DEANA BARROQUEIRO D. Sebastião e o Vidente Prefácio D. Sebastião e o Vidente é um romance histórico construído e narrado à maneira do século XVI, um dos séculos da especialidade de Deana Barroqueiro. Desta vez, a autora escolheu como objecto central a figura de D. Sebastião, cuja vida é narrada em paralelo com a de Miguel Leitão de Andrada, o Vidente, quatro meses mais velho do que o Desejado e cujas vidas se cruzam em diversas situações ao longo da narrativa. Sebastião é à partida uma figura sobre a qual se fixam diversas expectativas, o que o torna uma figura política que está sempre no limbo, à beira do precipício. Na verdade, é fruto do único filho sobrevivente dos nove que João III teve com Catarina de Áustria. O pai, o infante D. João, morre de diabetes mesmo antes de o filho nascer e a mãe, D. Joana, filha de Carlos V, não aguenta o isolamento na corte portuguesa e parte para tomar a regência de Castela, abandonando o reino e o filho. A solidão de Sebastião transforma-o em joguete nas mãos de diversos validos, como é o caso dos irmãos Câmara – os jesuítas Luís e Martim Gonçalves da Câmara. A obra foi construída em quatro partes que dizem respeito aos períodos mais importantes da vida do jovem Sebastião: 9 I – «O Cavaleiro sem Mácula»: é a história de Sebastião até aos doze anos; II – «O Cavaleiro da Demanda»: corresponde à época em que o Desejado já é rei e começa a encarar cada vez com mais entusiasmo o que ainda era o sonho da cruzada em África; III – «O Cavaleiro da Perfídia»: retrata o período em que começam a agigantar-se em torno dele a traição, a espionagem, o aproveitamento da sua juventude; IV – «O Cavaleiro do Desastre»: enquadra toda a preparação de Alcácer Quibir e o entusiasmo do rei versus o receio e o perigo que a jornada comportava, aliados às promessas de apoio de terços e cavaleiros que nunca virão a estar presentes em Alcácer Quibir. Ao longo dos capítulos, desfilam figuras da política europeia e peninsular como Carlos V, Filipe II, Catarina de Áustria, infanta D. Maria, João III; mas também homens ligados à casa real de Filipe II e Carlos V, tidos como seus espiões e fiéis defensores das suas estratégias políticas, como João de Borja, padre Francisco de Borja, Cristóvão de Moura. Cronistas como Miguel Leitão de Andrada, João Cascão, Jerónimo Mendonça e o poeta Luís de Camões são simultaneamente personagens e fontes históricas. Esta é de facto uma das mais interessantes estratégias seguidas por Deana Barroqueiro. Os cronistas surgem na história, integrando na acção da ficção a sua própria escrita. Miguel Leitão de Andrada, o Vidente, é também um pretexto para que a narrativa seja enriquecida com os contrastes entre a cidade e o campo no Portugal do século XVI, num diálogo permanente. No campo, com o seu ritmo lento regulado pela produção da terra, regrado pelo contacto com a natureza, está presente o sentir e fervilhar do povo. 10 A autora recria também um riquíssimo contexto internacional, onde a Espanha e o Império dos Habsburgos dominam a política da Europa do seu tempo. Os palácios, as intrigas palacianas onde os nobres portugueses e espanhóis desfilam com as suas contendas, espionagens e desavenças, são uma constante. Enquanto romance escrito à maneira do século XVI, D. Sebastião e o Vidente tem um narrador que entra em diálogo com o leitor e o interpela, avança e recua no tempo, problematiza os assuntos, dá opiniões e conselhos, sugere cautela para as conclusões de quem lê. O efeito conseguido é espantoso porque se trata de uma estratégia de aproximação ao leitor, não só porque o interpela e sugere a sua opinião, mas também porque o confronta com situações que coagem a pensamentos e reflexões sobre a época. E a autora desafia-nos ainda com uma trama de espionagem que acompanha a vida de D. Sebastião desde o seu nascimento até ao seu desaparecimento. Quanto ao trabalho de investigação, Deana Barroqueiro parte para as suas obras com um património de cultura já adquirido, porque conhece profundamente a literatura portuguesa toda, e particularmente, por ser mais da sua especialidade, a literatura dos séculos XVI a XVIII. Enquanto romance histórico, D. Sebastião e o Vidente obedece ao quadro cronológico que visa toda a época desde o nascimento de D. Sebastião, em 1554, à sua morte, em 1578. Fruto de uma intensa e profunda investigação histórica, esta obra teve como fontes principais os cronistas já referidos e vários textos anónimos dos séculos XVI e XVII como a Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d’El-Rei D. Sebastião, a Jornada d’El-Rei D. Sebastião a África, a Crónica de D. Henrique, ou as Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição com os Seus Presos. Documentou-se ainda com leituras de clássicos como Miguel de Cervantes e o seu D. Quixote de la Mancha. 11 Recorreu igualmente a um conjunto vasto de obras historiográficas de historiadores como Borges Coelho, José Mattoso, Francisco Bethencourt, Sales Loureiro, António José Saraiva, entre outros, de forma a poder dominar os problemas sociais, económicos, políticos e religiosos da época. Mas vai mais longe. Deana Barroqueiro documenta-se também sobre os hábitos do povo, do clero e da nobreza: a forma como vestem, como comem, o que bebem, como se relacionam, a música, a poesia, a par com o conhecimento profundo sobre o funcionamento do Tribunal da Inquisição. Para além do mais, a autora estudou também os contextos internacionais que giram em torno das figuras de Carlos V e de Filipe II. D. Sebastião e o Vidente é um romance histórico que decorre num período complexo e particularmente movimentado da história europeia. A Espanha, em pleno apogeu, exerce o poder político em grande parte da Europa, tem estabelecidas ligações entre as diversas casas reais europeias através de uma estratégia de casamento das princesas e príncipes castelhanos. A Espanha é nesta altura uma grande potência europeia, com um império continental e ultramarino. Portugal situava-se já numa fase de declínio do seu império ultramarino e passa por uma enorme crise política, que culmina com a morte de Sebastião, em Alcácer Quibir, e com a perda da independência. A obra obedece a uma alternância de cenário que muda, sensivelmente, de quatro em quatro páginas. É uma estratégia discursiva que imprime um enorme ritmo à narrativa e prende o leitor à história. Mas o leitor é também presenteado com a acção das personagens, com acontecimentos inesperados e sobretudo com muita intriga, muita espionagem e bastante traição. Há uma constante tensão não só entre as personagens que desfilam no livro, mas uma tensão também impressa no perfil psicológico de Sebastião, magnificamente 12 traçado: as suas inseguranças, os seus medos, o seu desejo de partir à desfilada da aventura e a sua necessidade de peregrinação constante pelo país, o que o fazia estar pouco tempo no mesmo sítio. Portugal do século XVI conhece-se também através das constantes viagens de Sebastião. Este é também um romance cheio de imagens, de paisagens, de retratos humanos, de dramas e de angústias, onde o ser humano se apresenta no seu melhor e no seu pior. Trata-se, pois, de uma obra que, pelo ritmo, pela dinâmica, pela riqueza dos intervenientes, pela diversidade das paisagens e dos rostos humanos, bem podia ser adaptada ao cinema. Quero, por isso, felicitar vivamente Deana Barroqueiro pelo excelente romance que mais uma vez nos apresenta e, simultaneamente, felicitar a Casa das Letras pela nova edição desta obra de excelência que agora apresenta ao público. Ana Cabrera, Historiadora 13 «La pluma es lengua del alma: cuales fueren los conceptos que en ella se engendraren, tales serán sus escrito» (El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha Miguel de Cervantes 1605) Caríssimo leitor(a) D. Sebastião e o Vidente foi o meu primeiro romance histórico de longo fôlego, a obra que a Porto Editora escolheu, em 2006, para iniciar o seu projecto editorial de ficção. Constitui um marco no percurso da minha escrita, porque, embora já tivesse publicado sete romances juvenis e dois livros de contos, foi este livro, premiado e com várias edições esgotadas, que me tornou conhecida como romancista. D. Sebastião e o Vidente representou não um corte com a obra anterior, mas um ponto de viragem, uma mudança em termos de objectivos, de destinatários e de maturidade da escrita. Teve uma longa gestação (cerca de três anos) e um parto difícil, com muitas versões destruídas. Talvez porque, inconscientemente, a antiga professora de Literatura que ainda me habita se insurgisse contra a liberdade da escritora e lutasse para impor a sua vontade, ansiosa por partilhar com os leitores esse tesouro extraordinário de personagens, sucessos e obras do Renascimento português, que lhe serviram de modelo. Creio que o tema do sebastianismo me surgiu de uma visão pessimista de Portugal, do marasmo do nosso presente e da incerteza do nosso futuro colectivo. Acabávamos de entrar no terceiro milénio da nossa era, um tempo que se esperava de grande Descoberta, Progresso e Conhecimento, 15 para maior felicidade do homem; contudo, no mundo, sopravam cada vez mais fortes os ventos do desencanto, da violência, da pobreza e da superstição. Portugal, avesso à mudança, continuava à espera de um D. Sebastião que o viesse salvar do pântano da mediocridade e imobilismo em que vegetava. Neste contexto, assume primordial importância no romance um narrador que dialoga, num registo irónico e crítico, com o/a leitor/a, permitindo-lhe estabelecer uma relação de distanciação e/ou proximidade entre as duas épocas, cotejando o passado com o presente. «A Literatura e a História não dividem o seu património», afirma uma máxima chinesa, porque uma obra literária dá sempre testemunho de um determinado tempo, espaço e civilização. E esse conhecimento é, na minha concepção, a mais-valia do romance histórico. Assim, o leitor é convidado a sair do seu tempo pessoal e a mergulhar num outro tempo, efabulado, porém, recriado a partir de uma rigorosa investigação de fontes documentais, que se reflecte na contextualização da acção, da linguagem, das mentalidades, dos lugares e dos costumes do século xvi. De igual modo, as personagens históricas do rei D. Sebastião (o mais desejado e caluniado de Portugal) e de Miguel Leitão de Andrada (um fidalgote de Pedrógão Grande, com fama de vidente e autor da Miscelânea, uma das fontes do romance) são retratadas de forma realista, por vezes crua, mas humanizada, procurando fazer-lhes a justiça que lhes foi negada. Duas vidas entrelaçadas pelo Destino, desde o nascimento até ao desastre de Alcácer Quibir, que reflectem o espírito da época, esse binómio do idealismo-materialismo, magistralmente encarnado em D. Quixote e Sancho Pança, de Miguel de Cervantes. D. Sebastião é, apesar de todas as esperanças da nação, um órfão privado de afectos, criado e educado por velhos, como a avó sedenta de poder e o tio cardeal, ambicioso e 16 fraco. Caprichoso e insolente, cresce atormentado pelos seus traumas e complexos de adolescente, sublimados nos sonhos de glória de mancebo visionário, senhor de um poder absoluto (alimentado pela corrupção dos cortesãos e dos políticos) que o arrasta ao desastre, profetizado pelas dolorosas visões de Miguel Leitão de Andrada. E como todo o autor de romances históricos é por natureza um criador de mitos, ofereço aos meus leitores uma complexa intriga palaciana, feita de conspiração, mistério e revelação… que, dez anos depois da sua criação – uma década preenchida pela trilogia de romances de viagens e descobrimentos, O Navegador da Passagem, O Espião de D. João II e O Corsário dos Sete Mares: Fernão Mendes Pinto –, surge em nova edição, revista e melhorada, com a chancela da Casa das Letras/Leya. Se a leitura vos proporcionar algumas horas de prazer e contribuir para um melhor conhecimento deste período da nossa História, o romance terá cumprido a sua missão e a autora seguirá novo caminho, na senda da sua escrita. Deana Barroqueiro http://deanabarroqueiro.blogspot.com 17 Parte I O Cavaleiro sem Mácula Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? (Fernando Pessoa, «D. Sebastião Rei de Portugal», in Mensagem) I Velas, candeias, tochas e barris de alcatrão a arder iluminavam o Terreiro do Paço, fazendo a noite parecer dia, porém o silêncio acabrunhado e ansioso da multidão mostrava que a causa de tal ajuntamento não era arraial de santo, nem jogo alegre de canas, alvoroço de tourada ou pungente queimadeiro de judeu e herege, mas antes vigília de cuidados e orações por intenção da infanta D. Joana, naquela hora de aflição. Era quase meia-noite e a filha do imperador Carlos V continuava a contorcer-se em espasmos de agonia no leito de viúva, esquecida da sua qualidade de princesa face à terrível, embora milagrosa, condição a que qualquer mulher nobre ou plebeia está sujeita desde o início dos tempos: dar à luz em dor o seu primeiro filho. Diante dos Paços da Ribeira, por entre o murmúrio das rezas e os sons líquidos do rio, pairavam farrapos de conversas – em surdina, não fosse o Diabo ouvi-las! – de muitos ranchos de mulheres que, por compaixão da má fortuna da infanta de Castela ou por desejo de novidades que lhes animassem a mesquinha vida, ali tinham acorrido para uma noite de vela e oração. – Nossa Senhora do Ó, valei à desditosa infanta, que não tem jeito de parir! – invocou uma mulher idosa, que, logo a seguir, esfregando as mãos roxas de frieiras, gemeu: – E ai 21 de mim, desventurada, que estou mesmo entanguida com este danado de frio! – Sim, até nos tolhe a madre! – riu a moçoila de nariz vermelho, soprando um bafo branco contra o ar gelado da noite, mas, volvendo o olhar às janelas iluminadas do imponente edifício, murmurou já sem sorrir: – Foi à tardinha que lhe deram as dores e inda não botou o cordeirinho cá pra fora... Pardeus, qu’isto não anuncia nada de bom! – Longe vá o agoiro, mulher! – repreendeu-a uma parteira bem conhecida na praça, persignando-se. – Não abasta à princesinha ter ficado viúva inda há tão poucos dias? Deus Nosso Senhor não lhe há-de levar também o filhinho... – Nem dois anos de esposada tinha, mau pecado! – lamentou uma mulher de negro. – Cá pra mim, foi a dor de se ver viúva que lhe apressou a paridela. – Quem houvera de dizer que o único filho macho que vingou a el-rei se ia finar aos dezasseis anos... – Foi anunciado, no dia das suas bodas, pelos sinais em que muitos não quiseram crer. – A mulher de negro fez o sinal da cruz. – Não s’alembram de ver, por trás das torres da Sé, um fogo vermelho no céu a arder três noutes a fio? – Sim, sim... eu o vi e quase morri de medo – assegurou a parteira, respingando de desagrado. – O povo correu às igrejas, mas os padres disseram que era senho de boa ventura! A lembrança do cometa, um fogaréu assustador a que os astrólogos haviam dado o nome de Carlos V, arrepiou-os de inquietude e a voz da mulher de negro soou profunda e misteriosa: – Como podia ser senho de bom agoiro, se esse fogo era da feição de um ataúde?! Só podia anunciar a desgraça que lhes caiu em riba. – Afigura-se mais ser aviso de Deus – aventurou a outra – por consentirmos na nossa terra toda a casta de infiéis: mouros, ciganos e judeus! Canalha fementida! 22 – Atão foi mesmo um casamento mal-agoirado e o infante D. João pagou com a vida? Desafortunado príncipe! Nem chegou a ver o filho que vai nascer... – Se é que nasce, mulher, se é que nasce! – Virgem Santíssima, inté pareceis aves agoireiras! Calai-vos com esse falatório e tratai mas é de orar à Nossa Senhora do Ó, pra D. Joana ter uma boa hora. Ave Maria, cheia de graça... As mulheres baixaram os olhos e juntaram o coro das suas vozes à da matrona parteira, em fervorosa oração, até soarem as doze badaladas da meia-noite na igreja da Sé, quando uma janela do Paço da Ribeira se abriu e a multidão viu assomar três vultos agitados, que bradaram: – A infanta D. Joana pariu um filho varão! Viva o herdeiro do trono de Portugal! Como um sopro de brisa correndo do Tejo, um clamor de muitas centenas de vozes a gritar em uníssono o seu júbilo fez tremular as chamas das velas e candeias erguidas aos céus por mãos calosas e sujas ou brancas e carregadas de anéis, em agradecimento a Deus por haver escutado as preces do povo e concedido a graça de um neto varão e herdeiro do trono a el-rei D. João III, doce consolo a um coração enlutado pela morte prematura do filho. – Viva! Deus seja louvado! Alvíssaras pelo príncipe! – gritava a multidão, mudada já a ansiedade da espera em alvoroço de celebração, começando a dispersar-se para levar a boa nova pela cidade. – Alvíssaras! A infanta pariu um filho macho! Alvíssaras! Para os lados do Rossio, ecoou um coro surdo de cânticos, alertando as gentes que cruzavam a Rua Nova dos Mercadores. – A procissão já deve ter saído de S. Domingos para volver à Sé. Inda a apanhamos! 23 O cortejo solene, levando sob um pálio a santa relíquia do braço do mártir S. Sebastião – roubada durante o saque de Roma no tempo do Papa Clemente VII e oferecida por Carlos V ao cunhado, a fim de demandar a graça dos céus para a infanta sua filha –, subira a Rua de S. Francisco, passara já à Trindade e descia agora o Carmo, iluminando as ruas com os cinquenta faróis de fogo feitos de tomentos1 engraxados em borras de azeite e sebo para darem bom lume, postos em hastes muito compridas e altas, onde também se penduravam outras tantas lanternas com candeias acesas. Mal ouviam os cânticos ao longe, as janelas abriam-se e os moradores debruçavam-se para ver passar a procissão ou iam incorporar-se numa das três estâncias em que estava repartida, por ser muita a gente que nela quisera participar, misturando as suas orações e lágrimas às dos flagelados ou levando marmelada em fatias, confeitos e doces e também púcaros de água para socorrerem aqueles que caíam de fraqueza pela dura penitência. Corporações, confrarias e ordens religiosas formavam as estâncias da procissão, separadas por um retábulo ou um Cristo na cruz, no meio das quais iam doze frades com as suas varas para reger a ordem da procissão. Antes da vista era o ouvido que captava o horror do sofrimento e do sacrifício, na expiação dos pecados, precedendo a cabeça da procissão. Um som surdo e espesso, como o sopro de um gigante ou de uma tempestade, feito de respirações ofegantes, de gemidos sufocados, de espasmos de êxtase que saíam em uníssono dos peitos e bocas de mais de seiscentos homens e mulheres, todos vestidos de negro, que se açoitavam compassadamente com as disciplinas, como numa dança macabra, abrindo rasgões nas vestes e nas carnes por onde o sangue escorria a ensopar os panos. Acompanhavam-nos duas dezenas de homens transportando bacias com 1 Pavios de estopa. 24 vinho cozido, onde os disciplinantes molhavam e lavavam os látegos para mortificarem ainda mais as suas carnes. Não menos penoso era o calvário dos penitentes que caminhavam vergados sob o peso das cruzes de madeira, das grossas varas de ferro ou das grandes pedras que levavam às costas. Após esta visão de horror e sofrimento que arrepiava as carnes e enchia os corações de medo, vinha o consolo abençoado dos irmãos das várias ordens, todos vestidos de negro com candeias e velas nas mãos, cantando ladainhas e orando pela salvação da infanta e de seu filho naquela hora de dor. Quando a procissão desembocou no Rossio, a larga praça dos mercados e feiras, enquadrada pelo imponente Hospital de Todos-os-Santos e pelo Palácio dos Estaus, já havia muita gente em festa, dançando e cantando, cujo alvoroço imobilizou as disciplinas a meio do açoite e calou os gemidos no fundo das gargantas. – Viva! Deus seja louvado! – gritavam os foliões, dando saltos e cabriolas. – Alvíssaras! A infanta pariu um filho macho! Alvíssaras! – Louvemos a Deus, Nosso Senhor – bradou o cónego da Sé, sob o pálio que seguia no lugar de honra da cauda da procissão, erguendo o relicário aos céus –, pois, à mesma hora que deu ao mundo o Seu Filho para livrar os homens do cativeiro do Diabo, nos deu a nós, portugueses, um príncipe para nos livrar da sujeição de Castela! Lançou bem alto as primeiras notas do Te Deum e o cântico brotou das bocas dos sacerdotes e de todos os penitentes como um hino glorioso ou canção de vitória, enquanto se dirigiam para a Igreja de S. Domingos. Os flagelados, dando graças a Deus por Ele ter visto e recebido a sua penitência, prosseguiram para a Casa da Misericórdia, onde os esperavam os físicos para lhes espremerem e lavarem as chagas com 25 vinho cozido, apertando-as em seguida com ataduras para alívio do seu grande padecimento. – Deus ouviu-nos! – murmuravam, consolados, sorrindo de orgulho. – O principezinho é vivo e sano! 26