ARQUITETURA E SAÚDE MENTAL: A REFORMA PSIQUIÁTRICA

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ARQUITETURA E SAÚDE MENTAL: A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM SANTOS –
SP
BORDIGNON, Gabriel Barros1
RESUMO
A relação entre arquitetura e loucura se dá através dos espaços produzidos para tratamento ou
cotidiano dos indivíduos portadores de alguma deficiência psicológica. O modelo clássico, ou
manicomial, largamente difundido no século XIX foi substituído, no Brasil, por modelos espaciais
descentralizados e de tratamentos mais humanizados. O exemplo da cidade de Santos, litoral
paulista, principalmente no que diz respeito da relação que a cultura e as artes tiveram com tal
processo de reforma psiquiátrica, são fundamentais para o entendimento da situação atual da saúde
mental e sua relação com a arquitetura no Brasil. Dessa forma, esse artigo pretende compreender
como se deu tal processo de reforma que saiu de um modelo hospitalocêntrico, violento e repressor;
para um espaço multi, produtor de cultura, cidadania e arte.
ABSTRACT
The relationship between architecture and madness is through the spaces made for treatment or daily
lives of people with some psychological disabilities. The widely spread in the nineteenth century
classic, or asylum model was replaced in Brazil by decentralized spatial models and more humane
treatments. The example of the city of Santos, São Paulo coast, mainly in respect of the relationship
that culture and the arts have had with such a process of psychiatric reform, are key to understanding
the current situation of mental health and its relationship to architecture in Brazil . Thus, this article
aims to understand how was this process of reform that came out of a hospital-centered, violent and
repressive model, for a space multi, producer of culture, art and citizenship.
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Este artigo é parte de um projeto de pesquisa de mestrado, como uma investigação acerca
do papel da arquitetura na história e no entendimento social da presença da loucura na
sociedade, tendo como estudo de caso o exemplo da cidade de Santos, no litoral de São
Paulo. O trabalho pretende refletir sobre como a arquitetura de tipologia manicomial reforça
o caráter repressivo e de poder da sociedade sobre os indivíduos chamados insanos,
partindo da proposta de que tais edifícios e sua relação com o desenho urbano são parte da
‘estratégia’ de exclusão e limpeza social desde o período do renascimento até os dias
atuais. Da mesma forma serão analisados exemplos de novas experiências espaciais em
1
Arquiteto Urbanista formado em 2013 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design e aluno
de mestrado do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
de Uberlândia, e-mail: [email protected].
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relação a locais de tratamento e de como a cultura e a arte têm importantes papéis dentro
dos novos modelos de saúde pública no Brasil. Para tal, será feita a análise da Casa de
Saúde Anchieta (extinta instituição de modelo hospitalocêntrico), dos NAPS (Núcleos de
Atenção Psicossociais), do Projeto TAMTAM (Organização não-governamental que promove
a inclusão social de portadores de transtornos mentais); peças componentes da reforma
psiquiátrica de Santos, movimento que gerou a atual rede de Saúde Mental na cidade a
partir do final dos anos 1980 e que foi modelo essencial para o Brasil.
Segundo Michel Foucault, a partir da alta Idade Média até o final das Cruzadas, com a
disseminação da lepra por toda a Europa; foram construídos milhares de edifícios que
tinham como objetivo isolar os leprosos do restante da população, contendo a
contaminação; os chamados leprosários. Tal uso foi feito dessa forma até o final do século
XV, quando praticamente não havia mais leprosos. Com a epidemia controlada, os grandes
edifícios ficaram vazios por um período até serem ocupados, inicialmente pelos doentes
venéreos, depois pelos loucos. Portanto, o leprosário foi a primeira tipologia de arquitetura
utilizada no campo da loucura, como asilo. No século XVII tais edifícios se consolidam como
os principais locais de exclusão não só de loucos, mas de toda classe considerada
incapacitada de viver em sociedade e improdutiva cultural e economicamente.
No final do século XVII os leprosários já eram chamados de hospitais gerais, geridos pelo
governo, que tutelava toda a classe que lhe era interessante afastar da sociedade. Nesse
período o hospital não tinha nenhum caráter médico, sim de poder real de limpeza social,
que se dava através da internação, ou prisão. No final do século XVIII, com os avanços da
ciência e da medicina e com as ideias propagadas pela revolução francesa, além de
influências iluministas e cartesianas, Philippe Pinel, um renomado médico francês, defende
a ideia de loucura como uma patologia, necessitando, nesse sentido, de um isolamento
específico para tratamento. É nesse contexto que surge o conceito de ‘doença mental’.
“Da mesma forma que o nascimento do hospital se sobrepõe ao nascimento
de um saber médico / clínico, o surgimento do hospício também se amarra à
constituição de um saber sobre a loucura (...)” (SEVERO)
Através dessa ideia foi inevitável o surgimento de uma tipologia de edifício que fosse
pensado para a cura exclusiva dessa nova classe de doença, para que dessa forma fosse
possível o desenvolvimento de um saber sobre a loucura e seu tratamento médico. Os
manicômios se espalharam por todo o mundo no século XIX, e foi dentro desses espaços
que todo o conhecimento, todas as catalogações de doenças e todas as tentativas de
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tratamentos alternativos – violentos ou não – aconteceram até que surgissem ideias
contestadoras a esse tipo de instituição.
“No hospício o que cura é o próprio hospício. Por sua estrutura e
funcionamento, ele deve ser um operador de transformações dos indivíduos.”
(ESQUIROL apud BRASIL, Ministério da Saúde)
Até meados do século XX o tratamento; dentro dos manicômios, sanatórios, hospícios e
hospitais psiquiátricos; acontecia por repressão moral (punições e recompensas). Dentre
esses tratamentos, a maioria era experimental, já que pouco se conhecia a respeito da
medicina mental. Camisas de força, quartos acolchoados, choques elétricos, operações no
cérebro (lobotomia), banhos de água gelada, isolamento em ‘solitárias’, indução de
convulsões, chicotadas, máquinas giratórias, sangrias ou simplesmente agressões físicas;
eram essas as formas de tratamento utilizadas para controlar os indivíduos mais agressivos
dentro das instituições.
“O louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, ridicularizado nos seus erros;
o médico exercia um controle ético sobre o louco invés de realizar uma
intervenção terapêutica.” (FOUCAULT)
“O discurso científico anuncia uma verdade sobre a loucura a partir de um
olhar médico: a loucura é uma doença e o sujeito, um doente mental.
Portanto, ele deve ser tratado através de internação em manicômios, uso de
medicamentos psicofarmacológicos e de eletrochoques, prática da confissão,
exames, interrogatórios, etc. – uma série de técnicas desenvolvidas e
justificadas pelo discurso da psiquiatria. Isso assegura o funcionamento da
instituição manicomial e a manutenção da relação de dominação do médico
em relação ao doente mental.” (SEVERO)
Após o fim da segunda guerra mundial, houve um consenso geral no mundo de repúdio à
violência, em razão do cenário aterrorizante que houve entre 1914 e 1945. A questão
econômica também teve grande influência em uma nova forma de se pensar a loucura, pois
havia uma escassez de mão-de-obra e a economia de vários países estava enfraquecida.
Nesse contexto surgem movimentos a favor da desospitalização e desinstitucionalização,
diminuição dos leitos e criação de equipamentos menos violentos e mais baratos para o
tratamento dos ‘doentes mentais’.
Movimentos com a Antipsiquiatria e a Luta Antimanicomial foram fundamentais para a
quebra de certos conceitos e valores ultrapassados e a criação de novos espaços que
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propiciassem tratamentos mais humanos, deixando de lado a visão do louco como uma
doença catalogada e elevando o próprio indivíduo e suas potências e particularidades. Foi a
chamada Reforma Psiquiátrica.
O Brasil encontra-se atualmente em uma etapa de transição da Reforma Psiquiátrica. Isso
se deve muito pelo fato de a formação profissional em saúde mental não acompanhar as
transformações institucionais. Em abril de 2001 o país deu seu primeiro passo rumo à
criação de uma nova visão sobre a loucura no imaginário popular com a promulgação da Lei
Paulo Delgado que decretou o fechamento dos manicômios e a consequente substituição de
tais instituições por novos modelos baseados na Psiquiatria Democrática Italiana de Franco
Basaglia e na Antipsquiatria de David Cooper. Os novos equipamentos de saúde mental
foram chamados Centros de Atenção Psicossocial.
Os CAPS foram regulamentados depois da Lei Paulo Delgado, mas essa conquista
envolveu um longo processo que se iniciou, efetivamente, no final dos anos 1980 com o
Movimento dos Trabalhadores em Saúde mental (MTSM) que fazia denúncias e trabalhos
de humanização, buscando o fim dos manicômios.
Em 1989 a cidade de Santos – SP começa a passar por uma reforma baseada na ideia de
que saúde está intimamente ligada com cidadania; em meio a denúncias de maus tratos,
violência, hiperlotação e falta de funcionários, em uma audiência pública em junho de 1989,
a Casa de Saúde Anchieta, chamada casa dos horrores, foi declarada desapropriada.
Era um espaço asilar, escondido dos olhos da cidade por um grande muro, com alas
femininas e masculinas separadas e um pátio central. O local não tinha espelhos e os
internos tinham todos os seus pertences tomados e não tinham nenhum contato com o
exterior. O cotidiano interno era metodicamente controlado por normas, hierarquia e
repressão.
Os trabalhadores mobilizados em torno da cidadania tiveram como primeira atitude a
proibição interna de qualquer tipo de violência; depois a livre circulação, sem hierarquia
espacial; foram feitas avaliações médicas efetivas e
reuniões abertas para
o
estabelecimento de uma nova ética de relacionamentos.
A divisão espacial interna em treze enfermarias foi organizada pensando na futura
distribuição pelos bairros da cidade e total dissolução da instituição. Ao mesmo tempo
fundava-se o Centro de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental de Santos.
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Aos poucos foram-se fazendo projetos de reinserção baseados no contato externo com
artes, cultura e lazer; a partir dai, por iniciativa dos próprios trabalhadores e apoio da
prefeitura municipal surgiram os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial). Foram cinco ao
todo e a implantação envolveu reuniões com os moradores dos bairros para
conscientização.
Os NAPS têm funcionamento 24 horas com seis leitos cada; a equipe é multidisciplinar e os
tratamentos são humanizados, baseados em terapias individuais, em grupo, em família,
atividades artísticas e atendimento médico.
As atividades artísticas e culturais tiveram grande participação do Grupo TAMTAM, que
começou com uma rádio dentro da Casa de Saúde Anchieta, o que fez com que a cidade
tivesse um contato diário com os loucos, e em pouco tempo o grupo já contava com grupos
de teatro, dança e outras várias manifestações artísticas.
Essa experiência da cidade de Santos – SP foi muito bem sucedida no que diz respeito à
posição que a loucura alcançou dentro da cidade, participando efetivamente de sua vida
cotidiana e social. O estereótipo de louco, descapacitado e necessitado de tutela foi
praticamente extinto na cidade, muito em função da forte participação que os ex internos da
casa dos horrores tiveram na vida cultural da cidade.
O exemplo de Santos – SP foi de grande influência para que os movimentos a favor da
desospitalização no Brasil se fortalecessem em outras cidades e também de extrema
importância para a promulgação em 2001 da lei que extingue gradativamente o modelo
manicomial hospitalocêntrico no Brasil.
OBJETIVOS
O objetivo principal do trabalho é compreender como se deu a Reforma Psiquiátrica em
Santos – SP com relação às modificações espaciais: a mudança de um modelo centralizado
e de funcionamento hierarquizado para um modelo dissoluto e participativo, envolvendo arte
e cultura.
O estudo faz uma breve busca histórica e filosófica para compreender a relação do
pensamento racional com a arquitetura clássica de modelo manicomial, assim como
pretende refletir sobre os pensamentos antimanicomiais pós segunda guerra, que tiveram
papel fundamental nas reformas psiquiátricas no Brasil e geraram um novo modelo espacial.
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Além dos objetivos principais supracitados, a pesquisa também aborda algumas questões
como: o questionamento da loucura entendida como patologia, as políticas públicas para
saúde mental no Brasil e o papel da cultura para inclusão social.
METODOLOGIA
A pesquisa tem como metodologia de estudo as análises conceituais e tipológicas dos
edifícios voltados para a loucura da cidade de Santos – SP em dois recortes temporais,
tendo como divisor desses períodos o ano de 1989, quando começam os movimentos para
a Reforma Psiquiátrica. Portanto, será analisado o modelo hospitalocêntrico, na Casa de
Saúde Anchieta (até 1989), e o modelo dos Núcleos de Atenção Psicossocial (1989 até a
atualidade).
Inicialmente será feita uma revisão bibliográfica sobre a história da loucura e das
arquiteturas de modelo manicomial. Nessa etapa serão usadas ideias de Michel Foucault
(História da Loucura e Vigiar e Punir), e estudos de Ana Paula Guljor e Katia Kiss Ticli.
Em seguida será realizada a pesquisa de campo: visita à Casa de Saúde Anchieta, aos
NAPS e ao Projeto TAMTAM; objetivando compreender o cotidiano das pessoas que sofrem
algum transtorno e fazem tratamento atualmente, além de sua relação com sociedade,
cultura e artes na cidade de Santos.
A etapa final consiste na sistematização dos dados e análise dos resultados, onde serão
alcançadas as conclusões finais do trabalho, que servirão de base teórica para a
dissertação final.
CRONOGRAMA
O cronograma da pesquisa será trabalhado paralelamente ao cumprimento das disciplinas
obrigatórias e optativas oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação e aos encontros para
orientação com o professor orientador.
O primeiro e segundo semestres serão dedicados ao levantamento bibliográfico e
documental dos temas centrais: arquitetura manicomial e reforma psiquiátrica em Santos –
SP; e dos temas relacionados: políticas públicas para saúde mental; arte, cultura e saúde
mental.
No segundo semestre será desenvolvido um trabalho em formato de artigo científico, sendo
um dos pré-requisitos para a realização do Exame de Qualificação.
36
No terceiro semestre serão organizados, sistematizados e analisados os dados do
levantamento bibliográfico e documental. Esse processo envolverá análises tipológicas.
No quarto semestre será feita a reflexão geral, a análise e a síntese de toda a pesquisa,
elaboração e escrita da dissertação, bem como a preparação para a defesa da mesma.
A Tabela 1 contém a organização temporal do trabalho:
S
E
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disciplinas
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obrigatória
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2013
SET
OUT
NOV
1
DEZ
2014
JAN
FEV
MAR
ABR
MAI
2
JUN
JUL
AGO
Exame de qualificação
SET
OUT
3
NOV
DEZ
2015
37
JAN
FEV
MAR
ABR
MAI
4
JUN
JUL
AGO
Defesa da dissertação
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