V O Z E S Elisabete Pires O Mapa Escondido do Cão ENTREVISTA DE GONÇALO PEREIRA Passamos por eles todos os dias, mas nem sempre lhes damos valor. Há dez raças endémicas de cães em Portugal e todas elas têm baixo número de reprodutores. A investigadora Elisabete Pires, do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, terminou um projecto de avaliação da diversidade genética das raças de cães portuguesas e já está pronta para nova investigação. Agora, vai recuar no tempo e mapear o processo evolutivo do cão na Península Ibérica. No laboratório, talvez as amostras de DNA do melhor amigo do homem ajudem a preencher lacunas de um passado desconhecido. Pensamos em espécies ameaçadas, e os cães não são propriamente a primeira preocupação. Porque foram a sua? De certa forma, este projecto germinou no Grupo Lobo [organização não governamental de defesa e protecção do lobo ibérico]. Preocupados com a conservação do lobo, tentámos recuperar a utilização de um método tradicional de protecção dos rebanhos, utilizando cães de guarda que dissuadem os lobos, podem contribuir para diminuir os prejuízos e assim reduzir os conflitos entre o homem e o lobo. No campo, percebemos que as raças autóctones de cães já tiveram populações muito superiores às actuais. À medida que o número de pastores diminui, há menos necessidade de cães de guarda, e as raças ficam mais vulneráveis. Foi por vontade de quantificar esse património animal ameaçado que participei num projecto abrangente que envolveu a caracterização biométrica, comportamental e genética das raças de cães endémicas de Portugal. Na primeira etapa do seu trabalho, avaliou o efectivo de fêmeas reprodutoras de cada raça, usando os dados do Clube Português de Canicultura (CPC). Até que ponto eles são uma amostra fiável do que existe em Portugal? Aos 35 anos, Elisabete Pires terminou um projecto de avaliação da caracterização das raças portuguesas de cães. É verdade que são apenas uma amostra. Nem todos os cães estão registados no CPC, principalmente os cães de trabalho, como os dos lavradores e os dos pastores, porque no ambiente rural não é tão importante a inscrição dos cães num clube. A preocupação, nesses casos, centra-se no desempenho da sua função e não tanto no seu registo e participação em concursos. LUÍS QUINTA V O Z E S | E L I S A B E T E P I R E S Reconheço que são efectivos subestimados mas são os mais fiáveis de momento. E fez todas as recolhas em cães inscritos no clube? Não. Com base nos registos do CPC, procurei amostrar animais de forma a cobrir diferentes linhagens. Procurei diferentes criadores com linhas reprodutoras distintas, evitando assim cães que partilhassem os mesmos ascendentes. Procurei, desta forma, amostrar o máximo da diversidade genética de cada raça. Depois desse trabalho, fiz inquéritos a proprietários de cães, identifiquei as aldeias mais isoladas e procedi à selecção dos animais em ambiente rural, de modo a, mais uma vez, reduzir a probabilidade de amostrar cães aparentados entre si. As raças portuguesas partilham a mesma origem de outras no mundo. Elisabete Pires testou a hipótese de a subespécie do lobo ibérico resultar de um novo evento de domesticação na Península, mas não encontrou nenhum padrão específico que o pudesse comprovar. É inquestionável, pela avaliação dos seus dados, que as dez raças de cães portugueses têm um efectivo reprodutor baixo… Todas! O número de fêmeas em idade reprodutora, que potencialmente podem contribuir para as futuras gerações, é reduzido. Quanto ao seu estatuto de conservação, estas raças podem classificar-se em duas categorias [definidas pela FAO Food and Agriculture Organization]: vulnerável (quando o número de fêmeas em idade reprodutora é inferior a cinco mil) ou em perigo (quando é inferior a mil). Na primeira, encontra-se o cão da serra da Estrela, o rafeiro do Alentejo, o cão de fila de São Miguel, o perdigueiro português, o podengo português; na segunda, estão o cão de Castro Laboreiro, o cão da serra de Aires e o cão de água português. O caso das duas restantes (o cão de gado transmontano e o barbado da Terceira) é diferente: elas foram classificadas quando a investigação já estava em curso e, por isso, não foram apreciadas. Todas as raças são funcionais, ou seja, cumprem uma função. É legítimo pensar que com algumas funções em desuso, como o pastoreio, também esses cães vão perder utilidade? Não creio que irão desaparecer, porque há sempre criadores interessados neles, mas em termos funcionais já se detectam diferenças entre os animais da mesma raça que são criados em ambientes diferentes. No ambiente rural, são seleccionados pelo desempenho da sua função , mas, no sistema de canicultura, a selecção é baseada essencialmente pelos aspectos morfológicos ou estéticos. Começa a haver uma diferença morfológica e, talvez mais tarde, funcional. É legítimo temer que os animais percam aptidões no futuro. O efectivo reprodutor é só metade da questão. A outra questão tem muito a ver com a análise da diversidade genética. É possível que uma espécie com um efectivo reprodutor elevado tenha paradoxalmente baixa variabilidade genética? Exacto. Imagine uma raça em que existam muitas fêmeas em idade reprodutora, mas em que os criadores recorram LUÍS QUINTA/CRLI V O Z E S | E L I S A B E T E As raças endémicas portuguesas partilham a mesma origem de outras no mundo. Chegaram cá os primeiros cães e foram apuradas as raças a partir destes. P I R E S preferencialmente a um macho muito premiado, muito conhecido, que está na moda no circuito. A curto prazo, perder-se-á muita da diversidade genética dessa raça. Das análises genéticas que conduziu, apurou que algumas raças têm uma composição genética única. Isso pode ser extrapolado para dizer que elas estiveram mais tempo isoladas geograficamente? Poderão ter ocorrido dois fenómenos demográficos distintos: um efeito fundador, ou seja, o grupo de animais que fundou aquela raça foi pequeno; ou pode também ter acontecido que, ao longo do tempo, se tenham perdido, por deriva genética e/ou selecção, alguns genótipos. No caso do cão de Castro Laboreiro, por exemplo, chegamos à actualidade com uma composição genética muito particular e uma baixa variabilidade genética. É um processo comum às dez raças analisadas? Estes são, de facto, fenómenos comuns a todas as raças, mas no caso do cão de Castro Laboreiro, podem estar mais acentuados, pois essa raça tem um solar que é a sua zona de origem muito restrita, no Gerês. Esse cão tem, não só uma distribuição restrita, como esteve muito isolado, pois o contacto entre aquela zona montanhosa e o resto do país seria muito reduzido no passado. Recuemos um pouco mais na história do cão na Península Ibérica. Uma das hipóteses de partida do projecto era a investigação sobre possíveis eventos independentes de domesticação do lobo ibérico. Podemos determinar que não terão ocorrido novos eventos de domesticação? Claramente. Queria perceber se alguma destas raças que são endémicas de Portugal foram apuradas aqui e se teriam tido a participação do lobo ibérico na sua origem. Utilizamos um marcador molecular, uma zona do DNA diagnóstica. Percebemos que entre o lobo e as raças que temos no território não encontramos nenhum padrão diferente do resto do mundo. Ou seja, as raças endémicas portuguesas partilham a mesma origem de outras no mundo. Chegaram cá os primeiros cães e foram apuradas as raças a partir destes. … o que nos transporta para a sua origem. Serão produto de cruzamentos com raças de cães do Norte de África? Do Oriente? Dada a proximidade geográfica e histórica com o Norte de África, testei a hipótese de as raças de cães portugueses resultarem de cruzamentos com cães dessa região, tal como já está documentado para os bovinos. Mas não são. Não há qualquer indício genético de que os muçulmanos que chegaram a este território no século VIII tenham trazido os seus cães e que estes tenham cruzado com cães locais. Em retrospectiva, a conclusão não V O Z E S | E L I S A B E T E P I R E S surpreende. Os muçulmanos não têm uma relação próxima com o cão. Não o criam como animal doméstico, e portanto é normal que este não os acompanhasse nas suas migrações. Sei que também analisou os cães párias, ou cães sem raça definida, para tentar perceber geneticamente como elas se relacionam, a nível molecular, com as raças que estão estabelecidas. Que conclusões registou? A população do cão da serra da Estrela é vulnerável, pois existem menos de cinco mil fêmeas com idade reprodutora. Morfologicamente, nós vemos que são cães diferentes. Mas será que geneticamente, a nível molecular, estes indivíduos estão separados? Será que, esquecendo o aspecto exterior e olhando para os marcadores moleculares que nós agora temos disponíveis, podemos verificar se eles estão de certa maneira diferenciados? Evidentemente, não analisámos os primeiros cães párias que vimos! Fomos às zonas de origem histórica de algumas raças, visitámos canis e colhemos amostras de cães sem raça definida. Verificámos, de facto, que eles não têm relações genéticas próximas. Apurou a vulnerabilidade de cada raça, estimou a sua riqueza genética. O que se segue? É fundamental passar à conservação. A gestão da conservação das raças, ao contrário do que sucede com as espécies de fauna e flora silvestres, pertence aos clubes e às associações, que mantêm livros genealógicos, que estabelecem cruzamentos, que identificam reprodutores e tudo mais. É fundamental que eles disponham destes dados e possam delinear uma estratégia de conservação mais objectiva e rigorosa. A meio deste projecto, começou a contemplar a expansão do universo de análise para o passado. Sabemos que o cão terá sido domesticado há cerca de quinze mil anos, mas conhecemos mal a sua evolução genética. Agora que temos estes resultados sobre as raças modernas, queremos viajar para trás *. O esqueleto mais antigo de cão que foi encontrado em Portugal terá oito mil anos e foi escavado nos concheiros de Muge, no século XIX. Temos ossos de vários períodos em museus e colecções de referência e temos, hoje, as ferramentas certas para analisar a composição genética desses indivíduos para perceber se houve melhoramento, se houve perda de variabilidade. Queremos fazer um mapa desse processo evolutivo. E o que espera encontrar? Quero confirmar os resultados anteriores. Por exemplo, ao analisar as raças modernas, cheguei à conclusão de que não houve * O novo projecto tem como parceiros o Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a Universidade Aberta, o Intituto Português de Arqueologia, o INETI e a École Normale Supérieure de Lyon. LUÍS QUINTA V O Z E S | E L I S A B E T E Para compreender a evolução das raças não se pode dissociar a genética do cão do contributo humano, cultural e histórico das sucessivas migrações e colonizações. P I R E S participação do lobo ibérico na formação destas raças, mas será que houve cruzamentos e esse registo se perdeu e não se recupera só pela análise dos cães modernos? Pode acontecer que obtamos informação nova e que tenhamos de rever o que sabemos hoje. Até agora, trabalhou com recolhas de sangue ou pêlo em animais vivos. Qual será a diferença em termos de metodologia? É totalmente diferente. É difícil extrair DNA de esqueletos antigos. Podem estar muito degradados, pode não existir uma zona íntegra, suficientemente longa para obter sinal genético. Podemos ser obrigados a fazer tentativas em vários ossos que estiveram depositados em diferentes condições ambientais, de acidez, de temperatura, de humidade. E depois há o problema técnico: temos de utilizar laboratórios especializados neste tipo de amostras, diferentes daqueles onde se fizeram as análises no projecto anterior. E existem? Em Portugal, não. Por isso, o projecto tem uma parceria com um laboratório de Lyon (França). É essencial tratar a amostra em salas independentes, isoladas, em que temos reagentes especialmente desenvolvidos, com capacidade para recuperar esse escasso DNA que possa existir. Há muitos riscos de contaminação… … e implica a destruição de uma parcela do osso? Do osso, sim. Para recolher, temos de cortar uma porção na zona linear do osso (diáfise). Nunca retiramos amostras das zonas utilizadas pelos arqueólogos para identificar a espécie, que são as articulações. Depois, a amostra de osso que segue para o laboratório é forçosamente destruída, pois tem de ser macerada e misturada com reagentes para extrair material genético. Tão ancestral como a ruptura entre o cão e o lobo é seguramente a separação entre os investigadores das ciências naturais e os das áreas humanas. O seu projecto faz a ponte entre as duas áreas. Gosto de pensar que estou a trabalhar com zooarqueólogos, ou seja, arqueólogos que escolheram dedicar-se à fauna, pelo que partilham interesse pelas duas áreas. E faz assim a ponte? Eu estou interessada em perceber a evolução das raças domésticas, e isso está intimamente associado aos humanos porque estes animais são criados pelo homem e acompanhamno. Não posso dissociar a genética do cão do contributo humano, cultural e histórico das sucessivas migrações e colonizações. É necessário contemplar esta informação das populações humanas na interpretação dos resultados genéticos dos animais domésticos, como discutimos no caso das raças de cães do Norte de África. j