status quo das coisas e/ou situações.
HELLER, 1977, p. 97.
195
HELLER, 1977, p. 95.
196
HELLER, 1977, p. 95-96.
197
HELLER, 1977, p. 96.
194
149
Por conseguinte, pode apresentar-se em duplo sentido: por um lado, como
processo de continua exteriorização do sujeito singular e particular; por outro, é
também o perene processo de reprodução do particular.
[...] Se estas objetivações são sempre do mesmo nível, se “se
repetem”, o particular também se reproduz sempre do mesmo nível,
pelo contrário, quando as objetivações são de um novo tipo, contém
o novo, hão alcançado um nível superior, também o particular se
encontra num nível superior em sua reprodução. Se as objetivações
são incoerentes, se falta nelas um principio ordenador unitário, se
representam só “adaptações”, interiorizações, o particular se
reproduz ao nível da particularidade; se as objetivações são
sintetizadas, se levam a presença da personalidade, a objetivação da vida
cotidiana – no plano do sujeito – é o indivíduo. O objetivar-se como
exteriorização contínua e de personalidade como objetivação são, por
conseguinte, processo que se requerem mutuamente, que se interatuam
reciprocamente, são dois resultados de um único processo (HELLER, 1977,
p. 97)198.
Acreditamos que Heller não estimula para uma consciência altamente privada
(egoísta) e individualista, mas sim para uma consciência individual (de-si-mesmo,
em-si-mesmo, para-si-mesmo) e, ao mesmo tempo, coletiva (para-nós):
[...] a vida puramente privada é tão alienada (ainda de forma distinta) como
a vida pública desligada dela. [...] A diferenciação do cotidiano e do nãocotidiano não constitui em absoluto um fenômeno de alienação por principio,
mas sim um produto da específica dialética entre reprodução social e
individual (HELLER, 1977, 101).
Quando nos reportamos às condições de suspensão da cotidianidade, ou
melhor dizendo, as condições da não-cotidianidade (a arte, o conhecimento e a
filosofia), não apontamos para que todos fossem artistas, cientistas ou filósofos.
Ninguém precisa ser um exímio pianista, por exemplo, para saber tocar piano, ou até
mesmo ter um determinado conhecimento musical. Ninguém precisa se tornar um
filósofo, um artista ou um cientista para chegar ao estado de suspensão da
cotidianidade: “[...] não existe nunca um mundo em que cada um possa ser cientista,
nem possa liquidar sua própria vida cotidiana”199.
Quanto mais genéricas e conscientes forem as aspirações e objetivações do
ser social na e para a vida cotidiana, quanto mais consciência do valor da essência
humana e de comunidade, maior é o grau de genericidade, por conseguinte, maior
198
199
Grifos da autora.
HELLER, 1977, p. 109.
150
será o campo das objetivações genericamente individuais e comunitárias - maior
serão as possibilidades de suspensão da cotidianidade (da não-cotidianidade).
E ainda, quanto mais se agrupam os sujeitos individuais e coletivos
revolucionários, maior as possibilidades de mudança, de libertação, de liberdade; o
contrário, constitui-se o “reino da barbárie”.
Tendo em vista a importância da categoria valor enquanto categoria
ontológica do ser social, é relevante analisar a maneira como esta é concebida e se
expressa no pensamento helleriano.
2.4.
Valor e necessidades: duas faces da mesma moeda
Heller (1974) em sua Hipótese para uma teoria marxista dos valores, busca
entender a categoria valor em sua concepção ontológico-social geral, ou seja,
axiomas universalmente válidos para todos os seres sociais.
Reconhece que sua teoria se baseia em preferências axiológicas, social e
universalmente válidas, buscando entender a diferença entre esse sentido e os
valores que expressam imediatamente a sua especificidade (relativo às escolhas
cotidianas específicas).
Acreditamos que Heller, nessa obra, não traz o aprofundamento necessário
para os questionamentos levantados, nem tão pouco se dirige a uma teoria do valor.
Porém, o ponto no qual nos prendemos é como Heller entende a categoria valor
enquanto axioma de uma determinada axiologia, tendo como base a Teoria Social
de Marx.
Também, ao que nos parece, a intenção de Heller, aponta para critérios que
permitem falar da evolução e do desenvolvimento dos valores do ponto de vista de
uma teoria que afirme a perspectiva da sociedade comunista/socialista (ou seja, que
afirmasse o marxismo) 200.
Não iremos aqui nos ocupar em fazer uma análise detalhada e crítica dessa
obra. Sua importância para essa pesquisa, está relacionada ao questionamento de
como Heller entendia a categoria valor no sentido lato e o que este entendimento
implicaria para a tomada de consciência ética e política do ser social?
200
Este interesse está ligado coerentemente com os acontecimentos e propostas em que se ocupava,
juntamente com Lukács e os demais membros da “Escola de Budapeste”, conforme veremos no
capítulo posterior.
151
Para sua hipótese, Heller (1974) se apoia no conceito de riqueza genérica (ou
riqueza da espécie) e a riqueza individual, trazidos por Marx em sua Teoria Social.
Historicamente, os conceitos de riqueza e pobreza têm sido estabelecidos
historicamente naqueles que implicam à posse ou à produção dos bens materiais,
porém, no sentido de riqueza essencialmente humana, visa valorar tudo aquilo que
faz parte do ser genérico do homem e da mulher, direta ou mediaticamente, para a
explicação desse mesmo ser genérico (HELLER, 2004, p. 04).
As premissas marxianas e, consequentemente, as hellerianas e marxistas,
apontam para o entendimento do ser social enquanto ser consciente de suas
escolhas e ações, ou seja, enquanto artífices de sua própria história, mas, para
tanto, é necessário primeiramente viver ou estar em condições para viver e “fazer
história”:
[...] para viver, todavia, fazem falta antes de tudo comida, bebida, moradia,
vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois a
geração dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da
vida material em si, e isso é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição
fundamental de toda história, que tanto hoje como há milênios, tem de ser
cumprida todos os dias e todas as horas, simplesmente para assegurar a
vida dos homens (MARX; ENGELS, 2007, p. 50).
Desta forma, o conceito de valor está diretamente vinculado ao de
necessidade e “relação de produção” (ou “modo de produção”). É uma necessidade
primária do ser social a geração e satisfação do seu primeiro ato histórico: a
produção da vida material, o que implica diretamente num axioma axiológico.
O valor enquanto axioma traz em si uma necessidade social perante a vida,
porém, Heller (1974) nos esclarece que necessidade difere de interesse. O interesse
é a realização dos objetivos, de integração, de classe ou de indivíduos frente a
outras integrações, classe ou indivíduos.
“Realização de objetivos”, neste caso, significa a obtenção de todos os meios,
possibilidades,
condições,
posições
etc.,
adequados
para
satisfazer
as
necessidades dos indivíduos pertencentes a uma determinada integração ou classe
dada - de uma parte desta ou de um grupo de indivíduos (HELLER, 1974).
Segundo Heller (1974, p. 23), os interesses aparecem quando um indivíduo
representa uma ameaça (e/ou “barreira”) ou quando os objetivos de um determinado
indivíduo, classe ou grupo diferem da relação ou objetivos de outrem. Na sociedade
152
capitalista e na luta de classes, esta relação implica numa diversidade e
antagonismo de interesses.
Portando, o conceito de valor enquanto axioma-ontológico (relativo as
preferências ou escolhas ético-moral) se difere do conceito de valor implícito às
coisas, fatos e situações mais comuns da vida cotidiana – no sentido de valorização
(ato ou efeito de valorar).
A todo o momento estamos escolhendo ou optando por essa ou aquela coisa
e/ou situação: se devo ou não realizar tal ação: se vou ou não vou a tal lugar, enfim,
as mais diversas situações nos obrigam, de certa forma, a escolher entre duas
alternativas: sim ou não; bom ou ruim; bem ou mal.
Estas, por sua vez, implicam numa determinada relação ético-moral com as
coisas e/ou situações. Vem a ser a escala valorativa que expressa a esfera
heterogênea das individualidades, não constituindo, entretanto, a referência para o
entendimento dos valores essencialmente humanos.
Heller considera valor essencialmente humano tudo aquilo que, em qualquer
das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o
enriquecimento dos componentes essenciais trazidos pela Teoria Social de Marx (o
trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a
liberdade), podendo ainda considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente
rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de um determinado
componente essencial (HELLER, 2004; 1974).
O valor é, portanto objetivo e independente das avaliações dos indivíduos,
mas não da atividade dos homens e das mulheres, “[...] pois é expressão e
resultante de relações e situações sociais”201. O valor enquanto categoria ontológicosocial e axiologicamente válido para todos, implica em valorar os componentes
essencialmente humanos. O trabalho, a objetivação, a consciência, a sociabilidade,
a universalidade e a liberdade compõem o ente do ser social. Isso implica dizer,
nessa concepção, que o valor “[...] nasce com a sociedade e só perecerá com
ela”202.
A necessidade também aparece no pensamento helleriano como uma
categoria ontológico-social, tão geral e primária como o valor: “[...] a necessidade é
uma categoria do indivíduo, uma exigência interna, uma construção, uma ânsia de
201
202
HELLER, 2004, p. 05.
HELLER, 1974, p. 23.
153
algo. Esse “algo” (o objeto da necessidade) é sempre heterogêneo (todo ser humano
tem necessidades heterogêneas)”203.
Para Heller (1982, p. 133-134), uma teoria das necessidades (ou
carecimentos) tem que ser aberta, tem que exprimir não tão somente os
“carecimentos”, mas também os seus conteúdos, o grau de consciência adquirido, o
caráter revolucionário do indivíduo e de uma classe, um determinado estrato social,
programas políticos e de movimentos.
E diz mais:
[...] os carecimentos puramente quantitativos são aqueles que implicam,
para sua satisfação, que um homem se torne puro instrumento para outro
homem. Esses carecimentos são alienados: ou melhor, são os carecimentos
alienados por excelência. Os carecimentos de posse, de poder e de
ambição: esses três carecimentos não podem e não devem jamais ser
completamente satisfeitos. [...] Os carecimentos referidos a bens puramente
materiais não significam a exploração de nenhuma outra pessoa e, portanto,
devem ser reconhecidos, como todos os demais carecimentos humanos,
ainda que nós os critiquemos (HELLER, 1982, p. 135-136).
Heller busca desenvolver uma teoria alternativa, ou seja, uma teoria em que
estejam expressos os anseios de um socialismo democrático e de uma determinada
vida não-alienada. Para tanto, é preciso viver a vida conscientemente, consciente
das potencialidades/capacidades genéricas do ser social e da alienação a que
somos submetidos a todo instantes.
No
campo
das necessidades burguesas e
capitalistas há
aquelas
direcionadas às necessidades de classe e às do modo de produção. No corpus
teórico helleriano, essas necessidades aparecem como necessidades radicais, ou
seja, necessidades de superação da sociedade capitalista, rumo ao advento da
sociedade socialista democrática ou, o que poderíamos chamar de comunismo na
visão helleriana.
[...] O movimento entre as necessidades e seus objetos tem sempre dois
sentidos: as necessidades produzem os objetos, os tipos de atividades, as
relações que se servem a sua satisfação, e, por sua parte, os objetos, os
tipos de atividade e as relações “engendram” necessidades (HELLER, 1974,
p. 25).
Na sociedade capitalista, o trabalho, por exemplo, aparece como meio para a
sobrevivência. O trabalho aliena-se de sua condição essencial e genericamente
203
HELLER, 1974, p. 25. Grifos da autora.
154
humana, para assumir a condição de assalariamento. Por outro lado, os capitalistas
utilizam (exploram) o trabalho dos indivíduos para atingirem seus fins (o lucro, a
“mais-valia”, a acumulação de riqueza socialmente produzida etc.). Os interesses e
aspirações aqui são controversos.
O paradoxo helleriano coloca que ao mesmo tempo em que este tipo de
sociabilidade cria “carecimentos radicais”, estes também constituem a força motriz,
objetiva e material, para um nível de consciência ética e política individual e coletiva
revolucionária, conforme já apontamos anteriormente. Sua teoria reconhece o sujeito
e o objeto enquanto unidade de transformação.
Nessa relação, a produção de mercadorias e o consumo apresentam-se como
necessidades próprias desse sistema e recebem uma valoração substancial. A
moda, por exemplo, é uma necessidade criada para a manutenção do status quo do
capitalismo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o capitalismo gera
satisfação das necessidades, também gera novas necessidade, como também, gera
ainda desigualdades, exploração, miserabilidades, exclusão, e tantas outras
expressões da questão social.
[...] o ser do valor não pode derivar das necessidades. Pelo contrário, os
valores estão mediados com as necessidades pela produção social, pelas
relações-circunstânciais e sociais, pelas objetivações sociais globais. [...] Os
valores não se podem medir por necessidades, mas as necessidades
podem medir por valor (HELLER, 1974, p. 26).
Nesse caminhar, o valor é uma categoria primária da prática social e que não
pode derivar de fatores heterogêneos (necessidades, interesses, psiquismo etc.).
Quando os componentes essenciais do ser social (ou da essência humana) estão
valorados, o valor assume um modo de preferência consciente. Para melhor
clarificar, vejamos um exemplo mais concreto, conforme os apontamentos helleriano.
Num determinado momento histórico e por determinadas condições, decidiuse, individual e coletivamente, pela preferência por relações sexuais extrafamiliares
às intrafamiliares (dizendo que as extrafamiliares eram boas e as intrafamiliares
eram um mal), não se vinculou esta escolha nem a atributos individuais nem a uma
simples questão do azar.
Ao se preferir as relações extrafamiliares, estipula-se uma proibição para o
incesto, um código de conduta moral e de punições para quem infringir esta
determinação social. Nasce, assim, a necessidade de uma moral, um conjunto de
155
regras e normas, estabelecendo o que é bom ou ruim – o que pode e o que não
pode - para a vida em sociedade ou, melhor dizendo, um código de leis, por
conseguinte, uma determinada moralidade e uma determinada legalidade.
Todo valor, segundo Heller (1974), é preferência, mas nem todas as
preferências são eleitas por valor. As preferências axiológicas, ou axiomas, não
estão vinculadas aos gostos particulares e pode implicar preferências históricas (no
intuito de objetivar normas e costumes). Por determinações especificas, o incesto
constitui-se uma proibição histórica e socialmente aceita.
Mas nem todas as determinações são homogêneas. Há aquelas que são
valoradas mais numa determinada época do que em outras, numa determinada
sociedade do que em outras, como também podem ser desconsideradas totalmente
ou super valoradas.
No período dos samurais, por exemplo, no Japão, o suicídio estava prescrito
em seu código de conduta ético-moral. O Haraquiri (corte estomacal) era uma
prática comum entre os samurais que deveriam se suicidar em determinadas
situações (perigo ou honra). Nas sociedades judaico-cristãs, como a nossa, por
exemplo, o suicídio é considerado um atentado contra a vida e, por isso, carregado
de “abominações”.
[...] Todo ser humano nasce numa determinada época e em determinados
sistemas de preferência axiológicas e, por conseguinte, não passa pela vida
sem assimilar essas preferências (HELLER, 1974, p. 36).
Porém, os indivíduos não se encontram somente regidos por preferências
subjacentes ou objetivações especificas em-si (preferências que se assimila e
absorve em maior ou menor medida), mas também, sofrem influências dos sistemas
de referência (comunidade, liberdade, justiça, ideologias etc.), nesse caso, as
referências serão para-si.
Para Heller (1974) a maioria das teorias do valor elege a preferência com a
categoria do dever - há que preferir o que se deve preferir. Nesse caso,
ultrageneraliza a esfera dos valores e os vincula às questões que envolvem o campo
da moral.
Vázquez (2007a) faz exatamente esta análise ao apontar que a função da
moral é o veto. Para Heller (2004, p. 05) a moral é uma relação entre as atividades
156
humanas, ou seja, é a “conexão da particularidade com a universalidade
genericamente humana”204, e complementa:
[...] a moral é o sistema das exigências e costumes que permitem ao
homem converter mais ou menos intensamente em necessidade interior –
em necessidade moral – a elevação acima das necessidades imediatas
(necessidades de sua particularidade individual), as quais podem se
expressar como desejo, cólera, egoísmo ou até mesmo fria lógica
egocêntrica, de modo a que a particularidade se identifique com as
exigências, aspirações e ações sociais que existem para além das
causalidades da própria pessoa, “elevando-se” realmente até essa altura.
Essa estrutura básica compreende também o caso de sociedades
portadoras de desvalores, mediante os quais resulte extremamente
valorizado do ponto de dista material - não daquele estrutural – até mesmo
a satisfação da pretensão mais espontânea e vaga (HELLER, 2004, p. 0506).
A moral constitui um sistema de valor no qual e, em grande medida, imperam
o desenvolvimento e a projeção da particularidade-individualidade devido ao seu
caráter ultragenerativo, ou seja, capaz de generalizar o específico e o particular, com
também o singular.
[...] A moral pressupõe valores que se baseiam na consciência tanto ética
quanto social e que acabam por definir toda ação e comportamento. Ou
seja, a moral subjaz toda ação. Porem a grande diferença está em esta
ação ser ou não do cotidiano particular. Para que ela se caracteriza pela
não-cotidianidade é necessário que a ação tenha um conteúdo moral
(GUIMARÃES, 2002, p. 23).
Heller (1974) diferencia os valores imperativos daqueles que são optativos.
Nas sociedades em que o incesto, por exemplo, é uma questão de proibição, esse
ato implica num valor imperativo; mas naquelas em que impera apenas uma
condição a evitar, a questão do incesto, apresenta-se como uma questão de opção e
os seus membros apenas buscam evitá-lo.
Do ponto de vista da consciência ética e política, os componentes da
essência humana, assumem a postura de um axioma. É uma questão imperativa e
axiológica, generalizada e universal. Diz respeito à regulação social primária do
gênero humano.
Não mostra o que devemos escolher ou as preferências, mas sim, o que se
tem que escolher para preservar o sistema valorativo, de modo que o gênero e a sua
204
Grifos da autora.
157
genericidade se tornem um fim e não um meio, possibilitando que todos os
componentes essenciais e genericamente humanos sejam preservados.
A desvaloração desses componentes implicaria na preferência do “reino da
barbárie” em relação à vivência dos princípios essencialmente humanos, ou seja,
aqueles que são imprescindíveis para uma vida social verdadeiramente humana.
Heller
aponta
ao
longo
de
suas
obras
características/preferências axiológicas em diferentes e
as
principais
distintos momentos
históricos da Humanidade – numa verdadeira historiografia-sociológica entre o
mundo Antigo, o período do Renascimento e o advento e consolidação da sociedade
burguesa e do modo de produção capitalista, sem desconsiderar, sobretudo, as
características do período medievo.
A comunidade como valor e a virtude ética e política eram as características
mais destacadas e assumiam um caráter de naturalidade no mundo Antigo; já no
Renascimento e, consequentemente, no advento da acumulação primitiva e da
sociedade burguesa, a individualidade, o dinamismo, a arte, o conhecimento, a
liberdade,
igualdades,
entre
outros,
explicitaram
a
valoração
axiológica
desantropormorfizada, da secularização e da consciência dos componentes
essenciais e verdadeiramente humanos em sua individualidade.
Já no capitalismo, a relação entre ser social e mundo visam os interesses
privados, individuais e egoístas, ou seja, a grande maioria das relações sociais
passa a ser constituída e externada por escolhas individuais e interesses privados. O
lucro, a produção, a mais-valia, as relações mercantilizantes, o ter, o consumo, entre
outros, ocupam os axiomas mais gerais.
Aqui, a alienação,
[...] não é puramente a discrepância entre o ser genérico e a existência
individual; se trata – mais concretamente – do abismo entre a riqueza
genérica, a riqueza da espécie e a riqueza individual. [...] A alienação
empobrece o individuo (de modo mais claro no capitalismo) porque só
permite desenvolver algumas de suas capacidades (em prejuízo das
demais), porque atrás das capacidades do indivíduo se convertem em
simples meios de autoconservação, porque reduz a riqueza de sentidos a
um só sentido, o sentido de ter ou possuir (HELLER, 1974, p. 30-31).
A alienação é um conflito de valores entre o desenvolvimento axiológico do
gênero humano e o desenvolvimento do valor da personalidade; entre necessidades
158
genéricas e interesses particulares; entre riqueza humana e riqueza econômica. Um
conflito necessariamente e concomitantemente ético-moral e ético-político.
Todo ato humano inclui necessariamente uma determinada preferência entre
algo mais valoroso e o menos valoroso. Do ponto de vista ético-moral e éticopolítico, esta valoração é ainda mais expressiva. A tomada de consciência nessa
relação é primordial para manter o status quo das coisas ou não, isso não implica
necessariamente, numa tomada de posição contra ou a favor de algo.
Mas sim, na tomada de posição, ou de uma determinada consciência
revolucionária, individual ou coletiva. O que implica num movimento social de
enfrentamento dos problemas éticos e políticos. Neste caso, a consciência de
liberdade é o que rege as atitudes, interesses e ações, assunto este do qual nos
ocuparemos mais adiante.
Conforme os apontamentos de Heller, valor e necessidades são duas faces
distintas da mesma moeda. A valoração da necessidade (ou carecimento) de
superação da condição de exploração, ou seja, as necessidades radicais, é
condição sine qua non para viver uma vida não-alienada e não-estranhada em sua
genericidade, bem como das possibilidades de sair do amálgama e das armadilhas
da lógica do capital.
Para tanto, valorar a essência humana, a liberdade, a democracia e as
concepções não ultrageneralizadas, compõem uma práxis revolucionária e, portanto,
uma determinada consciência ética e política de liberdade. Desta forma, vamos ver
como Agnes Heller concebeu e viveu sua teoria.
159
CAPÍTULO III
3. A ESSÊNCIA DE UMA VIDA FILOSÓFICA
“Meu trabalho é minha vida inteira”.
Agnes Heller
3.1.
“Um produto verdadeiro do século XX”
Falar sobre o pensamente teórico-filosófico de uma pensadora, certamente
não é uma tarefa fácil. Sobretudo, quando esta está viva. Além de ser uma
exposição de suas ideias, é, sem dúvida alguma, um momento de avaliação/reflexão
sobre o que realmente pensamos, acreditamos e defendemos.
Defender uma ideia requer do pesquisador, adequada definição e domínio
sobre quem ou o quê irá expor. Principalmente, se essa exposição remete a
conceitos e filosofias, que se espelhem numa teoria científica e/ou uma práxis social,
ou seja, um conjunto de enunciados logicamente coerentes a respeito de um
determinado objeto.
Falar de Agnes Heller torna-se ainda mais difícil, principalmente por ser uma
personalidade de renome internacional, descrita por Terezakis (2009, p. 01) como
“[...] um produto verdadeiro do século XX”. Sua obra percorre diversos campos do
conhecimento, passando desde os assuntos ligados a estética, a política e a ética,
até as análises históricas, da personalidade e das discussões sobre a “pósmodernidade”. Seus escritos remetem a fases distintas de sua vida.
Apropriamo-nos da classificação de Prior (2002) e Terezakis (2009) que
atende nossa proposta, ou seja, no período que viveu na Hungria, na Austrália e nos
Estados Unidos, enquanto marxista, pós-marxista, existencialista e pós-moderna.
Sua obra, segundo Rivero (1996, p. 10), foi o primeiro produto de uma nova
esquerda do Leste Europeu, tanto para os críticos oficiais da Hungria, como para
seus defensores ocidentais.
160
Também recebeu outras classificações tais como neomaxista e póspósmarxista205, porém, no desenvolvimento do seu pensamento filosófico, Heller
defende
que
apenas
quis
ser
“ela
mesma”
sem
denominações
ou
compartimentações conceituais de qualquer “ismo”, apenas buscou escrever uma
filosofia da vida ou viver uma vida filosófica (Lebensphilosophie).
Heller veio duas vezes ao Brasil. A primeira enquanto “intelectual empenhada
na revisão do marxismo” e, posteriormente, retornou como filósofa preocupada com
as temáticas atuais, dentre as quais, destacam-se seus estudos sobre a pósmodernidade e a ética da personalidade (LOYOLA apud HELLER, 2002, p. 19)206.
Autora de uma vasta obra que pode ser dividida em dois grandes grupos: as
ligadas à sociologia histórica da filosofia e às reflexões filosóficas. Os temas do
cotidiano, da ontologia do ser social, da racionalidade, da ética, da ação política, da
comunidade, do valor, da historicidade e da atualidade constituem as vigas-mestras
de todo o seu pensamento.
Para Maria Helena Bittencourt Granjo 207 (2008), a teoria do cotidiano e a
teoria das necessidades foram os temas centrais de suas reflexões208: “[...] Heller irá
colocando as vigas-mestras a partir das quais desdobrará suas demais
preocupações com a moral, a história, o destino das esquerdas, a modernidade e a
pós-modernidade, os valores, a práxis” (GRANJO, 2008, p. 9).
Rivero (1996, p. 23) observa quatro grandes campos de reflexão interrelacionados na obra de Agnes Heller: uma antropologia social, a teorização da vida
205
Rivero (1996, p. 10) pontua que estas denominações dizem respeito aos seus defensores
ocidentais e que, Richard Rorty (filósofo norte-americano) a definiu como pós-pósmarxista em sua
obra The Grandeur and Twilight of Radical Universalism, Thesis Eleven, n. 37, 1994, p. 119-126.
206
Entrevista de Agnes Heller realizada por Francisco Ortega, no Rio de Janeiro, em 2002. A
entrevista foi traduzida por Bethânia Assy, doutoranda em filosofia e orientanda de Agnes Heller na
New School for Social Research, em Nova Iorque (LOYOLA apud HELLER, 2002, p. 19).
207
Maria Helena Bittencourt Granjo é licenciada e bacharelada em filosofia pela PUC-SP, mestra em
História Social pela USP, doutora em Educação, História e Filosofia pela PUC-SP, professora do
programa de Pós-graduação em História e Filosofia da Educação da PUC-SP, professora de Filosofia
da Educação na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Fundação Santo André. O livro citado
refere-se a sua tese de doutorado defendida na PUC-SP, em 1994.
208
É importante destacar que o estudo de Granjo (2008) está relacionado à “crise das ortodoxias e
das grandes teorias explicativas” (idem, p. 07) que apontam para a necessidade de se buscar novos
caminhos para explicar as mudanças do mundo moderno (ou, para alguns, pós-moderno). Portanto,
mesmo analisando a obra de Heller em suas fases distintas, seu foco de pesquisa, ao que nos
parece, está direcionado a encontrar uma teoria que responda a estes anseios, principalmente, no
que tange a Filosofia da Educação. Nesta pesquisa, nosso foco é analisar a contribuição de Agnes
Heller, enquanto fundamentos para uma consciência ética e política do ser social. Concordamos com
Granjo (2008) com relação ao pensamento de Agnes Heller enquanto fundamento para uma teoria ou
filosofia da práxis, porém discordamos com relação ao seu ponto de partida, ou seja, as indagações
filosóficas iniciais que construíram as “vigas-mestras” de seu pensamento, conforme apontaremos no
decurso desse capítulo.
161
cotidiana como modelo de racionalidade, a formulação de uma filosofia política e
uma reflexão ética. Todos estes temas apareceram em momentos distintos do seu
desenvolvimento intelectual que compuseram um corpus comum e compuseram o
que Heller denominou como “uma filosofia aberta e inacabada” (idem, ibidem).
No período anterior a 1978, Heller deteve-se juntamente com Lukács e os
demais membros da “Escola de Budapeste” na proposta de uma releitura dos
escritos de Marx e no grande projeto lukacsiano de escrever uma Ética marxista,
conforme os apontamentos de Tertulian (2010). Este projeto, segundo Rivero (1996,
p. 12) constituía em estimular o renascimento teórico do marxismo e criar uma sólida
base filosófica desse pensamento.
Esta última tendia para uma antropologia social marxista que, finalmente
estimularia, mediante uma crítica à recondução do processo de construção do
socialismo e sua democratização, buscando combater a escolástica do materialismo
histórico (hismat) e do materialismo dialético (diamat), mediante uma re-leitura
integral dos textos de Marx (o jovem e o clássico).
Na visão de Granjo (2008, p. 16), Heller estava preocupada na formulação de
uma “teoria da práxis social”, ou seja, uma “teoria da ação” e, consequentemente, de
uma ética. Entendia que o socialismo estava se desviando dos seus propósitos
originais e que era necessário retomar os fundamentos teóricos em sua totalidade e
originalidade. O sujeito revolucionário proposto pelos enunciados marxianos,
necessitava ser revitalizado em termos das necessidades radicais.
Lukács e seus discípulos pensavam que o pior socialismo seria melhor que o
modelo capitalista mais benigno. Para eles, assim como para Heller, tinham em
mente que o caminho para a emancipação deveria transcorrer necessariamente
pelas veias do socialismo, assim como o processo de democratização. Acreditavam
que qualquer expressão da democracia burguesa, estaria sempre limitada a lógica
do capital e do modo de produção capitalista.
Sua formação enquanto pensadora deve-se a múltiplas determinações sociais
historicamente constituídas. O holocausto nazista alemão, o totalitarismo-fascista do
regime stalinista, o encontro com Georgy Lukács e a Revolução Húngara de 1956,
conforme os apontamentos de Agnes Heller. Estes acontecimentos demarcaram
seus primeiros questionamentos, delinearam sua trajetória intelectual e estão
intrinsecamente relacionados à sua profícua produção filosófica no período em que
nos propusemos a estudar, ou seja, entre os anos de 1956 e 1978.
162
Considera-se aqui, que o destino dos homens e mulheres, enquanto seres
singulares são marcados por formas de sociabilidade que os tornam indivíduos
sociais, cujos resultados são imprevisíveis, dado ser síntese de múltiplas
determinações. Conforme exposto nesta pesquisa, partimos sempre do princípio de
que o ser social faz a sua própria história, porém, não a faz como quer, mas sim,
sobre circunstâncias previamente estabelecidas. (MARX, 1977, p. 21; HELLER,
2004, p. 01).
Conforme já apontamos, o ser social é um ser particular e genérico, produto e
expressão das relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento
histórico-social da humanidade e, enquanto tal, jamais passa pela vida sem estar
circundado por outros seres de igual natureza e de determinações circunstanciais
para o seu fazer histórico.
Sem sombra de dúvida, a vida de Agnes Heller foi marcada por muitas lutas,
vitórias e derrotas, na busca de sua autoafirmação, autorrealização, autolibertação e
da essência filosófica do ser social, bem como, do significado da vida num mundo
repleto de contradições.
Seu
pensamento
é
internamente
consistente
na
sua
motivação
e
metodologicamente coerente em sua abordagem (TEREZAKIS, 2009). Traz uma
diversidade tal de temas que chegamos a compará-la ao maestro e compositor
brasileiro Heitor Villa-Lobos209 que considerava suas obras como “cartas que
escrevia à posteridade, sem esperar respostas”.
Rebelde às exigências e ao dogmatismo de sua época, despontou como uma
autodidata permitindo escapar do exclusivismo. Seus escritos captam as principais
problemáticas
do
mundo
moderno
numa
tessitura
própria,
individual
e
contemporânea, assimilando, sobretudo, a sociologia da vida cotidiana e a
necessidade de transformar as formas alienadas da vida social, tendo em vista o
despertar de uma consciência ética e política e a consolidação da democracia.
Porém, não há como falar de Agnes Heller sem se reportar a Georgy Lukács,
por Heller sempre teve profunda admiração, mesmo nem sempre concordando com
suas atitudes e seus posicionamentos. Também, devemos ressaltar a sua ligação
com o grupo de intelectuais que se reuniram ao redor de Lukács, dos anos finais de
1950 até 1971, ano de sua morte, com quem Heller manteve os laços de amizade
mesmo posterior a morte de seu mestre.
209
Heitor Villa-Lobos (1887-1859), maestro e compositor erudito brasileiro.
163
O ponto mais delicado em toda discussão sobre a obra de Agnes Heller,
principalmente no âmbito do Serviço Social, é com relação ao caráter espaçotemporal, a diversidade de seus escritos e a pluralidade teórica de sua obra em sua
totalidade. Não é pelo fato de serem desiguais, mas, sobretudo, pela complexidade,
erudição e dimensão, como também, o abandono de suas bases.
Há quem negue a sua importância devido ao fato de ter abandonado as
matrizes marxistas que compuseram os seus escritos iniciais, passando de marxista
a pós-marxista, existencialista e pós-moderna. Porém, não se pode negar que Heller
trouxe importantes contribuições para analisar a vida cotidiana e a antropologiaontológica do ser social a luz marxiana e lukacsiana.
Podemos dizer que sua obra é uma declaração de independência, embora
algumas vezes, paradoxal e contraditória. Segura de seus efeitos, Heller buscou
inspiração primeiro, e principalmente, em Aristóteles, Kant, Hegel e Marx, não
negando outros pensadores, teceu um diálogo com alguns interlocutores de seu
universo acadêmico, marcando sempre um sentimento apaixonado pela filosofia
que, para ela, “[...] deve servir à compreensão do presente”210.
Sua biografia é acentuada por uma sucessão de lutas contra a hostilidade, o
dogmatismo, o totalitarismo, a violência e a incompreensão, nos mais diversos
espaços e condições, contudo, sempre enfrentou com ferrenha intransigência o nazifascismo autoritarista que marcou a Hungria na primeira metade do século XX,
obrigando-a a atravessar o oceano em busca de liberdade e reconhecimento.
Sua obra, repleta de erudição filosófica e literária, apresenta uma tessitura
tênue e ao mesmo tempo áspera e dura contra qualquer tipo de violência,
explodindo os seus instintos atávicos contra qualquer tipo de opressão. Porém,
esconde o que poderíamos chamar de melancolia perdida de uma nova Jerusalém.
Grande parte de sua obra, principalmente as do período em análise, foi
traduzida para o castelhano. Além disso, nem sempre seguiu-se a ordem
cronológica em que seus escritos foram concebidos e publicados, originalmente em
húngaro, alemão, italiano e inglês. Acreditamos que isso prejudica a compreensão
de seu pensamento em sua totalidade, tendo em vista que a linha epistêmica e os
argumentos se perdem e o caminho se torna árduo.
Rivero (1996, p. 09) comenta que desde que Manuel Sacristán traduziu e
publicou seu livro Historia y vida cotidiana, para o castelhano, quase todos os seus
210
POLONY, 1997; HELLER, 1983a; HELLER, 2002.
164
livros foram traduzidos para esta língua, principalmente, porque seus escritos
proliferavam constantemente nas páginas das revistas especializadas como também
nos periódicos acadêmicos.
Um estudo aprofundado em sua obra revela a necessidade antropológicoontológica rigorosa de escrever uma “filosofia da práxis”. Uma práxis revolucionária
que buscasse intervir na realidade e nas determinações dadas, tendo por horizonte
a busca pela liberdade e a pela democracia.
Portanto, buscaremos traçar nesse capítulo uma pequena e aproximada
biografia da autora pesquisada, tendo em vista os principais acontecimentos
históricos e sociais vividos em sua particularidade por ela, de modo a perceber a
ligação entre sua vida e sua obra e, principalmente, no que tange aos seus
questionamentos e reflexões que nortearam e acompanham sua trajetória
acadêmico-intelectual-filosófica entre 1956 e 1978 e que continuaram a ecoar
posteriormente.
Tomamos a liberdade de, como pano de fundo, elaborar um roteiro dos
principais acontecimentos histórico-sociais, tanto da Hungria, quanto ao seu redor e
entrelaçar com as vivências/reflexões e comentários de Agnes Heller. Para dar maior
veracidade e neutralidade aos fatos aqui apresentados e para enriquecer o universo
pesquisado, utilizamos outras fontes históricas além das suas entrevistas, sobretudo,
sobre a história da Hungria, alguns fatos mundiais, a vida de Lukács e do contexto
da “Escola de Budapeste”.
Salientamos que no material pesquisado encontramos algumas lacunas e
alguns desencontros. Porém, buscamos sanar esses hiatos complementando-os
com outras fontes. Não pretendemos aqui realizar uma biografia total e geral sobre a
autora. A intenção é a de demarcar o contexto histórico e social no qual se inseriu,
bem como os principais acontecimentos que contribuíram para suas reflexões.
Tendo em vista o grande volume de sua obra, encontramos algumas
referências biográficas espalhadas em orelhas dos livros pesquisados, entrevistas,
depoimentos, descrições e demais fontes, portanto, algumas informações se
tornaram difíceis de serem referendadas, outras estão registradas em suas diversas
entrevistas concedidas nos mais diferentes momentos de sua vida. Assim, os dados
encontrados cientificamente datados, serão referendados e os demais, serão
descritos conforme sua própria fala.
165
3.2.
A história de uma vida ou a vida de uma história
Agnes Heller nasceu em Budapeste, Hungria, no dia 12 de maio de 1929,
meses antes da crise mundial causada pela queda da Bolsa de Nova York que,
segundo o historiador Eric Hobsbawm (2010, p. 96), “[...] equivaleu a algo próximo
de um colapso econômico mundial”.
Neste período, a Hungria, estava se reerguendo das cinzas causada pela 1ª
Guerra Mundial e suas consequências. Em 28 de junho de 1919 é assinado o
Tratado de Versalhes, em Paris. A Europa sofreu uma reorganização territorial, a
desagregação interna de seus territórios e a aceleração da queda das suas
potências centrais.
Estes acontecimentos trouxeram algumas consequências para a Hungria. Até
1920 a Hungria pertencia ao Império Austro-Húngaro. Porém, em consequência de
suas derrotas militares na 1ª Guerra Mundial, possibilitou a afirmação das minorias
nacionais.
A Hungria foi forçada a assinar no dia 04 de junho de 1920, no Palácio Petit
Trianon, em Versalhes um acordo, que ficou conhecido como Tratado de Trianon.
Este tratado pôs fim ao Império Austro-Húngaro, separando o território da Áustria e
da Hungria, pondo fim à dinastia dos Habsburgo e transformando a Hungria num
“pequeno país satélite” (SZACKI, 1972).
O Tratado de Trianon desmembrou grande parte territorial do Império AustroHúngaro, abolindo assim, a sua unidade nacional, histórica, física e econômica,
como também, afastando a Hungria central de suas fontes de matérias-primas e de
combustível, o que criou uma situação econômica catastrófica.
Com este tratado, a Hungria passa a ser submetida ao domínio dos países
vizinhos:
[...] após a conclusão do Tratado de Trianon, as condições de vida
tornaram-se ruins e os empregos difíceis de achar, os proprietários de terra
voluntariamente deixaram de usar a sua maquinaria agrícola, para prover
mais empregas ao trabalhador manual. (MONTGOMERY, 1999, p. 50).
Como é de conhecimento geral, a eclosão da 1ª Guerra Mundial, teve como
estopim o assassinato do arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, em
Sarajevo, em 1914 e a guerra durou até 1918. Segundo os historiadores, com o
166
Tratado de Trianon a Hungria perdeu cerca de 71,5% de seu território e 63,6% de
sua população. Nessa época, era um país estritamente agrícola e, por isso, a
Hungria
ficou
numa
situação
muito
complicada
economicamente
falando,
instaurando-se uma crise em todo o seu território.
Em contrapartida, para situar os acontecimentos ao redor da Hungria que
terão influência direta na sua história e na vida de Heller, destacamos também a
eclosão da Revolução Russa de 1917, a instauração do comunismo leninista em
1917 a 1924 e do stalinismo entre os anos de 1924 a 1953. Stalin passou a
centralizar todo o poder da antiga União Soviética e a perseguir implacavelmente
seus opositores políticos, num projeto de industrialização maciça, coletivização
agrária e ditadura nazi-fascista logo em seus primeiros anos de mandato.
No oeste da Hungria, a ideologia fascista de Mussolini se consolidava na Itália
e na Alemanha e a República Weimar (1918-1933) nascia em meio a uma frustrada
revolução socialista. Em 1919 é fundado o Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães, logo chamado de Partido Nazista. Após ser nomeado
chanceler da Alemanha, Adolf Hitler211 proclama em 1933 o III Reich, passando a
instituir uma política fundamentada na ideologia nazista.
Como se vê, Heller nasceu num período de grande efervescência mundial e,
em especifico, na Europa. Nesta época, Budapeste - cidade natal de Agnes Heller era bem diferente daquela encontrada pelo chanceler alemão, Otto Von Bismark, em
1852 que, em uma missão para o rei da Prússia, em Buda, encantado pela beleza
da cidade, descrever numa carta endereçada a sua esposa:
[...] a vista é encantadora. As torres do Castelo no alto sobre a colina.
Quando olho para baixo, vejo primeiro o Danúbio, sobrearqueado pela
ponte pênsil; depois, a cidade de Pest e, atrás dela, estende-se a planície
sem fim, fundindo-se no vapor azul-avermelhado da tarde. À esquerda de
Pest, meus olhos podem vaguear rio acima; na sua margem direita, é,
primeiro, margeado pela Cidade de Buda; em seguida, estão as montanhas
azuis, mais azuis, finalmente vermelho castanhas, contra o céu inflamado
da tarde. Separando as duas cidades, o largo espelho de água quebrado
pela ponte pênsil e uma ilha cheia de árvores. (BISMARCK apud
MONTGOMERY, 1999, p. 37).
211
Adolf Hitler (1889-1945), austríaco, foi líder do Partido Nazista a partir de 1921, tornou-se o ditador
unipartidário e disseminou a ideia anti-semitista pelo mundo. Em 1933 proclamou o III Reich (império)
alemão e a redenção da raça ariana. Pela sua grande capacidade de liderar as massas, foi instituído
o slogan alemão “Ein Reich, ein Volk, ein Führer” – “um império, um líder, um povo”.
167
Budapeste é a capital da Hungria, cidade cortada ao meio pelas águas do
Danúbio, rio tão exaltado pelos artistas e músicos ao longo dos anos. O Danúbio
divide a cidade em duas partes: Pest a parte baixa de onde pode ser avistada a
Colina do Castelo, que fica na parte alta da capital; e Buda, onde se localiza o
imponente Palácio Real e a Colina Gellért. As duas partes são ligadas por várias
pontes destacando a Széchenyi Lánchíd, ou Ponte das Correntes como é
popularmente conhecida. Cidade que é constituída por uma vasta cultura popular e
aristocrática nos seus mais de 1.000 anos de história.
O reino da Hungria foi estabelecido pelo Rei Estevão I, no ano 1.000 da era
cristã. Sua localização geográfica propiciou o desenvolvimento de uma cultura
aristocrática, própria na Europa Central num intercâmbio com a Europa Oriental e,
ao mesmo tempo, guarda a sutileza e simplicidade dos magiares212 e dos judeus.
Sua localização de fronteira, fez com que a Hungria sofresse ao longo dos anos,
pressões militares tanto do Oriente como do Ocidente.
Entre 1241 e 1242 sofreu a invasão dos mongóis. No século XVI a dos turcos
otomanos que ocuparam grande parte do país e o restante ficou sob o domínio da
casa dos Habsburgos da Áustria213. Com o fim do jugo otomano (1526-1718), toda a
Hungria passou a ser dominada pela aristocrática casa dos Habsburgos.
Em 1848, um levante liderado por Lajos Kossuth214, lutou pela independência
do país. Porém, um pedido de ajuda do imperador austríaco Francisco José ao czar
russo Nicolau I, fez com que as tropas russas esmagassem o levante. Em 1867
firmou-se o Império Habsburgo austro-húngaro, que duraria até o final da I Guerra
Mundial.
Segundo Konder (1980, p. 19),
[...] o império austro-húngaro era uma espécie de Frankentein, um monstro
formado artificialmente com pedaços de diferentes organismos. Com a
anexação da Bósnia, em 1908, ele se tornou o segundo Estado europeu,
em matéria de superfície, e o terceiro, ao nível da população. O clima
espiritual da chamada “Belle Époque” se fazia sentir em Budapeste quase
com a mesma intensidade com que era vivido em Viena, capital do império.
212
Povos de origem eurasiana que migraram para a bacia dos Cárpatos no século X. Eles
representavam a interface entre o Ocidente e o Oriente, entre a Europa e a Ásia, entre o cristianismo
e o islamismo (SZABO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 12). A língua húngara tem influência
direta desses povos.
213
Paul Kennedy, em seu livro Ascensão e queda das grandes potências (1989), traz um bom estudo
sobre a dinastia dos Habsburgo.
214
Lajos Kossuth (1802-1894), político húngaro, líder do levante de 1848.
168
Mas os espíritos mais lúcidos percebiam que havia alguma coisa de podre
no ar e viam na futilidade reinante um sinal de fim de festa.
Realmente, entre 1871 e 1914 não houve nenhuma guerra na Europa em que
exércitos
de
grandes
potências
cruzassem
alguma
fronteira
hostilmente
(HOBSBAWM, 2010). Porém, esta calmaria chegaria ao fim após o assassinato do
príncipe herdeiro do império austro-húngaro, Francisco Ferdinando em 1914,
estourando, assim, a I Guerra Mundial envolvendo todas as potências mundiais.
Nesse período, o desespero provocado pela escassez e pela inflação na
Rússia czarista, em 1916, conduziu à reativação do movimento grevista e a
manifestações populares. Estes eram os anúncios para o que se chamou de
Revolução Russa de 1917. No início deste ano, essas manifestações derrubaram a
autocracia czarista russa e, no final do mesmo ano, era instaurado o regime
socialista/comunista soviético.
Esses acontecimentos influenciaram decididamente o rumo da história da
Hungria. Em 1919, Béla Kun215, fundador do Partido Comunista Húngaro216, tentou
transformar a Hungria numa República Soviética: a República Húngara dos
Conselhos, que duraria apenas 133 dias. Após ser derrotada essa iniciativa, a
Hungria passou a ser governada pelo regente almirante Miklós Horthy217, chefe do
que ele afirmava ser o “reino da Hungria”, estabelecendo um Estado autoritário aos
moldes da oligarquia do século XVIII. Nesse período a Hungria era um país
estritamente agrícola, conforme já apontamos.
Após a 1ª Guerra Mundial, a Áustria e a Hungria não possuíam força militar,
nem qualquer potencial bélico. A Áustria tinha perdido Sudetenland, região industrial
localizada no nordeste da Boêmia, e a Hungria, foi obrigada a ceder grande parte de
seu território a Áustria, Tchecolosváquia, Iugoslava e Romênia.
215
Bela Kun (1889-1936), político comunista, dirigiu a República Húngara dos Conselhos. Ficou
exilado em Viena e, posteriormente, na União Soviética, onde desempenhou diferentes funções
dentro do partido. Foi executado durante o expurgo stalinista.
216
O Partido Comunista Húngaro foi formado em 1918. Originalmente denominado Partido dos
Comunistas Húngaros, posteriormente, em novembro de 1944, passou a ser denominado Partido
Comunista Húngaro. Com a fusão com os social-democratas, em junho de 1948, recebeu a
denominação de Partido dos Trabalhadores da Hungria. Após o levante húngaro de 1956, o governo
Kádár renomeou-o como Partido Socialista Operário Camponês da Hungria.
217
Miklós Hothy (1869-1957), Contra-Almirante da marinha habsburguesa que, em 1919, apoia a
aliança contra a República Húngara dos Conselhos. Em 1920 é chefe do regime reacionário da
Hungria. Destituído em 1944 pelo golpe nazista, é preso como prisioneiro de guerra pelos Aliados.
169
Em entrevista publicada na Revista Ensaio, nº 13, István Mészaros218 afirma
que o período compreendido entre os anos de 1929 a 1933 foram tempos de crise.
Como se vê, Heller viveu seus primeiros anos, mergulhada num clima de intensa
crise econômica e efervescência política.
[...] éramos muito pobres, mal tínhamos o que comer, mas a pouca comida
era valorizada. Estávamos sempre com bom ânimo, poderíamos rir e
contar histórias juntos. Devo muito a meu pai... (HELLER, 2002, p. 24).
O pai de Agnes Heller era um homem cético e de vasta cultura. Foi ele quem
a conduziu para entender as diversas maneiras do mundo do espírito (da essência
do ser humano) e da erudição. (idem, p. 23).
Em entrevista a Francisco Ortega, Heller (2002) conta que aos quatro anos
seu pai lhe ensinou o imperativo categórico kantiano. O significado desse
aprendizado na vida de Agnes Heller, na mais tenra infância, sem sombra de
dúvidas, irá refletir de maneira significativa ao longo de sua trajetória e de sua
produção intelectual, sobretudo, pela importância que o seu pai teve em sua vida.
Heller, já na sua maturidade teórica, traz importante contribuição para o
estudo de Kant. Em suas análises sobre este pensador moderno, no texto intitulado
La “primeira” y la “segunda” ética de Kant 219, publicado no livro Crítica de la
Ilustração, livro que contém uma série de trabalhos de Heller produzidos ao largo de
1970 que, com a mesma intencionalidade teórica, faz algumas reflexões críticas do
pensamento da Modernidade.
Nesse texto, expõe com maestria o imperativo categórico kantiano. Ao
analisar a obra de Kant entre os anos de 1780 e 1790, estabelecendo um diálogo
rigoroso entre Schiller (1759-1805), Goethe (1749-1832) e Simmel (1858-1918),
verificando primeiramente
que
Kant pretendia
estabelecer
uma
teoria do
conhecimento e da ética, afirmando, assim, que Kant esperava que “[...] qualquer
criança de 10 anos pudesse compreender o imperativo categórico” 220.
Segundo Barroco (2008, p. 139),
218
István Mészáros. Nasceu em Budapeste em 1930, começou a trabalhar como assistente de
Georgy Lukács de 1951 até 1956. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade de
Budapeste, porém, após o levante húngaro de 1956, exilou-se na Itália, onde lecionou na
Universidade de Turim e posteriormente, indo trabalhar na Escócia, no Canadá e Inglaterra. Autor de
uma vasta obra é considerado um dos mais importantes pensadores marxistas da atualidade.
219
HELLER, Agnes. Crítica de la Ilustração: las antinomias Morales de la razão. Trad. Gustau
Muñoz e José Ignacio López Soria. Barcelona: Península, 1984, p. 21-96.
220
HELLER, 1984, p. 37.
170
[...] Kant busca uma resposta ética para o antagonismo entre a defesa da
liberdade e a luta por interesses privados. Sua saída é transcendental, pois
sua ética permanece fiel aos princípios universais, mas se torna
incompatível com a vida empírica.
Kant tinha como pressuposto que homens e mulheres são ao mesmo tempo
“ser de razão” e “ser empírico”, portanto, devem estabelecer uma regra que
expressasse através do dever, um convite objetivo à ação. Esta regra (ou fórmula)
foi denominada por Kant por imperativo categórico221.
Para Barroco (idem, ibidem),
[...] a doutrina do imperativo categórico baseia-se no principio da
universalidade: uma norma é moral quando pode ser universalizável,
quando ultrapassa os casos particulares e os interesses. Opondo-se ao
utilitarismo moral, Kant entende que uma ação só é moral quando é
independente de objetos externos, de móveis empíricos, sensíveis, logo, de
utilidade ou de interesses e consequências concretas. É desse modo que
necessidade e liberdade se separam: o mundo empírico é o espaço da
necessidade; a liberdade é o espaço das ações humanas, da capacidade
radical e teleológica que não se realiza, segundo ele, por necessidades
causais. 222
No cerne do pensamento kantiano está o dever (uma deontologia223), ou seja,
um sistema de moral ou conjunto de deveres norteadores para a vida social. Kant
fez uma distinção224 entre Razão Pura e Razão Prática, entre Vernunft (mente) e
Verstand
(intelecto;
faculdade
dos
conceitos;
propriedade
intelectiva
das
pessoas)225.
221
Não cabe aqui fazer uma análise aprofundada sobre o pensamento kantiano, porém, iremos expor
os pontos que achamos importantes para situar essa base teórica da vida prática e intelectual de
Agnes Heller. Para Heller, o imperativo categórico kantiano está sintetizado em quatro máximas
morais: “[...] atua de maneira tal que a máxima de tua vontade possa servir sempre e também como
principio de lei de caráter geral; atua somente conforme aquelas máximas que podes desejar que se
converta em lei geral; atua como que a máxima de tua ação tenha que converter-se por tua vontade
em lei geral e natureza; atua de tal maneira que trates a humanidade, tanto em tua pessoa, como na
pessoa de qualquer outro, sempre e em todo momento como um fim e nunca como um simples meio”
(HELLER, 1984, p. 56 – grifos nossos). Em nossas análises, percebemos que estes princípios
compõem o alicerce do pensamento moral helleriano.
222
Grifos da autora.
223
Para Abbagnano (2007), entende-se por deontologia uma ciência da moralidade, ou seja, uma
ciência que busque ensinar homens e mulheres como “dirigir suas emoções de tal modo que as
subordine na medida do possível, ao seu bem-estar” (BENTHAN apud ABBAGNANO, 2007, p. 208).
224
Do grego - κρισεις – krisis, ordenança; distinção.
225
O objeto das reflexões de Kant é a liberdade e a felicidade e delas dependem, consequentemente,
da natureza empírica os sujeitos particulares, ou seja, da força da autonomia (um agir-por-si-mesmo).
Kant adota como terminologia epistemológica, o termo imperativo que segundo Abbagnano (2007, p.
628), pode ser entendido como uma analogia ao termo bíblico “mandamento”, que expressa uma
norma da Razão, portanto, um dever. Distingue os imperativos (ou ordens da Razão) em hipotéticos
171
A influência do pensamento kantiano no corpus teórico helleriano não pode
ser negada, porém, isso não quer dizer que podemos rotulá-la assim, aliás, somos
contrários, assim como Heller a qualquer “ismo” no sentido pejorativo da expressão.
É a própria Heller quem irá esclarecer esta questão:
[...] sou muito influenciada pela concepção de Kant. [...] De qualquer modo,
porém, não sou kantiana, não só porque recuso a primeira ética de Kant,
que se tornou depois a sua ética “clássica”, mas também porque não creio
que o simples formalismo na ética possa servir como ponto de partida válido
(HELLER, 1982, p. 160-161).
Voltando aos aspectos históricos, em agosto de 1934, morre o presidente da
Alemanha, Paul Von Hinderburg226. Assume no seu lugar, Adolf Hitler que é aceito
pelo povo como presidente e chanceler da Alemanha. O fascismo atraía o jovem
Adolf. Numa versão pessoal deste movimento, vislumbrava como o nazismo poderia
levá-lo a cumprir o que ele acreditava ser seu destino: limpar a Alemanha dos
“elementos impuros” e restaurar seu antigo sonho e poder: a supremacia da raça
ariana.
Para os judeus de toda a Europa iniciava-se um período de grande terror. Um
prelúdio de medo se abatia sobre a população judia pelo sentimento anti-semita que
começava a despontar com a perseguição de Hitler a este povo, principalmente na
Hungria após a 1ª Guerra Mundial.
De 1934 a 1944, a Hungria sofre com as invasões da Alemanha nazista em
suas fronteiras. Em 25 de julho 1934, Engelbert Dolfuss227, chanceler da Áustria, é
assassinado. O medo toma conta da Hungria contra o que significava o
aparecimento do exército alemão nas suas fronteiras.
Em agosto de 1938, Hitler toma a Áustria e traz o exército alemão para as
fronteira da Hungria. No dia 15 de março de 1939, invade a Boêmia. Em setembro
de 1939 inicia-se a II Guerra Mundial e, em 1940, a Romênia passa à subserviência
da Alemanha. No dia 21 de junho de 1941, Hitler lança seu ataque à Rússia.
(ou condicionais) e categóricos (ou absolutos). Estes, por sua vez, estão relacionados à prudência.
Assim como os primeiros pensadores modernos, Kant acreditava que os indivíduos agiam
naturalmente por interesses (forma natural do egoísmo humano) que levava a tratar as coisas e as
pessoas como meio e/ou instrumento para a realização dos seus desejos. Portanto, caberia a Razão
regular estas motivações instintivas da natureza humana.
226
Presidente da Alemanha de 1925 a 1934.
227
Engelbert Dollfuss (1892-1934), político austríaco socialista-cristão. Foi assassinado pelos
nazistas, durante um golpe de Estado em 1934.
172
Até 1943 um milhão, duzentos e cinquenta mil judeus ainda estavam vivos
tanto na Hungria, como na Eslováquia, Romênia e Bulgária. Até março de 1944, a
Hungria era o único país europeu em que os judeus (em torno de um milhão)
poderiam viver com segurança. No dia 19 de março de 1944, as tropas alemãs
chegam a Budapeste e a Hungria passa a ser submetida ao nazismo de Hitler:
[...] a fúria de Hitler contra a Hungria foi, em grande parte, provocada pela
proteção concedida aos judeus, dos quais um grande número sobreviveu ao
período nazista na Hungria, pois, na época em que os exércitos alemães
realmente assumiram o comando, Hitler estava próximo do seu fim.
(MONTGOMERY, 1999, p. 107).
Este período trará à memória de Agnes Heller cicatrizes profundas. De
ascendência judia, Heller tinha verdadeira admiração pelo pai que, por seu
conhecimento da língua alemã, ajudava muitos judeus a reunir documentos para
escaparem do horror da perseguição nazista aos povos semitas.
Ao longo da história da Hungria, os judeus tiveram uma longa e especial
ligação com o país. Assim como os magiares, que eram considerados povos
itinerantes que encontraram na Hungria, campo para uma verdadeira simbiose entre
os seus compatriotas e se identificaram com aquele território historicamente
cobiçado e esfacelado.
Os judeus tiveram papel fundamental no desenvolvimento econômico,
cultural, político e social da Hungria. Em Budapeste, encontraram campo fértil para o
seu enriquecimento, ocupando lugar de destaque na vida social e intelectual
húngara. Contudo, também enfrentaram momentos de perseguição, principalmente
no período em que a Hungria esteve sobre ameaça e sob o jugo do nazismo
alemão.
No dia 19 de março de 1944, o exército nazista alemão invadiu a Hungria,
Heller era uma adolescente judia de quatorze anos. John Flournoy Montgomery 228
descreve este acontecimento:
[...] à meia-noite de 18 para 19 de março [1944], poderosas forças alemãs,
somando onze divisões e incluindo trens blindados, armas motorizadas e os
mais pesados tanques “tigre”, partiram da Áustria para o território húngaro,
chegando a Budapeste às quatro horas da manhã. Simultaneamente, os
campos de pouso húngaros foram invadidos por tropas de paraquedistas,
228
O livro de Montgomerry foi escrito no calor das cinzas da II Guerra Mundial. Foi embaixador dos
Estados Unidos na Hungria entre os anos de 1933 a 1941. Seu livro foi editado pela primeira vez em
1947.
173
que encontraram somente leve resistência, pois todas as forças húngaras
estavam concentradas nas fronteiras leste e sudeste da Hungria. Temendo
a retaliação dessas tropas, os alemães, auxiliados por tropas romenas,
fecharam a metade lesta da Hungria na linha do rio Tisza, para prevenir seu
contato com Budapeste, mantendo esse controle por várias semanas.
(MONTGOMERY, 1999, p. 189).
Nessa época, Heller experimentou sua primeira experiência traumática: o
holocausto. Perdeu amigos e parentes, mas a perda maior foi seu pai, que fora
deportado juntamente com cerca de 450.000 outros judeus húngaros para os
Campos de Concentração de Auschiwitz. Seu pai foi morto antes do final da II
Guerra Mundial. Sobreviveram sua mãe e sua tia, irmã de seu pai, e ela.
Com a derrota da Alemanha na 2ª Guerra Mundial, os países Aliados
(Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia, Bulgária, Albânia e a Hungria)
passaram a fazer parte da zona socialista, assim como parte da Alemanha ocupada
pelo Exército Vermelho Soviético, tornando-se, assim, países satélites da ex-URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), sob o domínio de Josefh Stalin 229,
líder soberano da URSS de 1922 até 1953, ano de sua morte.
Essa experiência e o contato com os regimes totalitários daquele período,
exerceram enorme influência sobre sua vida intelectual posteriormente. As questões
relacionadas
à
ética
e
a
moral
nasceram
nesta
fase.
Seus
primeiros
questionamentos foram: por que as pessoas fazem tais coisas? Qual a fonte do bem
e do mal? Podemos descobrir as fontes da moralidade e do mal? (POLONY, 1997).
O seu interesse pelos assuntos sobre a moralidade, entendida por Heller 230
como a “[...] conexão da particularidade com a universalidade genericamente
humana”231 que, em outras palavras, é o modo como as pessoas estabelecem as
normas e regras para a vida em sociedade, está relacionado com a violência vivida
por ela no período de sua juventude até a sua saída da Hungria.
Outras questões de cunho social também fizeram parte das reflexões de
Heller: “[...] Que tipo de mundo pode produzir experiências como a do holocausto?
Como podem as pessoas fazer tais coisas? Haverá uma “redenção”?”232.
229
Joseph Vissarionovich Djugashvili (1879-1953), adotou o nome de Stalin (homem de aço) em
1912. Em 1917 após a vitória da Revolução, revolucionário, político e estadista soviético. Em abril de
1922, foi eleito Secretário Geral do Partido Comunista, posição que ocupara até a sua morte em
1953. Após a morte de Lênin, em 1924, Stalin introduziu sua teoria do "socialismo em um só país",
instaurando um regime altamente totalitário e de grande repressão.
230
HELLER, 2004, p. 05.
231
Grifos da autora.
232
POLONY, 1997.
174
Mais tarde, ao analisar este período e a sua filosofia, Heller irá dizer: “[...] Eu
sentia que eu tinha uma dívida a pagar por ser uma sobrevivente” 233.
Após a 2ª Guerra Mundial, aos 15 anos, Heller abraçou a causa sionista, um
movimento político-filosófico que defendia à autoafirmação do povo judeu e a
existência de um Estado independente e soberano para este povo: o Estado de
Israel234. Acreditavam que esta “redenção” viria de Sião (ou Tzion)235, daí o seu
nome.
Nessa época, pelo grande número de judeus em Budapeste, grupos de
jovens sionistas se reuniam aos domingos na montanha de Swábheggy, perto da
capital. Acreditavam que seria necessário uma bichá (fuga), já que as tropas de
Hitler marchavam em direção da Hungria. Muitos desses jovens fugiram para a
Palestina. Salo W. Baron comenta que “[...] por detrás do movimento sionista estava,
obviamente, os antigos anseios judaicos de uma restauração da terra dos
antepassados”236: a “Terra Prometida”, segundo os ensinamento da Torá237.
Heller, nessa ocasião, assim como muitos/as jovens sionistas, pretendia ir
para a Palestina, mas, aos 17/18 anos mudou de ideia e optou por permanecer na
Hungria para estudar física e química na Universidade de Budapeste.
Sua filiação ao movimento sionista remete ao ideário de uma “redenção”.
Heller via nesse movimento uma forma de libertação, segundo ela, da grande
opressão sofrida pela invasão dos regimes totalitários à Hungria.
[...] Eu não estava interessada em nacionalismo, e sim nos kibutzes e nas
comunidades. De qualquer forma, o movimento sionista funcionava para
nós como um tratamento psicanalítico. Afinal, éramos pessoas que
tínhamos sido inteiramente excluídas das comunidades húngaras. Não só
pelo estado de extremo perigo, como éramos intrusos por definição. Para
nós, caminhar nas ruas de Budapeste e cantar as canções sionistas era
uma espécie de terapia sartriana (HELLER, 2002, p. 28).
233
POLONY, 1997.
Podemos encontrar maiores detalhes sobre a consolidação do estado de Israel no Best Sellers de
Leona Blair, “Cada mulher em seu lugar” (título original: A Woman’s Place), editada em 1981. O
romance foi traduzido para o português e editado pela Editora Nova Cultural, em 1988, sob licença da
Distribuidora Record, Rio de Janeiro.
235
Referente à região próxima a cidade de Jerusalém, onde se localiza o Monte Sião, local do Templo
construído pelo rei David das narrativas bíblicas.
236
CODEIRO, Hélio Daniel. Sionismo: o judaísmo como práxis política. Disponível em:
www.judaica.com.br/materias/002_09e11.htm, nº 002, maio-junho/1997, acesso em 25/05/2012.
237
Livro sagrado para o povo judeu composto, em analogia, os cinco primeiros livros da Bíblia cristã,
onde se mostra a libertação do povo hebreu da escravidão do Egito e a promessa de uma “Terra
Prometida”.
234
175
Nesse período, Heller leu o romance bibliográfico de Marie Curie, escrito por
sua filha, Eva Curie, Nesta época, havia grande efervescência dos Movimentos
Feministas pelo mundo todo, em que as mulheres buscavam sua autoafirmação enquanto gênero – e sua libertação da cultura machista. Heller percebeu que uma
mulher também poderia realizar grandes feitos. Diante do exemplo de Marie Curie,
nasceu a vontade de ser cientista. Esta vontade estava implícita no seu desejo de
fazer alguma coisa para o mundo por ter sobrevivido aos horrores do holocausto e
do nazista alemão. Decidiu, então, estudar física e química.
Abrimos um parêntese para registrar aqui a história de Marie Curie, ou
simplesmente Madame Curie, por considerarmos digna de nota, porém, não se deve
confundir esta personalidade histórica com Agnes Heller, ambas, percorrem
caminhos bem distintos.
No outono de 1891, a jovem polaca Marie Sklodowska matriculou-se no curso
de Ciências da Universidade Sorbonne, em Paris. Causava estranheza aos seus
colegas pelo seu ar tímido, expressão obstinada e vestuário austero e pobre.
Escolhia sempre o primeiro lugar nas aulas de Física e considerava perdido qualquer
momento em que não estivesse dedicando-se aos livros.
Sua obstinação pelos estudos era tão grande que ficava horas a fio a
escrever números e equações, sem se dar conta de que suas mãos se enrijeciam e
seu corpo tiritava de frio dado ao fato de não acender a lareira para economizar
carvão. Ficava até semanas inteiras sem ingerir qualquer alimento além de chá e
pão. Conta-se que quando queria festejar algum acontecimento mais feliz, comprava
dois ovos, um chocolate e duas ou três frutas. Tal regime a deixou com uma saúde
frágil.
Esta paixão científica, aos vinte e seis anos de idade, fez com que ela
desenvolvesse uma feroz independência pessoal. Em 1894 conhece aquele que
seria seu companheiro, o cientista Pierre Curie. Em poucos meses, Pierre a pediu
em casamento. Porém, casar-se com um francês significava ter que abandonar a
sua volta à Varsóvia e sua família, conforme os costumes da época. Decorreram-se
dez meses para que Marie aceitasse a proposta de Pierre.
Até fins de 1897, Marie tinha obtido dois diplomas universitários, uma bolsa
de estudos e publicado um importante trabalho sobre magnetização do aço
temperado, porém sua meta era o Doutorado. Ao procurar um objeto para suas
investigações, descobriu numa recente publicação do eminente francês Antoine
176
Henri Becquerel238, que apontava para um elemento químico desconhecido nas
partículas do urânio. Sua obstinação pela ciência faz com que assumisse,
juntamente com seu marido, uma longa empreitada na busca de elemento
radioativo.
Em julho de 1898, o casal anuncia o descobrimento de uma dessas
substâncias, a qual Marie deu o nome de Polônio, em homenagem a sua terra natal
e, em dezembro do mesmo ano, revelaram a existência do segundo elemento: o
rádio. Esta pesquisa demorou cerca de quatro longos anos e de incansáveis
experimentos.
Podemos imaginar como Heller ficou impressionada ao tomar contato com a
história dessa primeira mulher no mundo a ganhar o Prêmio Nobel, num período em
que somente os homens iam às universidades e
como ficou surpresa,
principalmente, ao descobrir um elemento químico que iniciou uma verdadeira
revolução nas ciências e na medicina.
Em 1943, um maravilhoso filme foi produzido em sua homenagem: Madame
Curie239, do qual destacamos o seu discurso na Faculdade de Ciências da
Universidade de Paris pronunciado em comemoração ao vigésimo quinto aniversário
da descoberta do rádio:
Mesmo agora, após vinte e cinco anos de pesquisa investigativa, sentimos
que ainda há bastante para ser feito. Nós fizemos descobertas. Pierre Curie,
nas sugestões que encontramos em suas notas e nos pensamentos
expressados, nos ajudou e guiou até eles. Mesmo que apenas um de nós
não possa fazer muito, cada um talvez possa pegar um pouco de sabedoria
ainda que modesto e insuficiente, mas que pode despertar o sonho do
homem de alcançar a verdade. Por meio dessas pequenas luzes em novas
trevas é que veremos pouco a pouco os esboços desse grande projeto que
dá forma ao universo. Eu estou entre aqueles que pensam que por este
motivo, a ciência tem grande beleza e com sua grande força espiritual
limpará um dia este mundo de seus males, sua ignorância, pobreza,
doenças, guerras e mágoas procurem a clara luz da verdade. Procurem
estradas novas desconhecidas mesmo quando a visão dos homens
alcançar mais longe que agora. A maravilha divina nunca falhará. Cada
época tem seus próprios sonhos. Deixe então os sonhos de ontem para
trás. Você, tome a tocha do conhecimento e construa o palácio do futuro.
(MARIE CURIE).
Estas palavras apaixonadas, carregadas de um idealismo messiânico de
Marie Curie, vão bem ao encontro do que Agnes Heller pensava naquela ocasião.
238
Antoine Henri Becquerel (1852-1908), físico francês que descobriu acidentalmente aquilo que fora
mais tarde denominado por radioatividade.
239
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=L49iSpEl8FU.
177
Seu desejo de autoafirmação e de uma “redenção”, a impulsionou para matricula-se
no curso de Física e Química da Universidade de Budapeste. Acreditava que tinha
uma “dívida para com a humanidade”240 – sua “redenção”. Este pensamento fez com
que se interessa pelas ciências naturais – física e química.
Queria ser igual aos homens, porém, não queria perder as suas
características femininas. Sua autoafirmação feminista, provavelmente tem a ver
com influência de sua tia:
[...] tive uma tia que era uma feminista bastante aguerrida. Usava roupas
masculinas, comportava-se como homem e recusava todo dever feminino
como algo tradicional. Mas recusava não só os deveres femininos, como
também as alegrias femininas. Eu tinha grande respeito por ela, mas – ao
mesmo tempo – experimentava também uma estranha sensação; pareciame que não conseguiria jamais me assemelhar a ela. Queria ser uma
mulher cientista, mas continuar de algum modo a ser mulher; e isso me
parecia impossível. (HELLER, 1982, p. 197-198)241.
Assim, Heller desistiu da ideia de ir para a Palestina e resolveu estudar na
Universidade Eötvös Loránd. De acordo com as informações contidas no site dessa
instituição242, esta Universidade é uma instituição de ensino superior situada no
centro de Budapeste e possui um rico passado científico-cultural. Seus antecedentes
remontam a data de sua fundação no ano de 1635, na cidade de Nagyszombat (hoje
Trnava, Eslováquia). Fundada pelo cardeal Péter Pázmány, como universidade
católica para o ensino da Filosofia e da Teologia.
Em 1667, criou-se nesta Universidade uma Faculdade de Direito e, em 1769,
uma Faculdade de Medicina. Entre 1770 e 1780 a Universidade foi transferida para
Buda e mais tarde para Pest e com o apoio da rainha da Hungria Maria Teresa,
converteu-se na Universidade Real Húngara. Em 1950, a Universidade foi
remodelada e passou a chamar-se Universidade Eötvös Loránd, em homenagem a
um dos seus mais antigos professores: o físico de renome mundial, Loránd Eötvös.
Neste mesmo período, Georgy Lukács, regressava à Budapeste assumindo a
cátedra de Estética e Filosofia da Cultura nesta mesma Universidade243. Lukács se
240
POLONY, 1997.
Entrevista a Ferdinando Adornato em sua última estada na Itália. Traduzida por Carlos Nelson
Coutinho e publicada pela Editora Brasiliense em 1982.
242
Disponível em: http://www.eltebtk2.hu/portugues.asp, acesso em 15/07/2012.
243
Entre os anos de 1930/1931, Lukács trabalhou no Instituto Marx-Engels de Moscou; representou
papel ativo na vida literária do Partido Comunista Alemão, em Berlim entre 1931/1933; trabalhou no
Instituto Filosófico da Academia de Ciências de Moscou, de 1931/1944; e ajudou a editar publicações
literárias, retornando, então, a Hungria sob o regime de Mátyás Rákosi (1945-1956). Por causa das
241
178
reinstala em Budapeste em 1º agosto de 1945. Ligado à vida política, exerceu
intensas atividades de grande ressonância pública, não só no Parlamento Húngaro
como também na direção da Academia de Ciências e na Universidade.
Heller já frequentava, nessa ocasião, o curso de Física e Química, quando
seu namorado a convidou para assistir uma aula de Filosofia da Cultura proferida por
Lukács. A princípio Heller relutou, pois achava que Filosofia não era ciência. Seu
ideal era ser cientista como Madame Curie, portanto, seria inútil aquela aula, mas
por insistência de seu namorado, foi.
[...] Então, eu estava lá sentada ouvindo a elaboração de Lukács sobre
Shelling ou Hegel - não me lembro exatamente - eu comecei a perceber
que eu não tinha entendido nada sobre o que ele estava falando, mas
havia algo que eu entendi: ele falou sobre a coisa que é a mais importante
de todas as coisas do mundo e que eu precisava compreendê-la [...],
basicamente, era algo que estava preocupada: o sentido da vida.
(POLONY, 1997).
A busca pelo sense of life, ou seja, entender o mundo em que estava inserida,
passou a ser o motivo de sua vida: sua inspiração, ou se quisermos, “sua redenção”.
Percebeu que ao invés de estudar as ciências duras, precisava entender primeiro o
mundo no qual se inseria, principalmente, entender a relação entre o bem o mal e as
pessoas. Nas suas entrevistas, Heller sempre aponta que Lukács foi a segundo
pessoa mais importante de sua vida, a primeira foi seu pai:
“[...] depois de meu pai, Lukács é a segunda pessoa mais influente em
minha vida. Fui sua aluna até 1949. [...] Quando me tornei estudante e
Filosofia, Georgy Lukács era o único filósofo que ensinava na Universidade
de Budapeste. De fato, nunca teria me tornado aluna de Filosofia sem a
presença de Lukács” (HELLER, 2002, p. 38).
Imediatamente, Heller deixou as aulas de Química e Física e passou a
frequentar as aulas de Lukács, tornando-se estudante de Filosofia e, mais tarde,
estudante de Filosofia e Literatura húngara.
[...] Eu decidi que este era o meu destino e escolhi eu mesma, naquele
momento, ser uma filósofa. Cheguei à conclusão de que você nunca se
desenvolve. No momento em que você escolhe a si mesmo como um
filósofo você é como um filósofo. (POLONY, 1997).
perseguições stalinistas, deixou a vida partidária e se dedicou a vida universitária. (LICHTHEIM,
1973, p. 10). Maiores informações sobre Lukács podem ser encontradas em LICHTHEIM, 1970;
KONDER, 1980; NETTO, 1983; NETTO, 1992; LÖWY, 1998.
179
A partir de suas indagações e a busca de um sentido para a sua vida, Heller
começa a traçar seu próprio caminho na busca de respostas para o conhecimento e
reflexão da realidade e do significado das coisas.
A busca pelo saber é uma característica própria do gênero humano. A sua
fundamentação está na concepção de que, por natureza, o humano tende ao saber,
não só deseja o saber, mas também pode obtê-lo. Este saber não é privilégio ou
patrimônio reservado a poucos, mas, qualquer um pode contribuir para sua
aquisição e enriquecimento (ABBAGNANO, 2007, p. 516).
Na visão de Heller (1983)244, a tarefa primordial da filosofia deve ser, portanto,
a construção de um mundo e não apenas, a formulação de uma máxima que busque
explicar a natureza das coisas e dos fenômenos.
Na concepção helleriana, o papel da filosofia é de “desmitização”. É pôr em
questão, o óbvio. Não deve se colocar como um saber supremo, mas como um
saber que se dá no próprio processo do conhecimento, na própria interrogação entre
sujeito e objeto, no próprio questionamento e, segundo Descartes (1596-1650), na
própria dúvida. Mas não é um saber mítico e/ou místico, de existência própria. Mais
do que isso, é um vir-a-ser, um ir ao encontro da verdade, não enquanto a busca de
uma Verdade Absoluta, mas sim de um conhecimento mutável e dialético.
Em outras palavras, para Heller, a filosofia não implica um “descaminho” ou
um “engano”, mas revela a suprema tarefa de buscar o conhecimento que se revela
no realizar-se se realizando. Nas palavras de Heller, “[...] a filosofia desmistifica”245:
[...] a razão é o sujeito do conhecimento. [...] O homem da filosofia é o “ser
dotado de razão”. A filosofia contrapõe à ambiguidade imaginosa da
mitologia a univocidade da argumentação radical. Da tradição mitológica,
nada pode ser questionado; ao contrário, a filosofia exige que seja posto
em discussão tudo o que a própria razão não compreenda. A vantagem de
não saber nada não é mais do que um convite ao pensamento, o pensar
em comum, uns com os outros. O “exercício da filosofia” significa: “vem,
pensar comigo, vamos conhecer juntos!”. O filósofo guia o que pensa e o
conduz através da argumentação para a clara luz do Verdadeiro e do Bem.
246
(HELLER, 1983a, p. 15-16) .
244
Em A Filosofia Radical (HELLER, 1983a), editada pela primeira vez no Brasil em 1983, pela
Editora Brasiliense, Agnes Heller discute temas relacionados à filosofia e a vida, problemas do
cotidiano, questões das necessidades radicais e revolução. Esta obra encontra-se na fase
intermediária de Heller, ou seja, do desencanto com a visão marxista de mundo relacionada aos
acontecimentos do Leste Europeu, em outras palavras, o rumo que tomava o pensamento de Marx
na Ex-URSS. Heller começa a encaminhar suas análises para o imperativo categórico kantiano.
Nesta obra ainda traz elementos de sua Teoria dos Carecimentos. Portanto, ao utilizar estas
análises, buscamos extrair especificamente o que se refere às influências do pensamento marxista.
245
HELLER, 1983a, p. 15.
246
Grifos da autora.
180
Com efeito, “[...] a filosofia constrói o seu mundo sobre a argumentação
racional”247. Contudo, sua busca por elementos não se dá na abstração, mas sim no
real, no concreto, no cotidiano da vida. A construção filosófica deve partir sempre da
empiria da vida cotidiana: “[...] a filosofia constrói o seu mundo sobre argumentação
racional. [...] Só é verdadeiro o que todo homem pode reconhecer como tal, por meio
de sua própria razão”248.
Heller afirma que “[...] toda filosofia é utopia”249. Mas, o que podemos
entender por utopia250? Seria um projeto irrealizável? Uma quimera? Ou até mesmo,
traduzida conforme o pensamento de Thomas More (1478-1535) ao descrever seu
“reino ideal”, o “reino da fantasia”, o “não-lugar”? Na concepção helleriana, a
filosofia, enquanto “utopia radical”, é o “conhecimento racional da essência
racional”251 que implicaria numa “atitude filosófica”, ou seja, numa vivência da própria
filosofia.
Heller sintetiza, com maestria, que a filosofia deve oportunizar a possibilidade
da reflexão: “como deves pensar”; como “deves agir”; como “deves viver”. Por
conseguinte, o “como deves viver” está contido no “como deves pensar” e no “como
deves agir”252, portanto, uma determinada práxis.
[...] Toda filosofia só se pode constituir quando revelou a falsa
autoconsciência da outra. [...] Toda filosofia oferece uma forma de vida; toda
filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de
uma outra forma de vida, [...] as objetivações filosóficas incitam o receptor a
refletir sobre o modo como deve pensar, como deve agir, como deve viver
(HELLER, 1983a, p. 31-33).
Para Heller,
[...] todas as filosofias exprimem simultaneamente uma visão de mundo e
uma atitude ativa relativamente a ele. Ser filósofo significa antes do mais
duas coisas: criar uma visão do mundo que esclarece o seu conteúdo
objetivo de uma maneira mais global e profunda do que anteriormente e, ao
247
HELLER, 1983a, p. 19.
HELLER, 1983a, p. 19.
249
HELLER, 1983a, p. 20.
250
Utopia (grego – ou = não; topos = lugar), esse não-lugar, assume o lugar de algo ideal, mas não
algo ilusório extraído do “mundo das ideias” platônico, mas sim um projeto real que parte da realidade
para o mundo das formulações, para depois, novamente, retornar ao mundo concreto.
(ABBAGNANO, 2007, p. 1173).
251
HELLER, 1983a, p. 25-26.
252
HELLER, 1983a, p. 19.
248
181
mesmo tempo, incorporar nas atitudes sociais e éticas as consequências
práticas dessa nova visão (HELLER, 1982a, p. 85).
A Filosofia, sem sombra de dúvidas, permitiu que Heller conhecesse as
diversas expressões conceituais nas mais diferentes visões de mundo e de humano
e, pela presença e influência de Lukács, além do campo da erudição, também se
empreendeu no campo da política e da visão marxista.
3.3. Heller e o marxismo
Nos quatro anos que se seguiram, Lukács participou ativamente da vida
cultural europeia (NETTO, 1983). Fez diversas viagens proferindo seminários e indo
a encontros em vários países da Europa, publicou várias obras, artigos e ensaios em
sua língua natal e participou ativamente da vida política húngara.
Em 1947, Heller abraçou a causa socialista e entrou para o Partido Comunista
Húngaro. Para ela, o comunismo, naquela época, oferecia a possibilidade de uma
“comunidade internacional”, proposta que se identificava com seus ideais sionistas,
apesar de ter desistido de abraçar esta causa. O comunismo lhe parecia uma
proposta mais ampla e mais real.
[...] como já tinha sido sionista, era considerada suspeita. Não confiavam
em mim. Aqueles que se vincularam em 1945, por não serem suspeitos,
tornaram-se todos funcionários e se submeteram a coisas horríveis. Como
não poderia me tornar funcionária, sempre ocupei as posições mais
inferiores dentro do partido. Dessa forma, pude preservar minha
naturalidade e jovialidade, além de uma visão relativamente objetiva dos
fatos. Fui membro do partido por apenas dois anos, quando perdi essa
condição por uma razão muito inocente. Inocente porque resolvi dizer o
que pensava durante uma reunião. Eu acreditava que o partido comunista
fosse democrático, mas não era bem o caso. (HELLER, 2002, p. 28-29).
Heller foi expulsa pela primeira vez do Partido Comunista Húngaro em 1949:
[...] fui expulsa do partido e poderia ter sido expulsa da universidade, se
não fossem Georgy Lukács, de quem já era aluna naquela época, e
Fogarasi, outro filósofo húngaro. Depois disso, deixei de acreditar no
comunismo soviético, embora ainda acreditasse no ideal comunista.
(HELLER, 2002, p. 29).
Portanto, a vinculação de Heller à causa comunista era, naquele momento, a
que atendia melhor aos seus anseios – a redenção. O comunismo oferecia uma
182
explicação do por que do sofrimento espalhado pelo mundo: “[...] a segunda via de
algo”253.
[...] Em filosofia você precisa de uma redenção e de liberdade para as
respostas. O partido oferecia a redenção, mas não a capacidade de pensar
com a própria mente. [...] O marxismo sim (POLONY, 1997).
Heller queria pensar por conta própria e, no interior do partido não encontrou
essa possibilidade.
[...] Em filosofia você precisa de uma redenção e respostas a essas
perguntas. Mas você precisa de algo mais, você precisa da capacidade de
pensar com sua própria mente. Você precisa de redenção e da liberdade
de pensar com a própria mente.Você precisa de ambos, mas houve um
choque entre os dois. O partido ofereceu um esquema de resgate, mas
nunca permitia que você usasse sua própria mente. Havia uma contradição
entre essas duas coisas. Na verdade é assim que eu primeiro vivi o
marxismo. Mais tarde é que me tornei marxista, enquanto eu estava
bastante hostil ao comunismo húngaro. Esta foi uma duplicidade ou uma
ligação dupla, se você quiser. O marxismo sim, porque ele prometia uma
redenção, mas esta forma de comunismo não, porque não permite que
você pensasse com a sua própria mente. (POLONY, 1997).
A implantação do socialismo na Hungria foi diferente da União Soviética. Os
tanques de guerra no final da 2ª Guerra Mundial trouxeram consigo graves
consequências para a absorção deste sistema pela população húngara.
Muitas pessoas foram parar nas prisões soviéticas ou nos gulag, uma espécie
de rede de campos de concentração stalinistas, oficialmente conhecidos como
Campos Correcionais de Trabalho. Estima-se que cerca de dez milhões de pessoas
estiveram sobre as frentes de trabalhos forçados. Muitos eram presos políticos,
opositores do regime comunista.
Szabo (SZABO, SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006) tece consideráveis
comentários sobre este evento. Na Hungria, o governo de ocupação soviética
concentrou punições pesadas sobre os líderes e capitalistas. Entre a coletivização
forçada e os incessantes expurgos de toda oposição possível, Stalin destruiu muitas
vidas. Stalin não só governou com mão, mas também, com luvas de ferro.
Em 04 de novembro de 1945, houve eleições multipartidárias na Hungria,
vencendo o Partido dos Pequenos Proprietários Rurais. O presidente do partido,
Zóltán Tildy254, visando uma conciliação e tendo como propósito evitar confrontos,
253
POLONY, 1997.
Zóltán Tildy (1989-1961), protestante influente na Hungria, foi presidente do país num curto
período pós II Guerra Mundial, empreendeu oposição antissoviética revolucionária.
254
183
mantém relações cordiais com o Partido Comunista Húngaro e a União Soviética,
compõe um governo comunista que vai de 1946 a 1948, quando é deposto pelas
forças soviéticas.
Com a eclosão da “Guerra Fria”255 e da política anti-inquisidora das cruzadas
anti-comunsitas liderada pelos Estado Unidos, os soviéticos resolveram “apertar os
parafusos” nas eleições de 1947/1948, com o objetivo de instaurar um regime
monopartidário em todo o Leste Europeu, formando, assim, um bloco comunista sob
o comando da União Soviética. Na Hungria, novas eleições são chamadas em 31 de
agosto de 1947, porém,
[...] acatando as instruções de Stalin de acelerar o processo de implantação
do socialismo e entendendo que não chegaria ao poder através das
eleições, o Partido Comunista muda de tática: em vez de tomar o poder
lenta e gradual, opta pela eliminação dos mecanismos democráticos até a
obtenção total do poder na Hungria. (SZABO, SEGRILLO; AQUINO;
AUBERT, 2006, p. 16-17).
Heller (1982b) aponta que no período compreendido entre os anos de 1945 e
1949, foram os anos do terror fascista de Stalin na Hungria. Libertos da invasão
nazista, acabaram nas “mãos de ferro” de Stalin. Nas eleições, os partidos de
esquerda na Hungria recebem uma grande porcentagem de votos, porém, ao
mesmo tempo, os campesinos e os trabalhadores começaram a se organizarem
sobre a base de uma autoadministração local.
No cabo dos quatro anos mais de 300.000 pessoas (dos 10 milhões de sua
população), foram deportadas para os campos de trabalhos forçados soviéticos e
dezenas de milhares foram encarceradas ou executadas.
O Partido dos Trabalhadores da Hungria declarava-se marxista-leninista e
tinha como meta a construção do socialismo. Em março de 1948, as empresas com
mais de cem funcionários são estatizadas, Mátyás Rákosi 256 é eleito primeiro
secretário do Partido dos Trabalhadores da Hungria. Rákosi era rígido no
255
A “Guerra Fria” aparecia no cenário mundial como uma “guerra ideológica” inspirada na crença da
indestrutibilidade dos sistemas comunistas, muitas vezes alimentadas pelos próprios comunistas que
favoreciam a espionagem e a políticas ultraconservadoras. Os americanos partilhavam a ideia de que
o socialismo e o comunismo eram “perversões totalitárias”.
256
Mátyás Rákosi (1892-1971), político comunista que em 1919 foi vice-comissário da República dos
Conselhos e, em 1925 é preso e condenado por atividades ilegais, sendo solto em 1940 e mandado
para a União Soviética. Em 1945 voltou para a Hungria como chefe dos comunistas. De 1945 a 1956
foi secretário-geral do Partido Comunista Húngaro e primeiro-ministro, sendo destituído em 1956.
Viveu até a sua morte na União Soviética.
184
cumprimento do seu programa que, na opinião de Lukács (1999), era um mero
utilitarista.
Segundo Ladislao Szabo257 (SZADO, AGRILLO, AQUINO, AUBERT, 2006, p.
21), com Mátyás Rákosi, “[...] instalou-se na Hungria uma ditadura do proletariado
que o poeta Gyula Illyés258 chamou de ‘reino sangrento do Rei Ubu’259”. Nesta
época, os conflitos intrapartidários eram frequentes.
Entre os anos de 1949 a 1950, Lukács foi arduamente atacado e criticado. A
chamada “questão Lukács” era uma “campanha de descrédito ideológico”. Acusado
de “revisionista” até de “caluniador de Lênin”. (NETTO, 1992).
As decepções de Heller com relação ao rumo que o comunismo tomava no
Leste Europeu, principalmente, na Hungria, tinham como referência, segundo ela, o
forte totalitarismo e da perseguição àqueles/as que eram contrários/as a estes
acontecimentos. Tal situação, fez com que ela refletisse que “[...] a essência estava
certa apesar de todas as aparências estarem erradas”260.
Para Heller, um movimento que busca certa “redenção”, que busca aliviar ou
alterar as condições de exploração e alienação, não pode ser despótico e violento.
Suas indagações, assim, se reafirmaram: Por que há sofrimento? Por que há
opressão? Por que há pessoas que agem desta forma? (POLONY, 1997).
Os anos de 1950 foram de grande efervescência histórico-social e político da
Hungria. Em 1951, cerca de 14 a 15 mil pessoas são deportadas da Hungria, sob a
acusação de serem suspeitas de terem apoiado o regime de Horthy. Em
contrapartida, um número considerado de pessoas obtinham acesso aos benefícios
sociais.
O regime comunista instaurou uma série de medidas visando melhorar a
situação da população húngara, porém, esta, vivia sob um regime de tensão: a
qualquer momento alguém poderia ser questionado, preso ou condenado. Em 1951
Lukács foi forçado a abandonar a vida pública. Rákosi punha em execução uma
política agressiva de industrialização, buscando a modernização do país, seguindo,
257
Ladislao Szabo trabalhou em 1989 na cobertura da mudança do regime húngaro para a Folha de
São Paulo. Tradutor, entre outros, de Dezsö Kostolányi e S´sndor Márai. Organizou o livro Hungria
1956...e o muro começa a cair devido a sua fluência do idioma húngaro, tendo, dessa maneira,
acesso direto às fontes daqueles país.
258
Gyula Illyes, (1902-1983), poeta, romancista, dramaturgo húngaro, figura de destaque na literatura
húngara. Apoiou a breve república soviética liderada por Béla Kun em 1919.
259
Referência à encenação teatral do texto Ubu Rei do escritor francês Alfred Jarry (1873-1907).
260
HELLER, 2002 p. 29.
185
de certa forma, o modelo soviético. A Hungria, país basicamente agrário, sob o
regime de Rákosi, transformou-se num país industrializado.
A vida cultural, intelectual e literária, era coordenada pelo dirigente comunista
József Révai261. Mészáros (1984), que nessa época era assistente de Lukács, conta
que este realmente foi um período difícil e que Lukács vivia muito isolado. Konder
(1980) aponta que ele se concentrava em seus escritos e ministra aulas para um
público reduzido de alunos na Universidade. Neste período, em 1952, Heller se
licenciou em filosofia pela Universidade Eötvos Lóránd, em Budapeste.
Porém, novos acontecimentos vieram dar novo fôlego a Lukács e seus
discípulos. Em 05 de março de 1953 morre Stalin. Começa a despontar um período
de profundas modificações políticas na Europa Central e Oriental (NETTO, 1992).
Na Hungria, ocorrem amplas mobilizações no sentido de democratizar o regime pósstalinista, que culminaria com a Revolução Húngara de 1956.
Heller (1982b) nos conta que os anos de 1953 a 1956 foram anos precisos e
significativos na transição de sua conduta e do seu modo de pensar. Entre esses
anos, havia no ar, um sentimento verdadeiro de consciência e liberdade. Surge a
esperança de eles serem agentes de sua própria história.
Nesse período, segundo Heller (1982b), a Hungria era considerada
antagonicamente, um “país modelo na Europa”: modelo de um regime legitimamente
fascista/stalinista e da materialização das esperanças de um “verdadeiro socialismo
democrático”. Estes foram anos decisivos para repensar o período anterior e rever
as posturas políticas e intelectuais, considerados, por Heller, como “anos da maior
idade”.
Heller relata que, nessa época, os membros da “Escola de Budapeste”, assim
como ela, tomaram contato com a literatura contemporânea. Este grupo sabia
praticamente “de cor” os clássicos da filosofia. As influências contemporâneas
proporcionavam uma visão mais pluralista para o marxismo. As discussões dos
círculos de estudos, na ocasião, centravam-se nas temáticas sobre a liberdade e a
democracia socialista.
261
Jozsef Révai (1898-1959), político, publicista, crítico literário e ideólogo comunista. Permaneceu no
exílio entre as duas guerras mundiais, vivendo por fim na União Soviética. Em 1945 voltou para a
Hungria e fez parte da cúpula dirigente de Partido Comunista. Foi redator-chefe do órgão do partido
Szabad Nép, 1949 a 1953 foi ministro da Cultura.
186
Em 1956, Mátyás Rákosi foi convocado a ir para Moscou para receber novas
instruções. No mês seguinte Rákosi retornou a Moscou e foi acusado por
Malenkov262 de ser o principal responsável pelos erros cometidos na Hungria.
Depois de várias acusações, indicaram Imre Nagy263 para primeiro-ministro.
Rákosi continuou a dirigir o partido e Nagy acabou assumindo o poder em 04 de
julho de 1953, fazendo um discurso eloquente pela rádio de Budapeste, anunciando
uma nova etapa para o desenvolvimento do país.
Uma das propostas de Nagy foi a valorização da classe intelectual. É nesse
período que Agnes Heller aprofundou os estudos para seu doutoramento que
aconteceu em 1955, com a tese A Ética de Techernichévski, onde estudou os
problemas do “egoísmo racional” na obra desse pensador russo do século XIX. Seu
primeiro livro foi publicado no ano seguinte e, logo começou a lecionar na
Universidade de Budapeste.
[...] o livro foi escrito em 1953/1954 como reflexão filosófica sobre o novo
programa social de Imre Nagy de 1953. [...] Parti da tese de que não é
possível realizar nenhum programa social sem os interesses dos afetados,
que só o consenso do indivíduo leva ao geral (HELLER, 1982b, p. 115).
Inesperadamente, nesse período, a indústria cinematográfica da Hungria,
Polônia e Tchecoslováquia, até então incipiente, começou a desabrochar. Nagy, em
certa medida, realiza um governo nacionalista, de cooperação e exortação da cultura
e das tradições populares e de atenuação dos ódios. Havia um clima de esperança e
liberdade pairando no ar: “[...] os trabalhadores não desejavam a restauração da
propriedade privada, o que queriam era a libertação da exploração do Estado
político”264.
Porém, Nagy foi “[...] acusado de propor um socialismo húngaro, diferente do
de Moscou, o que era a sentença de morte para a sua política” (SZABO; SEGRILLO;
AQUINO; AUBERT, 1999, p. 45). Em 1955, Nagy é excluído do Comitê Político e em
novembro é expulso do partido:
262
Georgy Malenkov (1902-1988), político soviético e líder do Partido Comunista.
Imre Nagy (1896-1958), político, perito em questão agrária, uniu-se na Rússia, como prisioneiro de
guerra, ao Partido Comunista. De 1921 a 1928 trabalhou no Partido Comunista ilegal. De 1929 a
1944 esteve no exílio na União Soviética. De 1944 a 1953 foi ministro de diversos governos, e, por
pouco tempo, presidente da assembleia nacional e professor universitário. Em 1955, devido a “desvio
de direito”, foi duramente criticado e expulso do partido e reabilitado um ano depois. Em outubro de
1956, durante o levante popular húngaro, foi novamente primeiro-ministro e líder da revolução. Após
a derrota do levante pelos órgãos de segurança soviéticos, foi levado para a Romênia e executado
em junho de 1958.
264
HELLER, 1982b, p. 112. Grifos do tradutor.
263
187
[...] Nagy escreve que, desde a morte de Lênin, a teoria marxista se
transformara em “um dogmatismo similar a um talmudismo que explica a
Bíblia”, concluindo que o modelo soviético de socialismo tem alcance restrito
e que existem formas de transição em que “a democracia popular não pode
ser uma cópia do modelo soviético, mas uma forma democrática da ditadura
do proletariado”. O socialismo húngaro seria então resultado da aplicação
dos conceitos marxista-leninista à realidade húngara, partindo do que é
básico na construção do socialismo. (SZABO; SEGRILLO; AQUINO;
AUBERT, 1999, p. 48).
Envolta no confronto político que despontava em Budapeste, Heller construía
seu ideário político:
[...] em 1956, eu estava entusiasmada com o movimento que eu chamava
de revolucionário. E ele foi de fato revolucionário ao por fim à ocupação
russa, abrindo caminho para um governo livre e democrático. Eu admirava
os conselhos de trabalhadores e apoiava com entusiasmo a ideia de
autogestão, organizações econômicas cuja meta era entregar as fábricas
aos trabalhadores. [...] Essa foi a única revolução socialista que o mundo
conheceu. O socialismo, a democracia, a liberdade e o liberalismo estavam
todos atrelados entre si e evidenciados por meio dos conselhos. (HELLER,
2002, p. 29-30).
Em contra partida a estes acontecimentos, após a morte de Stalin, uma onda
de descontentamento dos países europeus pertencentes ao sistema unipartidário do
bloco
comunista
soviético,
crescia
vertiginosamente
contra
o
regime
socialista/comunista soviético.
Esse descontentamento deu-se como consequência do totalitarismo stalinista:
os comunistas, sobretudo os intelectuais, ficaram chocados com o contraste
existente entre as esperanças que ainda fervilhavam e a realidade do regime
stalinista.
Um movimento em prol da “desestalinização”265 começou a se formar na
Tchecoslováquia e na Polônia. Na Iugoslávia defendia-se a tese de que “[...] havia
diferentes vias de socialismo e que cada país poderia escolher de maneira soberana
a trilha mais adequada para si” (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p.
55). Essa “desestalinização” era mais voltada às reformas econômicas e política:
“[...] a desestalinização econômica, não politicamente explosiva em si, tornou-se
265
O processo de “desestalinização” tem inicio quando, na ocasião do XX Congresso do Partido
Comunista da União Soviética, realizado entre os dias 14 a 25 de fevereiro de 1956, quando Nikita
Kruchev assume o secretariado geral do Partido Comunista Soviético, em sessão secreta, explica as
graves violações de Stalin. Essa declaração culmina num processo de revisão do comunismo.
188
explosiva quando combinada com a exigência de liberalização econômica e, mais
ainda, política” (HOBSBAWM, 2010, p. 388).
Jovens idealistas assumiam junto aos partidos o compromisso em reviver as
esperanças que o socialismo/comunismo marxiano e marxista proclamava. A
confrontação entre a liderança soviética e polonesa em Varsóvia culminou com a
vitória de Gomulka266 que defendia reformas internas na Polônia, mas não o
abandono dos ideais comunistas.
Na
Hungria,
manifestações
estudantis
demonstravam
o
caráter
de
solidariedade aos estudantes poloneses que criavam uma organização autônoma
para as lutas políticas. Os estudantes começavam a se tornar mais radicais e
amplas mobilizações ecoavam no sentido de democratização do regime comunista
no país.
O estopim desse barril de pólvora foi aceso no dia 17 de junho de 1956
quando uma manifestação de protesto em Berlim Oriental resultou num saldo oficial
de 51 trabalhadores mortos. No dia 28 do mesmo mês, na cidade de Poznan, na
Polônia, uma greve de trabalhadores acabou com 54 mortos. Na Hungria, distúrbios
de trabalhadores aceleravam-se a passos largos.
Escritores e intelectuais participavam fervorosamente das manifestações que
culminaram com a Revolução Húngara de 1956. Estes movimentos, ao longo dos
meses de 1956 assumiram um caráter de massa, principalmente com a adesão dos
trabalhadores às lutas sociais: “[...] 1956 foi o ano da ‘história comprimida’ para mim
e igualmente para minha geração. Era o final de algo e, ao mesmo tempo, o começo
de algo” 267.
Rivero (1996, p.15), destaca que a Revolução Húngara de 1956 foi um dos
acontecimentos mais determinantes no rumo do pensamento de Heller e os demais
membros da “Escola de Budapeste” e que era necessário uma reforma do
socialismo, porém, foi posterior ao levante na Tchecoslováquia em 1968, quando,
finalmente, sua posição teórica se definiu.
Os panfletos estudantis improvisados exigiam reformas econômicas e do
sistema legal, imprensa livre, a volta de Nagy ao poder, eleições livres, relações
266
Wladyslaw Gomulka (1905-1982), comunista polaco que defendia na década de 1950 reformas
internas na Polônia.
267
HELLER, 1982b, p. 105.
189
independentes entre a Hungria e Moscou e a retirada das tropas soviéticas da
Hungria. (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 60).
Um ato simbólico que marcou o clima de revolta e o grito de liberdade na luta
pela “desestalinização” do país, foi a derrubada da estátua de Stalin - símbolo do
culto a imagem àquele ditador -, às 21h30 do dia 23 de outubro de 1956. Dava-se
início ao levante que ficou conhecida na história como a Revolução Húngara de
1956 e duraria até 04 de novembro do mesmo ano, quando as tropas soviéticas
tomaram Budapeste, esmagando o levante, numa ação autodefensiva, por temer
que esse movimento influenciasse outros países num sentimento contrário ao bloco
soviético.
A Revolução Húngara de 1956 tornou-se um dos “mitos históricos populares”
na traumática história húngara. Esta revolução não foi um acontecimento isolado,
mas sim a resultante de uma série de acontecimentos e situações que encontraram
terreno fértil para a fermentação daquilo que pareceria ser uma “fênix que se erguia
das cinzas”. Longe do romantismo patriótico, foi um acontecimento sangrento
(FEHÉR; HELLER, 1983).
Ao vermos as imagens reais em alguns vídeos espalhados pela Internet,
pudemos imaginar o porquê da Revolução de 1956, ser o terceiro fato significativo
no desenvolvimento intelectual de Agnes Heller. Este acontecimento teve impactos
no mundo todo268.
A própria Heller descreve aqueles momentos vividos da seguinte forma:
[...] a revolução era um movimento popular, todos estavam nas ruas. Além
disso, as prisões foram abertas, todos os assassinos e ladrões, libertados.
Durante dez dias de liberdade, não houve um único crime em toda a
Hungria. Podíamos deixar os pertences nas ruas e eles estariam no
mesmo lugar no dia seguinte. Ninguém foi ferido, nenhum apartamento foi
roubado. Quem caminhasse durante a noite poderia se sentir totalmente
seguro. As pessoas agiram muito acima de suas próprias capacidades
morais. Acredito que isso aconteça em todas as revoluções. Mas todas as
revoluções são superadas. As situações retornam à normalidade. Os
conselhos de trabalhadores se diluíram... A propriedade particular e o
capital estrangeiro terminaram substituindo a autogestão dos
trabalhadores... As pessoas se tornaram cada vez menos interessadas em
268
Maria Aparecida de Aquino (Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e
Professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo, Professora Adjunto da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Presbiteriana Mackenzie) e Pedro Gustavo Aubert (Mestre em História Social pela Universidade de
São Paulo), no livro Hungria 1956... e o muro começou a cair (SZADO; SEGRILLO; AQUINO;
AUBERT, 2006, p. 106-149), expõem algumas das principais repercussões internacionais, inclusive
no Brasil, sobre o levante húngaro de 1956.
190
política... Agora lembro de uma formulação semelhante de Marcel Proust,
que afirma que todo paraíso é um paraíso perdido. (HELLER, 2002, p. 30).
Para Heller, a Revolução Húngara de 1956 foi o “maior acontecimento” de sua
vida, tanto na teoria como nas atividades políticas, com resultados visíveis de um
extremo ao outro. Acreditamos não ser oportuno descrever aqui os fatos mais
significativos dessa revolução comparada por Ferenc Fehér e Agnes Heller (1983)
com a Comuna de Paris e a Revolução Húngara de 1848, por fugir aos objetivos
dessa pesquisa.
O livro de Feher e Heller Analisis de la Revolución Hungara, editado em
língua espanhola pelo Editorial Hacel, é um relato vivo, regado de um nacionalismo
exacerbado que, nas palavras dos autores, pretendiam transformar este evento de
um “mito impreciso” para um “símbolo concreto”. Os objetivos dessa revolução eram
democratizar o comunismo húngaro e instaurar a emancipação do país que,
historicamente, fora subjugado aos interesses estrangeiros.
Porém, o resultado não foi satisfatório. Os soviéticos não permitiriam que uma
nação pequena, sob seu domínio, recobrasse a liberdade, sendo que poderia se
tornar exemplo para que outros países satélites pudessem fazer o mesmo.
Nas primeiras horas do dia 04 de novembro de 1956 o Exército Vermelho
soviético tomou Budapeste. Imre Nagy foi assassinado e János Kadar269, assumiu o
governo da Hungria. Imre Nagy acabou sendo considerado forjador, árbitro, mártir e
símbolo da revolução.
Na Hungria, o socialismo veio à força, ou seja, trazido pelos tanques de
ocupação soviéticos ao final da II Guerra Mundial, conforme já apontamos. Porém,
encontrou resquícios da experiência de 1919, quando foi por meses uma república
socialista aos moldes de Béla Kun.
Nesse sentido, Heller (1982, p. 112), aponta que defende a causa do
socialismo, porém, não defende a “causa da oposição intransigente”.
269
János Kádár (1912-1989), ingressou no Partido Comunista da Hungria em 1931. Foi ministro do
Interior em 1948 e esteve preso entre 1951 a 1953, foi ministro do governo Nagy durante o levante de
1956, considerado traidor da Revolução Húngara de 1956. Após ter desaparecido por três dias, volta
à Hungria à frente dos tanques soviéticos anunciando que formara um novo governo. Perdeu seu
posto de secretário-geral do Partido Comunista Húngaro em 1988 e foi excluído do comitê Central em
1989.
191
Angelo Segrillo270 (SZADO; SEGRILLO; AQUINO; AUBERT, 2006, p. 53-103)
descreve sinteticamente os principais acontecimentos, dia-após-dia, da Revolução
Húngara de 1956. Acreditamos não ser necessário fazer transcrever estes
acontecimentos da mesma forma como se apresentados no texto citado.
Acreditamos, ao ler e analisar a obra de Agnes Heller que o levante húngaro
possibilitou a materialização do ideário socialista, marxiano e marxista, que aparece
ao longo de seus escritos como um sentimento característico do romantismo
revolucionário, muitas vezes próximo de um idealismo utópico, não no sentido de
algo impossível de ser realizado, mas no sentido de uma “nova Jerusalém”.
Esta característica, na nossa opinião, não desmerece de maneira alguma
suas análise. Vemos nesse utopismo uma crítica aos regimes totalitários e ao
capitalismo selvagem. Também não acreditamos numa luta pelo “renascimento do
marxismo” enquanto possibilidade objetiva, mas numa análise que expõe claramente
a metodologia marxista e lukacsiana, no afã de reler os primeiros escritos de Marx
buscando respaldo para a crítica do totalitarismo que reinava no Leste Europeu.
Estas ideias podem ser clarificadas numa fala de Lukács em sua última
entrevista a István Eörsi e Erzsébet Vezér: “[...] Não é possível experimentar só um
pedaço do marxismo. Ou alguém realmente se converte ao marxismo – e sei que
isso não é fácil, custou-me doze anos até que essa conversão tivesse êxito -, ou
então pode-se também encarar muito bem o mundo de um ponto de vista burguês
de esquerda” (LUKÁCS, 1999, p. 64).
Para Heller, havia uma contradição entre o comunismo marxiano e o
comunismo que se apresentava na Hungria e na ex-URSS de Stalin e pós-Stalin. O
pensamento de Marx trazia uma proposta libertadora e revolucionária, “[...] uma nova
metafísica: [...] Marx era um cógito que elaborava uma grande teoria para a
modernidade”. Era a própria inversão da metafísica. (POLONY, 1997).
270
Angelo de Oliveira Segrillo é professor Doutor de História Contemporânea no Departamento de
História da Universidade de São Paulo. É responsável pela disciplina História Contemporânea com
ênfase em Ásia. Coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP.
Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de
Moscou (Rússia) e doutorado na Universidade Federal Fluminense. É especialista em História da
Rússia e ex-URSS eurasiana. Sua tese de doutorado foi considerada pioneira na historiografia
brasileira por ter sido a primeira tese acadêmica nacional sobre a história da Rússia/URSS baseada
em pesquisa direta nos antigos arquivos classificados soviéticos e fontes primárias russas originais. É
autor de diversos livros e artigos sobre a história da Rússia e socialismo, entre os quais O Declínio
da URSS: um estudo das causas (Ed. Record), O Fim da URSS e a Nova Rússia (Ed. Vozes) e
Rússia e Brasil em Transformação (Ed. 7letras). Seus trabalhos se inscrevem na interface entre
história, ciência política e relações internacionais.
192
Os/as alunos/as de Lukács, como ele mesmo, estiveram diretamente
envolvidos com os acontecimentos tanto culturais e sociais como os políticos na
Hungria. Os nomes András Hegedüs, Maria Márkus, Mihály Vajda, György Márkus,
István Mészáros, József Szigeti, Janós Kis, György Bence, Miklós Almási, Ferenc
Fehér, Geza Fodor, Maria Ludassy, Dénes Zoltai e, naturalmente, Agnes Heller,
dentre outros, são destacados por Pier Aldo Rovatti, no Prefácio da edição
espanhola do livro Teoría de la necessidades em Marx, de Agnes Heller271. Desse
grupo, pós o levante de 1956, um reduzido número, ficou ao redor de Lukács
denominado “Escola de Budapeste”.
[...] Marx, para nós, é uma tradição de vida, não uma escritura sagrada; é
preciso levar em conta o período histórico em que ele escreveu; e devemos
utilizar tudo o que, em seus escritos, corresponda às exigências de nossos
modernos problemas políticos e sociais. (HELLER, 1982, p. 15).
Ao mesmo tempo em que Heller descreve seu encantamento, também aponta
o seu desencantamento: “[...] Depois de 1956, compreendi que toda utopia é uma
utopia do passado”272.
Heller explica que o regime comunista húngaro era extremamente totalitário e
intolerante a qualquer ideia ou pensamento contrário (ou pluralista) ao próprio
regime: “[...] não poderia escrever algo que não fosse permitido pelo Partido. [...] Nós
não jogávamos as regras do jogo”273.
Quando Heller se refere a “nós não jogávamos as regras do jogo”, está se
referindo ao pequeno grupo formado ao redor de Lukács (Agnes Heller, Ferenc
Fehér, György Márkus e Mihály Vajda), no período compreendido entre meados dos
anos de 1950 até a sua morte em 1971. Apesar de muitas divergências tornaram-se,
além de um grupo de intelectuais, um grupo de amigos.
A passagem linear por estes fatos que trouxeram profundas cicatrizes para
Agnes Heller, nos mostra que, ao longo de sua trajetória intelectual, além das
análises filosóficas, espelhavam as reais consequências e determinações daquele
período, numa verdadeira sinfonia villa-lobiana ou bartokiana.
Esta comparação nos parece apropriada para entender o rumo que Heller
tomou para a sua produção intelectual: “[...] começava naquela ocasião a pensar e a
escrever de forma independente, refletindo sobre a real situação da Hungria dos
271
HELLER, 1978, p. 5-6.
HELLER, 2002, p. 30.
273
POLONY, 1997.
272
193
anos de 1950/1960 e o rumo que estava tomando o pensamento de Marx naquele
país e no Leste Europeu”274.
Ao fazermos referência a Villa-Lobos, não estamos desconsiderando também
a obra igualmente significativa de Béla Bártok275, um compositor húngaro que esteve
diretamente envolvido nos acontecimentos políticos, sociais e principalmente,
culturais da Hungria.
Estas referências significam que, para ouvir ou até mesmo executar as obras
destes compositores contemporâneos, guardadas as suas devidas proporções
estilísticas, torna-se necessário uma garimpagem no conjunto de notas e sons para
encontrar a melodia principal e que, depois desse encontro, observa-se o
entrelaçamento sutil e o alinhavo que perpassa por toda a obra.
Em ambos os casos, não desmerecendo outros compositores e artistas de
igual renome, é possível encontrar um nacionalismo musical, que desbrava, muitas
vezes, numa cadência de rebeldia e agressividade, para repousar em melodias
dissonantes e consonantes num Poema Singelo276 ou num Mikrokosmos
bartókiano277. Ambos os compositores refletem elementos folclóricos nacionalistas
totalmente estranhos à música brasileira e europeia.
Em Heller, também notamos estas características. O holocausto, o encontro
com Lukács e a Revolução de 1956, que segundo ela, foram os acontecimentos
mais marcantes de sua vida. Sem sombra de dúvida, estes estão expostos em sua
obra. Nem sempre podemos concordar com suas conclusões, ou até mesmo com o
ideal democrático-socialista a sua moda.
Porém, não podemos negar a sua dedicação aos estudos marxistas e a
filosofia e, posteriormente, as novas tendências pós-modernas e existencialistas,
como um “verdadeiro produto do século XX”, conforme as impressões de Terezakis
(2009).
Contudo, sua produção intelectual dos anos analisados é um verdadeiro
posicionamento consciente de sua individualidade. Ao refletir sobre a realidade
dada, afirma-se enquanto sujeito social revolucionário.
274
POLONY, 1997.
Béla Bártok (1881-1945), compositor húngaro mundialmente conhecido. De 1907 a 1934 foi
professor de piano na Escola Superior de Música de Budapeste. Emigrou para os Estados Unidos em
1940.
276
Referência à obra composta por Villa-Lobos, no Rio de Janeiro em 1942.
277
Referência a uma série de estudos progressivos para piano desenvolvidos por Béla Bártok,
escritas entre 1926 a 1939, composta de seis cadernos.
275
194
3.4. A “Escola de Budapeste” e seus escritos marxistas
Como já apontamos anteriormente, falar de Agnes Heller no período de 1956
a 1978, sem se reportar a Georgy Lukács, seus escritos e algumas alunos/as mais
próximos e que permaneceram ao seu redor até a sua morte em 1971, é impossível.
Em novembro de 1956, depois da invasão soviética, Lukács foi preso e levado
para Snagov, na Romênia, onde ficou até abril de 1957 (KONDER, 1980). Alguns de
seus discípulos também sofreram sanções e, alguns acabam presos. Segundo Netto
(1992), ao retornar a Budapeste, ele perdeu sua cátedra na Universidade, foi
excluído do partido e foi vítima de uma nova campanha difamatória. De 1956 a 1971
concentrou-se na elaboração sistemática da sua Estética, em produções críticas
avulsas (literária e política) e no projeto da construção da sua Ontologia do ser social
rumo a uma Ética marxista.
Em 1957, Heller voltou ao partido, mas logo foi expulsa novamente em 1958,
sob a acusação de participar da Revolução de 1956. Ela, Lukács e outros colegas
que comungavam com o mesmo ideário, foram expulsos do partido e afastados da
Universidade. De 1958 a 1963, Heller foi professora de Instituto de Sociologia e de
1963 a 1973, também investigadora da Academia Húngara de Ciências: “[...] até o
final de 1964 seguíamos vivendo num túnel escuro de desesperança” 278.
As críticas se estenderam também para o exterior da Hungria, chegando a
República Democrática Alemã e a União Soviética, porém, Lukács, já perto dos seus
oitentas anos, não deu ouvidos a essa campanha de descrédito, concentrando todos
os seus esforços na produção daqueles que seriam seus últimos escritos.
Nas palavras de Netto (1992, p. 43-44),
[...] num gigantesco esforço criador, ele repensa o marxismo e a sua própria
obra numa perspectiva que pretende revigorar e desenvolver os resultados
anteriores positivos do seu pensamento. Procurando reunir os principais
frutos de sua evolução filosófica, de sua estética e de sua ética – é a etapa
em que conclui a primeira parte de sua Estética e prepara os textos iniciais
de sua Ontologia do ser social -, fá-lo como empreendendo uma apaixonada
restauração das dimensões fundamentais do projeto revolucionário de Marx.
Ao seu lado formou-se um pequeno grupo de alunos que ficou conhecido
como a “Escola de Budapeste”. No Prefácio da edição francesa do livro La théorie
278
HELLER, 1982b, p. 125.
195
des besoins chez Marx, de Agnes Heller (1978), Jean-Michel Palmier279, faz uma
apresentação significativa da “Escola de Budapeste”.
Nesse texto, Palmier (1978) aponta que essa escola, com certeza foi criação
de Lukács. Ao se referir em carta endereçada ao redator do jornal Times Literary
Suplement280. Quando interrogado sobre qual seriam os seus “livros futuros”, Lukács
respondera apresentando os trabalhos de seus discípulos:
[...] se você olhar para os meus escritos a partir de sua origem e seus
efeitos imediatos, está se tornando cada vez mais claro que a minha
atividade teórica nunca foi a de uma pensador solitário, muito mais que isso
– e cada vez mais – é a criação de uma escola. [...] Foi ara testar a eficácia
281
de tais métodos
aplicados concretamente para todos os problemas da
vida social e de impô-los, que surgiu durante o meu trabalho como teórico e
pedagogo, o que foi chamado de “Escola de Budapeste”. Através de
diferentes pesquisas monográficas em várias etapas importantes do
desenvolvimento social, que esta escola tentou esclarecer de maneira
concreta e atual, as estruturas e mudanças das estruturas do processo
histórico-ontológico, cujo bom entendimento é o ponto de partida de
qualquer metodologia marxista. As atividades da “Escola de Budapeste” são
mais conhecidas internacionalmente através dos meus próprios livros – a
maioria deles foram escritos em alemão – não altera o fato de que este é
objetivamente uma linha de pensamento de importância cientifica
considerável, que certamente terá grande influência no futuro. (PALMIER
apud HELLER, 1978, p. 11-12).
Fica claro o objetivo desse pequeno círculo de intelectuais. A “Escola de
Budapeste” reunia tanto filósofos e sociólogos, como esteticistas (estudantes da
estética), emergindo como uma das correntes marxistas mais originais e inovadoras
pela diversidade e amplitude de seus trabalhos. Não só para os/as alunos/as de
Georgy
Lukács,
como
também
para
desenvolver
uma
dialética
marxista
resolutamente crítica nas mais diversas áreas do conhecimento.
Buscavam fazer uma releitura dos escritos da juventude de Marx à luz dos
problemas das sociedades capitalistas e socialistas da contemporaneidade.
Procuravam desenvolver um questionamento radical da burocracia e da vida
cotidiana. Estudavam os problemas sociais de seu tempo, a luz do pensamento
marxiano, opondo-se radicalmente ao historicismo subjetivista, como também às
versões “estruturalistas” do marxismo.
279
Jean-Michel Palmier (1944-1998), filósofo e historiador francês.
Em nota, Palmier explica que esta carta foi publicada na versão inglesa, em junho de 1971. O
original em alemão foi publicado na revista iugoslava Práxis, órgão da antiga escola Koçula (nº 2-3,
1973) e a versão francesa em Temps Modernes (agosto-setembro de 1974, nº 337-338).
281
Referência aos textos de Marx.
280
196
Jean-Michel Palmier retrata a história desta corrente marxista, sua inspiração
teórica e as polêmicas levantadas no interior do Partido Comunista Húngaro. Traz
uma visão precisa do trabalho da “Escola de Budapeste”, considerado, segundo ele,
na Itália, na Alemanha e na França, um dos mais significativos grupos de pesquisa
teórica em países socialistas.
Esse brilhantismo não ficou livre das grandes polêmicas e das ácidas críticas
de seus opositores que a consideravam como uma “nova esquerda húngara” ou de
“revisionistas” e “traidores do marxismo”. Estes denominativos, sem sombra de
dúvida, iam contra a liberdade intelectual.
Não nos cabe aqui fazer um elogio ou uma crítica a esse grupo de
intelectuais, nem mesmo aos seus escritos. Nosso objetivo é apenas fazer uma
apresentação desse grupo, relacionando-o com o universo intelectual de onde foram
geradas as obras de Agnes Heller no período analisado.
Essa escola referenciava o marxismo como um método vivo de análise e não
como um dogma, buscando colocar as ideias de Lukács em prática. Muito mais que
apenas fazer uma releitura de Marx, este pequeno grupo desbravou e mostrou a
riqueza da diversidade da vida culta húngara, da literatura, do cinema e das artes
em geral - nesse ponto, concordamos com Palmier (1978). Além disso, este grupo
deixou-nos um referencial rico em indagações sobre a ontologia do ser social, na
perspectiva do sujeito revolucionário individual e coletivo.
Além da unidade estabelecida entre os seus membros, estabeleceu-se um
vínculo de amizade. Todos eles sofreram com as sanções do Partido Comunista
Húngaro e das acusações de seus críticos, juntamente com Lukács. Obviamente a
obra magna desse grupo é aquela desenvolvida pelo próprio Lukács. Poderíamos
arriscar a dizer que esse grupo de alunos e alunas, foram os guardiões de sua última
e monumental obra: a finalização da Estética e a Ontologia do ser social.
Transcrevemos aqui a tradução282 do texto de Palmier (1978) sobre a
apresentação, feito pelo próprio Lukács, dos integrantes da “Escola de Budapeste”:
"O universo do pensamento da “Escola de Budapeste” é um universo
estruturado e coerente, apesar de suas muitas ramificações. Seu membro mais
produtivo é Agnes Heller, cujos três livros, entre outras obras, são os mais
representativos das tendências marxistas tomadas pela escola. A Ética de
282
Por se tratar de uma tradução do texto em francês de Palmier, realizada pelo pesquisador,
transcrevemos entre aspas. Esta forma condiz com o texto original e não como uma citação.
197
Aristóteles e o O Homem da Renascença são monografias históricas. A primeira
apresenta um panorama em conjunto com a filosofia de Platão e Aristóteles. A
segunda oferece a completa realização de um Cassirer283 marxista - a descrição
exata de um período de vida intelectual que o marxismo até agora tratou apenas de
passagem. [...] Este problema levou precisamente Agnes Heller a escrever a sua
mais completa obra até esta data: A vida cotidiana284, em que apresenta a totalidade
da dinâmica do sistema e dos tipos de atividade e modos do pensamento cotidiano,
tema principal desta obra. Estes três livros foram publicados em húngaro pela
editora da Academia Húngara de Ciências. A vida cotidiana é também um dos
exemplos mais importantes da renovação da ontologia marxista nos últimos dez
anos".
"A pesquisa de György Márkus285 está no mesmo campo, mas caminha para
direções muito diferentes. O seu livro - Marx e o conceito da essência humana - foi
publicado em húngaro pela mesma editora - é o primeiro ensaio marxista de
interpretação dos conceitos-chave da ontologia marxiana e da antropologia que são
inseparáveis. Márkus foi bem sucedido e realizou um notável e erudito trabalho
semântico - embora seja muito mais que isso - com base em uma utilização
aprofundada do método de Marx. Seu ensaio crítico sobre Wittgenstein286 e seu
estudo, o primeiro na literatura marxista sobre a estrutura teleológica da percepção,
são profundamente originais, conduzindo para novas soluções, com base numa
apurada compreensão das ideias de Marx e num conhecimento completo das
disciplinas científicas especializadas”.
Quanto a Mihaly Vajda287, Lukács observa que seu trabalho toma uma direção
oposta:
"Ele progride a partir da epistemologia para a ontologia social e o estudo
político da sociedade. Seus ensaios sobre Husserl - publicado em húngaro na
283
Referência ao filósofo alemão Ernest Cassirer que realizou estudos em direito, literatura e filosofia
germânica nas universidades de Berlim, Universidade de Leipzig e Heidelberg.
284
Referência ao livro Sociologia da vida cotidiana.
285
Lukács, na sua Autobiografia realizada através da entrevista com Estván Eörsi e Erzsébert Vezér
(1999, p. 143-144), tece algumas informações sobre seus discípulos. Sobre Márkus, relata que não
foi diretamente seu aluno e que quando voltou de Moscou já estava 75% formado, porém, diz que
alguma influencia ele pôde exercer sobre ele.
286
Segundo Carlos Nelson Coutinho, no Prefácio da edição brasileira A teoria do conhecimento no
jovem Marx, editado pela editora Paz e Terra, em 1974, no Brasil, foi sua tese de doutoramento em
1965. Ao apresentar György Márkus, Coutinho tece algumas informações relevantes sobre a “Escola
de Budapeste”.
287
Na mesma entrevista Autobiográfica, já citada, Lukács aponta que Vajda era aluno de Agnes
Heller, quando ela lecionava na universidade.
198
editora da Academia de Ciências em Gondolat - não só representam a primeira e
verdadeira tentativa marxista de confrontação com a fenomenologia e sua
problemática, mas esclarece os problemas da epistemologia, em termos da práxis,
isto é, da ontologia verdadeira".
Finalmente, Lukács tece algumas considerações sobre Ferenc Fehér:
"O estudo de Ferenc Fehér (ainda não publicado) sobre Dostoïevky é
constituído de relatos completos de uma dinâmica original e convincente da cultura
russa da segunda metade do século XIX, com base nas análises de Marx e num
conhecimento profundo de material literário. Ao mesmo tempo, Fehér propõe uma
nova teoria marxista do romance. Seu livro também é muito mais do que um trabalho
especializado da história literária pela polêmica apaixonada que ele concorda com o
individualismo moderno".
Lukács acrescentou: "[...] eu estou firmemente convencido de que é hoje
nessas obras que se prepara a filosofia do futuro" (PALMIER, 1978). Lukács
apresenta de forma solidária o trabalho de seus discípulos, apesar, segundo os
relatos de Heller, das relações entres eles nem sempre serem tão amistosas,
chegando a discordar dos seus escritos e de suas atitudes288.
Lukács (1999) aponta que Heller e Féher foram seus alunos desde o início.
Após a publicação dos trabalhos produzidos por esta escola, críticas ferrenhas
caíram sobre eles, principalmente depois de algumas discordâncias desse grupo
com relação aos escritos de Lukács.
Segundo Palmier (1978), a posição do Partido Comunista Húngaro era formal:
"[...] a concepção que emerge através dos escritos discutidos é essencialmente
contrária aos esforços teóricos e políticos da obra marxista de Lukács. E não é uma
coincidência. A ruptura dos autores destes escritos com o marxismo também
significa o rompimento com Lukács”.
Conforme vimos através dos comentários de Lukács, foi nesse período que
Heller produziu suas mais significativas obras e que expressavam o tipo de
orientação daquele grupo de intelectuais que despontava no horizonte intelectual da
Hungria e, consequentemente, do mundo.
288
Konder (1980, p. 106) relata algumas divergências e discordâncias dos discípulos de Lukács,
principalmente no que diz respeito a sua Ontologia do ser social, como também sobre suas posições
políticas que se “conciliavam demais com os burocratas da direção do Partido Comunista”.
199
Sem dúvida, Heller foi a mais profícua. O volume de sua produção intelectual
é considerável. Lukács várias vezes referiu-se a Heller como a figura chave da
“Escola de Budapeste”. Por sua vez, Heller sempre exaltou carinhosamente a sua
amizade com Lukács. Nas entrevistas que acompanhamos na atualidade, com seus
mais de oitenta anos, é notável a admiração e o reconhecimento de Heller à ele:
[...] Lukács acabou desenvolvendo uma relação de confidência comigo.
Talvez eu tenha sido um de seus estudantes favoritos. Surgiu uma grande
amizade entre nós. Inicialmente era uma relação de mestre e aluno;
depois, tornou-se uma amizade entre uma pessoa mais velha e uma mais
jovem. Nunca vou esquecer as inspirações e as discussões, as lições
verdadeiras que recebi dele. Em termos de política, chegamos
paulatinamente a um total desacordo. Eu o respeitava muito, pois percebia
que na idade em que se encontrava – ele já era um homem velho – não
poderia esperar uma mudança radical. Não pretendia mudá-lo
politicamente. Ele tinha sua posição e eu, a minha. (HELLER, 2002, p. 39).
Segundo Palmier (1978), não se pode dizer que estes foram os únicos
seguidores de Lukács: “[...] muitos acadêmicos, teóricos húngaros afirmaram
trabalhar na continuidade da obra de Lukács”, mas, o que os diferenciava dos
primeiros era o vínculo especial que os unia a Lukács, a qualidade dos trabalhos
produzidos e a diversidade de direções em que se desenvolveram os método e as
interrogações.
É importante salientar que Palmier (1978) se refere a “Escola de Budapeste”
como a “Escola Lukacsiana”, ou seja, à produção intelectual e a atividade acadêmica
de Lukács. Outros vão se referir a “Escola de Budapeste” como este pequeno grupo
de intelectuais que se juntaram ao redor de Lukács nos seus últimos anos.
Heller irá dizer que este pequeno círculo de amigos se formou no inicio dos
anos de 1960 e que Lukács assim denominou “Escola de Budapeste”, baseada na
amizade e na afinidade pessoal e teórica entre os seus integrantes.
Este círculo de intelectuais foi formado por Agnes Heller, Ferenc Féher,
György Márkus e Mihály Vajda, tendo como mestre Georgy Lukács e continuou
unido após a morte de Lukács em 1971, até o seu total desfecho no final dos anos
de 1970, quando foram expulsos da Hungria: “[...] nenhuma ideia era ‘propriedade
privada’, todas as ideias constituíam um patrimônio comum” 289.
289
HELLER, 1982b, p. 125. Encontramos algumas entrevistas na Internet, com relação a vida atual de
Heller, apontando para a edição de uma livros escrito por Heller e Vajda, comprovando que elas
ainda trabalham juntos e dividem momentos de estudos e de produção intelectual.
200
Há também algumas referências a Maria Márkus, estudiosa dos problemas
econômicos e sociais, e ao economista e sociólogo András Hegesüs, como também
Janós Kis e György Bence, dedicados ao campo teórico-filosófico. Heller também faz
referência a Dénes Zoltai, todos como integrantes desse pequeno grupo, porém,
estes não aparecem na maioria dos escritos pesquisados290.
Segundo Carlos Nelson Coutinho291, este círculo de colaboradores mais
próximo de Lukács, empenhava-se numa “reavaliação dos temas relativos ao
humanismo marxista e, em particular, à problemática da alienação”, o que
correspondia, no plano teórico, numa tentativa prática de “encontrar novas vias para
o socialismo”, ou seja, a “redescoberta e reexame da obra do jovem Marx”. Não
estamos desconsiderando os problemas das análises do grupo no que diz respeito
as suas conclusões, porém, não nos cabe aqui fazer tais críticas, já que fogem aos
nossos objetivos.
Heller aponta que os anos entre 1965 a 1968 foram considerados anos de
uma “profundização”, ou seja, um movimento mundial que buscava o “renascimento
do marxismo entendido como uma teoria pluralista”: “[...] nosso propósito era
transformar a reforma econômica em reforma social”. Por isso denominado “anos de
reformas”: “[...] o encontro com os filósofos iugoslavos na Escola de Verão de
Korçula teve lugar precisamente nessa época o período de reforma. De minha parte
eu participei três vezes das sessões: em 1965, 1967 e 1968”292.
[...] Nos anos 60, houve barulho sobre o renascimento do marxismo de
Lukács. Na compreensão dele, seria necessário abandonar o chamado
marxismo oficial do regime soviético e voltar ao próprio Marx, a fim de se
construir uma espécie de marxismo filosófico, autêntico. Todos nós,
membros da “Escola de Budapeste”, acreditávamos que éramos parte e
tínhamos uma parcela de responsabilidade sobre o renascimento do
marxismo. De certo modo, fizemos o que achávamos importante.
(HELLER, 2002, p. 39-40).
Mesmo sob perseguições, Heller ainda se envolve em manifestações
políticas. Em 1968, participa dos protestos contra a invasão soviética à
Tchecoslováquia, conhecida como a Primavera de Praga. Um dado interessante é
290
Estas informações foram confirmadas pela filha de Agnes Heller (Zsuzsa) através da Rede Social
Facebook. Além desses, Zsuzsa fez referência a Almasi Miklos, Miklós Radnóti, Ludassy Maria, como
também aos já citados Janós Kis e György Bence.
291
Referência ao Prefácio da edição brasileira A teoria do conhecimento no jovem Marx, de György
Márkus, editado pela editora Paz e Terra, em 1974.
292
HELLER, 1982b, p. 126-127.
201
que mesmo com todas essas conturbadas reviravoltas na sua vida intelectual, Heller
nunca deixou de escrever, mesmo sendo rechaçada, criticada, acusada, perseguida,
entretanto, sua produção intelectual é impecável. É evidente que sua preocupação
com a “emancipação humana”, vinculada ao pensamento marxiano, floresceu em
todas as suas fases de sua vida intelectual, assim como o caráter distinto de sua
obra.
Frente aos eventos na Tchecoslováquia e a possibilidade de um “socialismo
realizável”, Heller percebe que nas revoltas estudantis ocidentais a “[...] expressão
concreta de uma crítica que, desde o nível da política e da economia, consegue
penetrar no interior do modo de vida burguês” (ROVATTI, 1986). Para Heller estes
momentos tornam-se historicamente visíveis tanto na vida cotidiana, quanto nas
relações sociais.
Foi com esse pano de fundo que Heller acabou de escrever o livro Sociologia
da vida cotidiana, chegando à conclusão de que a “revolucionalização” das formas
de vida e das configurações para uma nova comunidade, são precondições para
uma sociedade “verdadeiramente socialista”, expressões contidas exaltadamente
nas conclusões do livro escrito posteriormente As teorias das necessidades em
Marx, que foi inspirado nos movimentos de 1968. Na visão de Heller, esse
movimento se movia para uma perspectiva de uma “Europa unitária”, na dimensão
de um “socialismo democrático”.
Portanto, a “Escola de Budapeste” punha em questão a natureza do
socialismo soviético, da burocracia, do totalitarismo, do dogmatismo marxista, da
realidade da vida cotidiana nos países capitalistas e socialistas, enfim, fazia uma
crítica feroz aos principais acontecimentos da época, o que justifica a posição do
Partido Comunista Húngaro de reprovar seus escritos, alegando caírem num
“revisionismo de direita”, num “marxismo ocidental”, de “teorias anti-marxistas”,
relacionando seus membros como “dissidentes”, de escreverem “generalidades
nebulosas e utópicas” e/ou de manifestarem ideologias “ecléticas pequenoburguesa”, tendências que, na opinião de seus opositores, eram perigosas e
levavam a “negação das propostas do partido político e do movimento dos
trabalhadores internacionais”, conforme os apontamentos da comissão de Política
Cultural do Comitê Central do Partido. Com certeza, foram vítimas da “burocracia
neo-stalinista” (PALMIER, 1978).
202
Palmier (1978), em sua apresentação, faz um resumo daquilo que era a
direção da “Escola de Budapeste” e que consideramos significativas para
compreender seu desenvolvimento:
 Um prolongamento (extensão) do método dialético de Lukács;
 Um trabalho aprofundado das categorias marxistas e de uma releitura
dos escritos de Marx à luz das sociedades capitalistas e socialistas;
 A confrontação do marxismo com as ciências sociais e a filosofia além
do dogmatismo;
 A vontade de elaborar um tipo de metodologia, uma "filosofia social",
que pudesse construir uma ponte entre diferentes disciplinas;
 A fixação em questões permanentes das realizações socialistas a partir
dos próprios princípios do marxismo e a eterna busca do que poderia
ser uma sociedade genuinamente socialista;
 A extensão dos trabalhos sobre a Estética de Lukács sobre o romance
moderno ou o cinema;
 O desejo de fazer do trabalho de Lukács uma herança crítica da vida;
 Um conjunto de questões radicais da estrutura da vida cotidiana.
Sem sombra de dúvida, concordamos com Palmier (1978), quando este
afirma que eram pesquisas anti-dogmáticas, no campo da filosofia, da sociologia, da
antropologia, da historiografia, da literatura, da estética, da política e da ética, tanto
na área da fenomenologia como no marxismo, sobretudo, as obra de Heller, buscam
a reestruturação radical da vida cotidiana, mas, acima de tudo, defendiam uma
posição ética e política bem diferente da que viviam no Leste Europeu.
Em nota, Palmier (1978) esclarece que um dos primeiros artigos sobre o
trabalho da “Escola de Budapeste” foi o de Laura Boella "Ontologia e teoria della vita
quotidiana nella ricerca filosofica scuola di Budapest" que apareceu na Revista
Internazionale di Filosofia del Direito (2-1973). Também, a revista Temps Modernes
(agosto-setembro de 1974, n º 337-338), dedicou um número aos problemas de
grande interesse da “Escola de Budapeste” e, finalmente, o volume de Lukács,
Heller, Fehér (et au.) Individuum e Praxis: Positionen der Budapester Schute
(Suhrkamp, 1975) também contém relatos importantes.
203
Heller relata que, enquanto estudante, casou-se com István Hermann 293, com
quem teve uma filha (Zsuzsa Hermann). Este casamento acabou em divórcio,
casando-se, posteriormente, com Ferenc Féher, companheiro que seguiria Heller até
os anos de sua morte, em 1994. Deste casamento, em 1963, Heller teve um filho
(Gyuri) (TEREZAKIS, 2009).
No pequeno livro La revolución de la vida cotidiana (1982b), uma verdadeira
antologia humanista marxista, Heller empenha-se numa transformação radical da
vida cotidiana. Expressa, significativamente, a exigência de vincular o tema
lukacsiano à vida cotidiana, ou seja, ao conceito de revolução: “[...] devíamos abolir
primeiro a alienação econômica e política para logo estar em condições, post festum,
de humanizar as relações cotidianas entre os homens” 294.
Nesse livro também encontramos a entrevista realizada por Laura Boella,
Guido Neri e Amadeo Vigorelli com Agnes Heller que contribuíram para a elaboração
desse histórico. Acreditamos que as falas de Heller são exemplos vivos de um
período conturbado, mas de profunda reflexão e produção teórica. Em suma: “[...] a
verdade do processo social é também a verdade dos destinos individuais” (LUKÁCS
apud MÉSZÁROS 1984, p. 09).
Enquanto Lukács estava vivo, apesar das várias acusações e perseguições,
ele sempre protegeu este grupo de intelectuais. Vitimado por um câncer, Lukács
morre no dia 04 de junho de 1971, quase em total solidão. Em 1973, Heller sofre
nova repressão política, é expulsa mediante resolução do Partido Comunista
Húngaro e da vida cultural húngara e é banida da vida acadêmica. Trabalha como
tradutora particular até sua saída do país em 1978. Nesse período também faz
algumas viagens pela Europa proferindo seminários e, principalmente, participando
dos eventos mais significativos no campo da filosofia e da política, em especial, dos
eventos de 1968.
[...] Com base no nosso protesto contra a intervenção, nossos passaportes
foram retidos durante um ano (no meu caso, durante dois anos). Hegedüs
293
Segundo informações trocadas com a filha de Agnes Heller, Zsuzsa Hermann, pela Rede Social
Facebook, Hermann István (1925-1986), nasceu e morreu em Budapeste. Foi filósofo, esteta, crítico e
professor, membro da Academia Húngara de Ciências. Estudou na Universidade Eötvös Loránd, em
Budapeste, Hungria, entre 1945-1950, período em que conheceu e se casou com Heller, sendo
graduado em Economia e Filosofia Política. Também foi aluno de Georgy Lukács. Trabalhou como
pesquisador da Academia Húngara de Ciências e Instituto de Filosofia entre os anos de 1956 e 1958
e 1967-1973. Além do ensino, dedicou a pesquisa em história, filosofia e escreveu tratados sobre a
estética, a estrutura da estética moderna e a mídia – acesso em janeiro de 2013.
294
HELLER, 1982b, p. 18.
204
foi destituído como diretor do Instituto de Sociologia. Por sua vez, József
Szigeti, o agente diretor da União Soviética, cujas atividades “filosóficas”
consistiam durante anos em meras denúncias, permitiu seu posto de diretos
do Instituto de filosofia. (HELLER, 1982b, p. 131-132).
A resolução emitida em 1973 pelo Partido Comunista - a "Trial Filosofal",
conhecida assim por ser contra o grupo de filósofos e sociólogos da “Escola de
Budapeste”, dizia que as instituições científicas húngaras deveriam ser partidárias ao
pensamento marxista-leninista e que, as pessoas que eram estrangeiras e hostis a
este pensamento, não teriam lugar na Hungria e nem nas instituições científicas.
Consequentemente, tais pessoas deveriam ser removidas de seus postos de
trabalho. Palmier (1978) registra sua indignação a essas medidas na apresentação
ao livro de Heller.
Heller fica proibida de ocupar algum qualquer cargo universitário e de publicar
seus escritos, passando a ensinar gramática nas escolas primárias por algum tempo
e a viver de traduções. (HELLER, 2002; TEREZAKIS, 2009). Por esse motivo, Heller
e os demais membros da “Escola de Budapeste” foram demitidos de seus cargos do
Instituto de Filosofia e do Instituto de Sociologia da Universidade em Budapeste,
perdendo, assim, seus empregos:
[...] ou seja, "teoricamente desempregados", porque supostamente não
havia desemprego oficial na época. E por isso não era permitido que você
tomasse um trabalho inferior, mas ao mesmo tempo, de acordo com a
resolução do Partido, que nós, como trabalhadores científicos não éramos
qualificados para trabalhar em nosso campo, por causa da nossa
hostilidade ao marxismo-leninismo. Então, por causa do Partido [fomos]
demitidos de nossos trabalhos na Academia de Ciências, e ficamos
desempregados por alguns anos. Enquanto estávamos desempregados,
decidimos que tínhamos que deixar o país, não apenas porque estávamos
desempregados, mas porque estávamos constantemente sujeitos a
perseguição policial. Éramos acompanhados nas ruas, eles enviavam
informantes e espiões para os nossos apartamentos e meu marido, Feri,
também passou alguns dias na prisão. Nossos apartamentos foram
revistados nas primeiras horas da manhã. Então era um tipo muito
desagradável de vida. (POLONY, 1997).
Pier Aldo Rovatti (1986), renomado docente italiano, no Prólogo da tradução
espanhola do livro Teoría de las necessidades em Marx (HELLR, 1986), ao
apresentar a autora comenta que no início de 1973, o Comité Central do Partido
Comunista abre uma investigação contra os escritos de Agnes Heller: “[...] um grupo
de estudiosos das ciências sociais da Academia examinaram suas posições
políticas. Sobre a base dos resultados da investigação, publicada depois na revista
Szociológia, em meados de maio do daquele ano” (ROVATTI, 1978, p. 05) e, em
205
consequência, o Comitê Central do Partido emitiu um comunicado de apenas duas
páginas datilografadas condenando decisivamente suas posições políticas sobre a
tradicional alegação de “revisionismo de direita” e, ao mesmo tempo, de “novo
esquerdismo de cunho ocidental”, definindo suas posições como “filo-burguesas” e
“anti-marxistas”. O objetivo era explícito: apartá-los da vida cultural húngara e
impedir que seus escritos fossem lidos e publicados, alegando serem “ideias
consideradas perigosas” (idem, p. 05-06).
Nesse período de clausura, Heller se ocupa da produção de sua Teoria das
necessidades em Marx e, posteriormente, de trabalhos sobre os afetos, as paixões,
o problema da “segunda natureza” e por último a teoria da personalidade, uma
verdadeira “antropologia ontológica” e crítica da natureza humana. Nessa ocasião
seus trabalhos já são reconhecidos internacionalmente, principalmente àqueles
centrados na teoria da moral (ou ética) e da vida cotidiana. Finalmente, em 1977, ela
e Ferenc decidiram deixar o país:
[...] em 1977 foi o primeiro ano em que pudemos optar por deixar o país.
Deixe-me explicar. Foi Catch-22295. Disseram-nos que só poderíamos obter
um passaporte de imigração, se tivéssemos um trabalho para fazer. Mas
naquela época, havia poucos empregos no Ocidente e as universidades
nos chamavam para uma entrevista e, só depois é que iriam ver a
possibilidade de nos dar trabalho. Mas nós tivemos que dizer a eles que
não poderíamos chegar para uma entrevista, porque só poderíamos ter
nossos passaportes se já tivéssemos um trabalho. Por isso, foi Catch-22.
Finalmente, um amigo meu, que era um imigrante húngaro, Iván Szelenyi,
candidatou a um emprego para mim na Austrália e, a universidade enviou
alguém para Budapeste para me entrevistar. E eu comecei esse trabalho e
foi assim que eu tirei o passaporte. (POLONY, 1997).
Depois de trabalhar como professora em escolas secundárias, viver de
traduções e ser considerada uma “dissidente”, Heller e seu marido Ferenc Fehér,
como outros integrantes da “Escola de Budapeste”, foram convidados a assumir
cargos na La Trobe University296, em Melbourne, Austrália, em 1977: “[...] aos
poucos, comecei a conhecer a Austrália, onde constatei um sentimento de
igualdade”297. Nessa universidade, Heller assume a cátedra de Sociologia.
295
Referente ao romance CATCH-22, do autor norte-americano, Joseph Heller, publicado pela
primeira vez em 1961.
296
A La Trobe University é uma instituição de Educação Superior australianas, fundada em 1964.
Possui quatro campus, dois na cidade de Melbourne (Bundoora e Carlton), um em Bendigo e outro
em Albury/Wodonga.
297
HELLER, 2002, p. 32.
206
Embora Heller tivesse que se afastar do convívio de sua filha (Zsuzsa
Hermann), que ficara na Hungria para se casar, ela se “jogou por inteiro” em seu
novo ambiente de trabalho, escreve e publica proficuamente entre 1978 a 1986
quando, ela e seu companheiro Ferenc Fehér, assumiram compromissos para
integrar o quadro de docentes da New School for Social Research298 em Nova
Iorque, Estados Unidos da América, ocupando a cátedra de Hannah Arendt299, como
professora de Filosofia.
[...] Quando se cogitou de eu ir para New School, eu já sabia de sua
tradição e prestígio. Mas, na época em que cheguei lá, o departamento de
filosofia passava por um de seus piores momentos, o que me deixou
bastante insatisfeita. Então decidi que só ficaria se a situação melhorasse.
Felizmente as coisas melhoraram e, em poucos anos, o departamento se
tornou um dos melhores da costa leste dos Estados Unidos. Tínhamos um
pequeno grupo de excelentes professores e um corpo discente
entusiasmado em estudar e fazer filosofia. Não visávamos exclusivamente
a ter um emprego. Além disso, havia um ótimo relacionamento entre
professores e alunos. Na universidade, acredito que é mais importante ter
bons parceiros do que bons professores. (HELLER, 2002, p. 33).
Atualmente, Heller divide o seu tempo entre Nova Iorque e a Hungria,
participando ativamente das mudanças políticas daquele país desde 1989. Entre
1956 e 1978, Heller comungava com as ideias de seu mestre e da teoria marxiana. A
partir de então, percorre caminhos que cada vez mais a afastaram de suas origens.
Conforme vimos, no período estudado, Heller buscava compreender os
caminhos que levavam a uma postura ética e política na vida cotidiana na
concepção marxista no sentido da recondução de um “projeto de construção do
socialismo e sua democratização” (RIVERO, 1996, p. 12).
Nessa perspectiva compreender os principais fundamentos da ética marxista,
na vertente helleriana, levou-nos a proposições para uma consciência ética e política
do ser social.
Através de suas análises sobre a vida cotidiana, percebe-se um arcabouço
teórico-prático e ético-político do sujeito revolucionário singular, ou seja, em sua
condição antropológico-ontológica de ser social, mostra-nos que o ser social em sua
singularidade pode assumir uma atitude consciente para a vida, passando de uma
298
New School for Social Research foi fundada em 1919 na cidade de Nova Iorque. A partir dos anos
de 1930, obteve financiamento para um refugar nos Estados Unidos para estudiosos e pesquisadores
cujas carreiras e vidas foram ameaçadas pelos nazistas.
299
Hannah Arendt (1906-1975), conhecida pensadora da liberdade.
207
condição de ser-em-si para a condição de ser-para-si-mesmo: “[...] Uma pessoa
escolhe a si mesma e, desde então, torna-se o que é ela”300.
E continua,
[...] o modo como vivemos é fruto de escolhas. Para buscar algo novo, não
necessitamos de utopias. Precisamos apenas de pessoas com as quais
possamos trabalhar. (HELLER, 2002, p. 48).
Ao nos referir ao sujeito social – ou ser-para-si-mesmo, nos referimos a sua
condição de ser genérico e de ser particular propositivo e revolucionário, porém, é na
sua condição de individualidade que o ser social assume a consciência de sua
condição humano-genérica e parte para a ação revolucionária para-si
Um estado individual que o sujeito social pensa, age e reage consciente e
livre na e para a vida social, vivendo conforme as suas próprias convicções, seus
gozos e pendores. Heller, no decurso de sua obra, aponta que os grandes filósofos
da Humanidade, os grandes artistas, os grandes músicos e compositores, por
exemplo, viveram as suas próprias convicções, ou seja, a sua individualidade, foram
“por inteiro”, por conseguinte, assumiram um ethos perante a vida.
É essa condição singular (ou singularidade), que as capacidades humanogenéricas afloram com mais premência. Ao se posicionar enquanto ser responsável
e consciente assume para-si-mesmo o controle de sua própria vida social, porém,
em condições previamente dadas. É uma tomada de consciência - um vir-a-ser.
Parafraseando Lukács (1999, p. 170):
[...] tornar-se homem do homem como conteúdo do processo histórico, que
se efetiva – de modo muito variado – em cada vida humana singular.
Assim, cada homem – não importa com que grau de consciência – é um
fator ativo no processo total, cujo produto ele é ao mesmo tempo:
aproximação da genericidade na vida individual é a real convergência de
ambos os caminhos evolutivos reais inseparáveis.
Nos termos do jovem Marx, a vida individual só se realiza quando a vida
converte-se em objeto para homens e mulheres, vivem conscientemente sua
condição de genericidade. Em contrapartida, a vida particular, cuja realidade é a
autoconservação e cujas necessidades consistem na identificação com todas as
condições e exigências da cotidianidade e da imediaticidade, muitas vezes, essas e
300
HELLER, 2002, p. 42.
208
as determinações sociais não permitem que o ser social saia do estado de alienação
e estranhamento passivo diante da realidade dada.
Heller propõe uma suspensão (ou elevação) da condição de alienação e
estranhamento em que todos nós mimeticamente estamos envoltos. Na sociedade
capitalista a vida é peremptoriamente regida, condicionada e determinada pela
lógica do capital, conforme vimos no início dessa pesquisa.
A vida ética, nessas condições, se resume a um jogo de interesses, ou, para
sermos mais precisos, a ética maquiavélica – “os fins justificam os meios”; a vida
política,
por
conseguinte,
se
restringe
ao
campo
da
política
partidária,
governamental, estatal, e não a condição de zoon politikon301.
Desta forma, há a exigência revolucionária de uma mudança radical para uma
exigência verdadeiramente ética e política do ser social, ou seja, de um novo modo
de vida na estrutura da vida cotidiana que não se limite a humanização do trabalho
produtivo e a humanização desta mesma vida cotidiana, mas que tenha como
parâmetro uma vida comunitária, global e essencialmente humana. Onde homens e
mulheres sejam um fim e não o meio.
[...] Quando falamos de perspectiva socialista, hipostasiamos uma
sociedade cuja estrutura oferece a todos essa possibilidade de princípio,
uma sociedade construída com comunidades organizadas por indivíduos e
produtora de valores positivos. E, se alguém nos perguntar o que é preciso
hic et nunc, responderemos: é preciso organizar e assumir comunidades
cujo objetivo seja o encaminhamento ou a aceleração do processo social
que possibilite o nascimento dessa sociedade (HELLER, 2004, p. 85)302.
Esta fala/posicionamento de Heller demonstra claramente o que acreditava e
buscava: uma sociedade socialista e, conforme defende em sua Teoria das
Necessidades: uma sociedade dos produtores associados303. Um tipo de
organização social que compreendia comunidades organizadas democraticamente
enquanto
substância
da
sociedade;
comunidades
onde
fosse
possível
a
configuração de um conteúdo axiológico positivo.
Estes apelos hellerianos podem ser facilmente captados pelas ressonâncias
marcusiana, de um utopismo ou, como já apontamos, de uma renovação messiânica
para uma “nova Jerusalém”, como também de uma exaltação ao imperativo
301
Referencia a Aristóteles que coloca o “homem” enquanto “animal político”. Porém, nessa
colocação não estamos nos referindo somente ao homem, mas também a mulher.
302
Grifos da autora.
303
HELLER, 1978.
209
categórico kantiano, mas aqui, pretendemos buscar os fundamentos para a tomada
de consciência do sujeito revolucionário que podemos ser.
No decurso de nossas exposições visualizamos que as circunstâncias e
determinações sócio-históricas traçadas e vividas por Heller, impeliam para estas
esperanças e apelos, no sentido de projetar uma total revolução no contexto social e
político para ideologia de um “verdadeiro socialismo”. Nesse sentido, vemos um
material altamente crítico que se enquadra na realidade capitalista do momento
atual, principalmente com os acontecimentos dos últimos anos nos Estado Unidos,
no Oriente e na Europa.
Não podemos perder de vista que Heller aponta para a necessidade de
emitirmos sempre interrogações sobre as condições de vida e da fase atual do
capitalismo: a necessidade premente de darmos resposta acerca da realidade
individual, social, sobre o papel e o caráter do trabalho rumo à riqueza geral.
Como riqueza geral, Heller se dirige a Marx ao considerar a riqueza da
“essência
humana”
–
trabalho,
objetivação,
sociabilidade,
universalidade,
consciência e, sobretudo, liberdade304. Na lógica capitalista, as determinações são
exclusivamente econômicas, os apelos são para o consumo, a produção, ao
descartável, ao imediato, ao veloz, enfim, para o alienado/alienante.
Haja vista que ao analisarmos os programas sociais governamentais
brasileiros dos últimos governos, os apelos vão em direção ao aspecto econômico e,
quase sempre, não se observa a emancipação do sujeito social; a riqueza social
está voltada para o desenvolvimento econômico: a necessidade do consumo,
esquecendo, muitas vezes, os outros aspectos que compõem a natureza humana
(ou a essência humana).
Nesse caminhar, Heller, ao vivenciar as consequências do comunismo
totalitarista e despótico da Hungria e do Leste Europeu de sua época, buscava
encontrar uma “teoria da práxis social” que desse conta de despertar o sujeito
revolucionário.
Por conseguinte, se toda obra filosófica se relaciona com a vida do autor,
conforme seus próprios apontamentos, traz em-si uma ética, e se esta obra busca
uma práxis social, ou seja, uma atitude revolucionária diante de situações concretas,
traz em-si uma postura política, mas para que ela possa ser autêntica na vida social,
deve possibilitar o despertamento dessa consciência ética e política, portanto, dirigir304
HELLER, 2004, p. 04.
210
se para uma “práxis social revolucionária”, esta consciência só pode-se dar em
situações concretas e em condições concretas, portanto, na vida do sujeito social, ou
seja, na vida cotidiana, palco onde homens e mulheres, jovens ou não, se colocam
para vida. Portanto, a vida de todos nós.
Para Heller a “[...] vida cotidiana é a vida do homem inteiro” 305. Marx e Engels
já haviam demonstrado que homens e mulheres são seres sociais, que se
diferenciam dos outros seres da natureza pela sua capacidade de humanizar as
relações sociais e de manipular a natureza, de tecer mediações objetivas e
concretas para as suas projeções teleológicas.
Portanto, o processo de hominização é objetivo, concreto e social, contudo,
só se estabelece na vida real, quando o homem e a mulher entram em contato
diretamente com os atributos e possibilidades do mundo real, ou seja, do concreto
pensado.
A vida de Heller, assim como tantos outros, demonstra a capacidade de
tomada de consciência no processo de hominização e humanização social. Através
de suas vivências/reflexões percebemos que, na sociedade de classes, no modo de
produção capitalista e dos interesses escusos e egoístas, o ser social pode ou não
tornar-se alienado e estranho a sua natureza, ou mesmo pode ser forçado a tal
situação. Mesmo que assim apareça – alienando e estranhado – pode-se superar tal
situação.
A imediaticidade das coisas e situações, em grande medida, acontece com a
maioria das pessoas que vivem em sociedade, principalmente nas grandes
metrópoles, e que, de algum modo, incorporam o modo de produção capitalista e a
lógica do capital, numa verdadeira transfiguração alienada e alienante da vida social.
Ao retomar a essência do pensamento marxiano, juntamente com a “Escola
de Budapeste”, Heller percebe que Marx, ao longo de sua obra, ora colocava as
contradições inerentes à formação da sociedade capitalista como motor da história,
ora expunha a classe operária como agente revolucionário. Com efeito, buscava
esse agir no micro universo da vida cotidiana, na qualidade de sujeitos sociais, livres
e conscientes de sua condição – tal é o fundamento da individualidade do ser social.
Faremos na sequência, uma breve aproximação das obras analisadas nessa
investigação, acompanhando o resgate sócio-histórico de Heller, para somente
depois concluirmos nossas reflexões.
305
HELLER, 2004, p. 17.
211
3.5. Heller e seu legado marxista: “o poeta habita o homem”306
O legado helleriano, no período analisado – 1956 a 1978 -, está diretamente
vinculado à essência do pensamento marxiano, na perspectiva lukacsiana que, por
conseguinte, estão entrelaçados aos estudos aflorados pela “Escola de Budapeste”
e as principais tendências de sua época, conforme já sinalizamos. Ênio da Silveira,
ao apresentar a obra Uma Teoria da História (1993), assim se refere à Agnes Heller:
[...] marxista não-sectária, [...] a então jovem filósofa viveu momentos
alternados de euforia e depressão ao conhecer no dia-a-dia tanto os
aspectos positivos da aplicação prática do sistema socialista de governo
quanto os abusos e violências decorrentes de sua deformação sob um
regime ditatorial tão arrogante quanto o de Stalin.
Conforme já fizemos referência, Ángel Prior, no livro Axiología de la
modernidade: ensayos sobre Agnes Heller (2002), divide o pensamento de Heller em
três fases distintas: as da Hungria, as da Austrália e as dos Estados Unidos. Essa
divisão nos parece assaz significativa, haja vista que as tendências e o rumo que
Heller dá aos seus escritos acompanham sua trajetória de vida.
Seus escritos apresentam-se realmente como uma lebensphilosophie, ou
seja, sua própria evolução intelectual acompanha o contexto sócio-histórico vivido. É
um esforço de intensa singularidade-particularidade personificada e materializada
numa obra, um verdadeiro prelúdio de seus mais ardentes desejos. Acompanha as
oscilações e tensões do mundo moderno e contemporâneo, consubstanciada numa
tentativa de construir uma filosofia da práxis.
Ao apresentar a obra de Ángel Prior, Jacobo Muñoz, traça um perfil, que nos
parece bem característico e significativo do qual nos apropriamos, sintetizando o
pensamento de Heller em três fases distintas: “[...] um fundamento idealizado de um
melhor mundo sociopolítico possível” (PRIOR, 2002, p. 15).
Seguindo a analogia de Prior (2002), seus primeiros trabalhos remontam aos
anos em que viveu na Hungria, particularmente, entremeios da década de 1950 até
a sua saída do país no final dos anos de 1970. A obra que caracteriza o interlúdio
para sua segunda fase, compreende o livro Filosofia Radical, escrito em 1974,
306
Não é nossa intenção aqui fazer uma listagem completa das obras de Agnes Heller, primeiramente
pela vasta bibliografia, mas sim as que estão diretamente relacionadas com a temática desta
pesquisa e algumas que consideramos de maior relevância.
212
publicado pela primeira vez em 1977 e traduzido no Brasil por Carlos Nelson
Coutinho em 1983, publicado pela Editora Brasiliense.
Nessa sua primeira fase, Heller escreve seus primeiros estudos sobre A Ética
de Techernichévski, escrita entre 1953/1954 e publicado em 1956. Nesta obra (sua
tese de doutoramento) estuda o problema do egoísmo racional– já comentada
anteriormente. Heller (1982b) esclarece que nesse período “[...] queria conjugar de
modo coletivista o racionalismo ético de Sócrates com as teorias do egoísmo da
Ilustração”, porém, carecia completamente de uma teoria da objetivação. Caminha
por um “epicurismo coletivo filosoficamente insustentável”. A influência de Lerzek
Kolakowski307 é considerável nesse momento para a configuração de uma “filosofia
positiva”308.
No decurso escreve outros ensaios: A Dissolução dos Padrões Morais (1957);
Das intenções as consequências (escrito em 1957 e publicado em 1969); A
Sociologia da Moralidade e Moral da Sociologia (1963); Papel Social e Preconceito
(1963) - estes textos não foram encontrados para nossas análises; e Valor e História
(1969) – este último, ao que nos parece está contido nos seus escritos sobre
Hipóteses para uma teoria marxista do valor, editado em língua espanhola em 1974.
Também é desse período o texto O futuro das relações entre os sexos (1969),
publicado no Internacional Social Science Journal (vol. XXI, nº 04 em 1969), editado
pela UNESCO e traduzido por Amélia Coutinho e publicado pela Editora Paz e Terra
no Brasil como Apêndice do livro A crise da família (1971), obra que trazia temas
importantes sobre as principais preocupações contemporâneas a respeito da família
e da relação entre os sexos, tendo como universo, os debates italianos. Também há
uma versão em alemão e em italiano datadas de 1974.
O livro O Cotidiano e a História, editado primeiramente em alemão em 1970 e
traduzido para o português por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder em 1972,
saiu pela Editora Paz e Terra, primeiro livro da autora editado em terras brasileiras.
Nesta obra, encontramos uma síntese do pensamento helleriano através de
pequenos ensaios temáticos em inspirada concepção marxista.
Heller (1982b) esclarece como se deu a passagem entre os pensadores
clássicos da Antiguidade, passando por Hegel até chegar ao jovem Marx.
Leszek Kołakowski (1927-2009), filósofo e historiador polonês.
Positivo não esta sendo empregado no sentido positivista, haja vista que Heller relata que ainda
não conhecia o Positivismo, mas sim no sentido de uma “utopia social positiva” stricto sensu.
307
308
213
Logicamente com os respingos kantianos que acompanharam suas fases. Também
é importante destacar que esta fase encontrou em Belinski 309 e Kolakowski. Antes de
escrever os livros mais significativos desse período, Heller comenta que escreveu
um largo sobre A novela Heloise de Rousseau.
Desta caminhada não poderia resultar se não outra coisa que A Ética de
Aristóteles, escrita entre os anos de 1958 a 1963. Publicada originalmente como Die
Ethik der Aristóteles und das antike EthosI, em Budapeste pela Akadémiai Kiadó, no
ano de 1966. Traduzida para o espanhol por José-Francisco Yvars e AntonioPrometeo Moyá posteriormente, do texto original datilografado, publicada em
Barcelona, em abril de 1983, pela Ediciones Península, saindo com o título
Aristóteles y el mundo Antigo. Há indícios que Heller tenha estudado Aristóteles em
grego.
Na sequência, escreve O Homem do Renascimento, publicado em Budapeste
pela Akdémiai Kiadó, em 1967, em inglês em 1978, na Espanha (1980) e em
Portugal (1982b): “[...] uma verdadeira declaração de amor à Itália” 310. Heller diz que
esta obra foi inspirada em sua estadia na Itália por ocasião de sua primeira viagem
ao ocidente (1956).
Estes trabalhos formam um esboço introdutório daquilo que planejava ser
uma “ética geral” e foram publicados dez anos depois. Nesses estudos, Heller queria
resolver “[...] a antinomia plantada por Weber entre a ética das contradições e a ética
da responsabilidade e para essa solução necessitava pressupor a prioridade da
ética sobre a moralidade”311.
[...] Em última análise, quase tudo que escrevi nos anos posteriores poderia,
efetivamente, caracteriza-los assim: busca do mundo perdido da
312
eticidade . Queria encontrar uma tradição, uma história para minhas ideias
(para minha utopia socialista). Encontrei tal tradição nas cidades de
cidadãos emancipados, nas que não havia abismo entre o pensamento da
vida cotidiana, de um lado, e a política, a ciência e a filosofia, do outro,
donde era possível uma vida plena de sentidos para todos. Meu ponto de
vista era de modo algum romântico. Já escrevera sobre Atenas e sobre a
Florença do Renascimento, jamais ocultava que se tratava, em todos os
casos, de “momentos” históricos muito breves e que, como tais, não
poderiam servir de “modelo” para nós. Sua validez não era, para nós,
309
Filósofo russo.
HELLER, 1982b, p. 124.
311
HELLER, 1982b, p. 119. Grifos do tradutor.
312
Entendida como “forma de vida, pluralidade de mundo ético (como na época do Renascimento),
pluralidade das formas de vida”. (HELLER, 1982b, p. 120).
310
214
313
certamente, a de modelo, mas sim de pré-história
119-121)314.
. (HELLER, 1982b, p.
Em nossa opinião, esta obras, dentre todas, são as mais encantada e de uma
erudição invejável, reconhecidas por Lukács como as que mais sintetizavam os
estudos realizados pela “Escola de Budapeste”. Nelas, Heller se preocupa com a
ética e a vida social em momentos e contextos históricos distintos, mas que
apresentavam as condições objetivas para uma vida cotidiana em sua plenitude,
livre dos mais atávicos sentimentos de alienação - era a vida do homem e da mulher
“por inteiro”.
Heller (1982b) descreve com precisão como foi o seu encontro com as obras
de Marx nesse período. Conhecia os clássicos (Platão, Leibniz, Spinoza, Kant e
Hegel), praticamente de memória, mas seu conhecimento sobre os escritos de Marx
era incipiente. Sua ânsia pelo saber, sobretudo por um saber da práxis (ou de uma
filosofia da práxis) a impulsiona para ficar a maior parte do tempo na biblioteca.
Caminha da edição MEGA Marx-Engels315, as obras de Lukács até Gramsci.
Quando encontra com György Márkus, do seu regresso de Moscou (1957), toma
contato com o neopositivismo, Wittgenstein, Russell, dentre outros, passando pelos
americanos Riesmann, Whyte, Fromm e Wrigt Mills.
Sem dúvida estes estudos lhe rederam alguns outros ensaios: Teoria da
práxis e necessidades humanas (1961); Teoria marxista da revolução e a revolução
da vida cotidiana (publicado inicialmente na revista Praxis, em 01 de fevereiro de
1969); Hipótese para uma teoria marxista dos valores – título original Hypothese zu
einer marxistische Werttheorie (manuscritos da autora), Budapeste em 1970, a
edição espanhola data de 1974; Estrutura familiar e comunismo (trabalho em
colaboração com Mihaly Vajda realizado em 1970, publicado em Berlim em 1974 e
na revista Aut Aut em 1972), estudos estes também analisados nesta pesquisa.
Desde 1964, são frequentes os debates nos círculos de estudos sobre a
alienação. Fehec e Heller fazem política na clandestinidade, acabando por serem
detidos pela polícia secreta por agitação adversa ao Estado.
313
Termo utilizado no sentido de antítese e não das épocas jurássicas de escala geológica.
Grifos do tradutor.
315
Maiores detalhe podem ser encontrados no artigo Hugo Eduardo da Gama Cerqueira David
Riazanov
e
a
Edição
das
Obras
de
Marx
e
Engels,
disponível
em
http://www.anpec.org.br/revista/vol11/vol11n1p199_215.pdf.
314
215
Em 1968, Heller acaba de escrever o livro Sociologia da vida cotidiana,
publicado em 1970 originalmente em húngaro pela Akadémiai Kiadó de Budapeste,
com o título A mindennapi élet (A vida cotidiana). Esta obra contém um Prefácio de
Lukács, pouco antes de sua morte. Este livro foi traduzido para o italiano e alemão
em 1975 e em língua espanhola em 1977.
Vendo a necessidade de trabalhar na distinção de interesses e necessidades,
ainda nessa fase, destaca-se o livro A Teoria das Necessidades em Marx, inspirada
nos movimentos juvenis de 1968, conforme já apontamos.
Nessa obra que a partir da categoria necessidades radicais propõe uma
releitura de Marx e busca fundamentar sua própria utopia: a sociedade de
produtores associados. Esta obra foi publicada pela primeira sob o título Bedeutung
und Funktion des Begriffs Bedürfnis in Denken von Karl Marx. Publicada em italiano
em 1974, em língua espanhola e francesa em 1978.
Em 1974 escreve Movimento radical e utopia radical – publicado em italiano
por Laura Boella em 1974 e em 1976 O ideal do trabalho desde a ótica da vida
cotidiana, publicado na edição espanhola que reúne diversos desses ensaios, já
citados, juntamente com a entrevista concedida a Laura Boella, Guido Neri e
Amadeo Vigorelli, sob o título de La revolução de la vida cotidiana, editado em
Barcelona em 1982.
Segundo Rivero (1996, p. 32), o projeto de realizar uma antropologia social
marxista foi o primeiro intento de Agnes Heller de construir uma filosofia sistemática.
Este, por sua vez, começou com a publicação em 1977 em língua alemã do livro
Instinkt,
aggression,
charakter:
einleitung
zu
einer
marxistischen
sozialanthropologie316, Hamburgo, Berlim: VSA.
Neste livro, Heller desenvolve a primeira parte daquilo que pretendia ser uma
antropologia da personalidade, numa perspectiva polêmica que, na visão de Rivero
(1996, p. 38-39), consistia de uma análise “freudomarxista e da psicologia”. A
segunda parte desse projeto viria a lúmen com o livro Teoría de los sentimentos,
traduzido por Francisco Cusó e publicado pela Editora Fontamara, Barcelona, em
1985, dedicado a uma análise fenomenológica dos sentimentos, realizada na
316
Instinto, agressão e caráter: uma introdução à antropologia social marxista. Este livro também foi
publicado pela Editora Península, Barcelona, em 1980, traduzido por J. F. Yvars e C. Moya, sob o
título: Instinto, agresividad y carácter.
216
mesma perspectiva em que analisou os instintos. Já a terceira parte desse projeto
seria composta com o livro Teoria da História 317.
É desta fase os texto que compõem a obra Crítica de la Ilustração (HELLER,
1984a). Os textos publicados nesse livro, na edição espanhola, alguns traduzido do
alemão e outros do inglês por Gustavo Muñoz e o ensaio Fenomenología de la
conciencia desdichada, foi traduzido diretamente do húngaro por José Ignacio López
Soria, são decorrrentes dos anos compreendidos entre 1970 e 1980.
Os ensaios contidos nesse livro tem a intenção teórica de fazer uma
apropriação crítica do pensamento da Modernidade e a persistência do projeto
ilustrado da reflexão contemporânea. Heller faz um diálogo entre Marx e Habernas e
Feuerbach e Lukács. Nesses ensaios, Heller já demonstra suas afinidades eletivas e
o seu projeto intelectual independente.
Este
volume
contem
os
seguintes
ensaios:
Ilustración
contra
fundamentalismo: el caso Lessing; La “primeira” y la “segunda” ética de Kant
(utilizado nessa pesquisa); Ludwig Feuerbach redivivoi; Fenomenología de la
conciencia desdicgada: sobre la función histórica de la alternativa de Kierkegaard
(escrito em 1971 e publicado por Heller em 1976); El naufrágio de la vida ante la
forma: Georg Lukács e Irma Seidler (este texto refere-se aos manuscritos de Lukács
encontrados em 1973 num cofre do banco de Heidelberg e se referem as cartas de
Lukács a Irma Seidler); De la pobreza del espíritu: um diálogo de joven Lukács;
Marx, justicia, liberdad: el profeta libertário; Más Allá del deber: el caráter
paradigmático de la ética del clasicismo alemán en la obra de Georg Lukács; La
filosofia del viejo Lukács; La disputa del positivismo como punto de inflexión em la
teoria alemana de postguerra; Habermas y el marxismo; Marx y la “libertación de la
humanidade”.
Em sua fase intermediária (pós 1977), Heller publica os livros Filosofia
Radical, título original: Philosophie des linken Radikalismus, terminando assim seu
primeiro ciclo. A partir de então começa a percorrer novos caminhos que irão
distanciá-la cada vez mais de suas origens, ou seja, do legado lukacsiano e da
defesa do marxismo clássico. Em seus estudos posteriores a 1977, segundo Granjo
(2008), alerta para uma mudança de rota tão profunda que desconhecer a sua
trajetória intelectual, redundaria na impossibilidade de compreender a teoria em que
se baseia atualmente.
317
Este projeto tem sido desenvolvido por Heller nos últimos anos com posteriores escritos.
217
Seguindo o raciocínio de Prior (2002), sua segunda fase tem início em sua
estadia na Austrália. Seus principais trabalhos são: Sobre os instintos, editado em
Lisboa em 1983 pela editora Presença; A teoria da História – título original: A Theory
of History – publicado em versão inglesa em 1981, em castelhano em 1985, em
italiano em 1993, no mesmo ano, também no Brasil pela editora Civilização
Brasileira. Crítica a Ilustração, é publicado em língua espanhola em 1984; Além da
justiça (1984-1987) – publicada no Brasil em 1998 pela editora Civilização Brasileira,
dentre outros.
Também, destacam-se nesse período os livros em parceria com seu
companheiro Ferenc Fehér Analises de la Revolución Húngara (Barcelona, 1983),
como também Anatomia de la izqueirda occidental e Sobre el pacifismo (1985) e
Dictadura y cuestions sociales, além de Fehér, em conjunto com György Márkus
(edição inglesa – 1983, espanhola – 1986 e mexicana – 1986), como também o livro
Eastern Left-Western Left, em 1987.
Também é desse período o livro Dialéctica de las formas: el pensamiento
estético de la Escuela de Budapest, escrito por Heller e Fehér e traduzido para o
castelhano por Montserrat Gurguí, em 1987 e publicado pela Editora Península,
Barcelona – Espanha.
Nestes anos, segundo Rivero (1996, p. 20), Heller em colaboração com
Ferenc Fehér, concentrou-se num tipo de atividade autocrítica e de reexame. A
primeira tarefa, juntamente com Fehér e Márkus foi, precisamente, dar conta teórica
do “monumental fiasco que representava os regimes do socialismo real”, resultando
no livro Dictatorship over needs (traduzido para a língua espanhola como Dictadura y
cuestions sociales e publicado em 1983 – Agustín Bárcena traduziu este mesmo
livro e editou pelo Fondo de Cultura Económica, no México, em 1986).
Nos anos posteriores, Heller irá se ocupar com a subjetividade da
personalidade do ser social na busca de respostas para os questionamentos: “[...]
onde podemos encontrar um apoio para nossas ações morais? ; Como é possível
uma ética da personalidade num mundo de valores contraditórios em que já não há
uma nova comunidade moral antecipada por um sentido histórico?”.
218
Rivero (1996, p. 27) irá chamar a atenção para o livro Teoria da História, onde
Heller rompe com a grande narrativa marxista, inclusive com a filosofia da história
reformulada como teoria das necessidades radicais 318.
Em sua terceira fase, já nos Estados Unidos (1986 - ) empreende pelos
caminhos da
pós-modernidade desenvolvendo
sua
teoria
do
pêndulo
da
modernidade como também outros trabalhos sobre ética, moral e personalidade. Há
uma multiplicidade de títulos nesse caminhar, porém, aqui destacamos somente os
títulos mais significativos para nossa investigação.
Nessa demonstração, percebe-se que “sua vida foi sua obra”: “[...] todo
trabalho filosófico é de fato autobiográfico. [...] Em todo trabalho filosófico existe uma
relação entre vida e obra”319. Um verdadeiro caminhar pelas mais diversas temáticas
no campo da filosófica, sociologia, antropologia, historicidade, política, moral e ética,
personalidade e pós-modernidade.
[...] Escrevendo filosofia moral e filosofia da história para mim, então se
tornou uma maneira de pagar a minha dívida para com as pessoas que não
puderam sobreviver320. Assim e a este respeito, a minha filosofia tornou-se
um sacrifício, mas um sacrifício que eu gostava. E isso não é contraditório,
eu posso dizer sinceramente que toda a minha vida tornou-se um sacrifício
para pagar a minha dívida e, simultaneamente, eu gostei de escrever
filosofia. (POLONY, 1997).
Podemos entender por sacrifício a libertação de algum tipo de culpa ou como
a “destruição de um bem ou renúncia ao mesmo” (ABBAGNANO, 2007, p. 1023).
Heller se coloca “por inteiro” na vida cotidiana enquanto sujeito social. Sua obra
passa a ser a materialização daquilo que foi e é importante na sua trajetória de vida.
Enquanto sujeitos plurais321, somos a síntese de múltiplas determinações e relações
sociais, histórica e socialmente constituídas.
A filosofia helleriana se fez na e da sua própria história, traz em si, traços
autobiográficos, assim como na ciência, na música, na literatura, na arte em geral,
318
Ángel Rivero (1996) traça comentários sobre a biografia e o desenvolvimento dos posicionamentos
de Heller na atualidade, assim como Ángel Prior (2002), porém, acreditamos não ser oportuno copilálos aqui, já que não estamos nos ocupando dessas analises, podendo, assim, cair numa descrição
unilateral.
319
HELLER, 2002, p. 20.
320
Referência ao holocausto.
321
Entende-se aqui por sujeitos plurais o ser social consciente de sua condição de individualidade (ou
singularidade), particularidade e genericidade, resultado de suas múltiplas determinações e relações
sociais, ou seja, o “ser por inteiro”.
219
em outras palavras, é a própria afirmação da sua condição de individualidade. Para
nós, um verdadeiro concerto sinfônico na e para a vida.
Apesar de suas intransigências, às vezes, incoerência, polêmicas, de um
romantismo utópico, ou mesmo de suas inconsistências, de um estilo próprio pluralista conforme algumas opiniões contrárias (opiniões estas das quais não
compactuamos) -, é inegável o seu esforço em favor de uma autêntica vida reflexiva
e não-alienada, tanto na teoria, como na práxis, algumas vezes apontando para um
lirismo, é sempre real e concreto, enquanto síntese de múltiplas determinações.
220
CAPITULO IV
EMANCIPAR-SE PARA EMANCIPAR: “LIBERDADE AINDA QUE TARDIA”
4.
“O homem vem ao mundo dotado somente de
características particulares e de uma genericidade
‘muda’: e é somente o ‘mundo’ o que desenvolve
nele tanto a genericidade consciente quanto o
comportamento baseado na particularidade”.
Agnes Heller
4.1.
A gênese do ato
Em suas análises sobre a ética aristotélica, Heller (1983) trouxe elementos
assaz interessantes para a compreensão da gênese do ato. Para Aristóteles, a
decisão é sempre uma expressão de autonomia e esta, por sua vez, constitui um
conceito mais amplo que a decisão: “[...] a decisão é um ato eletivo encaminhado a
uma ação e precedido por uma deliberação”322.
Deste modo, só se delibera aquilo que está ao nosso alcance e é realizável,
mas também deliberamos em conformidade aos nossos interesses e necessidades.
Não deliberamos sobre os fins, mas sim sobre os meios que conduzem ao fim:
[...] se o homem não fosse – relativamente – autônomo, se não pudesse
fazer de causa e ser – sempre em medida relativa – ao ponto de partida das
ações próprias, a deliberação não teria demasiada importância no terreno
ético. Nesse caso, o homem não deveria fazer outra coisa que assimilar a
própria situação ao fator geral e sua ação se voltaria igualmente mecânica
(HELLER, 1983, p. 298).
Para exemplificar, nos reportamos ao trabalho: quanto mais mecânico é, mais
subordinado ao mecanicismo está, ou seja, sem deliberações, ao passo que quando
temos uma relação consciente com o trabalho realizado, maior são as possibilidades
de deliberação, ou seja, de mudar o curso ou criar novas possibilidades para a sua
realização.
Heller (1983) demonstra que Aristóteles não poderia, em seu tempo conceber
a autonomia relativa do ser social dentro dos processos de exploração e reificação
nos quais homens e mulheres estão submetidos/as: “[...] quanto menos possibilidade
322
HELLER, 1983, p. 297.
221
há, mais fechado estará a probabilidade do inevitável, e o papel da deliberação se
voltará secundário na decisão”323.
Heller (1983) demonstra que a decisão não pode surgir sem a deliberação.
Mas como atuamos também sem deliberação, menor é a relação com os impulsos.
Coloca que, segundo Aristóteles, nem todas as deliberações desembocam numa
decisão: “[...] há deliberações que não tem por consequência, uma decisão, tão
pouco se transformam em ato”324.
A valoração boa ou má não se constitui necessariamente uma deliberação
moral, mas sim, daquilo que contribui para a valoração da essência humana. A
desvalorização de um desses componentes é por si mesma um mal: “[...] o ponto de
partida de todo o processo é a vontade”325.
A visão de humano e de mundo interfere significativamente na moralidade
diante de uma ação. Segundo Heller (1983), foi Aristóteles quem descobriu que a
ação nociva e a boa ação, em igual medida, são objetos da moral. Desse modo, o
ser social é tão responsável como também artífice de seu próprio destino, seja ele
direcionado ao bem quanto ao mal, porém, não se pode negar as determinações e
circunstâncias enquanto causalidade e fatalidade, os interesses e necessidades.
Heller (1983) aponta que Aristóteles apenas se ocupou do bem. Sua ética
visava às virtudes, portanto, o mal não se apresentou enquanto objeto, mas sim,
como objetivo, estava determinado a certos interesses contrários às virtudes. A
virtude moral é uma virtude ética adquirida pelo hábito bom.
Nesse caminhar, a ética é sempre concebida em sua forma positiva (ação
para o bem – para a felicidade), porém, do ponto de vista valorativo, pode também
apresentar componentes de desvaloração da essência humana, havendo, assim,
uma afirmação do mal: “[...] não é só a eleição dos meios que exigem reflexões e
decisões, mas sim, também eleições mesma de objetivos, não só os meios e os
métodos de realização pertencem à esfera do particular, mas sim também o fim”326.
Nesse sentido, a vontade só pode ser verdadeiramente autônoma se se tem
consciência
dela.
Vontade
e
opiniões
são
fatores
que
se
influenciam
reciprocamente. Pode-se desejar coisas distintas e ter diferentes impulsos, porém,
serão sempre individuais. Tudo o que se faz contra a vontade é feito sob coação.
323
HELLER, 1983, p. 299.
HELLER, 1983, p. 299-300.
325
HELLER, 1983, p. 300.
326
HELLER, 1983, p. 301.
324
222
Estamos convencidos que a vontade, a opinião e o ato, não só dependem do
sujeito,
mas
também
das
possibilidades,
necessidades
e
circunstâncias.
Determinações externas à vontade dos indivíduos podem determinar fins
inicialmente não projetados ou esperados.
Aqueles/as que estão necessariamente presos/as às circunstâncias e/ou
determinações, estão, por sua vez, coagidos à não-liberdade:
[...] Sartre tinha razão quando chamava a concepção marxista da história a
história consciente da Humanidade. Quanto em maior medida seja capaz
um pensador de apreender dialeticamente a totalidade e a heterogeneidade,
analisando a complexidade e as diferenças específicas da ontologia social,
tanto mais clara expressão dessa consciência será sua obra (HELLER,
1983, p. 374).
No atual estágio da Humanidade, ou reavivamos a expressão da
individualidade enquanto emancipação dos sujeitos rumo ao afloramento de sua
singularidade-particularidade revolucionária, individual ou coletiva e (re)organizamos
o sujeito histórico revolucionário coletivo para uma nova sociabilidade, ou nos
entregamos ao “reino da barbárie”: é preciso lutar por consciência e liberdade antes
que seja tarde demais.
4.2. Emancipar-se para emancipar: a genericidade em questão
Marx, ao se posicionar radicalmente contra Bruno Bauer em A questão
judaica, escrita em 1843 e publicada em 1844, expõe a emancipação de forma clara,
dizendo que a emancipação política é o primeiro passo para a emancipação
humana. No texto em questão, Marx defende que a luta pela emancipação não deve
se restringir simplesmente ao seu caráter civil e político, nem mesmo objetivar uma
emancipação individual e singular, mas sim em sua forma ampla, focada na luta pela
libertação da humanidade (MARX, 2010).
Apesar de Marx tratar de uma questão particular sobre a religiosidade, fica
claro que esse conceito se amplia numa perspectiva mais genérica. A emancipação
se inicia com a própria emancipação do indivíduo (ou consciência de-si-mesmo), de
modo a emancipar-se para-si-mesmo.
Contudo, não há como emancipar um segmento, ou a formação do sujeito
coletivo revolucionário, sem que os próprios indivíduos estejam ainda “prisioneiros”
de alguma coisa (dogmas, ultrageneralizações, juízos provisórios, normas e regras
223
etc.). A emancipação de um segmento não deve acarretar apenas sua diferença, ma
sim o reconhecimento de sua igualdade enquanto genericamente humana (ou
genericidade).
As lutas pela emancipação - individual e coletiva – tem-se sido direcionadas
para a discussão das diferenças e da diversidade. A liberdade de um segmento ou
de particularidades não implica necessariamente a luta por liberdade, mas sim da
própria emancipação enquanto humano-genérico.
No momento atual, as lutas éticas e políticas visam à liberdade de etnia,
gênero, sexualidade, condição social ou econômica, enfim, as lutas particulares e de
interesses singulares e particulares e não de sua genericidade.
É evidente que estas lutas ainda são necessárias. É preciso primeiramente
que
os indivíduos
estejam identificados
e
sejam reconhecidos
enquanto
individualidades. Ainda, infelizmente, é preciso que os segmentos historicamente
inferiorizados e descriminados assumam suas bandeiras, sua identidade e se
coloquem enquanto tais.
Entendemos que fazem parte desses grupos as mulheres, as etnias, os/as
homossexuais, índios, as pessoas com deficiência, enfim, os segmentos que social e
historicamente foram perseguidos, discriminados, excluídos, até mesmo mortos por
serem desconsiderados enquanto gênero humano.
A consciência da individualidade é, sem sombra de dúvida, o primeiro passo
para a própria libertação. Mas a liberdade enquanto categoria ontológico-social de
forma a objetivar sua própria libertação genérica, implica num movimento.
[...] A Humanidade será livre quando todo homem particular puder participar
conscientemente na realização da essência do gênero humano e realizar os
valores genéricos em sua própria vida, em todos os aspectos desta
(HELLER, 1977, p. 217).
Deste modo, quando um segmento minoritário luta pela sua emancipação,
está lutando, também, pela sua própria identidade e libertação (na direção de sua
autoafirmação, autorrealização e autolibertação). Libertação essa que o desvincula
dos grilhões que o oprimem, perante as imposições de conceitos e valores que
castram a própria essência enquanto indivíduo.
Observa-se que, no decorrer histórico das conquistas civis, políticas e sociais,
engendradas por lutas constantes e por sujeitos revolucionários individuais e
224
coletivos, propiciou uma evolução social capaz de reconhecer homens e mulheres
enquanto agentes e detentores de direito. Mesmo com algumas conquistas
universais, como por exemplo, o sufrágio universal, e conquistas particulares e
pontais, muito ainda está para ser feito e realizado.
Em nossa opinião, a segregação leva sempre ao não cumprimento dos
direitos universais dos homens e das mulheres. A luta pela emancipação não é uma
luta unilateral que se restrinja à conquista de direitos de apenas um segmento
minoritário, mas, ao contrário, a emancipação tem seu valor agregado justamente
pela atitude emancipativa do ser humano-genérico.
Heller (1977), ao se referir a Marx e seus apontamentos sobre a Liberdade,
coloca:
[...] a Humanidade será livre quando todo homem particular puder participar
conscientemente na relação da essência do humano-genérico e realizar os
valores genéricos em sua própria vida e em todos os aspectos (HELLER,
1977, p. 217).
A segregação impede a participação na vida política, na vida em comunidade,
ao passo que a democracia traz para o palco a liberdade de participação, abrindo as
portas para o diálogo plural e igualitário: “[...] onde não há democracia formal, os
movimentos que expressam carecimentos radicais não tem sequer a possibilidade
de se constituírem”327.
A questão da democracia ou das formas democráticas328 tem valoração
importante no desenvolvimento do pensamento helleriano e está intrínseca e
diretamente relacionada aos acontecimentos mais significativos de sua vida. As
formas democráticas de participação resultam da consciência de liberdade e,
portanto, representam um caminho para a emancipação.
Para Marx (2010, p. 54), “[...] toda emancipação é redução do mundo humano
e suas relações ao próprio homem”. Para Heller, (1977, p. 217), a liberdade em sua
individualidade-particularidade, é a liberdade que possibilita plasmar o próprio
destino, a própria integração, a que liberta a personalidade moral da construção
externa, pode atuar na base da sua própria responsabilidade e deve assumir a
327
HELLER, 1982, p. 137.
Sobre esta questão ver - HELLER, A. Democracia formal e democracia socialista. Encontros
com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1980, p. 171-187 (HELLER,
1980a).
328
225
responsabilidade das suas ações. É, portanto, o justo reconhecimento das
alternativas e das possibilidades de realização orgânica de sua autonomia:
[...] todas estas são liberdades autênticas, que não perderam sua validez
nem se quer no futuro, e que todo homem poderá levar a pratica só depois
da superação da alienação. E vice-versa: todas estas liberdades, que o
homem tem desenvolvido no curso de sua pré-história são partes
integrantes e necessárias do desenvolvimento genérico mais possível para
a superação da alienação. A concepção da superação da alienação, da
liberdade humana, não “sintetiza” todas as liberdades; portanto, o conceito
de liberdade proporcionado por Marx não substitui os seus precedentes,
nem estes podem estar subordinados. O conceito marxiano de liberdade
possui um caráter histórico-filosófico, expressa a perspectiva histórica em
que as liberdades heterogêneas das esferas heterogêneas alcançam sua
própria realização (HELLER, 1977, p. 217-218)329.
A sociedade contemporânea apenas demonstra a necessidade de afirmar os
direitos individuais egoisticamente, de forma a prevalecerem os interesses privados
e particulares, restringindo o ser genérico à preservação de um individualismo
egoístico.
Defendemos que a liberdade pressupõe a total eliminação de qualquer
entrave que possibilite a justiça, o respeito e a defesa dos direitos humanos, as
formas democráticas, a equidade, a eliminação de qualquer forma de preconceito e
discriminação, a socialização da riqueza, a eliminação da propriedade privada,
enfim, o anseio de uma sociedade verdadeiramente socialista.
Tal dizer parece ecoar de forma utópica de visualizar a sociedade, porém, a
História tem demonstrado que, através das lutas e conquistas constantes, dos
movimentos sociais, dos sujeitos individuais e coletivos revolucionários, é possível
viver numa sociedade mais justa, democrática, igualitária e, por conseguinte, mais
humanista.
Ousamos dizer que a sociedade idealizada por Marx nunca existiu, mas seus
ideais ecoam, cada vez mais, de modo a impulsionar para as transformações
necessárias. Logicamente, tais ideais ainda estão longe de tornarem-se realidades,
mas, a cada dia, observamos sua materialização através dos direitos conquistados,
vitórias civis, políticas e sociais, mesmo que particulares e judiciais, enfim, a
consolidação daquilo que parecia ser utópico.
Vivemos numa sociedade em que velhos clichês preconceituosos, moralistas
e machistas ainda fazem parte do cotidiano de uma vida em comunidade. As lutas,
329
Grifos da autora.
226
de certa forma, ainda visam emancipar apenas grupos minoritários em suas próprias
diferenças e grupos segregados.
Parafraseando Marx (2010, p. 54), pensar apenas na emancipação política,
civil e social, é reduzir homens e mulheres a indivíduos egoístas independentes,
cidadão/ãs, pessoas morais, membros de uma sociedade eminentemente burguesa.
Acreditamos que o primeiro passo se encontra na emancipação civil e política,
porém, as lutas não podem parar aí, devem ter como meta a emancipação humana.
A contribuição de Heller está em demonstrar a individualidade enquanto tomada de
consciência ética e política do movimento que humaniza individual e coletivamente,
além disse, também apresenta fundamentos para uma atitude crítica e revolucionária
e da vivência de uma vida não alienada.
A autoemancipação leva à emancipação civil, política e social e, num contexto
mais amplo, rumo à emancipação humana. Deste modo, seguindo Bonetti (et. al.,
2006) cabe aliar a vontade individual, iluminada por uma consciência ética e política
como intencionalidade coletiva e de compromissos sociais, conjuntamente a um
saber teórico-prático crítico e, ainda, às necessidades e possibilidades, de modo a
buscar materializar o produto de uma ação consciente e que espelhe o conteúdo e
os princípios de um conjunto de valores fundamentais, os quais apontam para
motivações e exigências ético-políticas na perspectiva da revolução da vida
cotidiana.
4.3. A liberdade como conceito
Os conceitos que entrelaçam a liberdade e a igualdade dificultam o
estabelecimento de um sistema coerente entre ambos, talvez por isso muitos
teóricos concebam por liberdades, e não como um conceito fechado em si mesmo.
Falar em liberdade pressupõe analisar os vários momentos em que este
conceito se estabeleceu. Não cabe nesta dissertação fazer esta análise, muito
menos fazer um tratado sobre a liberdade, mas sim ponderar os principais
apontamentos hellerianos e suas concepções.
Nesse sentido, Heller aponta que:
[...] a liberdade é sempre liberdade para algo, e não apenas liberdade de
algo. Se interpretarmos a liberdade apenas como o fato de sermos livres de
alguma coisa, encontramo-nos no estado de arbítrio, definimo-nos de modo
227
negativo. A liberdade é uma relação e, como tal, deve ser continuamente
ampliada. O próprio conceito de liberdade contém o conceito de dever, o
conceito de regra, de reconhecimento, de intervenção recíproca. Com efeito,
ninguém pode ser livre se, em volta dele, há outros que não o são
(HELLER, 1982, p. 155).
Para Heller (1977, p. 218), quanto mais particulares são os interesse e as
esferas determinadas, maior e mais próximo estaremos da cotidianidade, ao passo
que quanto mais se tem em conta os valores genéricos, tanto mais nos
aproximamos de um conceito filosófico de liberdade.
A consciência particular (ou cotidiana) entende a liberdade em seu sentido
mais reduzido, ou seja, a liberdade enquanto esfera da moral (da possibilidade de
eleger entre o bem e o mal).
Para Heller (1977, p. 219), há uma hierarquia evidente na concepção de
liberdade. A possibilidade ou a realização das ações destinadas a levar a cabo os
valores genéricos elegidos conscientemente, deve ocupar o primeiro lugar nessa
hierarquia. Isso não quer dizer eliminar as outras concepções de liberdade.
A liberdade se insere no cotidiano da vida em sociedade. A sociedade livre é
aquela em que homens e mulheres não precisam impor suas necessidades. O
membro dessa sociedade é aquilo que é em sua singularidade-particularidade.
Expressa seu próprio modo de ser, sem entraves ou atavismos.
Heller (2004) coloca que homens e mulheres na vida cotidiana,
[...] jamais escolhem valores, assim como jamais escolhem o bem ou a
felicidade. Escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas,
alternativas concretas. Seus atos concretos de escolha estão naturalmente
relacionados com sua atitude valorativa geral, assim como seus juízos estão
ligados à sua imagem do mundo. E reciprocamente: sua atitude valorativa
se fortalece no decorrer dos concretos atos de escolha. A heterogeneidade
da realidade pode dificultar extraordinariamente, em alguns casos, a
decisão acerca de qual é a escolha que, entre as alternativas dadas, dispõe
de maior conteúdo valioso; e essa decisão – na medida em que é
necessária – nem sempre se pode tomar independentemente da concreta
pessoa que a pratica (HELLER, 2002, p. 14).
Neste caso, a essência ficaria encoberta até que novos ideais se
consolidassem. A liberdade da vida cotidiana colide com o gênero humano quando
algo que se quer representa a liberdade de sua particularidade. Quando o interesse
se individualiza e particulariza, tende-se a pisotear nos demais para se conseguir
aquilo que se quer.
228
O ser social não nasce pronto, mas num ambiente pré-estabelecido. A partir
do momento em que toma consciência de si, passa a produzir e reproduzir seu
próprio ambiente e sua própria personalidade. Ao questionar, interrogar e
autoanalisar, passa a buscar um novo conhecimento.
Para que este novo conhecimento se estabelece, primeiramente, torna-se
necessário eliminar todas as formas de juízos provisórios, ultrageneralizações e
sistemas consuetudinários baseados em crenças e desprovidos de fundamentação e
sentido, ou seja, de uma opinião aceita, devido à tradição do grupo na qual se insere
sem, contudo, questionar a hierarquia dos seus valores.
Os indivíduos não são, tão somente, um ser que traz em si uma consciência
de-si, nem tampouco uma consciência de-nós, ao contrário, configuram sua própria
“consciência do Eu”, ou sua própria identidade, através das relações sociais que
estabelece ao longo de sua vida e das determinações (HELLER, 2004).
Para Heller (2004, p. 22), “[...] o indivíduo é um ser singular que se encontra
em relação com a sua própria individualidade particular e com sua própria
genericidade humana”.
É em sua singularidade que o ser social busca sua própria liberdade e
autonomia. Em outras palavras, “[...] o desenvolvimento do indivíduo é antes de
qualquer coisa – mas de nenhum modo exclusivamente – função de sua liberdade
fática ou de suas possibilidades de liberdade”330.
Quando esta “unidade do indivíduo” se alia à sua própria particularidade e
genericidade, cria em-si-mesmo, um movimento de construção, desconstrução e
reconstrução singular e constante. Essa relação é, na maioria das vezes,
contraditória e conflituosa.
A
exteriorização
dessa
individualidade
consciente
e
dos
valores
essencialmente humanos, perante situações particulares, como por exemplo, a vida
cotidiana alienada e alienante, acaba entrando em choque com os padrões préestabelecidos ou sistemas consuetudinários. Fato este que faz com que homens e
mulheres não tenham uma liberdade plena, mas sim uma “liberdade relativa”
(HELLER, 2004, p. 23).
Ao se projetar no mundo, o indivíduo não só produz e reproduz as condições
ou padrões pré-estabelecidos, mas também cria alternativas de escolhas, de
mediações e de possibilidades, porém, é dotado de paixões, sentimentos,
330
HELLER, 2004, p. 22.
229
interesses, necessidades, motivações e desejos particulares e singulares que devem
ser considerados em qualquer análise ou intervenção particular ou profissional.
A tomada de consciência possibilita, em grande medida, lutar para modificar a
realidade pré-estabelecida ou imposta, muitas vezes, alienada e alienante
(VERONEZE, 2007).
Deste modo, para que haja a construção de uma sociedade menos
individualista e cada vez mais coletiva, na direção da emancipação civil, política e
social, torna-se imprescindível a emancipação do ser social por uma vontade
coletiva.
Segundo Barroco (2005, p. 16), é no “[...] campo de possibilidades onde são
feitas as escolhas, onde valores são afirmados e negados, onde nascem e se
desenvolvem determinados modos de ser que facilitam ou não a adesão a projetos
coletivos [...]”, que se identificam as configurações e fundamentos para uma
determinada ética e para uma determinada vontade e ação política.
Para se construir uma consciência ética e política coletiva deve-se levar em
conta que os sujeitos sociais não estão isolados do conjunto da sociedade, nem tão
pouco desvinculados dos interesses unilaterais da vida cotidiana, são indivíduos
que, em si, apresentam necessidades, objetivos e interesses particulares, singulares
e, muitas vezes, coletivos.
A vivência de determinados princípios ético e políticos na vida cotidiana rumo
a uma ação coletiva revolucionária, exige um comprometimento próprio dos sujeitos
sociais revolucionários. Implica na consubstancialização de valores para uma
tomada consciência e de atitude, ou seja, para uma mudança radical do modo de
ser, pensar, viver e agir.
Por conseguinte, implica numa consciência ética e política daquilo que se
pensa e se defende, um ethos, um determinado modo de ser singular, particular e
genericamente humano.
É importante salientar que a práxis, ou a motivação da práxis revolucionária,
não deve estar desvinculada de sistemas de valores e circunstâncias cotidianas que,
muitas vezes, impedem a elevação da subjetividade, a suspensão da imediaticidade
e da cotidianidade, para a objetivação dos valores éticos e políticos universais.
A consciência ética e política depende, além das reflexões teórico-filosóficas,
a necessidade de alterar o “reino das necessidades”. Pressupõe uma atitude radical
em não aceitar a realidade dada e aparente, mas ir em busca da essência e dos
230
valores em que se baseia e, nessa busca, ter como objetivo alterar as situações
alienadas e alienantes (submissão, exploração, violência, juízos provisórios, arbítrios
etc.).
Quando o indivíduo toma consciência de si e busca outros indivíduos que
pensam ou agem da mesma forma e que comungam das mesmas necessidades e
interesses, cria-se um elo mais resistência que possibilita realizar alterações
pertinentes e duradouras do grupo em que se insere (consciência para-nós).
Essa tomada de decisão rumo a uma determinada ação coletiva, promove a
formação de grupos sociais que buscam sua autonomia em relação à realidade
apresentada. Estes, por sua vez, lutam não só pela garantia de seus direitos
enquanto cidadãos/ãs como também devem expressar a luta em favor dos
componentes essencialmente humanos e genéricos.
Tendo em vista os padrões e conceitos historicamente estabelecidos, os
juízos
provisórios,
os
preconceitos,
os
sistemas
consuetudinários,
as
ultrageneralizações e a discriminação definem e rotulam pessoas, grupos ou
situações, por aquilo que aparentam ser – a aparência esconde a essência. Deste
modo, se faz uma analogia a um determinado comportamento ou ação de uma
pessoa, grupo ou situação e se ultrageneraliza.
[...] Se fui roubado por um menino de rua, vou achar que todos os meninos
de rua são ladrões. É uma justificativa baseada numa experiência própria,
cujo conceito se generaliza para uma categoria, envolve também o
sentimento de confiança, pois nunca mais terei confiança nos meninos de
rua (GUIMARÃES, 2002, p. 18).
Ao assumir estes “juízos provisórios” de modo a tomar conta do pensamento
cotidiano, geram-se os preconceitos: “[...] o juízo provisório de analogia pode
cristalizar em preconceitos”331. Esta cristalização gera, por sua vez, os estereótipos,
discriminações e violências.
Para Heller (2004, p. 34),
[...] Não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismos, economicismo,
332
andologia , precedentes, juízos provisórios, ultrageneralizações, mimese e
entonação. Mas as formas necessárias da estrutura e do pensamento da vida
331
HELLER, 2004, p. 35.
Estudo da medicina do homem ou da sexualidade humana (aparentemente – não sendo
encontrada uma definição especifica desse termo).
332
231
cotidiana não devem se cristalizar em absolutos, mas têm de deixar ao
indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação.333
Os sistemas cristalizados provocam a alienação da realidade e da vida
cotidiana. Verdades fechadas e acabadas, como dogmas, que teimam em se impor,
não fazem parte do conhecimento empírico e científico, mas sim do moralismo. Em
outras palavras, essa cristalização de concepções aparentemente verdadeiras são
em conformidade com as concepções dos interesses particulares de determinada
pessoa, grupo ou comunidade.
É na vida cotidiana que homens e mulheres estabelecem as definições e os
juízos de valores pelos quais suas vidas serão estabelecidas. Porém, em alguns
casos, o fazem de maneira negativa, o que significa conceber pré-julgamentos ou
juízos provisórios ultrageneralizados (VERONEZE, 2007).
Para Heller (2004, p. 43),
[...] o preconceito é a categoria do pensamento e do comportamento da vida
cotidiana. [...] São traços típicos da vida cotidiana: o caráter momentâneo dos
efeitos, a natureza efêmera das motivações e, a fixação repetitiva do ritmo, a
rigidez do modo de vida. De forma análoga, é o pensamento cotidiano, um
pensamento fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo,
ultrageneralizador.
Os juízos provisórios e os preconceitos são gerados pelo pensamento e pelo
comportamento cotidiano e estes acabam por gerar normas de conduta regidas pela
moral, e não pela consciência ética. A reprodução dessas normas depende da
espontaneidade e da repetição por meio das quais elas se tornem hábitos e se
transformam em costumes, de modo a responder as necessidades de integração
social.
Ao se afirmar como norma de conduta, a moral define as regras para se
manter o status quo das coisas ou situação, uma determinada ordem social. Porém,
quando a moral é concebida por princípios dogmáticos e dominantes, esta se
apresenta de modo alienada e passa a estabelecer uma função punitiva: o
moralismo.
O moralismo e o preconceito andam juntos. O preconceito impede a
concepção de ideias ou atitudes diversas daquelas já estabelecidas, e o moralismo,
as pune. É, portanto, uma relação de amor e ódio e de fé e confiança. Diante do
333
Grifos da autora.
232
diferente, do diverso e do estranho, a atitude moralista, preconceituosa e
discriminatória pune através das diferentes formas de violência.
Para Heller, “[...] o preconceito pode ser individual ou social. O homem pode
estar tão cheio de preconceitos com relação a uma pessoa ou instituição concreta
que não lhe faz absolutamente falta à fonte social do conteúdo do preconceito” 334.
Implica dizer que, em grande medida, o nível de alienação é tão grande que não se
percebe ou não se busca a origem ou os fatos que geraram aquele determinado
preconceito: “[...] os preconceitos servem para consolidar e manter a estabilidade e a
coesão da integração dada”335.
Ao se transformar em moralismo, como forma de alienação da moral, o
preconceito moral nega a própria moral “como forma de objetivação da consciência
crítica, das escolhas livres, de construção da particularidade” (BARROCO, 2005, p.
48), por conseguinte, instaura-se a intolerância, o arbítrio, o autoritarismo, enfim,
situações que negam a substancia da liberdade e da democracia.
Heller pontua que toda a forma de preconceito traz, em si, aspectos
negativos, portanto, moralistas, deste modo, impedem “[...] a autonomia do homem,
ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e,
consequentemente, estreitar a margem real de alternativas do indivíduo”336.
Portanto, quando uma pessoa ou segmento, um grupo ou comunidade luta
pela sua “des-fossilização”, ou seja, pela des-cristalização de ideias, conceitos e
juízos pré-estabelecidos, luta, também, pelo próprio andamento da história, pela
própria dialética das relações sociais. Luta, ainda, pelo seu reconhecimento como
sujeito civil, político e social, luta-se pela emancipação em todos os graus e pela
dissolução de concepções antigas, luta por liberdade.
[...] Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o
homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se
tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida
empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando
o homem tiver reconhecido e organizado suas “forças propres” [forças
próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si
mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).
Heller (1977) pontua que o,
334
HELLER, 2004, p. 49.
HELLER, 2004, p. 53.
336
HELLER, 2004, p. 59. Grifos da autora.
335
233
[...] desenvolvimento da liberdade genérica não constitui um processo
homogêneo isento de contradições. Determinadas tendências de
desenvolvimento, determinados procedimentos etc., podem favorecer num
certo sentido a liberdade genérica e em outro empurra-la ao distanciamento
ou inclusive bloquear (HELLER, 1977, p. 222).
Concluímos esta parte com uma colocação de Lukács quando diz que:
[...] a liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza,
não é um dom do ‘alto’ e nem sequer uma parte integrante - de origem
misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que
decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se
propusera, mas que nas suas consequências dilata – objetivamente e de modo
contínuo – o espaço no qual a liberdade se torna possível; e tal dilatação
ocorre, precisamente, de modo direto, no processo de desenvolvimento
econômico, no qual, por um lado, acresce-se o número, o alcance etc., das
decisões humanas entre alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a
capacidade dos homens, na medida em que se elevam as tarefas a eles
colocadas por sua própria atividade. Tudo isso, naturalmente, permanece ainda
no “reino da necessidade”. (LUKÁCS, 1978, p. 15).
Heller entende o “agente revolucionário” como o sujeito consciente ética e
politicamente, porém, não podemos perder de vista o cotidiano, as relações sociais,
a complexidade do ser social, as subjetividades, a diversidade, os preconceitos, os
papéis sociais, os juízos ultrageneralizados, as diferenças, os limites, enfim,
situações comuns no emaranhado campo das relações sociais cotidianas, micro e
macro estruturais.
Para Heller (1983) a riqueza do gênero humano, “[...] significa o
desenvolvimento de todas as faculdades materiais, psíquicas e espirituais
adequadas ao gênero humano”337. Nessa reflexão, Heller aponta que Marx é o “[...]
mestre filosófico do radicalismo de esquerda”338, contudo, “[...] como todo filósofo,
pode ser compreendido de diferentes maneiras”339.
Aqui faremos uma pequena e rápida referência ao Projeto Ético-políticoprofissional do Serviço Social no intuito de compreender o entrelaçamento do
referencial helleriano e, consequentemente, marxista, para uma proposta consciente
e de coletividade enquanto sujeitos revolucionários e educadores sociais.
337
HELLER, 1983, p. 174. Grifos da autora.
HELLER, 1983, p. 142.
339
HELLER, 1983, p. 143.
338
234
4.4. O/a assistente social frente ao Projeto Ético-político-profissional
Com base nos princípios de emancipação elencados no item anterior
estudaremos a construção de um projeto ético-político do Serviço Social, que tem
como centro o reconhecimento da liberdade como valor ético-político primordial para
a vida humana e profissional.
É resultante da renovação dos parâmetros que definiam a identidade e
atuação dos/as assistentes sociais na sociedade brasileira diante do modelo
conservador. Dentro de um processo histórico e coletivo, redefiniu-se as bases
teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas do Serviço Social,
assumindo um posicionamento crítico frente às mudanças da sociedade brasileira
contemporânea, compreendendo, desse modo, a dimensão e as novas expressão
da questão social no Brasil, a redemocratização do Estado e as consolidação dos
direitos civis, políticos e sociais.
O Código de Ética do Serviço Social de 1993 marca fundamentalmente a
segunda renovação ética da profissão, historicamente conquistada em prol da
afirmação de valores emancipatórios na contemporaneidade do Serviço Social
brasileiro, parte constitutiva do processo de construção do projeto ético-político
profissional
como
pensamento
crítico
em
oposição
ao
conservadorismo.
(BARROCO, 2004, p. 28).
A democratização da vida política, das lutas dos/as trabalhadores/as e dos
movimentos
populares,
representados
pelos
diversos
partidos,
sindicatos,
associações, instituições de todo jaez, são fatores que produziram a renovação das
bases teóricas e metodológicas do Serviço Social contemporâneo no Brasil.
Incorpora-se ao debate uma nova proposta para a atuação do/a assistente social:
um projeto ético-político que se expressa em si a organização política da categoria e
seu acúmulo teórico, especialmente no campo da tradição marxista.
Portanto, este projeto coletivo envolve “sujeitos individuais e coletivos em
torno de uma determinada valorização ética que está intimamente vinculada a
determinados projetos societários presentes na sociedade de forma a se relacionar
com os diversos projetos coletivos (profissionais ou não) em disputa na mesma
sociedade” (REIS, 2005, p. 415).
235
[...] Os projetos coletivos se relacionam com as diversas particularidades que
envolvem os vários interesses sociais presentes numa determinada sociedade.
Remetem-se ao gênero humano uma vez que, como projeções sócio-históricas
particulares, vinculam-se aos interesses universais presentes no movimento da
sociedade. Em outras palavras, os interesses particulares de determinados
grupos sociais, como o dos assistentes sociais, não existem
independentemente dos interesses mais gerais que movem a sociedade.
(REIS, 2005, p. 415).
Desta forma, o Serviço Social, embasado numa proposta ideo-política, visou
atuar numa perspectiva de totalidade. A intervenção profissional “[...] está
historicamente vinculada às sequelas da ‘questão social’, fruto do “esgarçamento”
dos vínculos sociais, do desrespeito ao ser humano, da violência e da perda de
direitos, das questões políticas neoliberais etc.” (BARROCO, 2004, p. 39).
As questões singulares remetem a questões universais. Desta forma, esta
proposta está vinculada a um projeto de transformação social. Portanto, o assistente
social, engajado nesta proposta, não age de forma unilateral, mecanicista,
fragmentada, assistencialista, vinculado a políticas distributivas, mas procura
transformar a sociedade através de uma intervenção política e de ações dirigidas em
que sejam favorecidos os interesses sociais distintos e contraditórios (REIS, p. 415416).
Segundo Netto (1999), o projeto ético-político do Serviço Social,
[...] tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor ético central
– a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher entre
alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a emancipação
e a plena expansão dos indivíduos sociais (NETTO, 1999, p. 104-105).
Assim, o projeto ético-político do Serviço Social constitui a autoimagem da
profissão, os valores que a legitimam sua função social e seus objetivos, bem como,
seus conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, enfim, seu
modo de ser teórico-metodológico, ético-político e ideo-político, bem como a sua
dimensão
técnica-operativa.
Esta
proposta
ideo-ético-política
constitui
a
materialização deste projeto nas próprias ações profissionais do cotidiano do/a
assistente social.
A materialização deste projeto possui três dimensões articuladas entre si:
a) a dimensão da produção de conhecimentos no interior do Serviço Social: a
capacidade que a profissão tem de analisar a sociedade e concretizar tais
236
observações em produções dissertativas e analíticas (histórico-crítica) da sociedade,
produzindo, assim um saber próprio da profissão e não somente um saber técnico;
b) a dimensão político-organizativa da categoria: o Serviço Social está
organizado numa categoria técnico-operativa que tem em si o papel político de
propor uma renovação da sociedade, histórica e dialeticamente constituída, numa
visão de totalidade, embasado pela teoria marxista e fundamentada dentro de
princípios éticos pré-estabelecidos em seu Código de Ética;
c) a dimensão jurídico-política da profissão: é legalmente constituída. Tem
suas leis próprias, de forma a propor instrumentos viabilizadores de direitos através
das políticas sociais. (REIS, 2005, p. 418-419).
O projeto ético-político está comprometido com a construção coletiva que,
como tal, tem uma determinada direção social que envolve valores, compromissos
sociais e princípios participantes que são do movimento vivo e contraditório das
classes sociais. (idem, p. 419).
Portanto, em sintonia com os princípios ético-políticos, o Serviço Social
agrega-se a lutas, reivindicações de variados segmentos que trazem em suas
trajetórias coletivas a defesa política pela garantia de direitos.
Deste modo, a ética no Serviço Social é entendida como “uma capacidade
humana posta pela atividade vital do ser social”, capacidade essa de “agir
conscientemente com base em escolhas de valor, projetar finalidade de valor e
objetivá-las concretamente na vida social, isto é, ser livre” (BARROCO, 2005, p. 19).
O indivíduo livre é aquele que encontra no outro uma relação de semelhança.
Desta forma, é necessário compreender a necessidade que as pessoas têm de se
soltar das rédeas da moral e da tradição conservadora que as oprimem
consideravelmente.
Nessa direção, a defesa dos direitos humanos coloca-se como questão
prioritária ao projeto profissional de forma a objetivar duas dimensões: a ética e a
política. Ética porque supõe escolhas de valor dirigidas à liberdade; política porque
busca criar condições objetivas para a vida em sociedade (BARROCO, 2004, p. 4041).
Para Barroco (2004, p.40), os direitos humanos não estão somente colocados
“pela realidade atual como tema emergente, mas também são postas pela categoria
de acordo com a sua capacidade de responder às demandas de forma crítica e
madura”.
237
Portanto, nos dizeres de Barroco,
[...] a luta pelos direitos humanos é recolocada para/pela categoria
profissional como tema de debate, a partir desse acúmulo, apontando seus
limites/objetivos no contexto da propriedade privada e do discurso
ideológico burguês, mas também assinalando sua atualidade como
instrumento de crítica social e de defesa de conquistas históricas de
classe, grupos e indivíduos em suas lutas por direitos (idem, ibidem).
Este processo de construção do significado e da identidade profissional do
Serviço Social contemporâneo é fruto da inter-relação entre os sujeitos sociais
revolucionários que historicamente se constituíram enquanto categoria profissional
na luta contra o conservadorismo no âmbito da profissão.
Enquanto ethos profissional, a atuação do/da assistente social deve ser
norteada por ações sócio-educativas junto à população usuária dos serviços sociais,
contra a naturalização do ordenamento capitalista e das desigualdades sociais a
eles inerentes, tidas como inevitáveis, evitando o retrocesso e o desmonte das
conquistas sociais acumuladas pela classe trabalhadora ao longo da história
(IAMAMOTO, 2008a, p. 163).
Deste modo, segundo Iamamoto (2008a), os/as assistente sociais, por meio
da prestação de serviço sócio-assistenciais nas diversas organizações públicas e
privadas, “interferem nas relações sociais cotidianas, no atendimento às mais
variadas expressões da ‘questão social’ vividas pelos indivíduos sociais no trabalho,
na família, na luta pela moradia e pela terra, na saúde, na assistência social pública
etc.” (idem, p. 177).
A construção de identidades, lideranças e a organização coletiva rumo a
autorrealização, autolibertação e o autodesenvolvimento dos indivíduos só se dá
através de ações coletivas revolucionárias e que alterem significativamente a vida
cotidiana.
A segregação leva sempre ao não cumprimento dos direitos universais dos
sujeitos sociais. A luta pela emancipação não é uma luta unilateral que se restrinja à
conquista de direitos de apenas um segmento minoritário, mas, ao contrário, a
emancipação tem seu valor agregado justamente pela atitude emancipatória do
humano-genérico.
A segregação impede a participação na vida política e da vida em
comunidade, ao passo que a inserção civil, política e social e a democracia traz para
238
o palco da vida a liberdade, a participação, o diálogo, a pluralidade, a igualdade,
enfim, formas e modos coletivos de ser.
O direito em seu sentido lato implica o direito à liberdade – a liberdade de
consciência, de expressão, de formação, de cultura etc. Porém, a sociedade
contemporânea apenas demonstra a necessidade de afirmar os direitos individuais e
egoístas, de modo a prevalecer os interesses privados e particulares, restringindo os
indivíduos à preservação do individualismo egoístico. O Serviço Social defende a
liberdade enquanto valor emancipatório, pressupondo a total eliminação de qualquer
entrave que possibilite a efetivação dos princípios éticos-políticos estabelecidos no
Código de Ética Profissional de 1993 e no seu projeto ético-político profissional.
Para Iamamoto (2008a, p. 183),
[...] não há uma identidade imediata entre a intencionalidade do projeto
profissional e resultados derivados de sua efetivação. Para decifrar esse
processo é necessário entender as mediações sociais que atravessam o
campo de trabalho do assistente social.
A proposta para a tomada de consciência já esta dada, dentro dos novos
parâmetros para a atuação dos/das assistentes sociais, porém, estes parâmetros
não podem ser levados de fora para o interior da profissão, mas sim efetivar-se num
dever-ser que se desenvolve no interior do movimento de construção da identidade
profissional, do qual fazem parte os diversos atores sociais da profissão.
Para Kosik (2010, p. 227),
[...] o homem não é apenas uma parte da totalidade do mundo: sem o
homem como parte da realidade e sem o seu conhecimento como parte da
realidade, a realidade e o seu conhecimento não passam de mero
fragmento.
Quando consideramos o indivíduo que vive em sociedade, inserido numa
determinada organização social, que comporta regras, limites, normas para a
organização e vivência em sociedade, observa-se que a liberdade do indivíduo é
tolhida.
Portanto, para a efetivação deste projeto, torna-se necessária entender o ser
social em sua totalidade, enquanto integrante e natural do mundo, inserido num
determinado contexto social, agente e detentor de direitos e deveres, que devem ser
defendidos e legislados pelo Estado.
239
4.5. Para uma ética marxista: consciência ética e política
No âmbito do Serviço Social brasileiro, temos como referência os estudos e
propostas de Maria Lúcia Silva Barroco (2008; 2005), bem como outras publicações,
ensaios e artigos, da mesma autora e outros/as que se embrenharam pelo campo da
ética e dos Direitos Humanos.
As mudanças da sociedade capitalista, ocorridas de maneira brusca e
desordenada, tem gerado a inversão dos valores que envolvem o campo da Ética e
dos Direitos Humanos, principalmente, no que diz respeito às consequências do
avanço da industrialização, da tecnologia, da ciência e da globalização e que
contribuíram, substancialmente, para gerar o assolamento dos princípios morais,
éticos e essencialmente humanos.
Problemas, como por exemplo, a corrupção, a má distribuição dos bens e da
riqueza socialmente produzidos, a exploração, a fome, a miséria, a violência,
contribuem para criar uma mentalidade egocêntrica e individualista que fortalece a
concepção da “lei do mais forte”, num pragmatismo selvagem que tem como base as
relações econômicas e sociais hegemônicas, fundamentadas numa “moral de
resultados” e de lucro, acima de qualquer coisa.
Essa mentalidade acaba por se instaurar em todas as esferas das relações
humanas e sociais - no Estado, nas empresas, nos grupos sociais, nos meios de
comunicação, nas religiões, enfim, em todos os lugares - um espectro voraz que
influencia negativamente para a falência dos valores humanos e universais.
A tomada de consciência dos valores e da orientação ética que implica na
criação de uma nova realidade deve ser pautada por um dever-ser e pela ação
revolucionária: “[...] não podemos transformar o mundo se, ao mesmo tempo, não
nos transformarmos a nós mesmos” 340.
Vive-se uma realidade míope, ou seja, engessa-se a reflexão sobre as razões
que impedem, inibem ou dificultam a observação da realidade. Somente quando se
tem conhecimento claro acerca da realidade vivida é que se dá conta da sua
importância. O contrário, é viver numa situação inebriante que mascara aquilo que
não se quer ver.
340
HELLER, 2004, p. 117.
240
O indivíduo, em grande medida, se apresenta dividido entre prazer e
realidade, ambição e ética, ganhar ou perder, contradições próprias de uma
sociedade aparentemente perdida e desorientada.
A busca desenfreada pela riqueza e pelo poder, mesmo que sem limites,
sublinham cada vez mais os “valores éticos” pela produção, pela competitividade,
pela mercantilização da vida social e, até mesmo, da vida espiritual. Torna-se um
homo necessitudinis, um ser de necessidades. Necessidades estas que, muitas
vezes, não se explicam. Vive-se pelo ter e não pelo ser. Este é o alimento da
sociedade de consumo.
Deste modo, é importante levantar um questionamento: até que ponto será
possível encontrar um limite entre o lícito e o ilícito do ponto de vista ético-moral e
político?
É nesse mote que nos aproximamos do projeto inacabado de Lukács de
construir uma Ética Marxista (TERTULIAM, 1999). Heller e os demais membros da
“Escola de Budapeste”, conforme vimos no decurso dessa pesquisa, buscaram
colaborar com Lukács nesse propósito.
Heller destacou-se como membro desse grupo no intuito de construir um
corpus teórico que desse conta dos fundamentos para a consciência ética e política
do ser social, não só como um perspectiva teórico-filosófica, mas sim, como uma
filosofia de vida ou uma Lebensphilosophie, com base nas premissas da Teoria
Social de Marx e na proposta de uma ética marxista revolucionária da vida cotidiana.
No terreno da ética, Heller traz importantes contribuições nessa direção. Não
apenas buscou interpretar o seu mundo, mas viveu o seu postulado: “[...] todo
filósofo deve viver seus pensamento; as ideias que não forem vividas não são
efetivamente filosóficas”341.
Numa tentativa de sublinhar a proposta de uma ética marxista, Heller (2004;
1989) aponta a compreensão marxiana de não só interpretar o mundo, mas trazer
algo que possa alterar a situação dada:
[...] a questão do saber se cabe ao pensar o humano uma verdade objetiva
não é uma questão de teoria, mas sim uma questão prática. É na práxis que
o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o
caráter terreno de seu pensar [...].
341
HELLER, 2004, p. 121. Grifos da autora.
241
[...] A coincidência do ato de mudar as circunstâncias com a atividade
humana ou autotransformação pode ser compreendida e entendida de
maneira racional apenas na condição de práxis revolucionária (revolutionäre
Praxis).
[...] Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que
levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis
humana e no ato de compreender essa práxis.
[...] Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, importa é
342
transformá-lo (MARX; ENGELS, 2007, p. 27-29) .
Nessas referências marxianos às teses de Feuerbach, percebe-se claramente
a concepção prática de Marx e Engels com relação aos fundamentos para uma
práxis social revolucionária. Para Heller, essa práxis tem que contemplar ações
conscientes, pessoas ou grupos que tem o desejo ou a vontade de produzir
determinada mudança social, numa determinada direção.
[...] Quem quer que se esforce por mudar o mundo na direção de um fim
desejado ou pretendido assume a responsabilidade do fim e das ações
empreendidas, pelo menos implicitamente (HELLER, 1989, p. 103).
O que Heller coloca deve ser entendido no sentido de não apenas
individualizar e responsabilizar o sujeito social, mas sim, de assumir consciência
daquilo que se quer e se faz, levando-se em consideração que nenhuma ação ou
decisão é iminentemente individual. No mundo real, a figura do “super herói” é
apenas uma figura de linguagem.
O herói (ou heroína) referido/a significa aquele/a que assume a defesa de
uma causa, torna-se responsável por ela e que essa causa, é representada por
valores humanos e sociais que o próprio herói não pode realizar nas condições
dadas e que, no entanto, são valores inseridos na perspectiva do desenvolvimento
efetivo da Humanidade (HELLER, 2004, p. 119).
No âmbito do Serviço Social brasileiro, a tomada de consciência e de posição,
expressa um ethos perante a realidade alienada e alienante, de modo tal que
responde às demandas éticas e políticas como o produto concreto de uma práxis
respaldada em bases teóricas e filosóficas revolucionárias e de uma moralidade
profissional fundamentada na construção de uma nova sociabilidade.
342
Grifos do autor.
242
O indivíduo sozinho não consegue provocar a mudança. Para que haja
mudança ou revolução é necessário que o sujeito, grupo ou comunidade estejam
afinados num mesmo diapasão.
Fatores internos e externos, determinações, causalidades, fatalidades,
necessidades, enfim, situações das mais diversas, podem desviar os fins
inicialmente projetados ou resultar em situações não planejadas inicialmente,
conforme já apontamos anteriormente.
Como exemplo desses apontamentos, imaginemos uma partida de tênis onde
dois oponentes buscam o mesmo objetivo – a vitória -, observamos que por
milésimos de segundos a partida pode ser definida a favor de um e contra o outro
oponente: se a bola cair do lado esquerdo da rede, a vitória será daquele que estiver
à esquerda da rede; se cair a direita, a vitória será daquele que estiver à direita da
rede.
Isso não quer dizer que as coisas ou as pessoas estão regidas pelo acaso,
pelo determinismo, pelo relativismo ou pela sorte. Fatores internos e externos, a
favor e contra a vontade dos oponentes, define o vitorioso (condições físicas,
preparo psicológico, força, ação do tempo, fatores climáticos, treinamento,
motivação, desejo, cansaço, tática etc.), além de outros fatores que antecederam a
partida.
A vida cotidiana exige de nós, sem exceção e a todo o momento, decisões,
decisões e posicionamentos. O simples fato de que devemos fazer ou escolher entre
duas alternativas (sim ou não), segundo Heller (1989), já significa certo limite de
liberdade. Deste modo, a vida cotidiana é regida por certa moralidade. Somos
obrigados, muitas vezes, a seguir sistemas pré-estabelecidos, normas e regras,
prescrições, determinações, sistemas de valores, enfim, modos maniqueístas de
pensar e agir que impulsionam os indivíduos particulares numa determinada maneira
convencional de ser.
A moralidade, expressada numa escala de valoração daquilo que é bom em
detrimento daquilo que é mal, está relacionada aos princípios arcaicos, históricos e
socialmente construídos e constituídos, que ainda persistem enquanto código moral
coletivo: “[...] Hamlet dizia: no mundo não existem nem bem nem o mal; só o
pensamento é que os cria”343.
343
HELLER, 2004, 163.
243
[...] Para Marx, a moral é a relação existente entre o indivíduo, sua
circunstância e suas possibilidades concretas. [...] Marx considerava
desprovida de sentido a crença na onipotência da “educação moral”. [...] a
moral se manifesta pela escolha ou pela rejeição do desenvolvimento da
essência humana (HELLER, 2004, p. 119).
Do ponto de vista de uma ética marxista que tem como base o referencial
teórico-filosófico marxiano e, portanto, traz certa visão de humano e de mundo, a
moralidade não deve ser regida por nenhum bem ou nem mal, mas sim, pela
valoração da riqueza humana e aquilo que ela exprime para o desenvolvimento
desse objeto e ainda, considera um desvalor tudo aquilo que é estranho à essência
humana.
[...] a moral indica a relação objetiva do indivíduo com a sua espécie, a sua
pertinência ao gênero humano (relação dos valores), o nível em que
expressa essa relação (em que medida o indivíduo tem consciência de sua
pertinência ao gênero, em que medida sua personalidade particular se
combina com essa pertinência e em que medida a universalidade do gênero
chega a constituir a fundamentação ética das suas ações). É no plano da
moral que se manifesta igualmente a sabedoria da vida no indivíduo: em
que medida é capaz de avaliar e escolher diante das circunstâncias,
“ampliando” seus princípios sem se submeter passivamente à situação. E é
no plano moral, por fim, que se manifesta a força, a resistência e a solidez
do caráter (idem, p. 119-120).
Como se vê, implica num determinado sistema de princípios e valores que
contribua para o enriquecimento da essência humana, ou seja, o humano deve ser
visto como finalidade e não como meio para a obtenção de algo ou alguma coisa.
Nesse ponto, a liberdade tem destaque principal: “[...] a liberdade está além do
dever, além de toda coação, além de um “propósito estranho”, seja qual for” 344.
No decurso da história, a liberdade foi vista e entendida de diferentes
maneiras. Heller (1989) concebe a liberdade como o “[...] desenvolvimento dos
indivíduos, não coagidos por condições externas”, desta maneira, é pleno de
desenvolvimento de todas as suas capacidades/potencialidades: “[...] a pessoa livre
é o indivíduo rico de necessidades, capacidades, gozos e forças produtivas” 345.
[...] Quando o indivíduo se coloca a pergunta referente ao conteúdo moral e
aos possíveis abertos à sua ação, a ética pode proporcionar uma resposta a
essa pergunta, mas nunca lhe oferecerá conselhos concretos (HELLER,
2004, p. 112).
344
345
HELLER, 1989, p. 106.
HELLER, 1989, p. 108.
244
Primeiramente, a ética, sob essa perspectiva, não facilita ou contribui para
determinadas escolhas e ações. Promove, sobretudo, a valoração dos componentes
da riqueza humana e, por conseguinte, chama a atenção para a consciência das
coisas, situações, escolhas e ações.
Historicamente, conforme já apontamos, a ética estava direcionada para a
“vida feliz” (ou para busca da felicidade); o que a perspectiva marxista se apresenta
enquanto consciência de liberdade, ou seja, na imanência da história, do
alargamento das alternativas/possibilidades e da ampliação do campo das
mediações com responsabilidade e autonomia.
A felicidade, enquanto valor ético, pressupõe a valoração da virtude, da
bondade, da fraternidade, da ajuda, do amor ao próximo, da benemerência e
benevolência, da caridade, da humildade, do voluntariado, enfim, princípios de
afirmação platônico-socráticos e judaico-cristão, humanistas e individualizados.
Na perspectiva da liberdade, valora-se o direito, o trabalho, a justiça, a
sociabilidade, a comunidade, a coletividade, a autonomia, a alteridade, enfim,
valores próprios da riqueza humana. Deste modo, o conceito de humanismo passa a
agregar o conceito de humanidade e hominização: “[...] nada do que é humano me é
estranho”346.
Heller, em seus textos O lugar da Ética no Marxismo (HELLER, 2004) e A
herança da ética marxiana (HELLER, 1989), busca demonstrar os valores
humanistas para uma ética marxista, assim como, busca demonstrar a sua
necessidade e os equívocos cometidos por uma visão classista da ética. Também,
traça a necessidade e o compromisso/responsabilidade da consciência dos
indivíduos sociais na formação dos sujeitos individuais e coletivos revolucionários
em suas decisões e ações pautadas em escolhas em prol de uma única causa: a
valoração de essência humana.
Neste caso, implica, em longo prazo, na transformação da sociedade “por
inteiro”, em curto prazo, na tomada de consciência ética e política, perdida ou
atrofiada diante dos apelos contínuos da lógica do capital, no intuito de neutralizar
ou, até mesmo, eliminar a prevalência dos valores tradicionais, conservadores,
reacionários, alienado/alienantes e estranhos à genericidade humana.
Numa outra concepção, Heller também busca pontuar os erros do comunismo
e da ética classista de seu tempo, ou seja, num panorama onde o autoritarismo nazi346
HELLER, 1989, p. 110.
245
fascista dos regimes despóticos compunha a sua realidade, como também, visa
apontar para o fato de que o desenvolvimento do capitalismo não levou à sua
superação e nem os sistemas de bem-estar social europeu e norte-americano
possibilitaram a consciência do direito a uma vida verdadeiramente humana; apenas
promoveram a satisfação das necessidades mais primárias ou dos bens materiais,
como também das “revoluções da fome”.
Heller (2004), ao se referir as teses marcuseanas, demonstra que conquistar
o poder, fazer desaparecer a miséria e a opressão e reorganizar a economia,
estavam na ordem do dia enquanto exigências necessárias a reorganização da
sociedade, porém, não passaram de “revolução da fome”, em outras palavras, de
revoluções que visavam sanar apenas as necessidade básicas.
[...] A situação atual é completamente diversa. Em primeiro lugar, as
tragédias e os horrores do passado mostraram o que pode acontecer
quando a moral, a escala dos valores morais, desaparece da esfera da
política e é separada do esforço de humanização, o que pode acontecer
quando a iniciativa individual desaparece em todos os níveis e a
responsabilidade individual deixa de existir. [...] Já não se trata de criar as
condições elementares para a vida humana e depois chegar a uma vida
verdadeiramente humana: o nosso objetivo imediato é, desde logo, chegar
efetivamente a esta última. A consciência do direito a uma vida
verdadeiramente humana está presente nos homens, potencialmente, da
mesma maneira como a consciência do direito à satisfação das
necessidades mais primárias se acha presente nos homens na época das
“revoluções da fome” (HELLER, 2004, 116-117).
Desse modo, as escolhas, interesses e alternativas de juízo, atos e ações,
deveriam ser pautados por um determinado conteúdo axiológico objetivo, porém, “os
homens jamais escolhem valores, assim como jamais escolhem o bem ou a
felicidade. Escolhem sempre ideias concretas, finalidade concretas, alternativas
concretas”347.
É necessário, ainda, levar em conta que o dinamismo da vida individual e
social da contemporaneidade e que as referências teórico-filosóficas tem que buscar
uma práxis revolucionária consciente.
[...] A ética marxista é uma práxis, não pode existir sem uma realização
prática sem se realizar na prática de algum modo. [...] Uma ética que se
limita a contrapor-se passivamente ao atual mundo manipulado não passará
de uma nova expressão, contemporânea da “consciência infeliz”. A ética
marxista só pode ser a tomada de consciência do movimento que se
humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade. Por isso, a ética marxista
347
HELLER, 2004, p. 14. Grifos da autora.
246
não depende só da compreensão e da aplicação correta dos textos de
Marx: ela depende muito mais do desenvolvimento do movimento que a
adote como moral (HELLER, 2004, 121).
A partir do momento em que os indivíduos conscientes produzirem
possibilidades e se elevarem acima do reino animal e da alienação da vida cotidiana
e da lógica capitalista, abre-se as portas para o processo de humanização dos
sujeitos sociais: “[...] a consciência da nova exigência, significa ao mesmo tempo a
consciência dos valores e da orientação ética em que se há de basear a criação da
nova realidade”348.
Este é o mandamento para uma ética marxista na vertente helleriana. A
tomada de consciência do ser social enquanto sujeito social (ou indivíduo social),
consciência do seu valor e da coletividade, de sua pequenez e insustentável
grandeza e leveza de ser, de uma visão de humano e de mundo que permita aflorar
e valorar o sujeito revolucionário individual e coletivo: “[...] não podemos transformar
o mundo se, ao mesmo tempo, não transformamos nós mesmos” 349.
Para tanto, o despertar dessa consciência e da individualidade dos sujeitos
sociais, torna-se a “causa” do sujeito revolucionário (do/a educador/a social, do/a
agente social, do/a assistente social, do/a cientista social etc.) que ara o terreno fértil
do campo das possibilidades, das mediações, da liberdade.
348
349
HELLER, 2004, p. 117.
HELLER, 2004, p. 117.
247
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Um lutador político deve ser capaz de se colocar
acima das coisas com urgência ainda maior, ou
afundar-se-á até as orelhas nas trivialidades da
vida de todos os dias”
.
Rosa de Luxemburgo apud Agnes Heller
Todo o percurso realizado em torno da tematização helleriana acerca do
complexo mundo de sua antropologia-ontológica do ser social, nos permite afirmar
que a postura por ela assumida e defendida em seu córpus teórico impulsiona na
direção da tomada de consciência ética e política na e para a vida social.
Herdeira crítica de um vasto cabedal cultural e intelectual, bebeu nas fontes
teórico-filosóficas de Aristóteles, Kant, Hegel e Marx para compreender a dinâmica
da vida cotidiana e a complexa ontologia do ser social marxiana trazida a lúmen por
Georgy Lukács, propiciando o debate com seus contemporâneos e com o grupo de
amigos que se firmaram em torno de Lukács e denominado por “Escola de
Budapeste”.
A vida de Heller, assim como a de qualquer pessoa, não estava livre das
implicações e determinações cotidianas. Não podemos esquecer que em cada
momento e contextos sociais há particularidades próprias de cada época, cada
estrutura, cada estratificação, cada sistema político-econômico-cultural, enfim,
realidades sociais que se apresentam em determinadas formas, contextos,
tessituras, como também, cada pessoa reage de uma maneira particular-singular a
essas determinações.
Desta maneira, Heller trata o ser social como particular que carrega em si sua
condição de singularidade e de genericidade, capaz de assumir uma atitude
consciente na e para a vida social. É inegável que a particularidade do ser social
seja diferente de uma para outras pessoas, e que as respostas objetivas e subjetivas
sejam também distintas, há de se observar os momentos, as condições e as
necessidades de cada particularidade-singularidade.
Porém, partimos do pressuposto de que os sujeitos sociais, em sua
genericidade, fazem a sua própria história, porém, o fazem em condições
previamente dadas. Ao nascermos, desenvolvemos capacidades de comportamento
simbólicas e de reação, ou seja, a linguagem, o pensamento racional, a orientação
248
segundo os valores, nosso a priori se assim o quiser. Somente a posteriori podemos
manifestar nossa total extensão (HELLER, 1982, p. 142).
O ser social não é somente guiado pelos instintos, mas também por
interesses, motivações, estímulos, necessidades entre outras esferas, mas, mesmo
assim, produz teleologicamente mediações e objetivações na e para a vida social:
“[...] são estas objetivações sociais que devemo-nos apropriar se queremos viver, as
que ocupam o lugar de guia atribuído aos instintos. O que há em nós de estritamente
biológico é nossa fronteira. A fronteira absoluta é a moralidade” (HELLER, 1982, p.
142-143).
O indivíduo social não é somente biológico, mas sim, ser de relações sociais,
construtor e artífice de sua própria história: “[...] toda a história humana é,
naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos” e, desse modo, “[...] toda a
historiografia tem de começar a partir desses fundamentos naturais e de sua
modificação através da ação dos homens no decorrer da história”. (MARX; ENGELS,
2007, p. 41-42).
Porém, os indivíduos não são inseridos na vida cotidiana como uma “folha de
papel em branco”, mas sim, num contexto prévio e historicamente determinado por
outros sujeitos sociais. Para Heller, homens e mulheres, nascem e são inseridos
numa dada cotidianidade e o seu amadurecimento, em qualquer esfera e em
qualquer sociedade, se dá em sua fase adulta: “[...] é adulto quem é capaz de viver
por si mesmo a sua cotidianidade” (HELLER, 2004, p. 18).
Só o humano tem a capacidade de modificar as circunstâncias inicialmente
dadas. A Teoria Social de Marx constata categoricamente esta afirmação. Através
de esforços e aspirações o ser social tem a capacidade de criar alternativas
possíveis de serem objetivadas na vida cotidiana e escolher dentre elas a que mais
lhe aprouver, as que atendam as suas necessidades, projeções mentais, interesses,
gostos, pendores etc., tal é este o fundamento da liberdade e, por conseguinte, da
vida ética e política.
Como filósofa, Heller buscou para si mesma uma causa e, ao mesmo tempo,
explicação para sua causa, pretendendo levar a cabo a fecunda inflexão do
pensamento marxiano e marxista na construção de referências que dessem
consistência ao seu viver, assim como à Humanidade. É precisamente no âmbito
dessa interrogação essencialmente ontológico-social do ser social que Heller irá
questionar a vida, o mundo, o humano e as suas intrincáveis e múltiplas relações.
249
Ao tomarmos contato com a obra, a vida, o contexto histórico e social e as
experiências vividos por Agnes Heller, percebemos que muito mais do que fazer
essas interpretações e dar respostas conscientes às perguntas que lhe eram
apresentadas, Heller se apresentou como uma individualidade, consciente e
responsável pelas suas ações, num cotidiano diverso, plural e contraditório em sua
totalidade.
Diante daquilo que apuramos ao longo dos livros e textos de Agnes Heller, da
proposta didático-pedagógica e, ao mesmo tempo, ético-político-pedagógica em sala
de aula que desenvolvemos enquanto docente e por meio das pesquisas que
realizamos ao longo de nossas experiências acadêmicas, percebemos que
pesquisador e objeto se identificavam mutuamente.
Além disso, percebemos que um estudo específico sobre Heller se justificava
por si só, ainda mais quando chegamos à conclusão de que trabalhar com este
referencial propiciava uma maior facilidade para o despertar da consciência ética e
política do profissional em formação, bem como em prol da materialização do Projeto
Ético-Político Profissional do Serviço Social num contexto tão adverso com a
“sociedade da barbárie”.
Num momento em que muitos dos que são denominados e considerados pósmodernos buscam formular teorias mirabolantes para interpretar ou mesmo dar
respostas ao “caos” em que se encontra a atual sociedade, onde a vida humana
apresenta-se banalizada e a violência, o individualismo e a barbárie teimam em se
afirmar, Heller nos apresenta uma proposta coesa, precisa e real enquanto práxis
teórico-filosófica.
A liberdade, a comunidade, a individualidade, particularidade, genericidade, a
consciência e a democracia constituem os alicerces centrais na determinação de
uma antropologia-ontológica do ser social e de uma sociologia histórico-filosófica, na
proposta teórico-filosófica de uma filosofia da práxis ou de uma Lebensphilosophie,
que se apresenta radicalmente contrária às desumanizações do mundo atual em
torno do problema da alienação da vida cotidiana e das objetivações do ser social.
Num mundo onde o imediatismo, o consumismo, a alienação, a reificação,
enfim, a barbárie tende a imperar e se afirmar, a vida está sendo vivida de modo
quantitativo. Na dinâmica moderna e contemporânea o tempo de esvai rapidamente,
não há momento para a escuta, para a reflexão de si, dos acontecimentos e do
250
mundo, muito menos para momentos de abstração intelectiva ou suspensão da
cotidianidade (o não-cotidiano).
Com a vida e o ser social banalizados, as relações e inter-relações sociais
são objetuais e coisais. Neste “caos”, no que chamaríamos de “reino da barbárie” é
que a arte - essa forma sublime de suspensão da cotidianidade, segundo os
apontamentos hellerianos - registra as formas desconexas, as tessituras mais
diversas, os espaços vazios e ao mesmo tempo repletos de cores, sons e formas.
Enfim, nessa “babel do salve-se quem puder” falar de consciência ética e política é,
ao mesmo tempo, uma necessidade e uma questão antiquada e “fora de moda”.
A arte contemporânea espelha o sentimento caótico ou o pensamento raro.
Os big brothers viram “super heróis” por tão pouco e por interesses puramente
econômicos e comerciais. Poderíamos até mesmo nos arriscar a dizer que o mundo
está perdendo a sua poesia. A indiferença toma conta dos recantos mais variados e
reflete um total distanciamento ante a banalização do mal.
Em sua caminhada, a maior contribuição de Heller ao marxismo foi colocar,
no centro da reflexão e do debate, o indivíduo social – o sujeito consciente e
responsável pelos seus atos – não descartando, é obvio, que isso não se trata de
responsabilizar o individuo pela situação de penúria ou vulnerabilidade que, muitas
vezes, está vinculado/a.
A consciência e responsabilidade dos atos, diz respeito a sua colocação no
mundo, suas respostas em conformidade às situações “bárbaras” que muitas vezes
se apresentam na sua frente; ao ficarmos calados e indiferentes diante das
desumanidades, banalizamos o mal. A afirmação do indivíduo enquanto sujeito de
sua própria história constitui a consciência e responsabilidade do indivíduo social.
Além disse, Heller demonstra a estrutura da vida cotidiana, num esforço
hercúleo de humanizá-la e hominizá-lo continuamente. Ao demonstrar o cotidiano e
não-cotidiano, Heller aponta para condições de vida não alienadas.
Neste esforço helleriano, a categoria individualidade aparece como a partícula
chave na substância antropológica e ontológica do ser social, condição esta que
permite ao ser social singular, particular e genericamente humano, tomar
consciência de sua condição enquanto gênero e de sua importância central na e
para a vida cotidiana.
Parafraseando as palavras de Adornado (apud HELLER, 1982, p. 157), o
atual período histórico, impõe-nos a necessidade – a urgência - de discutirmos o
251
indivíduo, como uma temática que deve ser enfrentada de modo novo, sob pena da
decadência de nossas funções hegemônicas. Acrescentamos ainda que a discussão
da formação do sujeito revolucionário, individual e coletivo, é nitidamente importante
e necessária.
Temos que, de certo modo, acertar as contas com o individualismo,
funcionalismo e utilitarismo burguês e com o avanço desenfreado do sistema e das
relações sob a lógica do capital, assim como o conceito de pessoa que exprime uma
relação coisal e objetual com o que é essencialmente humano.
O indivíduo valorado e consciente tem maiores condições de identidade, de
substância, de objetivos e propósitos definidos, de segurança, de sentimentos, de
vontade, de personalidade, de expressão, enfim, abre o campo das mediações
conscientes para se colocar no mundo, diante de suas necessidades e de suas
capacidades/potencialidades.
Particularidade e individualidade são conceitos chaves no pensamento
helleriano, categorias que são substanciais e absolutas para entender a ontologia do
ser social, mas também relativas, porque se desenvolvem no curso da relação
sujeito e objeto. Contudo, na relação singular-particular e genericamente humano, há
infinitas mediações.
Nesse sentido é interessante tratar, ainda que rapidamente, da perspectiva
crítica que seu pensamento num determinado momento histórico, inscrita num
determinado contexto social e num determinado espaço-temporal de sua vida.
Os períodos que aqui apresentamos: sua permanência na Hungria, na
Austrália e nos Estados Unidos, refletem momentos distintos de sua teoria, situações
distintas e perspectivas distintas. Não observar estes períodos poderia trazer sérias
complicações para o entendimento de seu pensamento ou até mesmo juízos
ultrageneralizadores.
Sem a demarcação das fontes teórico-filosóficas, dos principais teóricos e
assuntos com que Heller abre o debate, ainda, sem a demarcação espaço-temporal
e os momentos distintos da vida de Heller, ficaria impossível demonstrar sua
coerência, linearidade, diferentes realidades e que não escondem o sentido prático
(ou de práxis) de sua teoria.
Tais convergências e divergências não significam inconsistência e incoerência
no seu pensamento. Suas proposições no seu conjunto obrigaram-nos a analisar
todos os seus aspectos em separado, não perdendo a noção de totalidade, deixando
252
claro que nossa intenção não foi fazer um exame crítico e comparativo da obra
helleriana dos períodos de 1956 a 1978, ou seja, quando de sua permanência na
Hungria ou, se quisermos, em sua fase marxista, mas apenas utilizamos do método
histórico-crítico, portanto, de criticidade, e dos elementos da teoria crítica para
nossas análises.
Procedendo desse modo, buscamos concomitantemente, um esclarecimento
do corpus teórico helleriano e uma contribuição para o debate da ética no Serviço
Social e nas demais áreas do saber.
Nesse mundo tão multi e polifacetado, questionamos: seria possível uma
saída? Seria possível uma teoria baseada numa práxis revolucionária? Seria
possível uma teoria capaz de levar o ser social a uma determinada consciência
revolucionária? Seria possível traçar subsídios teórico-práticos e práxis-teóricos para
retirar o ser social do estado de alienado/alienante? Seria possível uma teoria que
despertasse a consciência ética e política no ser social?
Respondemos a estes questionamentos positivamente, não com base em
suposições, mas pautados em experiências profissionais enquanto docente do curso
de Serviço Social, enquanto estudioso dos assuntos relacionados à ontologia do ser
social e enquanto estudioso do pensamento helleriano.
A teoria helleriana, na fase em questão, abre as portas para as possibilidades,
para as mediações e para uma “teoria da práxis”, consequentemente, para uma ética
marxista e para a compreensão dos fundamentos de uma consciência ética e política
do ser social.
Não estamos afirmando que é a única ou a “grande teoria”, mas tende para
uma possibilidade emancipatória dos sujeitos sociais, tende para propósitos
emancipatórios, revolucionários e propositivos, por estar sobre alicerces sólidos da
Teoria Social de Marx.
Para Marx e Engels (2007, p. 48-49),
[...] os homens são os produtores de suas representações, ideias e assim
por diante, mas apenas os homens reais e ativos, conforme são
condicionados através de um desenvolvimento determinado de suas forças
de produção e pela circulação correspondente às mesmas, até chegar a
suas formulações mais distantes. A consciência (Bewusstsein) não pode ser
jamais algo diferente do que o ser consciente (bewusstes Sein), e o ser dos
homens é o seu processo de vida real. [...] Os homens que desenvolvem
sua produção material e sua circulação material trocam também, ao trocar
essa realidade, seu pensamento e os produtos de seu pensamento. Não é a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.
253
No decurso dessa pesquisa, vimos o indivíduo social como um ente real,
concreto, histórico e dialético que vive e se objetiva na vida cotidiana. Porém, na
sociedade capitalista, esta objetivação está condicionada à divisão e relação de
classe, às relações sociais cada vez mais capitalistas e de exploração, intrínseca e
extrinsecamente, ao fetiche da mercadoria e das necessidades, a uma vida alienada
e alienante, ao estranhamento de si mesmo e da coletividade, numa verdadeira
simbiose à lógica do capital.
Ao sermos um complexo de complexos (LUKÁCS, 1978), nos apresentamos
na vida cotidiana indivíduo particular-singular e genericamente humano, herdeiro e
possuidor do humano-genérico, único e capaz de projetar finalidades e construir
mediações passíveis às nossas ações através do trabalho.
É na condição de individualidade que o ser social se reconhece enquanto tal,
em outras palavras, é nessa condição que toma ou não consciência de si mesmo e,
portanto, pode, ou não, se manifestar conscientemente na vida social. Pode, ou não,
assumir um ethos perante si e para a comunidade e, concomitantemente, para a
vida, enquanto zoon politikon. Para isso, é inegável a sua conscientização.
É essa condição que constitui a essência do “sujeito revolucionário”, opção
onde o “[...] desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada – mas de nenhum
modo exclusivamente – função de sua liberdade ou de suas possibilidades de
liberdade”350.
Lembrando o pensamento paulofreiriano (FREIRE, 2001) somente teremos
uma sociedade livre quando os oprimidos ou as minorias se libertarem de seus
opressores, libertando-se a si mesmo. Somente a aparição do “homem novo” e da
“mulher nova”, que não sejam nem opressor/a, nem oprimido/a, mas sim humanos
que carregam em-si-mesmo e para-si-mesmo uma práxis libertadora e que esta
libertação se configure em realidade, de modo que não haja entraves, proselitismo,
preconceitos, discriminações, atavismos, moralismo, ou seja, onde haja a
humanização de todos/as.
A
libertação
é
uma
libertação
de
humanos,
não
de
coisas.
Consequentemente, os indivíduos não se libertam apenas pelos seus esforços
pessoais e esta não pode ser se não a libertação de todos/as. De igual maneira, não
pode ser realizada por “semi-humanos” desumanizados. Se a desumanização já
350
HELLER, 2004, p. 22.
254
está estabelecida, os métodos de libertação tende a ser desumanos (FREIRE,
2001).
Enquanto este estado de consciência não se estabelece, os indivíduos sociais
agem assumindo “papéis sociais”, representações carregadas de preconceitos e
ultrageneralizações e vivendo sob as rédeas dos sistemas consuetudinários. As
ações, mesmo as mais elementares, da vida cotidiana, passam a ser mecanizadas,
estereotipadas, copiadas e representadas no imediato, numa motivação permanente
muda.
Nessa ótica, a inserção no meio social consiste em consignar e absorver
padrões pré-determinados, constituídos anteriormente ao seu nascimento e a
reproduzir sistemas de valor moral e éticos maniqueístas e moralizadores. Porém,
isso não implica dizer que estes padrões estão hermeticamente fechados,
fossilizados
e
cristalizados
em
monolíticos
pétreos,
negando,
assim,
as
possibilidades de repensá-los e revogá-los, num verdadeiro trabalho emancipatório e
de liberdade.
Não é do interesse do conservadorismo adotar uma metamorfose nos
padrões, clichês e valores pré-estabelecidos, tampouco alterar o transcurso da
realidade social, capaz de alcançar o “reino da liberdade” e, consequentemente,
eliminar a propriedade privada, os valores individualistas e privados, o sistema
capitalista, enfim, construir novos valores, novas formas de vida, uma nova
sociabilidade.
A história tem demonstrado que as utopias de uma vida melhor, em um
mundo melhor, aquelas contidas em várias obras como a República de Platão, A
Utopia de Thomas More, a Cidade do Sol de Campanela ou a Nova Atlântida de
Francis Bacon, por exemplo - que espelham uma crítica e preconizam a necessidade
de revolução. Na história das teorias sociais, somam-se exemplos de um utopismo
romântico.
Estamos de acordo com Szacki (1972) quando este aponta que a
possibilidade da utopia caminha junto com a necessidade de escolha. Escolher entre
algo que já está determinado e uma nova possibilidade, um ideal a ser projetado:
“[...] mais próximo do pensamento utópico é sem dúvida o revolucionário que luta
para destruir as relações dominantes e construir novas no lugar” (SZACKI, 1972, p.
15).
255
Heller, muitas vezes, e em suas entrelinhas, traz a esperança de um mundo e
de uma vida livre dos entraves de desumanidade. Com frequência, seus
apontamentos caminham para uma expressão messiânica e humanista, mas é
inegável a praticidade e as possibilidades de uma tomada de consciência na e para
a vida.
Logicamente para que o ser particular possa ter condições objetivas para-simesmo, ou seja, para fazer sua história, ele(ela) tem que ser possuidor de condições
objetivas ou possibilidades para criar tais condições, isto é, satisfazer suas
necessidades mais primárias. Não se pode, por exemplo, aprender a tocar piano
sem pelo menos ter as condições elementares mais básicas (conhecimento, o
instrumento, o processo de aprendizagem, condições técnicas e motoras básicas
etc.).
Não se aprende quando as necessidades mais prementes ainda não foram
satisfeitas. Assim como Maslow351, Heller também traça uma hierarquia de
necessidades. Para a consciência ética e política, sobretudo, na tomada de
consciência para um agir, ou seja, na consolidação do sujeito revolucionário,
individual ou coletivo, torna-se necessário que a hierarquia das necessidades esteja
satisfeitas, ou pelo menos, que encontre condições para este fim. No mais, as
revoluções tenderiam ao seu sentido classista ou de “revoluções da fome”, conforme
os apontamentos helleriano.
Nas “revoluções da fome” as motivações revolucionárias compreendem, em
grande medida, revoltas motivadas pelas necessidades e não pela liberdade ou pela
emancipação humana. Pensar a emancipação humana conforme apontada por
Marx, requer uma postura crítica, propositiva e pró-ativa rumo a uma nova
sociabilidade. Exige ainda uma subjetividade (individualidade) consciente de seu
papel social enquanto sujeito revolucionário individual e coletivo.
Acreditamos
que
a
revogação
dos
sistemas
consuetudinários,
das
ultrageneralizações, dos juízos provisórios, dos preconceitos e das discriminações
só podem ser pela via dos movimentos sociais e da emergência de uma nova
sensibilidade mais humanizada nas relações sociais e com a natureza.
As manifestações coletivas de enfrentamento as contradições sociais, devem
estar atentas para ações que atinjam cada vez mais os componentes da riqueza
humana (ou da essência humana), em forma de necessidades coletivas e universais,
351
Referência a Pirâmide de Maslow.
256
regadas por valores, princípios ético-políticos conscientes, deixando de lado o
individualismo para lutar por uma vida verdadeiramente humana.
Ao lutar pela sobrevivência ou pelas necessidades mais prementes para que
os sujeitos sociais possam fazer a sua história é a luta pelos direitos sociais, pelo
trabalho, pela remuneração, pela alimentação, pela saúde, pela moradia, pela
educação, pela habitação, pela identidade, enfim, condições básicas para a vida em
sociedade. Mas a luta pela valoração da riqueza humana implica em proposições e
ações onde a ética, a ação política e os direitos humanos se sobressaiam.
A existência de lutas e movimentos sociais fragmentados, isolados,
descontextualizados e desconectados com as necessidades radicais, demonstra a
prevalência dos interesses escusos e particulares daqueles/as que detêm a
hegemonia conservadora, utilitarista e liberal.
Para que o ser social se objetive particular e singularmente na vida social em
sua genericidade, ele necessita primeiramente de condições mínimas para a sua
existência e, por conseguinte, para sua sobrevivência, portanto, precisa comer,
beber, morar, vestir entre outras necessidades.
Historicamente, as lutas e os diversos movimentos sociais foram concebidos
como rebeliões contra a ordem estabelecida, porém, estas lutas representam o que
há de mais necessário à vida humana e que socialmente não estavam ou estão
sendo respeitados.
Ao tecer finalidades para suas ações (projeções teleológicas), o ser pode se
deparar com circunstâncias inesperadas e por mais que aspire se posicionar perante
elas, as contradições da vida social podem fazer com que produza e/ou reproduza
algo ou resultados que inicialmente não foram projetados ou que sejam estranhos à
sua natureza.
Para Heller (2004, p. 18),
[...] o homem nasce já inserido em sua cotidianidade352. O amadurecimento
do homem significa, em qualquer sociedade, que o individuo adquire todas
as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada
social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua
353
cotidianidade .
352
353
Ou seja, num universo de determinações pré-concebidas anteriormente ao seu nascimento.
Grifos da autora.
257
Não é possível viver inteiramente fora da cotidianidade nem mesmo em total
estado de suspensão (não-cotidianidade). Portanto, a vida cotidiana se constitui em
torno da organização do trabalho e da estrutura social. Mas, a luta de classes, o
processo de estratificação social, e a lógica capitalista, podem ou não nos levar à
condição de alienados e alienantes.
Heller traz importantes contribuições e novos elementos para repensar a
própria cotidianidade, permitindo ir além das formas consuetudinárias, dos pré-juízos
e das ultrageneralizações. Podemos ainda afirmar que pensar o cotidiano e o ser
social por um prisma teórico implica descobrir o incomum no repetitivo.
Sua linha de raciocínio cabe perfeitamente nas análises das identidades,
expressões, afirmações, reconhecimento, luta contra qualquer forma de arbítrio ou
autoritarismo, qualquer forma de preconceito, discriminação e desumanidades,
contra a banalização do mal, enfim, dos assuntos cotidianos mais diversos que
implicam em ver homens e mulheres, em sua diversidade e pluralidade, enquanto
sujeitos sociais e não enquanto coisas. Nesse ponto, seus apelos de humanidade
são substanciais.
Desse modo, o cotidiano é visto não como o passar dos dias, o dia-a-dia, mas
sim como o “mundo da vida”: “[...] o homem aprende no grupo os elementos da
cotidianidade”354. A vivência cotidiana exige apenas que “[...] cada um submeta, nas
eventuais situações conflitivas, as aspirações particulares às exigências do
costume”355.
É inegável a importância do valor do sentimento de comunidade no
pensamento de Heller. Histórica e socialmente, homens e mulheres desenvolveram
uma relação natural com a comunidade, também, desenvolveram o despertar de sua
individualidade enquanto sujeito consciente.
É no Renascimento, momento em que o ser social encontra as condições
objetivas melhor desenvolvidas, que permite o aflorar de sua individualidade,
enquanto consciência de-si-mesmo, assumindo as rédeas de suas próprias vidas e
dando um salto ontológico no desenvolvimento de sua própria personalidade.
Mas, com o egoísmo individualista da sociedade burguesa e o modo de
acumulação capitalista, seus interesses e aspirações se desantropomorfizam,
354
355
HELLER, 2004, p. 19.
HELLER, 1977, p. 153. Grifos nossos.
258
assumindo assim, o caráter puramente econômico e mercadológico e entregando-se
aos apelos mais bárbaros da lógica do capital.
Acreditamos que a proposta helleriana, vai além da vida cotidiana. A vida
cotidiana é apenas o palco onde assumimos e exercemos ou, até mesmo
“representamos”, nossos “papéis sociais”. Vai ao encontro do sujeito social
revolucionário, individual e coletivo, pode ser artífice de sua própria história, ou seja,
viver com intensidade, “ser por inteiro”, se colocar acima de suas limitações sociais,
físicas, psíquicas, econômicas, emocionais, sobretudo, acima do “reino das
necessidades”.
A teoria de Heller apresenta uma saída, uma opção para uma vida não
alienada e alienante. Muitas vezes suas análises, apresentam epistemologias
fenomenológicas, no sentido de “desvelar” (ir tirando as camadas que esconde a
essência de sua aparência), buscando a liberdade/responsabilidade de nossas
escolhas,
singulares
e
particulares,
individuais
e
coletivas,
diante
dos
fatos/acontecimentos mais cotidianos e mais simples da vida social.
Nessa busca incessante pela essência filosófica da vida social, Heller
encontra na sua própria vida, ou seja, suas reflexões reais e concretas do seu viver,
as possibilidades/respostas para a construção de uma “filosofia da práxis” ou de uma
“práxis filosófica”: “[...] o que é a revolução sem a transformação profunda da vida
dos homens [e das mulheres]”356.
O ser social enquanto ser da práxis pode apresentar-se enquanto dínamo de
constantes construção e transformações dialéticas e dinâmicas. A vida pode
transformar-se totalmente em diversas direções se estas forem valoradas para a
emancipação da essência humana e social de homens e mulheres que vivem em
sociedade.
Permite coragem diante da vida, permite um enfrentamento sem se
desencantar. Permite certa leveza no peso que a vida alienada se transforma.
Lembrando e parafraseando Charles Chaplin, não se mede o valor de um homem ou
de uma mulher pelas roupas ou pelos bens que possui, mas sim pelo seu caráter,
pelos seus ideais e pela nobreza de suas ações.
Heller é um verdadeiro produto do seu tempo. Uma mulher, uma presença,
uma experiência. Uma mulher que chegou a condição de sujeito de sua própria
história e que suscita interrogações, dúvidas e especulações. Uma presença que
356
HELLER, 1982b, p. 121.
259
não ficou calada nem estática diante dos mais diversos momentos e situações, até
mesmo atrocidades e fatalidades próprias de sua época.
Muitas vezes utópica, mas consciente de seu papel, de sua experiência, de
seu método, de sua liberdade e fomentando o debate nos mais diferentes assuntos
e campos do conhecimento.
Não estamos aqui fazendo uma apologia ao pensamento e a figura
emblemática de Agnes Heller, mas sim reconhecendo o seu valor enquanto ser
humano, enquanto sujeito revolucionário, enquanto inspiração e fermentação do
sujeito revolucionário individual e coletivo.
No tocante ao Serviço Social sua contribuição é inegável, além de trazer
elementos que contribuam para o entendimento da estrutura da vida cotidiana, traz
também, elementos sócio-históricos e filosóficos para compreender a complexa
antropologia-ontológica do ser social na e para a vida cotidiana.
Também apresenta elementos substanciais para o trabalho de grupos e
comunidade, modos de percepção do ser social em suas intrincáveis e múltiplas
determinações, enquanto humanos – e não enquanto coisas - e enquanto fim - e não
enquanto meio para se chagar a um determinado fim.
Nos anos compreendidos entre 1970 e 1990 – quando se afirmou a intenção
de ruptura contra o conservadorismo e o tradicionalismo da profissão – a tomada de
consciência do sujeito coletivo, ou seja, de uma identidade profissional autônoma e
hegemônica e contrária aos apelos e interesses ideo-políticos conservadores - que
viam
transformando
os/as
assistentes
sociais
em
meros
funcionários/as
executores/as da Política Nacional e dos interesses privados – o Serviço Social
brasileiro toma consciência de si e para a construção de um pensamento
hegemônico e de uma nova sociabilidade.
Os eflúvios revolucionários desse período tiveram como embate além do
conservadorismo, o terror imposto pela Ditadura Militar, no qual alguns/mas
profissionais assumiram a figura de “agentes provocadores de mudanças”,
engajando-se na participação política, conjuntamente com os movimentos populares
para a mobilização coletiva e social.
Na década de 1980, o Serviço Social no Brasil, altera radicalmente o ethos
profissional, principalmente em suas bases ideo-políticas e teórico-metodológicas,
assumindo a teoria marxista como referencial teórico-filosófico para a formação e
atuação profissional, na luta em prol da classe trabalhadora enquanto bandeira
260
política. Esta bandeira materializou-se no então Código de Ética Profissional de
1986.
Porém, o novo Código de Ética de 1986 do Serviço Social, somente alteraria
as configurações do Código de 1975, que espelhavam o desenvolvimento da
ideologia capitalista e as mudanças ideo-políticas desse período, substituindo os
valores neotomista-positivistas por um marxismo messiânico. Nesse sentido, seu
avanço constituía em romper com o ethos anterior, passando a assumir um
compromisso com a classe trabalhadora.
É nesse contexto que o pensamento de Agnes Heller, com forte inspiração
marxiana, bem como outros pensadores marxistas, pôde contribuir para a tomada
de posição em assumir determinada atitude consciente, no intuito de exercer a
liberdade dentro dos valores ético-morais e de militância política e social.
Formulava-se, assim, uma nova identidade profissional e novas bases comporiam o
novo Código de Ética Profissional de 1993: a ontologia do ser social.
De lá para cá, muita coisa mudou. Acreditamos que estas bases
revolucionárias, caminham novamente para uma hibernação ou um anestesiamento
diante das necessidades e apelos impostos pelo capitalismo. É necessário reavivar
as lideranças, os sujeitos revolucionários, individuais e coletivos, os grupos e as
forças
políticas,
um
modo
de
ser
e
agir
independente
dos
sistemas
consuetudinários e da submissão aos interesses do capital.
Porém, acreditamos que muito mais que isso, urge o despertar de um ethos,
de uma ética, uma vontade política, de uma consciência de-si-mesmo, em-simesmo e para-si-mesmo. Lembrando Pablo Neruda, somos livres para fazer nossas
escolhas, mas somos prisioneiros das consequências. Escolher pelo “reino da
barbárie” é escolher pelo fim da Humanidade.
Para finalizar, ao percorremos os principais pontos do itinerário vivo, vivido e
teórico de Agnes Heller, enfatizados, muitas vezes, por ela mesma, recheados de
passagens (falas) do próprio sujeito pesquisado e distribuídas nas diversas
entrevistas que já concedeu em seus oitenta e três anos de vida, percebemos que
sujeito e objeto pesquisado se identificam.
Não podemos, deste modo, deixar de registrar nossa admiração por essa
pequena senhora, franzina, de cabelos malfagafados, de olhos miúdos, circulados
por grandes aros e de fala linear, miúda, coerente, horizontal e constante, numa
língua que, como dizia o cantor, compositor e romancista Chico Buarque (2011) “[...]
261
até mesmo o diabo respeita”, que viveu e vive num país em que os gritos de
liberdade ecoam até hoje no ar, rechaçada por alguns marxistas como a “desertora”,
“pluralista” e “eclética”, principalmente pelas suas posições contrárias ao que
defendia no passado. Deixamos aqui, nossas reverências ante uma vida bem vivida
ou, por outro lado, de uma “vida por inteiro”: uma sinfonia felizmente inacabada.
262
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Estes sites foram acessados e consultados várias vezes no decurso desta pesquisa.
274
ANEXOS
275
CENAS DE BUDAPESTE – HUNGRIA358
Cena de Budapeste em 1922
Mapa da Hungria pós-Primeira Guerra Mundial
Cenas da Revolução Hungara de 1956
Cena do filme “Budapeste”
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Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas do site Google
http://www.google.com.br/imghp?hl=pt-PT&tab=ii). Acesso, janeiro/fevereiro de 2013.
(Fonte:
276
A “ESCOLA DE BUDAPESTE”359
Georgy Lukács
Agnes Helle
György Márkus
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Vajda Mihaly
Ferenc Fehér
Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller
(Fonte:
https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts).
Acesso,
janeiro/fevereiro de 2013.
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PRIMEIRO CASAMENTO DE AGNES HELLER360
István Hermann
Agnes Heller
Zsuzsa Hermann (filha)
SEGUNDO CASAMENTO DE AGNES HELLER
Ferenc Fehér e Agnes Heller
Agnes Heller
Agnes Heller com sua filha (Zsuzsa Hermann), sua neta e sua bisneta.
360
Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller
(Fonte:
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janeiro/fevereiro de 2013.
278
SOMENTE AGNES HELLER361
Medalha Goethe (2010)
Agnes Heller fala com estudantes da Universidade Eötvös Loránd em 16/02/2013.
Budapeste – Hungria
361
Todas as fotos contidas nessa pagina foram retiradas da Rede Social Facebook de Agnes Heller
(Fonte:
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janeiro/fevereiro de 2013.
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AGNES HELLER – “UM VERDADEIRO PRODUTO DO SÉCULO XX”
Fonte: https://www.facebook.com/pages/Agnes-Heller/35373273580?fref=ts. Acesso,
janeiro/fevereiro de 2013.
ESTES LIVROS FORAM ADQUIRIDOS PARA A REALIZAÇÃO DESSA
DISSERTAÇÃO362
362
Estes livros pertencem a biblioteca do pesquisador.
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