Arq Bras Cardiol volume 68, (nº 5), 1997 Correlação Anatomoclínica Correlação Anatomoclínica Correlação Anatomoclínica Caso 3/97 - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia Paciente com três anos e nove meses de idade, sexo masculino, branco, procedente de Goiás, nascido de parto normal, a termo, sem intercorrências durante a gestação. A mãe relatava que vinha notando cansaço às mamadas desde os primeiros meses de vida, além de retardo no crescimento ponderoestatural. Há dois anos vinha apresentando dispnéia progressiva, com várias internações por gripe. Há 15 dias, novamente internado por piora da dispnéia, sendo então encaminhado a este hospital. O exame físico constatou paciente hipodesenvolvido, emagrecido, dispnéico e cianótico. À ausculta cardíaca, constatou-se ritmo cardíaco regular em dois tempos, com 92bpm; desdobramento curto e variável da 2ª bulha e P2 aumentada (++/4), sem sopros. O murmúrio vesicular era rude. À palpação notou-se abdômen depressível, doloroso na porção superior e fígado a 5cm do rebordo costal direito. Os pulsos periféricos eram amplos. O eletrocardiograma (ECG) (fig. 1) revelou ritmo sinusal e sobrecarga das câmaras direitas e a radiografia do tórax (fig. 2) área cardíaca no limite superior da normalidade e edema pulmonar crônico. Exames laboratoriais revelaram 32,7% de hematócrito 11,1g/dL de hemoglobina e leucograma normal, exceto por 10% de eosinófilos. As taxas séricas de glicose, uréia, creatinina, sódio, potássio, urina I e provas da coagulação foram normais. O exame ecocardiográfico constatou situs solitus e levocardia, conexões venosas normais e concordância átrio-ventrículo-arterial; ausência de comunicações intracardíacas. Havia dilatação acentuada das câmaras direitas e do tronco e ramos pulmonares, com refluxo tricúspide moderado. A pressão do ventrículo direito (VD) foi estimada em 100mmHg. Havia imagem sugestiva de canal arterial, mas sem fluxo em seu interior, deixando dúvidas sobre sua perviabilidade. O paciente foi internado para cateterismo, recebendo, no dia seguinte, 150mL de concentrado de hemácias, administrado em cerca de 3h. Logo após, tornou-se subitamente dispnéico, gemente, com tiragem intercostal e subcostal, pálido e cianótico, evoluindo para parada cardiorrespiratória. Foi intubado e colocado sob ventilação mecânica, auscultando-se estertores crepitantes difusos bilaterais. À aspiração das vias aéreas superiores houve saída de Editor da Seção: Alfredo José Mansur Editores Associados: Desiderio Favarato Vera Demarchi Aiello Editora Convidada - Mabel de Moura Barros Zamorano Correspondência: Mabel M. Barros Zamorano - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - 04012-180 - São Paulo, SP abundante secreção sanguinolenta. O hematócrito foi 46%, a gasometria revelou pH de 7,18, pCO2 de 26,lmmHg; pO2 de 62,3mmHg, excesso de base -19,3mEq/L, HCO3 8,6mEq/L, conteúdo de CO2 9,4mEq/L e SatO2 84,2%. Apesar das medidas de suporte e dos medicamentos, evoluiu para nova parada cardiorrespiratória em cerca de 30min, rapidamente recuperada e após 15min, outra parada cardiorrespiratória irreversível e óbito. Discussão Aspectos Clínicos - Infelizmente este paciente teve acesso a tratamento médico especializado apenas na fase final de sua doença e a rápida evolução fatal impediu investigação mais aprofundada. Contudo, alguns aspectos da história podem ser esclarecedores: trata-se de paciente cujos sintomas iniciaram-se com poucos meses de idade, porém sem muita exuberância, ou seja, apenas cansaço às mamadas e retardo no crescimento. Pelo 2º ano de vida começaram a surgir dispnéia crescente e quadros gripais de repetição, sinais que poderiam sugerir hiperfluxo pulmonar. Com pouco menos de quatro anos de idade, no 1º exame em serviço de cardiologia, o hipodesenvolvimento físico e o estado de desnutrição atestavam a cronicidade da enfermidade da criança. O exame físico revelou hipertensão pulmonar e sobrecarga do coração direito, com hepatomegalia. A ausência de sopros cardíacos fez suspeitar de anatomia cardíaca normal, mas também podia corresponder à instalação de síndrome de Eisenmenger, quando a gravidade da hipertensão pulmonar equilibra as pressões intracardíacas, com cessação do shunt e, conseqüentemente, dos sopros respectivos. O esclarecimento destas dúvidas requereu exames complementares: a análise radiológica dos pulmões revelou apenas congestão crônica. O ECG mostrou ritmo sinusal, com SÂQRS desviado para a direita (+120º); o dado mais importante foi o comportamento das ondas T, negativas, simétricas e profundas de V1 a V4, persistindo negativas até V6, sugerindo hipertensão acentuada de VD. O exame ecocardiográfico não demonstrou a existência de anomalias intracardíacas causadoras de hipertensão pulmonar, seja arterial como as comunicações anômalas, seja venosa como cor triatriatum ou estenose mitral, somente a presença de hipertensão do VD, estimada em 100mmHg. Melhor esclarecimento anatômico se fez necessário, programando-se estudo hemodinâmico que não chegou a ser realizado, pela precipitação do óbito já no 2º dia de internação e após administração de 150mL de concentrado de hemácias, durante 3h. O quadro final caracterizou-se por descompensação respira381 Correlação Anatomoclínica Arq Bras Cardiol volume 68, (nº 5), 1997 Fig. 1 - Traçado eletrocardiográfico em ritmo sinusal e com sobrecarga de câmaras direitas (SÂQRS +120º). Ondas T negativas de V1 a V6. tória súbita e grave, seguida por falência cardíaca sem resposta às medidas terapêuticas imediatamente instituídas. Esta evolução final nos sugere que, apesar do tempo de administração, o concentrado de hemácias levou a sobrecarga volêmica insuportável para as condições hemodinâmicas do paciente, desencadeando rapidamente o quadro de edema agudo pulmonar que precedeu o óbito. (Dra. Maria Aparecida de Paula Silva) Fig. 2 - Radiografia do tórax mostrando congestão acentuada dos campos pulmonares. Área cardíaca nos limites superiores da normalidade, apenas com retificação do arco pulmonar. 382 Hipóteses diagnósticas - 1) Hipertensão pulmonar grave, provavelmente primária, mas não se pôde afastar hipertensão pulmonar secundária à persistência do canal arterial, devido aos achados ecocardiográficos; 2) cor pulmonale. Necropsia O exame externo revelou criança hipodesenvolvida, desnutrida e com cianose leve de extremidades. A abertura das cavidades revelou derrame pleural moderado bilateral, mas sem ascite. As alterações macroscópicas se restringem aos pulmões e ao coração, com os demais órgãos, apresentando apenas congestão, especialmente no fígado e no baço. O coração tinha aumento de câmaras direitas, tanto por dilatação quanto por hipertrofia, extensiva ao tronco pulmonar e seus ramos; a valva tricúspide tinha lacíneas conservadas, mostrando apenas dilatação anular. Não havia malformação congênita, seja de shunt ou de “barreira”, no coração ou nas grandes artérias. Os pulmões eram volumosos, duros, com superfície de corte congesta e edematosa e com tonalidade ferruginosa difusa bem evidente. Os vasos se salientavam na superfície de corte, chamando atenção a acentuação da trama conjuntiva intersticial, com alargamento dos septos (fig. 3). O estudo microscópico dos pulmões mostrou congestão passiva crônica intensa, com hemossiderose acentuada (fig. 4). Ao lado disso, havia comprometimento venoso difuso, sob a forma de hiper- Arq Bras Cardiol volume 68, (nº 5), 1997 Fig. 3 - Pulmão esquerdo: na superfície de corte, o alargamento intersticial ressalta os septos fibrosos subpleurais, conferindo aspecto nodular ao parênquima. plasia da parede venosa, com proliferação edematosa da íntima, freqüentemente oclusiva (fig. 5). Em outros ramos as lesões eram mais crônicas, com obliteração fibrosa de veias pequenas ou maiores (fig. 6). Não foram vistos trombos venosos. Os vasos arteriais também mostravam comprometimento, porém discreto e inconstante, apenas com hipertrofia medial de alguns ramos, especialmente em nível bronquiolar. Outros achados significantes no exame microscópico dos pulmões foram edema intenso e difuso, além de fibrose intersticial nos septos e na adventícia dos vasos. O exame microscópico de outros órgãos revelou apenas os efeitos da congestão crônica; porém, foi constatada enterobíase no apêndice cecal, provável causa da eosinofilia detectada pelo hemograma. (Dra. Mabel de Moura Barros Zamorano) Diagnósticos anatomopatológicos - Hipertensão pulmonar por doença pulmonar veno-oclusiva. Comentários A forma mais comum de hipertensão primária ou idiopática dos pulmões é por doença arterial plexogênica, Fig. 4 - Corte histológico do pulmão, que demonstra a congestão crônica intensa sob a forma de grupos de histiócitos intra-alveolares, fagocitando pigmento hemossiderínico. (hematoxilina-eosina - 25x). Correlação Anatomoclínica Fig. 5 - Pequenas veias pulmonares com lesão frouxa e concêntrica da camada íntima, que reduz acentuadamente o lume (*). A lâmina elástica é descontínua e a camada média (M) parcialmente destruída. O tecido perivenoso mostra fibrose e hemorragia recente (setas), sem inflamação. (coloração para fibras elásticas - 450x). cuja histologia é indistinguível daquela verificada nas hipertensões secundárias a cardiopatias congênitas. Hipertensão pulmonar por doença pulmonar veno-oclusiva é infreqüente, mas a cada dia surgem mais comunicações na literatura, principalmente como complicação de tratamento radioterápico, ou em associação com colagenoses e neoplasias. Estas associações levam muitos autores a questionar sua inclusão no grupo das hipertensões primárias ou idiopáticas, porém persiste pequeno grupo onde nenhuma das associações anteriores é detectável. Este grupo tende a atingir preferencialmente uma faixa etária inferior à da arteriopatia plexogênica idiopática e não mostra a maior incidência no sexo feminino que tem esta última. A causa mais comumente aceita para a doença pulmonar veno-oclusiva é a infecciosa, já que vários pacientes relatam o início dos sintomas após quadro de infecção pulmonar. Porém, uma vez que é comum o encontro de trombos venosos, outros autores acreditam que se trata de doença trombogênica, atuando preferencialmente no território pulmonar; há casos, entretanto, em que não se detectam trombos venosos, mesmo com farta amostragem do tecido pulmonar. Entre os adeptos da hipótese trombogênica, há aqueles que atribuem este estado de hipercoagulabilidade a um defeito genético, transmitido ou não a outros membros da família. O contexto mais atual das teorias etiopatogênicas tende a englobar os anteriores, ou seja: uma resposta patológica à infecção, resposta esta de caráter genético ou não, desencadeia o estado de hipercoagulação que resulta nas lesões intimais com estreitamento do lume venoso. Clinicamente pode-se estabelecer o diagnóstico básico de hipertensão pulmonar, sendo que métodos especiais de investigação, como o ecocardiograma e o cateterismo, permitem a definição do caráter primário da enfermidade. O ecocardiograma, além de demonstrar hipertensão sistólica do VD, descarta a presença de malformações cardíacas ou vasculares que poderiam levar ao estado de hipertensão pulmonar. O estudo hemodinâmico permite aferir pressões cardiopulmonares as quais são importantes para o diagnóstico. A ausência de dilatação ou estenose nos segmen383 Correlação Anatomoclínica Fig. 6 - Septo pulmonar com um grande ramo venoso em corte longitudinal, mostrando espessamento fibroso denso concêntrico da íntima (I), inclusive com septo que corta o lume (seta). (hematoxilina-eosina - 160x). tos extrapulmonares das veias, em associação com hipertensão venosa, sugere doença pulmonar veno-oclusiva. Mas, o diagnóstico definitivo é feito apenas pelo exame histológico do tecido pulmonar. Por se tratar de doença difusa, uma pequena amostra de biópsia pulmonar deve conter dados suficientes para o diagnóstico. Porém, a relação risco-benefício da biópsia pulmonar deve ser muito bem avaliada, uma vez que os índices de complicações e óbito após manipulação cirúrgica são elevados nesses doentes. Como em outras formas de hipertensão pulmonar fixa, o prognóstico na doença pulmonar veno-oclusiva é reservado. A sobrevida média, após o diagnóstico, é semelhante à da hipertensão pulmonar primária por arteriopatia plexogênica, mas nesta última há relato de sobrevida de até 30 384 Arq Bras Cardiol volume 68, (nº 5), 1997 anos, enquanto na doença pulmonar veno-oclusiva o máximo que se logrou foram sete anos. Observação que chama a atenção é que, quanto mais jovem o doente na primeira manifestação da enfermidade, mais rápida a evolução fatal. Há, porém, relato de doença fulminante em mulher adulta, com morte em poucas semanas por insuficiência ventricular direita. Além da falência do coração direito, o óbito pode se dever à insuficiência respiratória progressiva, hemoptise ou embolia pulmonar oriunda de trombose no coração direito. Morte súbita durante exercício já foi relatada. Não há tratamento efetivo para a doença pulmonar veno-oclusiva. As tentativas de minimizar fenômenos trombóticos nas veias intrapulmonares ou nas câmaras direitas com anticoagulantes, não têm resultado conclusivo e é provável que os trombos intrapulmonares sejam afetados por este tipo de tratamento. Para conter possíveis mecanismos inflamatórios e imunopatológicos, empregam-se corticosteróides e imunossupressores com, no máximo, resultados passageiros. Em alguns doentes, a melhora é mais associada à remissão de quadros intersticiais concomitantes que propriamente à regressão da doença vascular. O uso de vasodilatadores deve ser visto com cautela, pois foram verificados casos de edema agudo fatal dos pulmões, seguindo a administração destes medicamentos. O transplante pulmonar tem surgido como opção terapêutica encorajadora para o tratamento das doenças pulmonares parenquimatosas e vasculares, em estágio final. O tratamento preferencial é o transplante unilateral, porque o pulmão remanescente, por ter alta resistência e baixa complacência, direciona o fluxo sangüíneo para o pulmão transplantado. (Dra. Mabel de Moura Barros Zamorano)