CORNELIUS CARDEW AND THE FREEDOM OF LISTENING Cornelius Cardew e a liberdade da escuta 8 DE MAIO ^ 26 DE JUNHO 2010 Culturgest,Porto 1 Uma Orquestra de Arranhar*: rascunho de constituição Cornelius Cardew Definição: Uma Orquestra de Arranhar é um grande número de entusiastas que juntam os seus recursos (essencialmente recursos não-materiais) e se reúnem para agir (fazer música, tocar, edificação). Nota: Não se entende aqui a palavra música e seus derivados como referindo-se exclusivamente ao som e aos fenómenos com ele relacionados (ouvir, etc.). Os seus referentes são flexíveis e dependem inteiramente dos membros da Orquestra de Arranhar. A Scratch Orchestra tenciona intervir na esfera pública, e tal intervenção será expressa sob forma de – à falta de melhor palavra – concertos. Rotativamente (começando pelo mais novo), cada um dos membros terá a possibilidade de conceber um concerto. Caso esta possibilidade seja assumida, todos os detalhes desse concerto ficam nas mãos dessa pessoa ou dos seus delegados; se alguém prescindir desta possibilidade, os detalhes do concerto serão determinados por métodos aleatórios, ou por votação (estas duas hipóteses vão a votação). O material destes concertos pode ser retirado, em parte ou na totalidade, das categorias básicas de repertório esquematizadas abaixo. 1. Música de Arranhar Cada membro da orquestra arranja um bloco de notas (ou de arranhadelas) onde anota uma série de acompanhamentos, susceptíveis de serem continuamente interpretados por períodos indefinidos. O número de acompanhamentos em cada bloco de notas deverá ser igual ou superior ao número efectivo de membros da orquestra. Um acompanhamento é definido como música que permite que um solo (caso ocorra algum) seja apreciado como tal. A notação pode ser efectuada usando quaisquer meios (verbais, gráficos, musicais, colagem, etc.) e deve ser considerada um período de treino – nunca anotem mais do que um acompanhamento por dia. Se vos surgirem muitas ideias num mesmo dia, podem incorporá-las todas num só acompanhamento. O último acompanhamento na lista tem o estatuto de solo, e se for usado deve sê-lo apenas desse modo. Quando se adicionam mais itens, aquilo que previamente constituía um solo é relegado para o estatuto de acompanhamento, de modo que em qualquer altura cada intérprete tenha apenas um solo correspondente ao seu mais recente acompanhamento. A única diferenciação entre um solo e um acompanhamento consiste no modo de serem tocados. A interpretação desta música pode ser intitulada Scratch Overture, Scratch Interlude ou Scratch Finale, dependendo da sua posição no concerto. 2. Clássicos Populares Apenas são elegíveis para esta categoria obras familiares a vários membros. Juntar-se-ão no Apêndice 1 partículas das obras seleccionadas. Uma partícula pode ser: uma página de uma partitura; uma página, ou mais, de uma parte para um instrumento ou voz; uma página de um arranjo; uma análise temática; um disco de gramofone, etc. A técnica de interpretação é a seguinte: um membro qualificado toca uma dada partícula, enquanto os restantes intérpretes o acompanham o melhor que podem, tocando com ele, contribuindo com aquilo de que se lembrarem da obra em questão, preenchendo as falhas de memória com variações improvisadas. Tal como é apropriado para os clássicos, evitem perder o contacto com o intérprete que está a ler (e que poderá terminar a peça quando lhe aprouver), e procurem actuar concertadamente em vez de independentemente. Estas obras deverão ser mencionadas no programa com os seus títulos originais. 3. Ritos de Improvisação Estará disponível no Apêndice 2 uma selecção dos ritos nas Nature Study Notes. Os membros deverão ter sempre em conta a possibilidade de contribuírem com novos ritos. Um rito de improvisação não é uma composição musical; não procura influenciar a música que irá ser tocada; quando muito pode estabelecer uma comunidade de sentimento, ou um ponto de partida comum, através do ritual. Qualquer rito sugerido será posto à experiência e depois deixado à sua sorte. Os ritos bem-sucedidos poderão eventualmente integrar elementos de folclore, adquirir alcunhas, etc. De tempos a tempos, também nos podemos entregar à improvisação livre. 4. Composições O Apêndice 3 incluirá uma lista das composições que poderão ser interpretadas pela orquestra. Qualquer composição submetida por um membro será posta à experiência e todos os termos da composição serão seguidos o mais fielmente possível. Excepto nos casos em que sejam enfaticamente rejeitadas, tais composições irão provavelmente manter-se como composições no Apêndice 3. Se a composição for repetidamente aclamada, pode qualificar-se para ser incluída nos Clássicos Populares, onde será representada por uma partícula apenas, prescindindo-se da adesão aos termos originais da composição. 5. Projecto de Investigação Pode ser desenvolvida uma quinta categoria de repertório através do Projecto de Investigação, uma actividade obrigatória para todos os membros da Scratch Orchestra, para assegurar a sua expansão cultural. O Projecto de Investigação. O universo é encarado na perspectiva da viagem. Isso significa que um número infinito de vectores de investigação é considerado como hipotéticas rotas de viagem. As viagens podem ser realizadas em muitas dimensões, por exemplo, temporal, espacial, intelectual, espiritual, emocional. Imagino que qualquer dos vectores pode, em certo sentido, atravessar todas estas dimensões. Por exemplo, se o vosso vector de investigação for Tigre, podem estar envolvidos a nível temporal (visto o tigre representar uma espécie em evolução), espacial (uma visita ao jardim zoológico), intelectual (a biologia do tigre), espiritual (os valores simbólicos adquiridos pelo tigre) e emocional (a vossa relação subjectiva com o tigre). O que ficou acima exposto é uma estrutura intelectual, por isso, para começar, vamos assumir que o vector de investigação é uma palavra ou um grupo de palavras, mais do que um objecto ou uma impressão, etc. Esta investigação é registada no “bloco de arranhadelas”, e este registo poderá ser partilhado por todos. De tempos a tempos vai ser proposta uma viagem (Viagem a Marte, Viagem à Corte de Wu Ti, Viagem ao Inconsciente, Viagem a West Ham, etc.). Bastará uma discussão para providenciar um itinerário aproximado (ex.: entrada a bordo no Cabo Kennedy, tipo de veículo a ser usado, número de horas no espaço, escolha de local de aterragem, regresso à terra ou não, etc.). Os membros cujos vectores sejam relevantes para esta viagem podem explorar essa relevância e considerar a aplicação musical da sua investigação; os membros cujos vectores sejam irrelevantes (a investigação sobre combustíveis para foguetões não vai ser útil para uma viagem à Corte de Wu Ti) podem pôr-se à disposição dos outros para a realização musical da sua investigação. Pode marcar-se a data da viagem, sob forma de uma performance. Modo de conduzir a investigação. A investigação deve ser realizada por experiência directa, e não académica; não negligenciem nenhuns canais. O objectivo é: através de contacto directo, imaginação, identificação e estudo, aproximarem-se o mais possível do vosso objecto de investigação. Evitem a acumulação mecânica de informações; estejam constantemente despertos para a possibilidade de inventar novas técnicas de investigação. O registo no “bloco de arranhadelas” deve dar conta da vossa actividade, mais do que acumular informações. Ou seja: os resultados da vossa investigação estão em vocês mesmos, não no caderno. Exemplo Vector de investigação O Sol Astrologia Registo da investigação 29/06 Procurei informação astronómica na EB [Enciclopédia Britânica] & tomei algumas notas sobre grãos de poeira (símbolo da EB) e raios de sol. 1-28/08 Férias nas Bahamas para me expor ao sol. 29/07 Vi “the sun” [o sol] como um conjunto de 6 letras e escrevi as suas 720 combinações. 1/08 Fiquei interessado no género masc. ou fem. de Sol em diferentes línguas, e por conseguinte em personagens históricas vistas como o Sol (ex.: Mao Tsé-Tung). Procurei um elo astrológico entre eles. 3/08 A Mme. Jonesky da Gee’s Court fez o meu horóscopo. etc. (notem que vários vectores podem funcionar em simultâneo) (a página em frente deverá ser deixada em branco para notas sobre eventuais descobertas musicais) Actividade de tempos livres para membros da orquestra: cada membro deverá trabalhar na construção de um instrumento único – mecânico, musical, electrónico ou de outro tipo. APÊNDICES Apêndice 1 Clássicos Populares Partículas de: Beethoven, Pastoral Symphony Mozart, Eine Kleine Nachtmusi Rachmaninov, Second Piano Concerto J. S. Bach, Sheep May Safely Graze Cage, Piano Concert Brahms, Requiem Schoenberg, Pierrot Lunaire etc. (páginas em branco para adições) Apêndice 2 Ritos de Improvisação do caderno Nature Study Notes (devem bastar dois exemplos) 1 Início do batimento Continuação do batimento Desvio através de acentuação, decoração, contradição Howard Skempton 14 Todos sentados descontraidamente num círculo, cada músico vai escrever ou desenhar em cada uma das dez unhas do músico à sua esquerda. Depois de terem as unhas escritas ou desenhadas, os músicos não poderão fazer nenhuma acção ou som, excepto música. Rito de encerramento: cada músico deve apagar as marcas das unhas de outro músico. A vossa participação na música termina quando vos tiverem apagado as marcas das unhas. (Grupos de duas ou mais pessoas que tenham chegado atrasadas podem usar o mesmo rito para se juntarem a uma improvisação já a decorrer.) (páginas em branco para adições) Richard Reason Apêndice 3 Lista das Composições Lamonte Young, Poem Von Biel, World II Terry Riley, in C Christopher Hobbs, Voicepiece Stockhausen, Aus den Sieben Tagen Wolff, Play Cage, Variations VI etc. (páginas em branco para adições) Apêndice 4 Projectos Especiais e material suplementar (páginas em branco) No momento em que este texto vai ser publicado, a orquestra tem 60 membros. São bem-vindos mais. Deve haver um encontro para confirmar o rascunho da constituição e começar os ensaios, antes da pausa de Verão. Concerto inaugural projectado para Novembro de 1969. As pessoas interessadas devem escrever para Cornelius Cardew, 112 Elm Grove Road, London SWI3. Texto originalmente publicado em The Musical Times, em Junho de 1969. * Optou-se por traduzir Scratch Orchestra nas suas duas primeiras ocorrências, de modo a sublinhar os jogos de palavras presentes no texto. CORNELIUS Cornelius CARDEW Cardew eAND THEa FREEDOM OF LISTENING liberdade da escuta Cornelius Cardew e a liberdade da escuta 8 de Maio - 26 de Junho 2010 Culturgest, Porto A Culturgest tem o prazer de apresentar Cornelius Cardew e a liberdade da escuta, uma exposição e um programa de concertos, performances e conversas com curadoria de Dean Inkster, Jean-Jacques Palix, Lore Gablier e Pierre Bal-Blanc. A exposição reconstitui o percurso do compositor inglês Cornelius Cardew (1936-1981), desde os seus estudos e a sua colaboração com o compositor alemão Karlheinz Stockhausen, até à história da Scratch Orchestra, que ele co-fundou em 1969 e à qual se manteve ligado até à sua dissolução em 1975, altura em que renegou o seu trabalho como compositor de vanguarda e passou a dedicar toda a sua energia à militância política. Iniciada pelo Centre d’art contemporain de Brétigny na Primavera de 2009, e apresentada posteriormente na Künstlerhaus Sttutgart, a exposição reúne um conjunto de filmes (de Hanne Boenisch, Luke Fowler, Nicolas Tilly e Lore Gablier), numerosas gravações musicais e vasto material de arquivo, incluindo partituras, cartazes e fotografias. Os materiais para a exposição foram generosamente cedidos por Horace Cardew, IRCAM (Paris), The Modern Institute (Glasgow), Keith Rowe, Victor Schonfield, Stefan Szczelkun, Samon Takahashi e Ruth Hilton. Para além da exposição, este projecto engloba ainda um intenso programa de concertos, performances e conversas, ao longo do qual vários músicos e artistas internacionais interpretam partituras de Cardew e respondem ao seu trabalho de formas muito diversas, dando conta quer da duradoura vitalidade do trabalho do compositor e do seu contributo fundamental para a história da música experimental, quer da ressonância actual da sua obra e das suas ideias nas práticas musicais e artísticas contemporâneas. 3 Miguel Wandschneider, programador Culturgest Pierre Bal-Blanc, director CAC Brétigny Cornelius Cardew é indiscutivelmente um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX. Embora não tenha tido ainda um reconhecimento público alargado – ao contrário de Karlheinz Stockhausen e de John Cage, que influenciaram decisivamente a sua obra num período inicial –, Cardew inspirou toda uma geração de compositores e músicos de vanguarda, sendo reivindicado como importante influência por nomes como Gavin Bryars, Brian Eno, Michael Nyman, Frederic Rzewski ou Christian Wolff. Por outro lado, a radicalidade da sua abordagem à composição e a sua reflexão política sobre o estatuto da produção e da recepção musicais levaram-no, no final da década de 1960, a instigar uma das mais importantes tentativas de estabelecer as reivindicações democráticas da cultura de vanguarda, a Scratch Orchestra. Nascida a partir das aulas que Cardew leccionava, em 1968, no Morley College (um colégio de educação para adultos no sul de Londres), a Scratch Orchestra questionou radicalmente as limitações sociais da arte e da música como domínios de conhecimento e experiência especializados. Combinando músicos e não-músicos, a Scratch Orchestra subverteu não só as fronteiras e hierarquias tradicionais entre o compositor, o intérprete e o ouvinte, mas também as fronteiras que cindiam o domínio da arte em campos separados – as artes visuais e a performance eram igualmente parte da experiência colectiva e criativa que inspirou os membros da Scratch Orchestra durante os seus seis anos de existência. Desde 2006, ano do septuagésimo aniversário do seu nascimento, o interesse por Cardew, não só como compositor, mas também como figura política, ganhou um novo ímpeto. Para além de interpretações regulares da sua obra por todo o mundo, foi publicada nesse ano uma antologia dos seus escritos, Cornelius Cardew (1936-1981): A Reader, seguida em 2008 pela publicação de uma extensa biografia, Cornelius Cardew (1936-1981): A Life Unfinished, escrita pelo pianista (e antigo membro da Scratch Orchestra) John Tilbury. Este foi igualmente o ano em que se realizou a exposição Cornelius Cardew: Play for Today, comissariada por Grant Watson no MukHA, em Antuérpia, e que seria apresentada, no final de 2009, no Drawing Room, em Londres. À luz deste interesse renovado pela obra e pelo percurso de Cornelius Cardew, e num momento histórico em que é demasiado fácil ter um olhar sentimental “sobre os bons velhos tempos de experimentação e acção”, como sugeriu uma recensão crítica recente dos escritos de Cardew, este projecto procura não só reconstituir a história de um dos mais influentes compositores da vanguarda da segunda metade do século XX, e do importante grupo de vanguarda que ele inspirou, mas também mostrar por que razão o exemplo de Cardew é necessário “para nos fazer sair da nossa complacência e do nosso desespero actuais”. Dean Inkster CORNELIUS PROGRAMACARDEW AND THE FREEDOM OF LISTENING Cornelius Cardew e a liberdade da escuta Sexta-feira, 28 de Maio Sábado, 8 de Maio 16h30 Cornelius Cardew, The Great Learning, Paragraph 7 (1969) concerto dirigido por Jean-Jacques Palix com cerca de trinta intérpretes voluntários 22h00 Tania Chen, recital de piano obras de Cornelius Cardew, John Cage, Michael Parsons, Christian Wolff 21h30 Christian Wolff, recital de piano precedido da interpretação de Stones (1968) e Burdocks (1972), deste compositor, por cerca de quinze intérpretes voluntários Sábado, 29 de Maio Sexta-feira, 14 de Maio 17h00 Cornelius Cardew, The Great Learning, Paragraph 5 (1970) performance dirigida por Lore Gablier, Annie Vigier e Franck Apertet com Emilie Bonnaud, Horace Cardew, Walter Cardew, Luis Corvalan, Thibaud Croisy, Sophie Demeyer, Lore Gablier, Déborah Lary, Clémentine Maubon, Stève Paulet e Santiago Reyes 22h00 Cornelius Cardew, Treatise (1963-1967) concerto de Keith Rowe com Heitor Alves, Sei Miguel e Vítor Rua 22h00 Walter Cardew Group, concerto (Horace Cardew, Walter Cardew, Androniki Liokoura) Sábado, 15 de Maio Sexta-feira, 18 de Junho 16h00 Michael Parsons, Walk (1969) performance coordenada por Jean-Jacques Palix com cerca de vinte intérpretes voluntários 17h00 Carole Finer, Keith Rowe e Stefan Szczelkun, A Scratch “Dealer Concert” concerto com obras de Howard Skempton, Christian Wolff e Stefan Szczelkun, entre outros seguido de uma conversa com os três antigos membros da Scratch Orchestra 19h00 Projecção de excertos de filmes de Stefan Szczelkun comentados pelo próprio artista e activista Sábado, 22 de Maio 17h00 1001 Scratch Activities performance de Loreto Troncoso e António Júlio 22h00 Cornelius Cardew, Treatise (1963-1967) concerto de Michel Guillet, Jean-Jacques Palix, Marcus Schmickler e Samon Takahashi Piotr Kurek, Lectures, concerto 22h00 Cornelius Cardew, Volo Solo (1965) concerto de Rhys Chatham Cornelius Cardew, The Tiger’s Mind (1967) concerto de Nina Canal, Nadia Lichtig e David Watson Sábado, 19 de Junho 21h30 John Tilbury, palestra e recital de piano obras de Cornelius Cardew Sexta-feira, 25 de Junho 22h00 Terre Thaemlitz, Meditation on Wage Labor and the Death of the Album, recital de piano 4 5 [Uma] composição não é um produto final, não é em si mesma uma mercadoria útil. O produto final do trabalho de um artista, a "mercadoria útil” em cuja produção ele desempenha um papel, é a influência ideológica... A produção da influência ideológica é altamente socializada, envolvendo (no caso da música) intérpretes, críticos, empresários, agentes, managers, etc., e acima de tudo (e esse constitui o verdadeiro "meio de produção” de um artista) um público... Cornelius Cardew ENTREVISTA COM LORE GABLIER DEAN INKSTER E JEAN-JACQUES PALIX Brian Eno interessou-se pela música de Cornelius Cardew (1936-1981), compositor ao qual o Centre d’art contemporain de Brétigny consagra uma exposição entre 5 de Abril e 27 de Junho de 2009, Cornelius Cardew et la liberté de l’écoute. Comparecem ao encontro pesquisas gráficas e signos de notação musical desconhecidos, sons livres, aleatórios e improvisados, concertos entre acções e performances. Emergem não só novas modalidades de escuta e de criação, mas também um novo corpo sonoro, outros gestos, deslocamentos, andamentos, produzidos na radicalidade política da Scratch Orchestra, formação na qual Cornelius Cardew reinventou a utopia sonora. Encontro com os comissários desta exposição. Alexandre Castant: Como expor o som? Hoje, quando o som se torna um actor principal da criação (plástica) contemporânea, e quando a pesquisa musical de vanguarda é por vezes acolhida pelos museus de arte contemporânea – na circunstância da presente exposição, por um centro de arte –, esta interrogação assume plena actualidade. E vocês ter-se-ão decerto confrontado com ela ao trazer para o espaço expositivo a obra musical de Cornelius Cardew. Lore Gablier, Dean Inkster, Jean-Jacques Palix: Uma das maiores dificuldades quando, numa exposição, tratamos da obra de um compositor reside na própria natureza dos objectos apresentados: na realidade, estamos sobretudo perante documentos de arquivo e partituras, e ainda perante gravações. Por isso, quando construímos a exposição, não foi tanto a restituição da obra musical de Cardew o que nos preocupou, mas antes a problemática relativa à exposição de arquivos, cuja relevância não se limita apenas a exposições sobre o som ou a música. A.C.: Precisamente. Há na obra de Cardew um interesse pela plasticidade, que torna a comunicação com as artes visuais, se não fácil, pelo menos coerente e tangível. Cardew era designer gráfico de profissão e, como muitos dos compositores seus contemporâneos, inventou uma notação musical susceptível de dar uma nova forma à sua música. Nesta perspectiva, vocês exibem Treatise (1963-1967), uma partitura que sintetiza a sua concepção musical e a sua radicalidade. Poderiam falar-nos desta última experiência, bem como da relação que Cardew mantém com a plasticidade e com a picturalidade dos signos? L.G., D.I., J.-J.P.: Treatise, a obra mais conhecida de Cardew, é uma partitura gráfica de 193 páginas, escrita no contexto da sua participação no grupo de improvisação AMM. Além do seu interesse plástico, Treatise é também – e desde logo pelo seu título – uma homenagem a Ludwig Wittgenstein, cujos escritos inspiraram em grande medida a prática radical de Cardew. Neste sentido, Treatise permanece uma obra deliberadamente opaca, uma vez que Cardew, na esteira do que faz Wittgenstein nas suas Investigações Filosóficas, põe em questão a ideia de uma linguagem – no caso, musical – preestabelecida e que precede o seu uso e a sua interpretação. Com a sua sobreposição de linhas, de formas e de símbolos de significação indeterminada, a partitura contribuía para pôr novamente em causa as práticas da composição. O tom, o timbre e a duração de cada nota, do mesmo modo que a escolha dos instrumentos, ou ainda o número de intérpretes, eram aspectos deixados ao critério daquele que quisesse lançar-se na sua interpretação. No seu texto “Towards an Ethic of Improvisation”, Cardew afirmava, ao comentar os inconvenientes da educação 6 R, musical, que as execuções mais válidas da sua peça tinham sido, por sinal, as de intérpretes que ou tinham “adquirido alguma forma de educação visual” – e era esse o caso dos três membros dos AMM –, ou tinham “escapado a toda e qualquer educação musical...”. A.C.: A outra ligação, que parece evidente, à história da qual Cardew é contemporâneo, é o Fluxus. Entre acção e performance, uma música aleatória, livre e improvisada na transgressão do espaço artístico, musical, público, social parece muitas vezes solicitada, nele como em John Cage ou Charlotte Moorman. Qual é a natureza desta relação que Cornelius Cardew mantém com o Fluxus? E é para citá-la que numa das vitrinas desta exposição se evoca Georges Brecht? L.G., D.I., J.-J.P.: Cardew conheceu La Monte Young no fim dos anos de 1950, em Darmstadt, onde ambos estudavam. Os dois compositores mantiveram a seguir uma correspondência regular, nomeadamente na época em que Young editava An Anthology of Chance Operations, uma colectânea de partituras indeterminadas que teve uma importância decisiva na formação do Fluxus. Cardew desempenhou igualmente um papel importante na introdução em Inglaterra, durante a década de 1960, da música de Young e de outros compositores de vanguarda americanos na senda de John Cage. No final dessa década, está também em contacto com George Brecht, que então vivia em Londres e participou em The Scratch Anthology of Compositions, uma edição que reunia um conjunto de partituras da Scratch Orchestra. É sobretudo no recurso à “notação verbal” que descobrimos a influência, ainda que indirecta, do Fluxus sobre as obras que Cardew elaborou a partir de finais dos anos de 1960. A “notação verbal”, preponderante nas partituras do Fluxus, visava antes do mais desqualificar a aptidão musical. Vemo-lo claramente nas composições de Young, como a sua Composition 1960 n.º 10 – que estipula: “Traça uma linha recta e segue-a” –, ou ainda em Event Scores, de George Brecht. Deve contudo observar-se que a Scratch Orchestra, de certo modo, levou as ambições da vanguarda ainda mais longe do que os membros do Fluxus. O que estes últimos propunham, não sem ironia, a saber, a eliminação do savoir-faire tradicionalmente associado à arte e à música erudita, em proveito de uma experiência artística igualitária e não-alienada, foi por assim dizer realmente experimentado pela Scratch Orchestra. E foi sem dúvida a ausência da distância irónica característica do Fluxus – não só perante a dissolução da tradição artística, mas também perante o empobrecimento da cultura contemporânea – que conduziu certos membros da orquestra a comprometerem-se politicamente com maior determinação e urgência. A.C.: Quando a Scratch Orchestra se forma em 1969, a sua ambição musical é animada, desde o início, por um projecto radical, colectivista e militante. Esta concepção política – marxista-leninista no caso de Cardew – refere-se à própria escrita musical, mas também à sua interpretação, à sua difusão e à sua recepção. Podem falar-nos desta operação política na música de Cardew e no interior da Scratch Orchestra? 7 L.G., D.I., J.-J.P: Não é com certeza possível excluir uma leitura política da Scratch Orchestra, uma vez que, desde a sua formação, ela visava formar uma comunidade radicalmente igualitária, ou até libertária. Fundada em 1969, no contexto do curso de música experimental para adultos que Cardew dava no Morley College em Londres, a Scratch Orchestra assentava no princípio de que qualquer pessoa, com ou sem formação musical, podia fazer parte dela. Esta ambição igualitária inspirou evidentemente Cardew nas suas obras da época, sobretudo nos sete parágrafos da composição The Great Learning, escrita em grande parte especialmente para a orquestra. No entanto, como mostra o filme de Hanne Boenisch apresentado na exposição, Journey to the North Pole (1971), Cardew, num primeiro tempo, duvidava da vontade de certos membros de tornar a orquestra uma plataforma abertamente política. E, a partir do momento em que, em meados dos anos de 1970, ele próprio se compromete plenamente com a via da política marxista-leninista, a orquestra acaba por se dissolver. O livro que Cardew publica em 1974, Stockhausen Serves Imperialism, assinala claramente o seu compromisso político e, ao mesmo tempo, a sua rejeição da música de vanguarda, e é acompanhado por uma ampla autocrítica, baseada numa análise marxista, das suas próprias composições e da orquestra. Depois de assumir o seu compromisso político, Cardew não compôs senão música militante, principalmente canções ou solos para piano de inspiração neoclássica, excluindo quaisquer referências à vanguarda e à experimentação. A.C.: Brian Eno, Michael Nyman ou Gavin Bryars interessaram-se e, em certos casos, foram influenciados pelos trabalhos de Cornelius Cardew. Qual é a posteridade da sua música? Pelo meu lado, os vídeos que vocês mostram impressionaram-me pela nova gestualidade musical que deles ressalta – é como que um novo corpo sonoro que age, entre os músicos, entre os intérpretes, numa comunidade. Não será também nesta dimensão musical, pós-coreográfica, por assim dizer, que deveremos procurar as razões do fascínio que ele exerceu? L.G., D.I., J.-J.P.: Embora Brian Eno só brevemente tenha estado ligado à Scratch Orchestra, este sempre reivindicou o facto de a sua primeira gravação oficial, o Parágrafo 7 de The Great Learning, produzida pela Deutsche Grammophon em 1971, ter sido realizada com a Scratch Orchestra. Eno entrou em contacto com a Scratch Orchestra através do seu professor na escola de arte de Winchester, o artista Tom Philips. Mais tarde, redigirá uma análise incisiva do Parágrafo 7 no seu ensaio “Generating and Organizing Variety in the Arts”. Bem entendido, Cardew ocupa igualmente um lugar central no livro de Nyman, Experimental Music: Cage and Beyond. No entanto, fora do domínio da música contemporânea, não beneficia do reconhecimento que merece, nem aqui, nem sequer em Inglaterra, e isto apesar de aqueles que estiveram perto dele e com quem ele colaborou, e em particular os que participaram activamente na Scratch Orchestra, lhe terem permanecido fiéis. Carol Chant, antigo membro da orquestra, difundiu recentemente uma maratona de 36 horas na rádio londrina Resonance FM para celebrar o quadragésimo aniversário da Scratch Orchestra. É verdade que as reacções que nos chegaram relativamente à exposição Cornelius Cardew et la liberté de l’écoute revelam um interesse novo por Cardew e pela Scratch Orchestra, e talvez este interesse seja mais que necessário, tendo em conta a complacência cultural que hoje reina. Entrevista publicada em Particules, n.º 25, Junho-Agosto 2009, p. 24 Programa 8 de Maio Sábado, 8 de Maio 22h00 Tania Chen, recital de piano Programa Cornelius Cardew: Winter Potato no. 1 (de 3 Winter Potatoes, 1961-65) Unintended Piano Music, 1971 Octet 61’ for Jasper Johns, 1961 Sábado, 8 de Maio 16h30 The Great Learning, Paragraph 7 (1969) Cornelius Cardew concerto vocal dirigido por Jean-Jacques Palix com a participação de cerca de trinta intérpretes voluntários O Parágrafo 7 é o único parágrafo de The Great Learning escrito apenas para voz, e destina-se a ser interpretado por um número variável de cantores, com ou sem formação específica. As instruções verbais simples que constituem a partitura não exigem experiência musical prévia e são acessíveis a qualquer grupo de pessoas que queira interpretá-las. O Parágrafo 7 é, em termos composicionais, o ponto culminante da obra de Cardew no que diz respeito à criação de uma composição que subverte o virtuosismo técnico e a concomitante divisão hierárquica entre intérprete e ouvinte que tradicionalmente regula a música enquanto forma cultural. A composição é concebida de modo a eliminar a distinção formal, ao nível da interpretação, entre um grupo de cantores com formação específica e, para citar Cardew, um grupo de “inocentes musicais”. John Cage: Four Walls (excertos de uma partitura para piano e voz composta para Merce Cunningham) Michael Parsons: Piano Piece, 1968 Piano Piece, 2003 (escrita para Tania Chen) Christian Wolff: no. 6 + no. 16 (de 20 Small Preludes, 2008-09) Tania Chen é pianista. Interpretou música de compositores experimentais, como John Cage, Morton Feldman e Cornelius Cardew, no Reino Unido, no Japão, na Europa e nos Estados Unidos. Também estreou e interpretou obras para piano de compositores contemporâneos, como Michael Parsons, Laurence Crane, James Saunders e Andrew Poppy. Em Maio de 2007, participou, juntamente com Gavin Bryars e Michael Nyman, entre outros músicos, numa interpretação de Vexations, de Eric Satie, que durou toda a noite, acompanhada pela projecção do filme Sleep, de Andy Warhol, na Turbine Hall da Tate Modern. É também conhecida pela sua paixão pela improvisação livre, que cultiva não só enquanto pianista, mas também utilizando vários objectos e electrónica. Enquanto improvisadora, tem actuado regularmente no Reino Unido e na Europa, ao lado de Steve Beresford, Mark Sanders, John Edwards, Lol Coxhill, Dominic Lash, Seb Rochford e Guillaume Viltard. Jean-Jacques Palix (ver biografia, p. 24) 8 9 Sexta-feira, 14 de Maio 22h00 Treatise (1963-1967) Cornelius Cardew concerto de Keith Rowe (guitarra eléctrica preparada, electrónica e vários objectos) com Heitor Alves (guitarra eléctrica e electrónica), Sei Miguel (pocket trumpet) e Vítor Rua (baixo eléctrico) Treatise Treatise, a obra-prima de Cardew, é uma partitura gráfica de 193 páginas, escrita no período em que ele tocou com o grupo de improvisação AMM. A notação gráfica – com as suas linhas intrincadas, os seus símbolos e figuras (em parte inspirados pelo facto de Cardew ter trabalhado como designer gráfico nesse período) – visava problematizar os limites da prática composicional. De facto, as decisões relativas ao tom, ao timbre e à duração, juntamente com a escolha dos instrumentos e o número de intérpretes, eram inteiramente deixadas ao critério de quem estivesse disposto a conceber as regras e os meios para a interpretação desta peça. Keith Rowe (n. 1940) é um guitarrista e artista visual inglês. É consensualmente reconhecido como o “pai” da improvisação electroacústica. Começou por tocar jazz no final da década de 1950, quando era estudante de pintura numa escola de arte em Plymouth. Em 1965, foi um dos fundadores do seminal grupo de improvisação AMM, juntamente com Lou Gare e Eddie Prévost. Enquanto membro dos AMM, desenvolveu um estilo único e muito influente, pelo qual ainda hoje é conhecido, que consiste em tocar com a guitarra deitada numa mesa, incorporando numerosos efeitos e objectos encontrados. Foi um dos primeiros músicos a interpretar as partituras para improvisação Treatise e The Tiger’s Mind, que Cornelius Cardew desenvolveu durante a sua ligação ao grupo. Foi um membro muito activo da Scratch Orchestra, tendo influenciado a politização desta a partir de 1972. Nos últimos anos, colaborou regularmente com músicos como Oren Ambarchi, Burkhard Beins, Christian Fennesz, Sachiko M, Jeffrey Morgan, Toshimaru Nakamura, Peter Rehberg, Taku Sugimoto, Howard Skempton, Christian Wolff e Otomo Yoshihide. Heitor Alves (n. 1977) é um experimentalista, construtor, desconstrutor, produtor de ruído, designer de som e inventor. Desde 2000, tem estado envolvido em vários projectos, tais como Atom Size Elephant, Noizalicious e He & She. Produziu e interpretou música experimental e improvisada com e para crianças. Sei Miguel (n. 1961) vive em Portugal desde a década de 1980. Enquanto director, arranjador e instrumentista, tocou com numerosas formações musicais em Portugal, na Alemanha, em Itália, no Reino Unido e no Brasil. A sua obra explora aquilo que ele descreve como “um universo de progressão artística e humana de potencial aparentemente infinito”. O seu instrumento principal é o pocket trumpet. Colabora regularmente com o músico Rafael Toral, o guitarrista Manuel Mota, a trombonista Fala Mariam e o percussionista César Burago. Escreveu música para teatro e ballet, e edita gravações da sua obra desde 1988. Entre os seus discos mais recentes incluem-se The Tone Gardens (2006) e Esfíngico: Suite for a Jazz Combo. Vítor Rua (n. 1961) começou a sua actividade no final da década de 1970 com uma série de intervenções que mudaram a face do pop/rock português. Em 1987, num acto de determinação autodidacta, consagrou-se ao estudo da notação musical contemporânea. Desde então, a sua obra tem oscilado entre a improvisação estruturada e a composição estrita. Tocou com figuras cimeiras do mundo da improvisação, como Chris Cutler, Elliott Sharp, Jac Berrocal, Carlos Zíngaro, Jean Sarbib, Evan Parker, Paul Lytton, Eddie Prévost, Louis Sclavis, Sunny Murray, Ikue Mori e Paul Rutherford. As suas composições foram interpretadas por Daniel Kientzy, John Tilbury, Ensemble QTR (Peter Bowman e Kathryn Bennetts), Ana Ester Neves, Frank Abbinanti, OrchestrUtópica, Bernini Quartet, Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Simon Cowen, ou Michael Strauss. 10 14, 15 de Maio Sábado, 15 de Maio 17h00 Carole Finer (instrumentos de corda e brinquedos), Keith Rowe (guitarra eléctrica preparada, electrónica, vários objectos) e A Scratch “Dealer Concert” Stefan Szczelkun (corpo), obras de Howard Skempton, Christian Wolff e Stefan Szczelkun, entre outros Após o concerto, os três antigos membros da Scratch Orchestra discutem as suas experiências na orquestra e o modo como esta influenciou as suas vidas e o seu trabalho ao longo de mais de quarenta anos. Sábado, 15 de Maio 16h00 Walk (1969) Michael Parsons performance coordenada por Jean-Jacques Palix com a participação de cerca de cinquenta intérpretes voluntários Composta em 1969 para a Scratch Orchestra, Walk é uma partitura verbal para um número indeterminado de pessoas que andam num espaço amplo. Interpretada pela primeira vez em Maio de 1970, no átrio da Estação de Euston em Londres, a peça consiste numa série de movimentos corporais simples (andar) e de repouso (ficar quieto). O seu ritmo e duração são determinados por um par de números, de 1 a 10, tirados à sorte, que são interpretados livremente por cada participante, de acordo com uma série de instruções elementares e igualitárias. 11 Carole Finer é uma artista, compositora e música inglesa. Ensinou em várias escolas de arte, incluindo a London School of Printing, onde em 1968 deparou com um anúncio de aulas de música experimental. Nessa altura, ficou “siderada” com espectáculos da Merce Cunningham Dance Company, tendo ingressado entusiasticamente nas aulas que Cornelius Cardew leccionava no Morley College. Subsequentemente, juntou-se à Scratch Orchestra, por altura da sua criação em 1969, actuando regularmente com a orquestra durante a sua existência. É uma exímia tocadora de banjo e uma entusiasta da música blue grass. Actualmente, apresenta um programa radiofónico, Sound Out, na emissora londrina Resonance 104.4 FM. Em Maio de 2009, apresentou Forty Years from Scratch, uma emissão-maratona de trinta e seis horas na Resonance FM, celebrando o quadragésimo aniversário da Scratch Orchestra. Stefan Szczelkun (n. 1948) juntou-se à Scratch Orchestra quando esta foi fundada em Junho de 1969, influenciado por um concerto a que assistira, no ano anterior, do grupo de improvisação AMM. Devido ao sistema de funcionamento da orquestra, que dava prioridade aos membros mais novos na atribuição da responsabilidade de organizar os concertos, foi um dos primeiros membros a organizar um concerto da Scratch Orchestra, na circunstância o Richmond Journey, em Maio de 1970. Depois da sua experiência na Scratch Orchestra, prosseguiu tanto o seu envolvimento em colectivos de artistas, como o seu compromisso com a democracia cultural e a emancipação da classe trabalhadora. Na década de 1990, frustrado pela falta de documentação e de investigação sobre colectivos culturais, iniciou uma pesquisa, no âmbito dos seus estudos de doutoramento, sobre o “Exploding Cinema”, que desde então tem vindo a publicar na Internet. Keith Rowe (biografia na p. 10) Sábado, 15 de Maio 19h00 projecção de excertos de filmes de Stefan Szczelkun, comentados por este artista e activista Michael Parsons (n. 1938) é compositor e músico, sendo considerado um dos pioneiros da música experimental em Inglaterra. Em 1969, foi um dos fundadores da Scratch Orchestra, juntamente com Cornelius Cardew e Howard Skempton. Actualmente, compõe sobretudo música para piano, para instrumentos de cordas e de sopro, e para grupos de percussão. Uma antologia das suas composições para piano, Piano Music 1993-2007, interpretadas por John Tilbury, foi recentemente editada por Mathieu Copeland. Stefan Szczelkun irá discutir e mostrar excertos de vários filmes que realizou nos últimos vinte anos, documentando vários movimentos britânicos de contracultura e protesto, tais como Reclaim the Streets, Stop the City e Crystal Palace Eco-Warrior Camp. Jean-Jacques Palix (ver biografia, p. 24) Stefan Szczelkun (ver biografia em cima) 22 de Maio Sábado, 22 de Maio Sábado, 22 de Maio 22h00 17h00 Treatise (1963-1967) 1001 Scratch Cornelius Cardew Activities concerto de Michel Guillet performance de Loreto Troncoso e de António Júlio a partir da compilação de instruções verbais escritas pelos membros da Scratch Orchestra Embora não tenham sido incluídas como uma “categoria” de música scratch no “Rascunho de Constituição” da Scratch Orchestra, as “1001 Scratch Activities” foram incluídas como anexo ao livro Scratch Music, de Cardew, publicado pela MIT Press em 1974. Com efeito, a sua origem é objecto de controvérsia entre os membros da orquestra. Ora concretas, ora abstractas, ao mesmo tempo improváveis e prosaicas, cada uma destas actividades “extramusicais” é descrita numa frase sucinta, frequentemente em poucas palavras, dispensando na maioria dos casos qualquer produção consciente de som. Olhadas com desdém pelos membros e compositores da Scratch Orchestra com maior cultura musical, elas deram origem frequentemente a “interpretações” imprevistas e anárquicas durante as actuações da orquestra. Contudo, como John Tilbury sugeriu, sendo uma iniciativa de grupo anónima e espontânea, elas representam, ainda assim, algo da própria essência da Scratch Orchestra enquanto colectivo de vanguarda. Loreto Martinez Troncoso... nasceu em 1978...; partiu em 1999... recebeu uma bolsa... trabalhou com...; 2000 altamente recomendada por...; 2001 participou em... escolhida por...; 2003 considerada como artista francesa por...; 2004 comeu perna de galinha... colaborou com... participou em... considerada como “artista que trabalha em” para... por... contactada por... fez uma conferência em...; 2005 carta branca para... “recomendada” como artista “de interesse” por... para..., recebeu bolsa pela... para...; 2006 participou como “jovem artista galega” em... “artista recusada” no Salon du Jardin et de l’aménagement de l’extérieur... striptease em... em... e em... 2007 matou uma mosca no contexto de... tornou-se uma “projecção de vídeo” em... inapresenta-se em... tornou-se um modus operandi... 2008 partiu On the Road... a sua voz contava ou não contava... falou repetidamente durante exactamente três meses e sete dias em... e anunciou que a próxima vez seria uma comédia. Perdeu a sua boca em... 2009... pôs fim a... entre outras. António Júlio (n. 1977) estudou Teatro na Academia Contemporânea do Espectáculo e fez o curso de Interpretação e Escultura na Faculdade de Belas-Artes do Porto. É intérprete de teatro e de dança desde 1999, tendo trabalhado com Joana Providência, Nuno Cardoso, João Paulo Costa, Cia Circolando, Kuniaki Ida, Rita Natálio, Francisco Alves, André Guedes, entre outros. O seu trabalho situa-se entre o teatro, a dança e a performance. Das suas criações mais recentes destaca 200 g (Mugatxoan, Arteleku, San Sebastián/Fundação de Serralves, Porto, 2006), Eunice (Teatro do Campo Alegre, Porto, 2007), Boots and Breath para a Companhia Instável (Espace des Arts, Chalon sur Saône, 2008), Recuperados (Porto, 2009) e Alan (Porto, 2010). Actualmente, é professor de Interpretação na Academia Contemporânea do Espectáculo. (sampler), Jean-Jacques Palix (computador), Marcus Schmickler (computador) e Samon Takahashi (dispositivo electrónico) Michel Guillet (n. 1961) é um artista e músico francês que utiliza diferentes media no seu trabalho, realizando desenhos de parede, instalações e obras sonoras. Compôs numerosas obras para coreógrafos contemporâneos, como Marco Berrettini, Claudia Triozzi e Sylvain Prunnenec. Também produziu dois discos: The End Between (2006) e Without Shade (2008). Marcus Schmickler (n. 1968) é um produtor, compositor e músico alemão. É um dos músicos mais importantes que emergiram da cena de música electrónica de Colónia na década de 1990. Editou numerosas gravações de projectos a que deu nomes como Wabi Sabi e Pluramon, e colaborou com vários músicos, incluindo, mais recentemente, o pianista John Tilbury. Samon Takahashi (n. 1970) é artista visual e compositor. Também produziu programas radiofónicos, colaborou com coreógrafos e realizou obras em vídeo. Grande parte do seu trabalho incide sobre os recursos de uma colecção de discos, questionando os seus modos de apresentação e uso. Piotr Kurek (computador) Lectures, concerto Lectures foi composto inicialmente em 2007 para uma actuação ao vivo em Varsóvia, durante um festival de música dedicado a Cornelius Cardew, inserido no projecto Zakrzywienia Igl-y, organizado por Michal- Libera. A ideia inicial de Kurek de interpretar peças de Cardew evoluiu para uma improvisação baseada em sons apropriados de várias gravações deste compositor, aos quais acrescenta diversos instrumentos. Com a ajuda de Walter Cardew, filho do compositor, Kurek teve acesso a gravações inéditas de conferências, concertos e ensaios dirigidos por Cardew. Este projecto foi editado em CD pela portuguesa Crónica Electrónica, em 2009, e para tal Kurek reelaborou as peças compostas para a actuação ao vivo. Piotr Kurek (n. 1978) é um compositor e músico polaco que vive e trabalha em Varsóvia. Embora tenha estudado piano clássico e tenha actuado como percussionista, é conhecido principalmente pelo seu trabalho em teatro-dança e no campo da música electrónica. No final da década de 1990, foi um dos fundadores do projecto multiforme Slepcy, e desde então tem colaborado com várias editoras discográficas, nomeadamente Ambush (Londres), Kool.POP (Berlim), Cock Rock Disco (Berlim), Klangkrieg (Berlim), Unknown Public (Londres) e Crónica (Porto). 12 1001 Scratch Activities 13 Sexta-feira, 28 de Maio 21h30 Christian Wolff Sábado, 29 de Maio recital de piano precedido da interpretação de 17h00 Stones (1968) e Burdocks (1972), The Great Learning, deste compositor, por cerca de quinze intérpretes voluntários Paragraph 5 (1970) Cornelius Cardew 28, 29 de Maio “Transformar o fazer música numa actividade colaborativa e transformadora (o intérprete em ouvinte em compositor em intérprete, etc.), o carácter cooperativo na origem exacta da música. Incitar, através da produção da música, a consciência das condições sociais em que vivemos e do modo como estas podem ser mudadas.” Christian Wolff Christian Wolff irá orientar um workshop com músicos e não-músicos, incidindo sobre a sua seminal compilação de partituras verbais, Prose Collection (1968-1971), escrita originalmente para um grupo de estudantes de arte: “Stones e Sticks, tal como as outras peças em Prose Collection, foram escritas para serem usadas por músicos não-profissionais, bem como por não-músicos, pessoas, pessoas com um interesse pela música, especialmente pela música experimental, suficientemente forte para quererem tentar interpretar algumas peças.” Os resultados do workshop serão apresentados antes do recital de piano de Christian Wolff. A seguir ao concerto, terá lugar uma conversa com o músico e compositor. “A origem de Stones... foi simplesmente esta: um dia numa praia pedregosa, durante o qual experimentei os sons que diferentes pedras produzem quando batem umas contra as outras, e descobri que (os sons) eram surpreendentemente variados, distintos (e belos) nas qualidades das suas ressonâncias. Com a memória disso, escrevi a peça seis meses depois, e mostrei-a a Cornelius Cardew, que sorriu e me mostrou o Parágrafo 1 de The Great Learning, no qual estava a trabalhar nessa altura, e que inclui a utilização de pedras pelos membros do coro, para improvisar gestos sonoros guiados pelas formas dos caracteres chineses no texto de Confúcio em que aquela peça se baseia. Ele tivera essa ideia a partir das lajes de pedra afinadas que se usam na música clássica chinesa.” Stones (1968) Faz sons com pedras, extrai sons das pedras, usando diferentes tamanhos e tipos (e cores); a maior parte das vezes discretamente; por vezes em sequências rápidas. A maior parte das vezes batendo as pedras contra outras pedras, mas também as pedras contra outras superfícies (na superfície de pele de um tambor, por exemplo), ou sem as bater (tocadas com arco, por exemplo, ou amplificadas). Não parta nada. Christian Wolff (n. 1934) viveu os seus primeiros anos na Europa, antes de se fixar nos Estados Unidos em 1941. Estudou piano com Grete Sultan, e composição, brevemente, com John Cage. Com formação académica na área da cultura clássica, ensinou música e literatura clássica e comparativa na Harvard University e no Dartmouth College. Compositor em grande medida autodidacta, a sua obra tem sido associada à de Cage, Morton Feldman, David Tudor e Earle Brown, celebrados conjuntamente enquanto Escola de Nova Iorque. É igualmente um activo intérprete e improvisador, e tem actuado ao vivo com numerosos músicos, incluindo Takehisa Kosugi, Christian Marclay, Steve Lacey, Keith Rowe, William Winant, AMM e Larry Polansky. É membro da Akademie der Künste, em Berlin, e da American Academy of Arts and Sciences. performance dirigida por Lore Gablier, Annie Vigier e Franck Apertet com Emilie Bonnaud, Luis Corvalan, Thibaud Croisy, Sophie Demeyer, Dean Inkster, Déborah Lary, Clémentine Maubon, Stève Paulet e Santiago Reyes convidados especiais Horace Cardew e Walter Cardew Composto para um número ilimitado de intérpretes, não necessariamente com formação musical, o Parágrafo 5 de The Great Learning começa com o que Cardew designou como “Dumbshow”. O “Dumbshow” consiste numa série de gestos corporais livremente derivados de um híbrido de linguagens gestuais dos índios americanos no século XX. Cardew concebeu estes gestos como uma tradução visual dos elementos caligráficos que compõem os caracteres chineses do quinto parágrafo do Ta Hio, de Confúcio. Ao “Dumbshow” seguem-se oito composições de notação verbal, cada uma precedida por uma recitação colectiva, em coro, da tradução de Ezra Pound do parágrafo de Confúcio. O “Dumbshow” e as composições seguintes são concebidas como exercícios de disciplina cuidadosamente preparados com vista ao objectivo último da peça: uma improvisação livre e colectiva. Annie Vigier e Franck Apertet têm colaborado como coreógrafos desde 1994 sob o nome genérico les gens d’Uterpan. Ao longo dos anos, têm questionado as normas da dança e das artes performativas, tanto a partir do interior dos seus limites tradicionais (o palco), como para além destes (o espaço expositivo). As suas obras implicam uma redefinição da prática coreográfica e do papel correlativo do bailarino/intérprete. Apresentaram performances do seu projecto X-Event em diferentes partes do mundo, incluindo, em 2007, a Bienal de Lyon e, em 2008, a Bienal de Berlim, a Tate Modern e o Nam June Paik Art Center em Yongin, na Coreia. O seu projecto Re|action foi apresentado no Project Arts Centre em Dublin, em Outubro de 2009, e na Kunsthalle Basel, em Janeiro de 2010. São artistas residentes do Centre d’art contemporain de Brétigny (França) desde 2008. Lore Gablier (ver biografia, p. 24) 14 The Great Learning, paragraph 5 (1970) Sábado, 29 de Maio 22h00 Walter Cardew Group concerto Horace Cardew (clarinete), Walter Cardew (guitarra eléctrica) e Androniki Liokoura (piano) Programa: 1. Trio para clarinete, guitarra 2. Trio para clarinete, guitarra 3. Dueto para clarinete e piano 4. Trio para clarinete, guitarra 5. Dueto para guitarra e piano 6. Trio para clarinete, guitarra e piano e piano e piano e piano Horace Cardew (n. 1963) estudou clarinete e saxofone na Royal Academy of Music, em Londres. Quando estava a terminar os seus estudos, ele e o seu irmão, Walter Cardew, juntaram-se à banda pop The Pasadenas. Tem trabalhado, desde então, como músico freelancer, com bandas de jazz e pop em Londres, assim como em produções teatrais. Tem estado igualmente envolvido em grupos de música contemporânea, incluindo a Matthew Herbert Band e o Danny Dark Group, de Walter Cardew. Walter Cardew (n. 1965) estudou na Guildhall School of Music & Drama e no Goldsmiths College, em Londres, onde se licenciou em composição. Em 1984, depois de trabalhar como percussionista profissional com grupos pop, como The Pasadenas, formou com Stephen Moore o grupo Walter & Sabrina. Desde então, Walter & Sabrina editaram dez discos na editora do próprio Walter Cardew, Danny Dark Records, incluindo Rock ‘n’ Roll Darkness (2007), We Sing for the Future (2008) e Two Tales: The Twilight of Walter & Sabrina (2009). Integrado no Danny Dark Group, fez tournées no Reino Unido (incluindo o South Bank Centre, em Londres). Recentemente, voltou-se para a composição de música de câmara com o Walter Cardew Group. 15 Androniki Liokoura estudou piano no Conservatório Estatal de Thessaloniki, onde se licenciou em Harmonia, e no Trinity College of Music, em Londres. Deu numerosos recitais de música contemporânea em Inglaterra e na Europa, a solo ou em grupo. Em 2003, foi-lhe atribuído o prémio John Halford para música contemporânea. Em Janeiro de 2004, no âmbito do “John Cage Weekend” no Barbican Center, em Londres, participou numa interpretação colectiva, com a duração de dezoito horas, das Vexations de Erik Satie. Em Novembro de 2007, interpretou We Sing for the Future (1981), de Cornelius Cardew, no Festival Cornelius Cardew em Varsóvia. Em Novembro de 2008, após ter estudado várias fontes manuscritas de We Sing for the Future, Androniki editou essa partitura para piano solo, até então inédita. 18 de Junho The Tiger’s Mind (1967) Cornelius Cardew concerto de Nina Canal (guitarra eléctrica e bateria), Sexta-feira, 18 de Junho 22h00 Volo Solo (1965) Cornelius Cardew concerto de Rhys Chatham (trompete) Volo Solo foi escrito por Cornelius Cardew em 1965, a pedido do pianista John Tilbury, para um intérprete virtuoso de qualquer instrumento. A partitura inclui uma série de sessenta “acontecimentos”, que diferem consideravelmente na sua duração e complexidade. Os acontecimentos, separados por uma pausa, vão de uma única nota ou de pequenos grupos de notas, até passagens longas que exploram toda a versatilidade do instrumento – a maior parte dos grupos mais longos caracteriza-se por cadeias de notas repetidas. Segundo o compositor, o intérprete deve empenhar-se em “tocar tantas notas escritas quanto possível, e tocá-las tão depressa quanto possível. O instrumento deverá parecer que se está a desconjuntar”. Rhys Chatham (n. 1952) é um compositor, guitarrista e trompetista americano. Estudou com o compositor de música electrónica Morton Subotnick e, mais tarde, com o pioneiro da música minimalista La Monte Young, juntando-se ao Theater of Eternal Music de Young no início da década de 1970. Em 1977, começou a compor música em que combinava a influência do minimalismo e o seu interesse recente pelo rock. A sua composição Guitar Trio (1977), para baixo eléctrico, bateria e um número ilimitado de guitarras eléctricas, inspirou vários dos principais músicos nova-iorquinos, como Glenn Branca, e bandas rock como Band of Susans e Sonic Youth. Em 2002, a editora Table of the Elements lançou uma caixa retrospectiva da sua obra, An Angel Moves Too Fast To See: Selected Works 1971-1989. A cidade de Paris, onde vive desde 1989, encomendou-lhe a escrita de A Crimson Grail, uma composição para quatrocentas guitarras eléctricas, que estreou em Outubro de 2005 perante uma audiência de dez mil pessoas, na catedral do Sacré Coeur em Paris, e foi transmitida em directo pela televisão francesa, no âmbito do festival Nuit Blanche. Uma versão para duzentas guitarras de A Crimson Grail teve a sua estreia num concerto ao ar livre no Lincoln Center, em Nova Iorque, em Agosto de 2009. Nadia Lichtig (voz, electrónica) e David Watson (gaitas-de-foles e guitarra lap steel preparada) The Tiger’s Mind foi escrito em 1967, ano em que Cardew concluiu a monumental partitura gráfica Treatise. Trata-se da primeira partitura de Cardew composta exclusivamente por notação verbal. A partitura divide-se em duas partes ou peças narrativas individuais: uma “Peça diurna” e uma “Peça nocturna”. Pretende ser um propulsor para uma performance explicitamente improvisada. Apesar de ter sido inicialmente concebida como um sexteto, em que cada músico escolhe uma das seis personagens narrativas (Amy, o círculo, a mente, o tigre, a árvore e o vento) como fio condutor musical, o número de intérpretes, a atribuição dos papéis e os métodos processuais são sugeridos, mas não são obrigatórios. Como Cardew afirmou, a partitura exige uma predisposição para tocar “no mais lato sentido da palavra, incluindo o mais infantil”. Nina Canal (n. 1953) é uma artista visual e música. Nascida na Cidade do Cabo, na África do Sul, cresceu em Londres, onde estudou artes visuais. No final da década de 1970, foi viver para Nova Iorque, onde rapidamente se evidenciou como guitarrista e baterista na cena artística downtown, integrando grupos seminais “No Wave”, como Robin Crutchfield’s Dark Day e The Gynecologists, ao lado de Rhys Chatham e Robert Appelton. Em 1979, fundou com Jacqui Ham e Sally Young o trio UT. Conhecidos pela justaposição sem contemplações de harmonia e som corrosivo, os UT fizeram tournées com bandas rock seminais, como The Fall e The Birthday Party, e editaram uma série de álbuns – Conviction (1986), In Gut’s House (1988) e Griller (1989) – na editora Blast First. Vive actualmente em Paris, onde desenvolve o seu trabalho de pintura directa sobre tecidos. David Watson (n. 1960) é um músico experimental da Nova Zelândia, que vive e trabalha em Nova Iorque desde 1987. Tocou com expoentes da música experimental nova-iorquina, como John Zorn, DJ Olive e Zeena Parkins. Conhecido numa primeira fase como guitarrista, passou em 1991 à gaita-de-foles das Highland. Recebeu várias encomendas de composições para gaita-de-foles, incluindo uma partitura para a Jeremy Nelson Dance Company, descrita pelo New York Times como “simplesmente maravilhosa”. Em Julho de 2007, juntamente com a violinista Jennifer Choi e o percussionista David Shively, estreou as composições para trio que Robert Ashley compôs em 1963, White on White. Editou numerosos discos, mais recentemente o LP The Shirley Jangle, pela Kraak Records, com Lee Ranaldo, Christian Marclay e Günter Müller. Nadia Lichtig nasceu em 1973 na Alemanha, de pai checo e mãe sérvia. Estudou na École nationale des Beaux-Arts de Lyon, onde completou os seus estudos em 2000, e na École nationale supérieure des Beaux-Arts de Paris, em 2000. Ensina actualmente na École supérieure des Beaux-Arts de Montpellier. Expôs na Secession em Viena, no Palais de Tokyo em Paris e na Tadu Gallery em Banguecoque. O seu trabalho oscila entre documentário e ficção, e entre som e imagem, empregando diferentes media, nomeadamente instalação, fotografia, performance e som. O seu projecto mais recente, Falseparklocation, em colaboração com o compositor Christian Bouyjou, foi lançado com o título Tropical FM, na editora francesa Dokidoki, em 2009. 16 19, 25 de Junho Sexta-feira, 25 de Junho 22h00 Terre Thaemlitz Meditation on Wage Labor and the Death of the Album recital de piano Sábado, 19 de Junho 22h00 John Tilbury palestra e recital de piano obras de Cornelius Cardew 17 John Tilbury (n. 1936) é um pianista britânico, considerado um dos mais importantes intérpretes da música de Morton Feldman. Estudou música no Royal College of Music e, posteriormente, em Varsóvia com Zbigniew Drzewiecki. Esteve estreitamente ligado a Cornelius Cardew, que escreveu Volo Solo para ele em 1965. Mais tarde, tornou-se membro destacado da Scratch Orchestra. As suas numerosas gravações discográficas incluem obras de John Cage, Morton Feldman, Howard Skempton, Christian Wolff, Cornelius Cardew e, mais recentemente, Terry Jennings. Enquanto improvisador, colaborou com numerosos músicos, como Sebastian Lexer, Jérôme Noetinger, Evan Parker, Keith Rowe, Marcus Schmickler e David Sylvian. É autor da biografia Cornelius Cardew (1936-1981): A Life Unfinished, publicado pela Copula em 2008. A nossa irreflectida demonstração de boa vontade (através de projectos e performances pro bono) é, em última instância, um acto de auto-sabotagem. A posição do artista inflamado, “a arte pela arte”, ofusca a questão do trabalho. O icónico artista atormentado que oferece o seu trabalho é uma excrescência, mas não o sabe. Se o facto de exigirmos pagamento pelo nosso trabalho significa que as industrias culturais entram em colapso, então que entrem em colapso. Talvez então pudéssemos finalmente começar a conceber a produção cultural em termos mais vastos do que a indústria. Ou, mais provavelmente, poderíamos vir a descobrir que não podemos existir sem essas indústrias que são incapazes de nos apoiar, tornando-nos à partida pateticamente irrelevantes. O que quer que aconteça, não estarei de luto. Terre Thaemlitz Terre Thaemlitz (n. 1968) é um reconhecido DJ, músico, compositor, artista visual, escritor, orador e pedagogo. Tendo nascido em Minnesota e crescido em Springfield, no Missouri, Terre Thaemlitz mudou-se para Nova Iorque em 1986, para estudar artes visuais na Cooper Union, onde se licenciou em 1990. A seguir aos seus estudos, Thaemlitz começou a sua carreira como DJ, com o nome DJ Sprinkles, no célebre clube nocturno nova-iorquino Sally’s II. Conhecido pela sua música “ambiente” de inflexão política, o seu trabalho combina criticamente temas relacionados com as políticas de identidade – género, sexualidade, classe, língua, etnicidade e raça – com uma crítica recorrente, de inspiração marxista, às condições socioeconómicas da produção comercial dos media. Como DJ Sprinkles, tem actuado na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. Colaborou com Jane, Bill Laswell, Laurence Rassel, Simon Fisher-Turner e com o conjunto Zeitkratzer. Está para breve a publicação pela B_Books (Berlim) de uma compilação dos seus escritos, Nuisance: Writings on Identity Jamming and Digital Audio Production. FILMES INCLUíDOS NA EXPOSIçãO Journey to the North Pole (1971) Journey to the North Pole (1971), de Hanne Boenisch filme 16 mm transferido para DVD, 50 min Filmado, em grande parte, durante uma viagem da Scratch Orchestra por aldeias no ambiente pastoral do nordeste de Inglaterra, em 1971, Journey to the North Pole é o primeiro filme documental sobre a Scratch Orchestra e sobre a sua figura central, Cornelius Cardew. Através das diferentes entrevistas que pontuam o filme, Hanne Boenisch consegue captar com subtileza o espírito dos membros da Scratch Orchestra, na sua tentativa de definirem o significado e as aspirações das actividades que desenvolvem enquanto colectivo. Deste modo, o filme reconstitui um momento decisivo na história da orquestra: a transição de um entendimento libertário da arte e da música, para uma concepção politicamente empenhada da arte, que iria culminar no fim da orquestra em 1975. Pilgrimage from Scattered Points (2006) Pilgrimage from Scattered Points (2006), de Luke Fowler vídeo, 46 min Composto por filmagens de arquivo, entrevistas recentes a antigos membros da Scratch Orchestra, memorabilia e fragmentos de filmes Super 8, Pilgrimage from Scattered Points constitui não apenas uma narrativa coerente da história da Scratch Orchestra, mas também um retrato poético – evocativo do “diário fílmico” de uma antiga geração de cineastas experimentais – dos ideais artísticos da orquestra. O filme reconstitui o desenvolvimento da orquestra, desde a sua formação, em 1969, até à sua dolorosa dissolução, em meados da década de 1970, centrando-se nas aspirações colectivas que inspiraram os seus membros, bem como nas contradições em que se enredaram. A vibração da imagética e da montagem scratch do filme ajusta-se de forma convincente ao tema escolhido, trazendo ecos da anarquia da música scratch, sem perder de vista os objectivos documentais de Fowler. The Great Learning, Paragraph 7 (2006), de Nicolas Tilly vídeo, 35 min Escrito expressamente com a Scratch Orchestra em mente, o Parágrafo 7 da seminal e expansiva composição The Great Learning é a mais importante partitura verbal de Cardew. Foi interpretado pela primeira vez em 1971, sendo gravado pouco tempo depois para a Deutsche Grammophon. É aqui interpretado por estudantes e funcionários da École régionale des Beaux-Arts de Valence, sob a direcção de Jean-Jacques Palix. Realizado por Nicolas Tilly, antigo aluno dessa escola, o filme capta esta interpretação vocal única – numa noite glacial de Dezembro de 2004 – que transformou o átrio da escola num campo magnético, e o último parágrafo de The Great Learning num manual escolar. The Great Learnin Paragraph 7 Walk in Fossoy (2007) Walk in Fossoy (2007), de Lore Gablier vídeo, 17 min Escrito originalmente para a Scratch Orchestra em 1969, Walk, de Michael Parson, é uma partitura verbal para um número variável de pessoas que andam num espaço amplo. À semelhança de 4’33”, de John Cage, Walk não contém quaisquer instruções para produzir som, e no entanto inclui discretamente os sons efémeros, quer dos movimentos dos intérpretes, quer do lugar onde a performance se desenrola. Walk in Fossoy documenta a interpretação desta peça por um grupo de pessoas recrutadas entre o público do festival L’Échangeur, c’est comme ça, num campo aberto na Picardia, numa tarde soalheira de Outono, em Outubro de 2007. Os comboios que passam repetidamente ao fundo evocam a primeira interpretação de Walk, em Maio de 1970, no átrio da Estação de Euston, em Londres. 18 CORNELIUS CARDEW: DA GRANDE APRENDIZAGEM à LIBERDADE DA ESCUTA DEAN INKSTER As obras de arte do mais alto nível não se distinguem de outras obras pelo seu sucesso – qualquer que seja o significado de sucesso – mas pela natureza do seu fracasso. Theodor W. Adorno É na absoluta dispersão das suas vozes que a comunidade se experiencia. Jean-Luc Nancy g, 19 Poucos compositores de música contemporânea estiveram tão determinados em definir o sentido político e social da música como o compositor inglês Cornelius Cardew. A sua tentativa de estabelecer um significado válido e contemporâneo para a música enquanto arte esteve associada a uma fé quase cega no potencial dos indivíduos para alcançarem formas válidas de experiência colectiva emancipadora. Isso torna-se sobretudo evidente na sua obra mais ambiciosa, The Great Learning. Dividida em sete obras individuais ou parágrafos, a composição, escrita entre 1968 e 1971, baseia-se nas sete passagens iniciais do Ta Hio, o primeiro dos quatro livros que formam o conjunto clássico de pensamentos morais atribuídos a Confúcio. Usando uma tradução do poeta americano Ezra Pound (baseada, por sua vez, na tradução feita em 1838 pelo orientalista francês Guillaume Pauthier), os parágrafos correspondentes são ditos ou cantados, e acompanhados por detalhadas intervenções musicais escritas de vários modos, incluindo a notação convencional, a notação gráfica e instruções verbais. A obra completa dura cerca de sete horas, sendo que os parágrafos individuais variam entre trinta minutos e duas horas. A diversidade das técnicas composicionais utilizadas por Cardew nesta obra resume praticamente todas as tentativas de rejuvenescer a prática musical de vanguarda após o declínio do serialismo (que ele estudara sob a tutela de Karlheinz Stockhausen em Colónia, no final da década de 1950) enquanto forma musical predominante, no período subsequente ao pós-guerra. Porém, a força motivadora subjacente a The Great Learning advinha também do desejo manifestado por Cardew de compor obras que juntassem diferentes aptidões musicais (incluindo músicos e não-músicos), de modo a problematizar a hierarquia tripartida de compositor, intérprete e ouvinte, que instaura o compositor como uma autoridade de virtuosismo técnico e de formas especializadas de experiência perceptiva. Enquanto estudava em Colónia, Cardew foi inspirado pela descoberta das obras de John Cage e de David Tudor. Ao regressar a Inglaterra, não só promoveu ardentemente a música de Cage, juntamente com a de outros membros da vanguarda musical americana, como também acabou por explorar no seu próprio trabalho diversos procedimentos de composição experimentais de Cage. Contudo, não foi apenas a natureza emancipadora das técnicas composicionais de Cage que inspirou o desenvolvimento pessoal de Cardew como compositor ao longo da década de 1960, mas também, e talvez de modo ainda mais preponderante, as suas implicações sociais e éticas. Efectivamente, também Cage procurara questionar as hierarquias sociais inerentes à composição e à recepção musicais. Como ele escreveu em 1973: Antes de mais, precisamos de uma música na qual não só os sons sejam apenas sons, mas também as pessoas sejam apenas pessoas, isto é, sem estarem sujeitas às leis estabelecidas por alguém, ainda que se trate de “o compositor” ou “o maestro”. Finalmente (tanto quanto posso ver de momento), precisamos de uma música que deixe de motivar conversas sobre a participação da audiência, pois nela deixarão de existir divisões entre intérprete e audiência: uma música feita por todos.1 Apesar da sua determinação em associar a emancipação do som a um mapeamento utópico de potenciais mudanças sociais, Cage permaneceu algo relutante em passar da teoria à prática. Ironicamente, nessa época Cardew estava a concluir uma das mais radicais tentativas de fazer precisamente isso, procurando elaborar as bases da sua prática composicional a partir das questões sociais que a música de Cage anunciava, mas que deixou contudo por resolver. Doravante, ele conseguiria levar a notação à sua derradeira conclusão cagiana, como meio de “desbloquear” formas livremente assumidas de compromisso individual e colectivo. Como sugeriu Michael Nyman (em termos reminiscentes do desejo expresso por Cage de que “as pessoas sejam apenas pessoas”), Cardew “concebia a notação (no seu próprio trabalho), não como um fim em si mesmo, nem como um meio de ‘desbloquear’ o som, mas sim como uma maneira de mobilizar o mais valioso recurso da música – as pessoas”2. A influência formal de Cage é também evidente nas técnicas composicionais usadas por Cardew em The Great Learning para incorporar a tradução do Ta Hio feita por Pound. De facto, à semelhança do modo como Cage recorria a vários procedimentos aleatórios para gerar a notação musical (tal como o uso do I Ching), Cardew concebeu uma série de meios para gerar notação a partir dos caracteres chineses dos parágrafos originais do texto confuciano. Estas notações vão desde os solos de assobios no Parágrafo 1, seguindo a transformação feita por Cardew das pinceladas chinesas numa notação musical visualmente ornada, até ao “Dumbshow”, a secção inicial do Parágrafo 5, na qual os ideogramas de raiz de cada um dos caracteres chineses são fisicamente representados através da linguagem gestual. O Parágrafo 7 segue este mesmo princípio, pois o número de pinceladas de cada carácter original determina o número de repetições cantadas na sua tradução para inglês. No entanto, tal como o recurso a instruções verbais (usadas extensivamente nos Parágrafos 6 e 7) torna evidente, estamos perante uma operação de natureza muito mais marcadamente linguística do que as operações de acaso de Cage. Salientes em diversas obras escritas por Cardew antes de The Great Learning, as instruções verbais dão testemunho de uma segunda influência, em certa medida relacionada com a anterior: as partituras verbais ou de acontecimentos, decisivas na fundação do movimento Fluxus, cujas obras – nomeadamente da autoria de George Brecht ou de La Monte Young – Cardew promoveu e interpretou em Inglaterra, em meados da década de 1960. A partitura da Composition 1960, no. 10, de Young, por exemplo, com a sua expressão lacónica “desenha uma linha direita e segue-a”, emprega locuções linguísticas simplificadas em lugar da notação musical, como meio de projectar momentos de experiência inalienável a partir de formas de linguagem habitualmente instrumentalizada. Em simultâneo, tais procedimentos composicionais desafiam declaradamente os valores associados à música enquanto meio de expressão virtuoso e altamente especializado. Este objectivo é notório em Schooltime Compositions (1968) de Cardew, na qual uma sequência de questões sucintas, a serem seguidas por cada um dos participantes, juntamente com diversas respostas e as suas variantes, cobrem uma série quase exaustiva de escolhas lógicas associadas às mais rudimentares actividades de fazer música. A notação verbal simplificada característica de Brecht e de Young foi aqui incorporada por Cardew como um elemento composicional, mais do que como uma locução independente em si mesma, permitindo assim uma extensa liberdade interpretativa e mantendo em simultâneo a estrutura composicional. A mudança para a notação verbal seguiu-se à interpretação por Cardew da primeira das suas grandes obras, Treatise (1963-67), uma partitura gráfica de 193 páginas, escrita no período em que ele estava a tocar com o seminal grupo de improvisação AMM. A notação gráfica de Treatise – com as suas linhas intrincadas, os seus símbolos e figuras de sentido indeterminado (em parte inspirados pelo facto de Cardew ter trabalhado como designer gráfico durante este período) – era mais um meio de problematizar os limites da prática composicional. De facto, as decisões relativas ao tom, ao timbre e à duração, juntamente com a escolha dos instrumentos e o número de intérpretes, eram inteiramente deixadas ao critério de quem estivesse disposto a conceber as regras e os meios para a interpretação desta peça. Ao discutir as desvantagens da educação musical, em “Towards an Ethic of Improvisation”, incluído no seu Treatise Handbook, Cardew refere que as interpretações mais estimulantes de Treatise haviam sido realizadas por intérpretes que por acaso “tinham tido uma educação visual” ou “tinham escapado à educação musical (...), e ainda assim se tornaram músicos, isto é, com a capacidade total do seu ser”3. Embora a sua notação gráfica dispensasse qualquer aprendizagem formal ou competência, Cardew descobriu que este tipo de escrita implicava, ainda assim, uma aptidão visual que, inadvertidamente, punha em desvantagem os literatos musicais. Daí ter optado pela forma mais expedita e igualitária da notação verbal. Idealmente, concluía ele, “este tipo de música deveria ser tocado por um grupo de inocentes musicais; mas numa cultura em que a educação musical se encontra tão disseminada (pelo menos entre os músicos), e cada vez mais, tais inocentes são difíceis de encontrar”4. A tentativa de Cardew de “encontrar tais inocentes musicais onde quer que tenham sobrevivido” mostrou-se, porém, frutífera em 1968, quando começou a ensinar música experimental a um grupo heterogéneo de adultos que estudavam no Morley College, em Londres. Este encontro iria motivar a formação da Scratch Orchestra – uma das tentativas mais radicalmente democráticas na história da vanguarda de questionar os limites sociais da arte enquanto esfera de conhecimento e experiência especializados. O ímpeto para a criação da orquestra surgiu quando Cardew percebeu que a sua segunda composição para The Great Learning necessitava de um grupo muito maior, de modo a conseguir alcançar a intensidade das múltiplas vozes e dos ritmos de percussão que esta obra requeria. O grupo inicial de estudantes alargou-se – passando a incluir colegas e amigos – para cerca de cinquenta intérpretes, que estrearam o Parágrafo 2 durante um concerto de sete horas (que também incluiu o Atlas Eclipticalis, de John Cage), em Maio de 1969. O compositor Gavin Bryars sustenta que esta necessidade de intérpretes adicionais se ficou a dever em parte ao insucesso da estreia do Parágrafo 1 no ano anterior, devido à aparente incapacidade de os músicos profissionais adaptarem os requisitos inconvencionais da partitura. O entusiasmo que Cardew encontrou ao trabalhar com um grupo alargado, e agora bastante ecléctico, levou a que ele e os seus estudantes fossem além da interpretação da sua própria obra e fundassem um projecto conjunto, em que todos os membros ficariam de igual modo envolvidos no processo composicional. Para mais, o conteúdo das actuações públicas seria decidido através de um princípio igualitário, segundo o qual cada membro seria, à vez, responsável por organizar e escolher as obras a 20 serem interpretadas, mas em cuja aplicação se dava prioridade aos mais jovens. Assim, o programa do primeiro concerto, em Novembro de 1969, ficou a cargo de Christopher Hobbs, de dezoito anos, aluno de Cardew na Royal Academy of Music. A fundação da Scratch Orchestra foi anunciada num “Rascunho de Constituição”, publicado no The Musical Times, em Junho de 1969. Esboçaram-se diversas categorias de actividades musicais igualitárias e enfatizou-se uma concepção ampla de música, não limitada exclusivamente “ao som e aos fenómenos com ele relacionados”. Como Cardew explicou mais tarde numa entrevista à BBC: Estas pessoas podem ser artistas visuais, podem ser pessoas interessadas em teatro, podem ser empregados de escritório perfeitamente normais, ou estudantes ou o que quer que seja. Não têm necessariamente formação para tocar um instrumento. Alguns deles entregavam-se a actividades de diversos tipos, não produzindo necessariamente som, porque a música scratch era de facto um grupo compósito de pessoas a realizar as suas próprias actividades, de modo que algumas destas actividades incluíam pessoas a tocar instrumentos convencionais, como saxofones, ou flautas ou o que quer que fosse. E outras coisas envolviam simplesmente fazer movimentos com a mão ou arranjar um lenço, ou todo o tipo de actividades que não produziam necessariamente som.5 21 Ao longo de um período de três anos, a Scratch Orchestra actuou em inúmeros locais, desde salas de concerto tradicionais em Londres, até salões de aldeia em zonas remotas da Cornualha ou do norte do País de Gales. Contudo, a ênfase de Cardew em estabelecer a orquestra na esfera pública mostrou-se difícil de manter durante um extenso período de tempo, sem se confrontarem as questões mais urgentes e exigentes relativas às origens dos tipos de experiência contemporânea alienantes que a orquestra se esforçava por desafiar. Houve uma série de eventos – incluindo uma performance de música scratch numa discoteca para jovens imigrantes negros em Londres, onde pouco tempo antes houvera uma investida policial, e um escândalo mediático após a interrupção de um concerto ao ar livre em Nottingham, no qual estavam a ser representados gestos obscenos (previstos na partitura), embora inócuos – que originaram uma série de Encontros de Descontentamento, onde os membros foram encorajados a expressar as suas opiniões quanto à futura direcção da orquestra. Aqueles que reclamavam uma maior responsabilidade política, encabeçados pelo músico Keith Rowe, defendiam que a orquestra estava a ser sufocada por um “desencontro patológico entre teoria e prática”, e propunham criar um grupo que aplicaria a teoria marxista a futuras actividades. Cardew, que anteriormente exprimira a sua apreensão quanto ao envolvimento da orquestra em questões políticas, alinhou-se com este grupo e abraçou de imediato os princípios teóricos e políticos marxistas-leninistas, com a mesma energia e fervor com que se dedicara ao seu trabalho como compositor de vanguarda. Ao longo dos dois anos seguintes, fizeram-se várias tentativas de reformar a orquestra de acordo com as linhas revolucionárias da política maoísta. O texto confuciano de The Great Learning, preconizando a rectidão pessoal como condição prévia para um Estado bem fundado, foi revisto para condenar as maquinações opressivas e imperialistas do capitalismo monopolista. Quando esta versão revista foi apresentada no Royal Albert Hall em 1973, na sequência de um convite para que The Great Learning integrasse os Promenade Concerts da BBC, em reconhecimento do estatuto de Cardew como compositor, foram censuradas pela BBC referências políticas similares incluídas nas notas de programa do concerto, e proibidas na sala bandeiras com declarações maoístas. Para piorar as coisas, quando voltou a aceitar um convite da BBC com vista a preparar um público inglês para ouvir obras de Cage e de Stockhausen, Cardew caluniou abertamente ambos os compositores, que haviam tido enorme influência na sua carreira, por escreverem música socialmente irrelevante e que nada fazia para alterar a injustiça social. Posteriormente publicada sob o título Stockhausen Serves Imperialism, a sua condenação destas duas figuras fundamentais da música de vanguarda do pós-guerra foi complementada por uma extensa autocrítica, incluindo uma análise marxista detalhada da Scratch Orchestra e das suas falhas.6 Dada a sua mudança política para o maoísmo, é compreensível que Cardew acabasse por rejeitar o que até então fora o seu mais ambicioso projecto. Em 1974, concluiu que toda a sua composição pouco mais era do que fruto de “um compositor politicamente retrógrado, embrulhado nas abstracções da vanguarda”. A sua tentativa de rever o texto confuciano, em 1972, deu-se apenas um ano antes de ser lançada a “Campanha de Crítica a Confúcio”, em plena Revolução Cultural Maoísta, com o objectivo de erradicar da República Popular da China o confucionismo e a sua longa história. Para mais, Cardew tinha agora de se confrontar com a função do confucionismo no apoio que Ezra Pound dera ao fascismo italiano, e pelo qual fora acusado de traição no final da Segunda Guerra Mundial. Para Cardew, o tipo de declarações presentes no artigo “The Immediate Need for Confucianism”, de 1973, no qual Pound afirmava que o Ta Hio podia superar a barbaridade “de países como a Espanha e a Rússia”, desacreditava ainda mais The Great Learning. Posteriormente, entre meados e finais da década de 1970, Cardew renunciou a todas as ligações à vanguarda e alinhou os seus compromissos políticos, enquanto membro do Partido Comunista Revolucionário Britânico (Marxista-Leninista), anti-revisionista, com um conjunto de obras (predominantemente composições para piano) que regressavam à tonalidade, a qual havia sido abandonada pela música erudita do século XX logo no seu momento fundador. Desde que se retractou, em 1974, até à sua morte em 1981, a mais ambiciosa obra do compositor não voltou a ser tocada. Não podemos especular sobre o posicionamento político de Cardew caso tivesse vivido para testemunhar a queda do comunismo “real” e o declínio do próprio comunismo como “o inultrapassável horizonte do nosso tempo”, citando o filósofo Jean-Luc Nancy7. Tão-pouco podemos especular se continuaria a subscrever a sua rejeição autocrítica da música e da arte de vanguarda. Na altura da sua morte, vítima de um acidente de atropelamento e fuga, perto da sua casa em Leightonstone, estava agendado um concerto em que iria interpretar a sua partitura gráfica Treatise – um sinal de que poderia vir a reconsiderar a sua posição. No entanto, apesar de Cardew ter definitivamente rejeitado The Great Learning por entender que era politicamente reaccionário, podemos reconsiderar essa obra a partir da sua astúcia política – pelo menos como uma obra com uma importância muito superior à que o próprio compositor estava disposto a admitir. Para podermos ter uma ideia – e tendo em conta o seu próprio fracasso -, comecemos por considerar as notas explicativas dos Parágrafos 2 e 7, interpretados pela Scratch Orchestra, numa gravação de 1971 da Deutsche Grammophon. Aqui, é interessante notar, Cardew descreve vários exemplos de fracasso, desde os monges budistas tentando sobrepor o seu canto ao som ensurdecedor de uma cascata (que Michael Parsons lhe apresentara como possível referência para a quase irresolúvel luta entre vozes e ritmos, no Parágrafo 2), até à tentativa desesperada de Buster Keaton, no seu filme One Day (1920), de se adaptar à recente produção massificada da vida: O fracasso existe em relação a metas. A natureza não tem metas, e por isso não pode falhar. Os seres humanos têm metas, e por isso têm de falhar. Com frequência, as maravilhosas configurações produzidas pelo fracasso revelam a mesquinhez dos objectivos. Claro que temos de continuar a lutar pelo sucesso, caso contrário não poderíamos falhar genuinamente. Se Buster Keaton não estivesse genuinamente a tentar fracassar ao erigir a sua casa, não teria graça vê-la cair sobre ele.8 As referências de Cardew ao fracasso de tantas vozes que, para serem ouvidas, se debatem com os exaustivos ritmos de tambor do Parágrafo 2, não só se aplicam também à impossível harmonia colectiva do Parágrafo 7, como ainda a The Great Learning na sua totalidade. Porém, é precisamente neste fracasso que reside o seu significado político. Porque aquilo que acaba por falhar – ou mais precisamente, aquilo que se recusa – na obra de Cardew é a imanência ou a intimidade da comunhão. Trata-se, pois, da absoluta rejeição de qualquer tipo de apropriação que Pound pudesse fazer do Ta Hio na sua defesa do totalitarismo – porque no seu impulso para a imanência colectiva e para a totalidade social, o totalitarismo expressa o incentivo para ultrapassar, e em última instância apagar, a de outro modo necessária não-coincidência que torna possível o empenho político da experiência partilhada. É precisamente essa não-coincidência, na falta de qualquer essência determinada ou de fusão comunal, que permite a The Great Learning oferecer uma versão da política verdadeiramente democrática: a afirmação de uma multiplicidade de vozes partilhando em conjunto a sua própria disparidade extática, na ausência de qualquer medida comum. Tal não subtrai, porém, sentido ao texto confuciano, nem o reduz a um simples clamor de vozes. Antes o abre a algo que se poderá descrever melhor recorrendo ao conceito de signifiance, usado por Roland Barthes (a partir de Julia Kristeva) para se referir àquilo que num dado texto gera e transmite sentido em excesso, além de qualquer tipo de significação estável ou predeterminada. Para Barthes, o termo signifiance tem um valor utópico, na medida em que, por não ser fechado, resiste ao que ele descreve como “a tirania do sentido” – a necessidade peremptória de transmitir sentido através de locuções estáveis e definidas. Tal como outras formas de arte, segundo afirma Barthes, a música fica sujeita à “tirania do sentido” quando se espera que comunique emoções codificadas e que reduza a experiência da sua significação ao que pode ser meramente dito.9 Além do mais, tal exigência emerge de uma cultura que distanciou progressivamente – em nome do capital – o acto de produzir do acto de ouvir música. Uma vez que The Great Learning foi em grande medida escrito para contrariar esse tipo de divisão, não é surpreendente que também recuse tal tirania – e fá-lo acolhendo na sua partitura traços de signifiance. De facto, a descrição de signifiance como “o tremeluzir dos significantes”, feita por Barthes no ensaio “Écoute”, descreve apropriadamente a partitura de Cardew: desde o tremeluzir de uma série de pinceladas transpostas para som, até às diversas recitações da própria tradução de Pound, continuamente emergindo da (e regressando à) notação sem suspender o seu sentido.10 Se The Great Learning contesta a tirania do sentido, fá-lo, contudo, não por projectar um espaço onde o clamor de tantas vozes se expressa livremente, mas antes por afirmar e libertar o próprio acto de ouvir. Novamente, como sugere Barthes, se queremos libertar a escuta não basta começarmos a falar, como frequentemente se crê de modo simplista; é antes necessário permitir à própria escuta que circule e estabeleça permutas, subvertendo assim a distribuição através da qual os modos dominantes de discurso instrumentalizado e hierarquizado se reforçam a si mesmos: Nenhuma lei pode obrigar o sujeito a ter prazer num lugar para onde não queira ir (quaisquer que sejam as razões da sua resistência) e nenhuma lei tem o poder de forçar a nossa escuta: a liberdade de escuta é tão necessária quanto a liberdade de expressão. Daí que este conceito aparentemente modesto (de escuta) seja, afinal, como um pequeno teatro onde essas duas deidades modernas, uma má e outra boa, se confrontam: o poder e o desejo.11 Deste modo, se a essência de todas as obras de arte contemporâneas de algum mérito é a suspensão do poder – e algo dessa suspensão pode ser ouvido na afirmação de fracasso feita por Cardew -, pode considerar-se que a importância de The Great Learning reside na sua modéstia, bastante próxima do modelo de teatro modesto descrito por Barthes. Afinal de contas, nunca se exorta nem se força ninguém à audição, na medida em que entendemos a palavra no seu sentido original, enquanto faculdade de ouvir ou escutar. Deste modo, podemos compreender aquilo que The Great Learning, em última instância, oferece como a sua mais pertinente lição: nem mais nem menos do que o reconhecimento não coercivo da liberdade que reside na escuta. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 John Cage, M: Writings '67-'72, Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press, 1969, p. xiii. Michael Nyman, Experimental Music: Cage and Beyond, Cambridge: Cambridge University Press, 1974, p. 115. Cornelius Cardew, “Towards an Ethic of Improvisation”, in Treatise Handbook, Londres: Edition Peters, 1971; republicado em http://www.ubu.com/papers/cardew_ethics.html Ibid. Citado por Timothy D. Taylor, “Moving in Decency: The Music and Radical Politics of Cornelius Cardew”, Music and Letters, n.º 79, 1998, p. 556. Cornelius Cardew, Stockhausen Serves Imperialism (originalmente publicado como Stockhausen Serves Imperialism and Other Articles), Londres: Latimer, 1974; republicado em http://www.ubu.com/historical/cardew/cardew_stockhausen.pdf. Como já foi aliás reconhecido, o comentário de Jean-Luc Nancy em The Inoperative Community é uma citação errónea do famoso comentário feito por Sartre em 1960, em Search for a Method, de que “o marxismo é o horizonte insuperável dos nossos tempos”. Cornelius Cardew, notas de apresentação discográficas, in Cardew: The Great Learning / Bedford – Two Poems, Deutsche Grammophon, 2002. Roland Barthes, “The Grain of the Voice”, in Image, Music, Text, Londres: Fontana Paperbacks, 1977, p. 185. Roland Barthes, “Listening”, in The Responsibility of Forms: Critical Essays on Music, Art and Representation, Nova Iorque: Hill and Wang, 1985, p. 260. Ibid. 22 InformaçõesCardew Cornelius práticase a liberdade da CURADORES escuta Pierre Bal-Blanc (n. 1965) é director do Centre d’art contemporain de Brétigny, situado perto de Paris, onde comissariou exposições de David Lamelas, Teresa Margolles, Rainer Oldendorf, Jimmy Robert, Roman Ondak, Markus Schinwald, Santiago Sierra, Franz Erhard Walther, Clemens von Wedemeyer e Arthur Zmijewski, entre outras. É curador da série de exposições internacionais La Monnaie Vivante/The Living Currency, uma análise contemporânea e histórica do corpo e das estratégias performativas nas artes visuais, na música contemporânea, no teatro e na dança, cuja última edição teve lugar na Turbine Hall da Tate Modern, em Londres, em 2008. Em 2009, comissariou a exposição The Death of the Audience na Secession, em Viena. 8 de Maio - 26 de Junho 2010 Culturgest, Porto Lore Gablier (n. 1979) estudou na École régionale des Beaux-Arts de Valence, onde se licenciou em 2005. Em 2006, completou os seus estudos no curso de curadoria da École du Magasin, em Grenoble, onde co-comissariou o projecto Pas de côté, um programa de discussões e actividades focalizado em ideologias alternativas e empenho político. Em 2007, colaborou no livro Art conceptuel, une entologie, uma colectânea de arte conceptual publicada pelas Éditions Mix, e organizou o livro Popescu Chronicles, publicado pelas Éditions BC et Compagnie, ambos lançados em 2008. Desde 2008, é curadora associada freelancer em Le Générateur, um centro de arte que abriu recentemente em Gentilly, fora de Paris, onde organizou a primeira edição de frasq, um festival de performance, em Outubro de 2008. É actualmente coordenadora do curso de curadoria da École du Magasin. Entrada gratuita: sábado, 8 de Maio, 16h30: The Great Learning, Paragraph 7 sábado, 15 de Maio, 16h00: sábado, 15 de Maio, 19h00: sábado, 22 de Maio, 17h00: Walk Stefan Szczelkun 1001 Scratch Activities Outros concertos e performances: Bilhete: 5 euros Assinatura de 5 bilhetes: 18 euros Bilhetes à venda na Galeria da Culturgest no Porto e na bilheteira da Culturgest em Lisboa Galeria da Culturgest Edifício Caixa Geral de Depósitos Avenida dos Aliados, 104 4000-065 Porto T 222 098 116 www.culturgest.pt De segunda-feira a sábado, das 10h00 às 18h00 Encerra aos domingos e feriados Dean Inkster (n. 1964) é originário de Christchurch, na Nova Zelândia. Completou os seus estudos no Institut des hautes études en art plastique em Paris, em 1993, e na École du Magasin, em Grenoble, em 2000. Publicou diversos artigos e ensaios sobre artistas contemporâneos, como Hans Haacke, Felix Gonzalez-Torres, Rainer Oldendorf, Philippe Parreno, Liam Gillick ou Alejandra Riera. Co-organizou a antologia Radio Temporaire, publicada por Le Magasin, em 2000, e é autor de um livro sobre as fotografias de Valérie Jouve, publicado pela Hazan, em 2002. Co-comissariou, com Sébastien Pluot e Eric Mangion, Double Bind: Stop Trying to Understand Me, uma exposição em torno do tema da tradução na arte contemporânea, na Villa Arson, em Nice, que abriu em Fevereiro de 2010. Actualmente, ensina história e teoria da arte na École régionale des Beaux-Arts de Valence, em França. Jean-Jacques Palix (n. 1952) é um compositor, compilador, arquivista e respigador de sons francês. Em 1981, depois de vários anos a produzir e a criar composições para a Radio France, foi um dos membros fundadores da influente Radio Nova. Desde a década de 1990, produziu obras sonoras para numerosos coreógrafos, como Daniel Larrieu, Brigitte Farges, Odile Duboc, Lionel Hoche, Yvonne Rainer, Alain Buffard, Georges Appaix, Dominique Brun, Charlotte Delaporte e Edwige Wood. Em 1992, criou o seu próprio estúdio de gravação e editora independente, Song Active Productions. Em 2002, produziu e realizou a versão fílmica de Lecture on Nothing, de John Cage, em colaboração com Eve Couturier. O seu filme This Disk is the Same as the Other (2009) foi recentemente seleccionado para o Tribecca Film Festival, em Nova Iorque. A produção do projecto Cornelius Cardew e a liberdade da escuta foi coordenada por Susana Sameiro. Este jornal, publicado por ocasião deste projecto, foi coordenado por Miguel Wandschneider e desenhado por VIER5. CAC BRETIG NY Os textos aqui publicados foram traduzidos por: Diana Almeida (pp. 2, 19-22); Vanda Gorjão (pp. 8-17, 18, 24); Miguel Serras Pereira (pp. 6-7); Miguel Wandschneider (pp. 3, 5). Os textos foram revistos por Miguel Wandschneider e Conceição Candeias. 24