o voluntariado e suas qualidades diferenciais: um

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O VOLUNTARIADO E SUAS QUALIDADES
DIFERENCIAIS:
UM PROFISSIONAL DO TERCEIRO SETOR
AUTORA: Lina Raquel de Oliveira Marinho
RESUMO
Este artigo tem como objetivo principal compreender e questionar a cultura do voluntariado no
Brasil refletindo acerca de sua estrutura profissional no terceiro setor. Pretende-se a comprovação
da hipótese investigativa de que o voluntariado enquanto profissional do terceiro setor, perante a
execução de suas atividades e perante o relacionamento que estabelece com as organizações
nas quais se encontra, é um ator social mais permeável às premissas das Metodologias
Participativas. Isto porque este ator social traria em suas qualidades profissionais as próprias
premissas da Metodologia Participativa. Durante a construção dos elementos desta compreensão
e questionamento foram investigados os parâmetros históricos desta cultura no Brasil, suas
variáveis sócio-políticas transnacionalizadas pela corrente Neoliberal, os diversos tipos de práticas
voluntariadas na atualidade, as premissas das Metodologias Participativas e as qualidades
profissionais diferenciais do voluntariado.
ABSTRACT
This article has the goal to comprehend and question the volunteer culture in Brazil, researching
about its professional structure in the third sector. According to this research the article intends to
prove its investigative hypothesis which establishes that the volunteer under the recognition of his
professional status in the third sector, and according to the activities he develops plus the
relationship he carries with the organization where he is placed at, is a social actor more available
towards the Participative Methodologies premises. All of this because this social actor has in his
professional qualities the own participative methodology premises. So to build the elements which
are going to lead this article comprehension and questioning, historical factors from this volunteer
culture in Brazil were investigated within its social and political elements which can be identified as
part of the Neoliberalism thought, plus the different types of volunteer practices nowadays, the
Participative Methodologies premises and the distinctive professional qualities in volunteering.
PALAVRAS-CHAVES
Voluntariado; Terceiro Setor; Neoliberalismo; Cultura do voluntariado; Profissional; Metodologia
Participativa.
KEYWORDS
Volunteer; Third Sector; Neoliberalism; Volunteer Culture; Professional; Participative Methodology.
1. INTRODUÇÃO
A temática deste artigo científico diz respeito ao voluntariado no terceiro setor e
seus conceitos historicamente construídos. Estes conceitos se fundamentam
tanto em elementos da realidade nacional Brasileira, como em elementos da
1
realidade internacional, como por exemplo, a corrente do pensamento neoliberal
ao final dos anos 70 início dos anos 80 sob o modelo inglês e norte-americano.
Suas premissas na época vieram redefinir o papel do Estado e da sociedade nas
políticas públicas.
Este artigo diz respeito ainda à discussão em torno do reconhecimento do
voluntariado enquanto profissional do terceiro setor e suas qualidades diferenciais
em relação a outros profissionais, segundo sua realidade de atuação neste setor
e todo um conjunto de orientações que regem esta atuação. Seu contexto
profissional
se
faz
diferenciado
uma
vez
que
este
não
solidifica
o
comprometimento deste ator social pelas bases da sua remuneração monetária,
ou seja, os níveis de profissionalismo do voluntariado estão para além da lógica
mercantil que subordina nossas competências a um salário, ao contrário o
contexto profissional do voluntariado solidifica seu comprometimento pelas bases
da automotivação, da experimentação do voluntário em suas atividades, e desta
peculiaridade relacional resultam normas e regras diversas que regem este
ambiente profissional.
Há também uma reflexão teórica em torno dos conceitos e premissas da
Metodologia Participativa a fim de identificar em que medida esta metodologia e
suas devidas etapas são cumpridas com maior efetividade pelo voluntariado do
terceiro setor, o que comprovaria ou refutaria a hipótese investigativa deste artigo
que reconhece no voluntariado uma maior permeabilidade a esta metodologia em
seu contexto profissional neste referido setor.
É de extrema relevância para a construção e entendimento da estrutura
profissional do terceiro setor o entendimento em torno da prática do serviço
voluntariado, que diz respeito ao indivíduo automotivado que oferece em caráter
de doação o seu tempo e conhecimento a uma determinada organização, a uma
causa ou ação social, e o entendimento em torno da chamada cultura do
voluntariado que se constrói pela manifestação contínua desta prática. Esta por
sua vez, cada vez mais, se difunde conceitualmente e empiricamente estando,
portanto presente no cotidiano dos indivíduos que fazem ou não parte diretamente
e oficialmente das diversas atividades do terceiro setor. Esta estrutura que vem
crescendo com o passar do tempo, tem por essência a participação individual, a
2
mobilização dos membros da sociedade civil, e, portanto o voluntariado e a
conquista da cidadania1.
Nesta medida os objetivos deste artigo são:
 Compreender e questionar a cultura do voluntariado, mapeando suas
características e qualidades peculiares
(enquanto profissional), na
realidade das práticas do terceiro setor.
 Refletir sobre a estrutura profissional do terceiro setor a partir da cultura do
voluntariado no que compreende suas qualidades e capacidades de
atuação a partir de Metodologias Participativas.
Este artigo tem ainda o objetivo epistemológico de impactar a noção cotidiana e
até assistencialista que se tem sobre o voluntariado no terceiro setor, pelo
repensar, pelo novo saber e as novas possibilidades – colocando luz onde ainda
há sombra quanto a este tema, tarefa puramente Frankfurtiana2 como elucidam os
autores Soares e Ewald (2011).
“Diante desta totalidade social, movente e cambiante, nos resta o olhar
micrológico que pode vir iluminá-la. E que este olhar deve estar atento
ao que deixamos na “sombra”, o que não se percebe de imediato, pois a
realidade social não se apresenta como totalidade iluminada, mas como
um quadro no qual “o claro e o escuro” disputam a primazia do nosso
olhar.” (Soares e Ewald, 2001:1).
A redação deste artigo e abordagem de todas as questões que se fizeram
pertinentes, assim como o alcance dos objetivos propostos, deveu-se a uma
pesquisa de caráter dissertativo, cujo estudo bibliográfico se deu a partir de
leituras registradas em fichamentos, permitindo o tratamento simultâneo dos
diversos conteúdos e fontes investigados. Foram priorizados de toda forma, a
leitura acerca da cultura do voluntariado no Brasil, e dados numéricos, em um
primeiro momento, acompanhados pelas leituras históricas e por fim o devido
1
A Constituição Brasileira de 1988 traz em seu art.1º, inciso II a cidadania como fundamento do
Estado Democrático de Direito que quer constituir, e, já no art.3º, estabelece os objetivos
fundamentais do País, a saber: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras forma de discriminação; a partir do art.5º, a Constituição estabelece os direitos
e garantias fundamentais do cidadão brasileiro.
2
Conforme Matos (1993), a Escola de Frankfurt foi um movimento intelectual iniciado na
Alemanha por volta de 1924, ano de sua oficial fundação. Seu Instituto de pesquisa se associou
de fato à Universidade de Frankfurt em 1931, por iniciativa de um dos seus maiores pensadores
Horkheimer.
3
tratamento às questões teóricas da Metodologia Participativa para comprovação
ou não da hipótese investigativa deste artigo.
Todas as fontes utilizadas neste artigo foram secundárias. Primeiramente foi
construída uma referência histórica à cultura do voluntariado no Brasil, para
compreender melhor seus conceitos, assim como a evolução destes. Além disso,
através deste contexto histórico foram extraídos os elementos necessários à
compreensão da estrutura profissional do terceiro setor no Brasil, naquela época
e nos dias atuais, refletindo acerca do transnacionalismo dos valores e conceitos
da corrente do neoliberalismo para o Brasil, por exemplo.
Fez-se necessária a investigação em torno das características e qualidades do
voluntariado enquanto profissional do terceiro setor e das relações que ele
estabelece e conduz neste setor. Além disso, foi necessário mapear os tipos de
voluntariado existentes na realidade profissional do terceiro setor, onde conceitos
como “voluntariado” versus “voluntariado especificamente treinado” aparecem.
Após ressalva acerca das propriedades diferenciais das qualidades do
voluntariado enquanto profissional, seja ele o voluntariado clássico, seja o
voluntariado especificamente treinado em uma determinada área, desenvolveu-se
uma reflexão acerca da Metodologia Participativa, enumerando suas premissas,
para que então se pudesse estabelecer uma correlação entre estas propriedades
diferenciais e as premissas que sustentam e embasam a Metodologia
Participativa.
Nesse sentido buscou-se, a fim de promover uma nova percepção acerca do
voluntariado e seu papel no terceiro setor, comprovar a hipótese investigativa de
que o voluntariado enquanto profissional do terceiro setor é um indivíduo mais
suscetível às técnicas e métodos da Metodologia Participativa, por trazer em suas
qualidades
profissionais
diferenciadas
elementos
das
premissas
desta
metodologia. Isso porque, enquanto as atividades voluntárias possibilitam e
incentivam, por exemplo, a participação, a transparência acerca dos diversos
valores e crenças que guiam uma determinada tomada de decisão e a
criatividade, estas são ao mesmo tempo algumas das diversas premissas das
próprias Metodologias Participativas, o que faria, portanto, segundo a hipótese
investigativa deste artigo, do voluntariado um ator social mais permeável a estas
metodologias.
4
2. DISCUSSÃO
2.1. Contexto histórico – Neoliberalismo
A fim de iniciarmos a discussão acerca do voluntariado no terceiro setor faz-se
necessário um mapeamento histórico da realidade social e política internacional e
brasileira, quando do surgimento deste setor e consequentemente suas práticas.
Este mapeamento histórico traz à tona a crise que o estado intervencionista havia
deixado nas nações que dele se valeram e propõe uma alternativa: o então
chamado Estado Neoliberal. Este Estado vem retomar algumas premissas do
Estado Liberal, porém, com menor autonomia e poder de atuação a despeito do
governo, por parte do mercado. O Estado Neoliberal extingue o Estado de Bem
Estar Social, revendo o papel dos sindicatos e de toda a luta trabalhista.
O Estado de Bem Estar Social, por sua vez representava à época, primeira
metade do século XX até o início de sua crise a partir da década de 60, um
conjunto de políticas estatais que possibilitavam o acesso a direitos até então
nunca alcançados pela classe trabalhadora. Via-se neste Estado um sustentável
mediador das relações entre o capital e o trabalho. Segundo Bonfim (2010) a
política do pleno emprego, as políticas sociais públicas e a política salarial foram
as maiores conquistas evidenciadas neste período.
Este período teve seu auge entre as décadas de 40 e 60 cujo momento foi de
reestruturação do capitalismo com implicações nas esferas: econômica, política,
social e cultural, havendo presença marcante da classe trabalhadora no cenário
das reivindicações políticas. Isto, porém não quer dizer que todas as
reivindicações da classe trabalhadora foram prontamente providenciadas na
época, ao contrário, as reivindicações, que chegaram até a adquirir caráter de
movimentos sociais com claras propostas revolucionárias, foram sufocadas pela
crise econômica do Estado de Bem Estar Social e por suas lideranças que
assumiram posturas autoritárias traindo por assim dizer os movimentos e suas
demandas3.
O período pós-guerra trouxe consigo, portanto o início da crise deste Estado de
Bem estar Social e o desejo de superar o ressentimento que então se guardou da
3
Segundo Marcuse (1955) apud Matos (1993) haveria um elemento de autoderrota internalizado
nos movimentos que lutam pela emancipação. Este seria responsável pelas traições das
revoluções e pela subordinação continua à dominação que, por sua vez, se faz parecer
fundamental, difundindo sua ideologia de maneira a perpetuar as variáveis mantenedoras do seu
status quo no que diz respeito a produção e o poder, por exemplo.
5
razão, aquela uma vez conquistada pelo movimento Iluminista e que impotente
diante das imperfeições morais da condição da natureza humana, não foi capaz
de evitar a ocorrência das grandes guerras e suas atrocidades. Este movimento
racional e toda sua ênfase à razão expressadas nas artes, cultura, literatura e
movimentos intelectuais da época, via-se na obrigação de ser para a humanidade
a promessa das luzes e do esclarecimento para a construção de um homem e um
mundo melhores. Assim o que se pretendia eram a superação das conseqüências
sociais e econômicas deixadas pelas grandes guerras e a oportunidade de
atender às reivindicações das então classes revolucionárias4. Estas, por sua vez,
foram as causas diretas das tomadas de poder pela extrema direita que
aparentava em seus discursos possuir um caráter de esquerda, mas que na
prática tinha programas majoritariamente excludentes e dominadores. Foi a
contenção destas classes revolucionárias que promoveu e sustentou os objetivos
da II Guerra Mundial a partir de programas sócio-políticos como o Fascismo e o
Nazismo, por exemplo.
À época o que favoreceu as bases de construção do que se convencionaria
chamar mais tarde de: “os anos dourados” do capitalismo foi o estabelecimento
então de um pacto aceitável entre trabalhadores e patrões, plenamente regulado
e autorizado pelo Estado intervencionista. Havia um amplo sistema de seguridade
social e uma elevação salarial crescente, em certa medida patrões e
organizações trabalhistas atuavam juntas, para manter as reivindicações dos
trabalhadores dentro de limites que não afetassem seus lucros, e ao mesmo
tempo lhes concediam importantes direitos sociais porque entendiam que
somente através da exploração do trabalho dos operários se alcançavam as altas
taxas de lucro do período em questão5.
Este período, todavia entra em colapso, caracterizando-se como uma crise de
superprodução, que corrobora com o caráter cíclico das crises do sistema
4
A Revolução Russa em outubro de 1917 liderada pelos Bolcheviques – Lênin e Trotsky,
conforme afirma Matos (1993), universalizou a visão intelectual e a política revolucionária para os
países europeus. A revolução de outubro tornou-se modelo de todas as revoluções socialistas.
5
Bonfim (2010) se apóia no referencial teórico e metodológico de Marx ressaltando que somente
através do trabalho se cria riqueza.
6
capitalista e se vê diante da fragilidade do sistema financeiro de Bretton Woods6
(1971) e da alta do petróleo7 (1973).
2.1.1. Contexto histórico - Neoliberalismo no Brasil
No Brasil a natureza do seu Estado interventor se alimentava destes elementos
econômicos e sócio-políticos transnacionalizados do cenário internacional para
seus governos militares8. O Estado interventor também obedecia à lógica da
acumulação, sendo obrigado a assumir funções permanentes de planejamento da
economia, como: educação, saúde, transporte, saneamento, seguridade social e
sustentar o processo de acumulação por meio da intervenção direta nas políticas
privadas. Da mesma maneira este “Estado de Bem Estar Social” brasileiro teve
sua crise e viveu seu colapso da superprodução, e é nesse momento que:
“[...] se inicia no Brasil um movimento político-ideológico para garantir a
continuidade da hegemonia burguesa – só que agora sob a direção da
burguesia financeira e não mais da burguesia industrial – e barrar o
avanço das conquistas democráticas que vinham acontecendo após o
período ditatorial.” (Bonfim, 2010: 31).
É justamente nesta época, início dos anos 80, que os movimentos sociais
cresciam na luta por melhores condições de vida da população e pela
reconstrução dos benefícios do Estado de Bem Estar Social. Estes movimentos
sociais surgiram majoritariamente, porém, dentro das igrejas sendo na época
caracterizados como movimentos espontâneos da sociedade civil. De toda forma
era ali o início da formação do que mais tarde seria denominado terceiro setor no
6
O Sistema Bretton Woods de gerenciamento econômico internacional estabeleceu em julho de
1944 as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do
mundo. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordos_de_Bretton_Woods, acessado em 28/7/2011)
7
A crise do petróleo aconteceu em cinco fases, todas depois da Segunda Guerra Mundial. A crise
de 1973 foi provocada pelo embargo dos países membros da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) e Golfo Pérsico de distribuição de petróleo para os Estados
Unidos e países da Europa. Este embargo era de caráter político e representava um protesto dos
países árabes organizados na OPEP contra o apoio norte-americano a Israel durante a Guerra do
Yom Kippur, também conhecida como Guerra do Ramadã, ou Árabe-Israelense.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Yom_Kippur, acessado em 28/7/2011)
8
O golpe de estado de 1964 no Brasil, qualificado por personagens afinados como uma revolução,
instituiu uma ditadura militar, que durou até 1985. Os militares então justificaram o golpe, que
eclodiu cinco anos após o alinhamento cubano à União Soviética, governado por Nikita
Khrushchev, sob alegação de que havia uma ameaça comunista na América, neste momento
alinhavasse ideologicamente nossa natureza sócio-política aos programas políticos de direita da
Europa como o Fascismo e o Nazismo. Estes programas políticos vieram promover a revolução
que não quiseram deixar a encargo das classes trabalhadoras, mediando suas reivindicações e as
mantendo, portanto sobre o controle, isso porque desejam proteger o sistema produtivo e seu
formato. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Regime_militar_no_Brasil, acessado em 28/7/2011)
7
Brasil. Desta forma o terceiro setor no Brasil surge na esteira do direito da
cidadania preconizado na Constituição Federal de 1988.
Em geral na maioria dos países em desenvolvimento, assim como no Brasil, a
implantação do modelo neoliberal teve como maior indício o conjunto de
privatizações que atingiram as empresas estatais. O Estado reconhecia que tal
ação provocaria inevitável melhoria de alguns serviços essenciais, o governo
realizava a venda dessas empresas para algum grupo econômico ou investidor
particular. Contudo, a redução das empresas públicas não foi acompanhada por
um benefício proporcional no que diz respeito às políticas sociais que passaram a
ser conduzidas por representantes do setor privado.
2.2. Contexto histórico – Terceiro Setor no Brasil e o Voluntariado
O terceiro setor pode ser entendido como um conjunto de ações realizadas por
pessoas físicas e jurídicas de direito privado, sem finalidade lucrativa, que visa à
produção de bens e serviços de interesse público, especificamente, os direitos
sociais, com atuação voluntária, no sentido de se fazer valer o direito da
cidadania. Sendo que deste direito preconiza-se a liberdade de atuação, de
expressão e com ela a automotivação, o interesse do indivíduo em torno de suas
vontades por suas crenças e causas, levando-o à mobilização em torno de seus
desejos e da coletividade na qual habita. Deste contexto constitui-se o
voluntariado e fomenta-se sua cultura, ou seja, sua prática regular.
Houve, porém, diversas mudanças de paradigmas em torno desta cultura, que
surgiu sob a luz da corrente Neoliberal no Brasil, uma delas é a percepção de que
esta cultura surge como uma válvula de escape do próprio Estado que buscava
um meio de controlar os movimentos sociais, iludindo-os quanto à própria
participação, quanto ao próprio peso de sua contribuição e interferência no status
quo sistêmico, e não necessariamente como um indicador de amadurecimento de
nossa sociedade civil e democracia.
Segundo Bonfim (2010) atrelada à crise do Estado de Bem Estar Social e
enquanto produto do Neoliberalismo: a cultura do voluntariado no Brasil é
incentivada com o intuito de imprimir às políticas públicas um caráter
assistencialista e filantrópico, o que automaticamente descompromissava o
Estado quanto às suas obrigações, e relocalizava na sociedade este
compromisso.
8
Neste contexto a sociedade se imaginava atuante e participativa da vida pública e
política do país, enquanto que na verdade o que acontecia era uma transferência
de responsabilidades. Ou seja, a sociedade não estava participando da esfera
política, porque de fato não havia um programa político pensado e implementado
sobre as questões sociais e trabalhistas vigentes, havia apenas uma tentativa da
sociedade de se comprometer com aquilo que havia sido deixado à margem pelos
programas políticos.
Faz-se necessário esclarecer dois importantes conceitos: o da participação e da
colaboração. Gandin (2001) entende a participação enquanto atuação direta,
prática e ideológica, na composição das esferas de tomada de decisões e suas
opções. A participação pressupõe atuação institucional que parte dos elementos
base que compõem as oportunidades de escolha diante de uma determinada
circunstância. Por outro lado, a colaboração contribui com o processo de tomada
de decisão, mas não parte do gérmen formador desta. A colaboração decide em
torno de variáveis e opções já providenciadas pela reflexão do processo de
tomada de decisão, elegendo a opção que melhor convier, mesmo sem haver
participado da construção prática e ideológica desta decisão.
Nesta medida o que se observava era uma sociedade atuante e colaborativa,
porém não participativa, primeiramente porque suas esferas de atuação social
não compunham diretamente pautas e programas políticos, e em segundo lugar
porque não havia interferência nos processos de tomada de decisão e sim a
intenção de minimizar os impactos negativos das decisões tomadas e em outros
casos negligenciadas pela política brasileira da época.
Houve também diversas mudanças e transformações do próprio terceiro setor ao
longo de sua história, houve toda uma redefinição do papel de suas organizações
e do alcance destas organizações. Estas já desfrutaram de largos financiamentos
estatais por conveniência sistêmica, à época do Estado Intervencionista, o que as
levava invariavelmente a se afastarem de sua essência constitutiva e institucional,
no que diz respeito à atuação e participação da sociedade civil organizada nas
temáticas sociais das políticas públicas.
Vale ressaltar que as políticas públicas são outputs resultantes das atividades da
Política, esta por sua vez consiste no conjunto de procedimentos formais e
9
informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução
pacífica de conflitos referentes a bens públicos.
Conforme explicita Rua (1998) as sociedades modernas têm, como principal
característica, a diferenciação social. Isto significa que seus membros não só
possuem atributos diferenciados, como sexo, idade, dentre outros, como também
possuem ideias, valores diferentes, desempenhando, portanto, papéis também
diferentes.
“Tudo isso faz com que a vida em sociedade seja complexa e
frequentemente envolva conflito: de opinião, de interesses, de valores,
etc. Entretanto para que a sociedade possa sobreviver e progredir, o
conflito deve ser mantido dentro de limites administráveis. Para isto
existem apenas dois meios: a coerção pura e simples e a política. O
problema com o uso da coerção é que, quanto mais é utilizada, mais
reduzido se torna seu impacto e mais elevado se torna seu custo. Resta,
então, a política.” (Rua, 1998: 1)
É nesta medida e diante deste cenário que o Estado Intervencionista,
majoritariamente utilizador da coerção, cede espaço ao projeto político Neoliberal,
concedendo à sua maneira à sociedade civil uma maior mobilidade organizacional
que culmina na formação do Terceiro Setor e da cultura do voluntariado no Brasil.
2.3 O voluntariado no Brasil
As práticas voluntárias no Brasil e no mundo sempre existiram sob o caráter de
alguns valores morais universais como a solidariedade e o altruísmo, além do
vínculo propriamente religioso atribuído a esta prática. As Nações Unidas a
pedido de seus países membros criou em 1971 o seu programa de voluntariado e
hoje o voluntariado é reconhecido pelas Nações Unidas pelo importante papel que
desempenha para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM).
As práticas voluntárias segundo Latouche (2009) vão de encontro com o
programa do Decrescimento9, através do qual é preciso se fazer cada vez mais
com menos, reconhece-se que é possível se obter um melhor resultado de
política social gastando menos através da utilização de associações da sociedade
civil e seus profissionais voluntários.
9
O projeto do Decrescimento possui um programa eleitoral próprio que consiste em um círculo
virtuoso dos chamados oito “erres”: “reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar,
reduzir, reutilizar e reciclar” (LATOUCHE, 2009: 42). Seu propósito é o de enfatizar o abandono da
busca pelo crescimento ilimitado, o qual acarreta consequências desastrosas para o meio
ambiente e, portanto para a Humanidade.
10
A Assembleia Geral da ONU proclamou 2001 como o Ano Internacional dos
Voluntários (AIV) em reconhecimento à valiosa contribuição e potencial adicional
do voluntariado para o desenvolvimento econômico e social. O ano de 2011 é
atualmente proclamado como o AIV+10, e sua cerimônia de destaque ocorreu em
agosto deste mesmo ano na cidade do Rio de Janeiro.
A evolução das condições gerais e institucionais das iniciativas civis em nível
conceitualmente reconhecido como Terceiro Setor consolidou o espaço de
atuação da sociedade civil, transformando inclusive o seu viés voluntariado. O
terceiro setor politizou as atividades da sociedade civil e lhes atribuiu caráter
profissional, nesta medida a sociedade civil expandiu seus conhecimentos
institucionais e aprimorou suas ferramentas de gestão. A possibilidade de se
organizar a partir de legislação apropriada10 fortaleceu a capacidade da sociedade
civil de atuar em torno de suas demandas sociais, imprimindo maior autonomia ao
processo e assegurando maior legitimidade às ações implementadas.
Neste contexto o voluntariado também evoluiu e até mesmo se profissionalizou
isso porque os voluntários do passado assumiram a gestão institucional de muitas
organizações que se fundaram sob a causa social em torno da qual militavam.
Estes profissionais do terceiro setor, reflexo de uma sociedade civil organizada
sob legislação própria não deixaram de comparecer diante de suas causas por
automotivação e livres de remuneração salarial, ou seja, continuaram sendo
voluntários, porém agora sob uma nova ótica, que por sua vez não exclui a ótica
anterior dos valores morais da assistência e do altruísmo, mas que extrapola esta
esfera e alcança patamares mais técnicos que promovem níveis de conhecimento
e, portanto contribuição, ainda mais profundos.
A prática do voluntariado é um forte elemento constitutivo do terceiro setor, e que
por isso precisa evoluir conceitualmente juntamente com as transformações e
evoluções pelas quais este setor passa, o voluntariado assume atualmente outros
papéis na sociedade civil e compõe suas organizações para além do
compromisso individual de caridade.
10
As pessoas jurídicas que compõem o Terceiro Setor são legisladas conforme artigos 44 e 45 do
código civil. Toda pessoa jurídica no Terceiro Setor é constituída sem fins lucrativos, as diversas
entidades que se formam a partir destas pessoas jurídicas estão separadas em grupos distintos
conforme sua natureza, objetivo, atividades, dentre outros, alguns destes grupos são: as
Organizações Sociais - OS (Lei 9637/98) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público – OSCIP (Lei 9790/99)
11
O voluntário é um profissional do terceiro setor, cujas qualidades são
diferenciadas dado o não vínculo empregatício e de remuneração que este
desfruta em relação ás organizações às quais pertence.
Uma das qualidades diferenciais do voluntariado que muito se destaca é a
possibilidade de autogestão, segundo Touraine (1976) a autogestão traz consigo
o apelo a uma ação global e representa para um determinado grupo ou
coletividade a possibilidade de controlar sua própria existência. E assim é a
experiência da prática do voluntariado uma possibilidade de desfrutar de uma
autodisciplina que permite gerir as diversas demandas do seu ponto individual
mais criativo, mais autoprodutivo, isso porque a autogestão respeita a vontade, o
interesse subjetivo, que se expressa nas tomadas de decisão. “A autogestão
convoca o homem todo, toda a vida do grupo, da coletividade, para influenciar na
organização e em cada setor da atividade social.” (TOURAINE, 1976: 151)
É por isso que a experiência do voluntariado está diretamente relacionada à
automotivação. Porque a prática individual do voluntariado diz respeito ao
interesse particular do ator social em torno de uma causa ou ideal por livre e
espontâneo desejo. Esta automotivação inerente aos elementos de subjetividade
do voluntário é até mesmo reconhecida pela definição internacional das Nações
Unidas acerca do conceito de voluntariado, tratando-a como interesse pessoal11.
Outra qualidade diferenciada do voluntariado é a emancipação do pensamento
crítico, pois este não se encontra subjugado a uma servidão voluntária, como
costuma ressaltar Matos (1993). A autora, que se apropria do conceito do
voluntariado para definir a condição da servidão voluntária, entende que o
indivíduo serve à dominação do capital por falsa automotivação consumista, pois
no fundo a ideologia do sistema capitalista constrói esta motivação e impõe ao
indivíduo tomá-la como sendo sua, ou seja, inerente à sua subjetividade. As
práticas voluntárias por sua vez estariam livres desta dominação do capital, uma
vez que se trata de uma prática não remunerada e que, portanto não precisa
servir aos ditames do consumo, do lucro, da geração de riqueza, elementos que
11
O voluntário é o jovem ou o adulto que, devido a seu interesse pessoal e ao seu espírito cívico,
dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividades,
organizadas ou não, de bem estar social, ou outros campos. (Preâmbulo da Declaração Universal
sobre o Voluntariado, 1990)
12
invariavelmente afastam as demandas das políticas públicas de suas verdadeiras
causas sociais.
As qualidades diferenciais do voluntariado enquanto profissional do terceiro setor
e suas práticas preenchem, no sentido de que atendem e fazem possível na
prática, por exemplo, o conceito da política do tempo de Gorz (1991) apud
Latouche (2009), no qual o autor reconhece que uma reorganização do ambiente
de vida, da política cultural e da formação da educação que refundasse os
serviços sociais e os equipamentos coletivos promoveria mais espaço para as
atividades autogeridas, de ajuda mútua, de cooperação e portanto de
autoprodução voluntária.
3. CONCLUSÃO
3.1 As premissas da Metodologia Participativa e o voluntariado
A Metodologia Participativa é uma ferramenta de aplicação dos termos e
elementos da Gestão Participativa. Esta por sua vez diz respeito à disciplina
científica que pesquisa e estuda contextos e circunstâncias de participação, ou
seja, momentos em que a tomada de decisão é sempre coletivamente construída.
Segundo Gandin (2001) esta metodologia foi desenvolvida por Instituições,
Grupos e Movimentos que não têm como primeira tarefa e ou missão aumentar o
lucro, competir e se sustentar no ambiente mercantil, mas sim contribuir para a
construção de uma realidade social específica. Tais entidades, incluindo até
mesmo organismos governamentais e seus diversos órgãos, não dispunham de
ferramentas adequadas para organizar seus processos de intervenção na
realidade, até que passaram a se valer da Metodologia Participativa.
Esta metodologia melhor se aplica a contextos afinados com a realidade social,
pois pressupõe altos níveis de participação e processos de tomada de decisão
coletivos, sendo que estes são assim melhor encontrados nas esferas de atuação
da sociedade civil organizada no Terceiro Setor, isso porque é onde se pode
desfrutar de outros níveis de planejamento, onde conceitos de tempo e espaço
são construídos de maneira distinta da que se encontram construídos em outros
setores.
O tempo das demandas sociais é o da criação, é o do diagnóstico social,
processos estes, que necessariamente precisam respeitar o momento do social,
do humano e da subjetividade que orienta as crenças e os sentimentos dos
13
indivíduos e que diz respeito, portanto às suas demandas e conseqüentes
escolhas. O espaço é talvez mais abrangente que os espaços do primeiro e
segundo setores, extrapolando o mapa geográfico que abrange ou não os
stakeholders12 mais competitivos, o espaço é causal, é fruto de uma mobilização
de um ideal proveniente de um inconsciente coletivo, em torno de temas como,
por exemplo: segurança, saúde, transporte público, dentre outros.
A metodologia participativa evoca aquilo que Gandin (2001) definiu como sendo o
terceiro e mais alto nível de participação:
A construção em conjunto acontece quando o poder está com as
pessoas, independentemente de diferenças menores e fundamentado na
igualdade real entre elas. Aí se pode construir um processo de
planejamento em que todos, com o seu saber próprio, com sua
consciência, com sua adesão específica, organizam seus problemas,
suas idéias, seus ideais, seu conhecimento da realidade, suas propostas
e suas ações. Todos crescem juntos, transformam a realidade, criam o
novo, em proveito de todos e com o trabalho coordenado. (Gandin, 2001:
89)
O Terceiro Setor tem melhor oportunidade de desfrutar e praticar esta
metodologia participativa com maior eficácia e eficiência, e, portanto de maneira
verdadeiramente efetiva, porque assegura a atuação do coletivo pela iniciativa
desapegada de alguns elementos que ao contrário de todo o sistema social dos
setores privado e estatal, está estruturado em outras premissas, privilegiando
elementos que normalmente dificultam este tipo de metodologia, e todas suas
oportunidades de participação. Nestes setores, seus sistemas sociais em geral
orientam as pessoas em direção a modos de convivência nos quais: “as pessoas
não acreditam na igualdade fundamental que têm entre si; acreditam no mais
sábio, no mais rico, no mais poderoso, no mais forte... admitindo que estas
características sejam suficientes para excluir de direitos fundamentais aqueles
que não as possuem em tão alto grau.” (Gandin, 2001: 89).
A meritocracia no terceiro setor é sempre uma referência à decisão coordenada
do coletivo em prol de uma mesma causa. Neste contexto ela iguala e não
diferencia pela competitividade. A descentralização do poder, entre os membros
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As partes interessadas que devem estar de acordo com as práticas de governança corporativa
executadas por uma determinada empresa. O termo foi usado pela primeira vez pelo filósofo
Robert Edward Freeman. Segundo ele, os stakeholders são elementos essenciais ao
planejamento estratégico de negócios. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Stakeholder, acessado em
17/10/2011)
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da sociedade civil organizada, assegura a relevância de cada parte na
constituição singular do todo.
As premissas da metodologia participativa constituintes dos processos de tomada
de decisão da sociedade civil organizada no Terceiro Setor se comprovam nas
práticas voluntariadas que são a expressão concreta de todas as premissas
participativas: tomada de decisão coletiva, autoconhecimento e autocrítica, e
descentralização. A prática do voluntariado é a expressão máxima destas
premissas que remontam o ideal constituinte do próprio Terceiro Setor enquanto
sociedade civil organizada.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOARES, J. C. & EWALD, A. P. Escola de Frankfurt: “o elogia a sombra”.
Estudo e pesquisas em psicologia: Dossiê Escoa de Frankfurt, Rio de Janeiro, vol.
11, n. 1, 2011.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.
MATOS, O. C. F. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São
Paulo: Moderna, 1993.
BONFIM, Paula. A “Cultura do Voluntariado” no Brasil: determinações econômicas
e ideopolíticas na atualidade. São Paulo: Cortez, 2010.
GANDIN, Danilo. A Posição do Planejamento Participativo entre as
Ferramentas de Intervenção na Realidade. Porto Alegre, Currículo sem
Fronteiras, v.1, n.1, pp.81-95, Jan./Jun. 2001.
RUA, Maria das Graças. Análise de Políticas Públicas: Conceitos Básicos.
Universidade de Brasília, Brasília, 1998, Mimeo.
LATOUCHE, S. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2009.
Volunteering. <http://en.wikipedia.org/wiki/Volunteering> Acesso em 8 fev. 2011.
TOURAINE, Alain. Cartas a uma jovem socióloga. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.
NASCIMENTO, Lia do. Neoliberalismo e o Estado de Bem Estar. In: Disciplina
de Responsabilidade Social e Terceiro Setor, Universidade Veiga de Almeida, Rio
de Janeiro, 2010. Mimeo.
ALMEIDA, Maria Cristina Salomão. A questão da participação. In: Disciplina de
planejamento, gerenciamento e execução de projetos sociais, Universidade Veiga
de Almeida, Rio de Janeiro, 2010. Mimeo.
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