Convenções de gênero e sexualidade na vulnerabilidade às DSTs

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Artigo Original
Stella R. Taquette1
Zilah Vieira Meirelles2
Convenções de gênero e sexualidade
na vulnerabilidade às DSTs/AIDS de
adolescentes femininas
Conventions of gender and sexuality in vulnerability to STD/AIDS
among female adolescents
> RESUMO
Objetivo: A feminização da AIDS é mais expressiva na adolescência, em que o número de moças infectadas é maior do
que o de rapazes. O objetivo deste estudo foi compreender aspectos da sexualidade e gênero de adolescentes femininas
moradoras de 10 diferentes favelas da cidade do Rio de Janeiro que ampliam a vulnerabilidade às doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs)/AIDS. Métodos: O método utilizado foi qualitativo mediante a realização de 10 grupos focais, um em
cada comunidade, com a participação de 139 adolescentes femininas de 10 a 19 anos. Os temas abordados foram gênero,
sexualidade e DST/AIDS. Resultados: Os resultados revelaram que as adolescentes de comunidades populares vivem um
contexto socioeconômico desfavorável, com reduzidas oportunidades para adquirirem melhores concepções de estilos de
vida, o que as conduz para um processo de desvalorização afetivo-sexual. A incorporação de conceitos e expressões de
gênero tende a colocar esse segmento populacional num baixo patamar de dignidade feminina, deixando as adolescentes
expostas às DSTs/AIDS, visto que não se sentem fortalecidas para negociar o uso de preservativo. Conclusão: Concluiu-se
que as adolescentes femininas vivenciam relacionamentos afetivos sexuais vulneráveis às DSTs/AIDS devido às questões de
gênero presentes no contexto social.
> Palavras-chave
Adolescentes femininas, gênero, sexualidade, DST/AIDS.
> ABSTRACT
Objective: The feminization of AIDS is most significant in adolescence, when the number of infected female adolescents is
higher than that of boys. The purpose of this study was to understand the aspects of sexuality and gender among female
adolescents living in working-class communities in the city of Rio de Janeiro, which increase their vulnerability to STD/AIDS.
Methods: The method applied was qualitative, through 10 focus groups, each of which was conducted in one community, with participation of 139 adolescents aged 10 to 19 years. The topics covered were gender, sexuality and STD/AIDS.
Results: The adolescents in working-class communities experience unfavorable socioeconomic contexts, with diminished
opportunities for acquiring better lifestyle concepts, which leads them into a process of sexual-affective devaluation. The
incorporation of concepts and expressions of gender tend to put that segment of the population at a low level of female
dignity, which leaves them exposed to STD/AIDS to the extent that they do not feel empowered to request condom use.
Conclusion: The female adolescents engage in sexual-affective relationships that are vulnerable to STD/AIDS, because of
gender issues that they experience within their social context.
> Key words
Female adolescents, gender, sexuality, STD/AIDS.
Professora associada da Faculdade de Ciências Médicas e do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (FCM/NESA/UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2
Doutora em Saúde Pública; pesquisadora do NESA/UERJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1
Stella R. Taquette ([email protected]) - Rua Gomes Carneiro, 34/802 - Ipanema - Rio de Janeiro, RJ,
Brasil: CEP: 22071-110.
Recebido em 04/03/2012 – Aprovado em 18/07/2012
Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 56-64, jul/set 2012
Adolescência & Saúde
Taquette e Meirelles
> Introdução
Apesar de adolescência ser considerada uma etapa saudável da vida, agravos
de saúde vêm aumentando, sobretudo
os relacionados com o exercício da sexualidade e da saúde reprodutiva. Entre
eles destacam-se as doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs) e AIDS. O aumento
da incidência das DSTs entre adolescentes
e jovens amplia as chances de infecção
pelo HIV e o perfil epidemiológico da AIDS
mostra uma tendência à heterossexualização e à feminização, principalmente entre
mulheres de baixa renda e na faixa etária
de 13 a 19 anos1, 2. Ao analisar este fato de
forma contextualizada pode-se observar
que as mulheres estão expostas a diversos
elementos produtores de vulnerabilidade
às DSTs/AIDS: individuais, sociais e programáticos. Entre os individuais podem ser
verificadas: a presença de infecções genitais assintomáticas, a fragilidade entre o
conhecimento sobre o HIV e a adoção de
prática sexual segura, a anatomia feminina
receptora no ato sexual e o uso de drogas3.
Na dimensão social ressalta-se a desigualdade de gênero e a pobreza que, aliadas
à imaturidade biopsicossocial, à baixa escolaridade e ao não reconhecimento dos
direitos das adolescentes e jovens, são fatores que contribuem para o aumento do
risco deste grupo social4. Na dimensão
programática destaca-se a ausência de definição de políticas públicas neste campo
que privilegiem as mulheres adolescentes5.
A atividade sexual e o risco a ela associado estão relacionados com um sistema
de gênero que confere ao homem maior
poder e impede a mulher de tomar iniciativas como, por exemplo, negociar o uso
de preservativo nas relações sexuais6. Este
modelo de dominação de gênero masculino é um dos principais geradores de violência e risco de DST, que são potencializados nas mulheres jovens que, pela pouca
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idade, são biológica e socialmente mais
vulneráveis7, 8.
Diante deste quadro, o principal objetivo deste estudo foi compreender as
questões relacionadas com a sexualidade
e o gênero que vulnerabilizam as adolescentes/jovens do sexo feminino às DSTs/
AIDS moradoras de favelas (comunidades
populares) na cidade do Rio de Janeiro. O
estudo, pela sua característica transversal,
pretende subsidiar propostas de prevenção e de cuidados à saúde sexual deste
segmento populacional.
Estudo de cunho quantitativo e qualitativo foi realizado entre os anos de 2007
e 2008, em 10 favelas da cidade, em sua
maioria localizadas na Zona Norte do município do Rio de Janeiro. As comunidades
estudadas foram selecionadas pelo critério de serem locais de acesso da equipe
multidisciplinar coordenadora do estudo
e as 816 adolescentes pesquisadas foram
contatadas e convidadas a participar nas
escolas e espaços comunitários locais. Na
etapa quantitativa foram realizadas entrevistas clínicas e exames laboratoriais para
diagnóstico de DST.
Na fase qualitativa a que se refere este
artigo, os dados foram obtidos por meio
da realização de 10 grupos focais, um em
cada comunidade, com a participação total de 139 adolescentes. As adolescentes
entrevistadas na fase quantitativa eram
convidadas a tomar parte da fase qualitativa, e as que aceitaram compuseram os
grupos. Cada um era composto por 10
a 15 integrantes, com idades variadas de
10 a 19 anos. Apesar de os grupos serem
compostos por adolescentes com idades
variadas, este fato não trouxe diferenças
significativas em suas experiências de vida,
visto que as mesmas vivem no mesmo contexto sociocultural. Todos os grupos focais
foram gravados e o seu conteúdo, transcrito na íntegra. Posteriormente foi feita uma
pré-análise para elencar as principais variAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 56-64, jul/set 2012
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áveis temáticas para identificar categorias
relevantes ao estudo. Ao final, os dados
foram articulados aos referenciais teóricos
da pesquisa para responder as questões da
mesma com base em seus objetivos.
Para facilitar o debate foi utilizado
um roteiro contendo questões sobre sexualidade e DSTs/AIDS e gênero. No tema
“Sexualidade e DSTs/AIDS”, os objetivos
consistiam em compreender o valor que
é dado ao sexo na vida das adolescentes/
jovens, identificar o grau de consciência
da vulnerabilidade às DSTs/AIDS e por que
as adolescentes/jovens, mesmo sabendo
dos riscos, se expõem à contaminação. No
tema “Gênero”, os objetivos foram identificar o significado da perda da virgindade
para a adolescente/jovem, compreender
o grau de submissão da mulher ao desejo
do outro e suas ideias sobre a questão da
infidelidade.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa do Hospital Universitário
Pedro Ernesto da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (HUPE/UERJ) e as participantes e responsáveis assinaram o termo
de consentimento livre e esclarecido.
> Resultados e discussão
Na análise empreendida neste artigo
parte-se de duas concepções associadas
ao potencial de vulnerabilidade às DSTs/
AIDS: o exercício sexual na adolescência e
as questões de gênero e sexualidade. Na
primeira, o debate abordou o início da
vida sexual, os tipos de relacionamentos
afetivos vivenciados pelas adolescentes/jovens, com o objetivo de compreender suas
práticas e atitudes quanto ao uso de proteção em relação às DSTs/AIDS e à gravidez.
No segundo bloco de debate, buscou-se
compreender a influência das representações de gênero e sexualidade nos discursos sobre as suas vivências afetivo-sexuais,
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bem como explorar se há uma reprodução
das assimetrias de gênero, que podem redundar em relações de dominação e submissão, as possíveis negociações dessas assimetrias e as suas relações com situações
de violência.
Relacionamentos afetivo-sexuais
e suas influências
Nos debates entre as adolescentes/
jovens identificam-se alguns temas recorrentes aos estilos de relacionamentos afetivo-sexuais como fatores protetores e ampliadores dos riscos às DSTs.
Nos posicionamentos das adolescentes
sobressaíram-se, num primeiro nível classificatório, duas categorias básicas relativas aos relacionamentos afetivo-sexuais:
“ficar”/“pegar” e “namorar”. Num segundo nível, essas classificações se complexificaram ao se combinarem com o intercurso sexual, recebendo alguns marcadores
diferenciais como justificativa para a sua
efetivação, como: a curiosidade, a excitação sexual, o sentir-se mulher e, por vezes,
os conflitos familiares. Todas elas podem
ser reunidas e compreendidas como sentimento de adequação ao seu universo social de referência.
O ato de “ficar” é explicado como uma
ação fugaz, por vezes descartável e que, a
priori, não envolve sentimento, a não ser
o de prazer momentâneo. Pode ser posto
em ação pelas meninas ou pelos meninos,
contudo há uma versão eminentemente
masculina do “ficar”, o “pegar”, mais utilizada para designar os atos dos meninos,
e envolve um sentido maior de apropriação, de agência, comparativamente ao ficar. Mesmo sendo um ato valorativamente mais neutro, dentro da gramática das
convenções de gênero e sexualidade atualizadas pelas adolescentes pesquisadas, o
prazer momentâneo do “ficar” prescreve
uma estigmatização das meninas, o que as
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faz sentirem-se por vezes “sujas” e “desvalorizadas”, exatamente o inverso para os
meninos, valorizados pela quantidade de
meninas que “pegam”.
Esse valor diferencial de gênero atribuído ao ficar/pegar também se verifica na
ação prescrita para cada um da relação. O
“ficar”, em geral, não envolve sexo, no entanto, dependendo da ocasião, ele pode
ocorrer, já que aos meninos sempre cabe
a tentativa de alguma “coisa” com as meninas e, a elas, a resistência. O ato de ficar
pode ser repetido várias vezes com o mesmo parceiro e por um tempo mais prolongado, o que pode se transformar em um
namoro. Essa outra classificação, contudo, implica a adição de outros elementos
como sentimentos de “gostar”, a ideia de
comprometimento, de fidelidade e de envolvimento com a família.
O ficar/pegar e o namorar, por elas:
“Ficar é dar um beijinho e depois largar. Porque esta gíria já é do homem, pegar. Namorar é diferente, quando a gente
namora, a gente namora com uma pessoa
só. Namorar é uma parada de segurança,
entendeu?”
A partir do ficar/namorar, algumas
adolescentes/jovens evoluem para relacionamentos mais estáveis que, por vezes, as
colocam em situações de maior ou menor
risco de exposição às DSTs/AIDS. Ressaltam que uma das dificuldades de se proteger é o fato de as pessoas que têm DSTs
não o aparentarem e dificilmente revelarem que estão infectadas. Entre os sentidos
atribuídos ao início da vida sexual, aqueles
mais recorrentes nos seus discursos são o
“tesão”, a curiosidade e a vontade de deixar de ser criança. Outro fator externado
foi a vontade de se libertar dos conflitos
familiares. Ao se compararem as justificativas arroladas pelas adolescentes, mais
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especificamente a curiosidade pelo ato sexual despertada pela influência das amigas
e o conflito com os pais e família, podemos
perceber algumas ambiguidades nos seus
discursos. Por um lado, enfatizam as falhas
dos pais ao não oferecer atenção e orientação de que dizem necessitar e também
as proibições por eles impostas. Por outro
lado, assumem um desejo de conhecer o
sexo, explicitado por meio das afirmações
de sentirem excitação, curiosidade e de se
tornarem mulheres. Essas incongruências
nos remetem aos paradoxos oriundos da
tensão entre suas práticas e seus discursos,
os quais contribuem para a compreensão
da complexa experiência sexual das adolescentes9.
“Porque eu tenho uma amiga que começou a vida sexual dela com 18 anos. Eu
a aplaudi de pé. Eu falei para ela: “cara,
você é uma pessoa em extinção.”
É a curiosidade, poxa, todo mundo
tem, aí elas acabam fazendo.”
“Eu fiquei já grávida três vezes não por
descuido meu, entendeu? Foi mais porque
eu não tinha o apoio da minha família.”
“Eu vou fazer sexo pra dizer que sou
mulher, pra virar independente, pô, eu
quero mostrar pro meu pai que eu não sou
mais criança.”
Nestes exemplos, retirados dos seus
discursos, há muitos sentidos que merecem uma análise mais demorada. Tomemos como exemplo a justificativa de “deixar de ser criança” e a culpabilização dos
pais devido a uma suposta negligência. A
ênfase na escolha, no desejo de transar,
remete a uma intenção desta menina, ou
seja, uma ação deliberada voltada para alcançar um fim, embora esteja circunscrita
num campo de possibilidades restrito, demarcado pelas convenções sociais de gênero e sexualidade que regem o seu universo de valores.
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A atividade sexual assume um sentido
de rito de passagem para a vida adulta,
uma demarcação do sentir-se mulher, mas
essa suposta passagem não se dá por completo e entra em conflito com a sua posição
de filha dentro da família. No universo familiar, ser adulta implica também assumir
outras responsabilidades, como autonomia
financeira e construção do seu próprio núcleo familiar. As disparidades de expectativas sobre o que é se tornar adulta entre
as adolescentes e seus familiares redundam
em conflitos que são vivenciados de forma
paradoxal pelas adolescentes, que ora significam o ato sexual como a efetivação de
um desejo, ora atribuem-no a um mau passo devido à omissão dos pais.
Outro aspecto a ser considerado é o
esperado afastamento dos filhos de seus
pais durante a adolescência e a progressiva
identificação com modelos externos à família. Há um abandono dos ideais infantis
e a busca pelo novo, novas escolhas e laços afetivos no meio social que redundam
numa identificação com o grupo de iguais,
o qual age como um substituto da família.
O grupo lhes impõe regras sob a forma de
modelos, comportamentos, leis e práticas
diversas, inclusive no campo da sexualidade. Segundo Adamo21 apesar de não ser
um comportamento específico desta faixa
etária, muitas adolescentes/jovens têm relações sexuais por curiosidade, por competição com as amigas ou, ainda, como
forma de evitar sentimentos de isolamento e solidão. Neste caso, a união conjugal
precoce é tomada como solução para problemas familiares, quando a adolescente/
jovem se sente infeliz em sua casa.
A alta frequência com que os pais foram citados pelas adolescentes aponta para
a necessidade de incluir a família nas políticas públicas preventivas dos agravos da
sexualidade desprotegida na adolescência.
Este dado é corroborado por outros estudos que evidenciam a importância da partiAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 56-64, jul/set 2012
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cipação dos responsáveis na adesão a comportamentos mais seguros por parte das
adolescentes e que preconizam a inclusão
do familiar como protagonista do processo
junto aos jovens nos programas de orientação sexual e promoção de saúde10.
Frente a essas questões pode-se afirmar que o exercício da sexualidade entre
as adolescentes participantes deste estudo
passa fortemente pela adequação ao seu
universo social de referência e pela aceitação pelos seus pares. Esta constatação
nos remete à reflexão sobre as convenções
de gênero e sexualidade compartilhadas,
criadas e reproduzidas por esse grupo, as
quais conformam a segunda categoria geral que percorreu este estudo.
A reprodução das relações de
gênero e sexualidade
Observa-se que as regularidades encontradas nos relatos sobre o início da
vida sexual na adolescência apontam para
a forma como as questões de gênero e sexualidade operam na vida dessas meninas
e se revelam na valência diferencial de gênero exemplificada nas concepções sobre
a fidelidade.
Parte-se da premissa de que as questões de gênero e sexualidade são campos
distintos e inter-relacionados com um conjunto de valores e ideais relativos ao imaginário sexual disponível, e culturalmente
compartilhado, a partir dos quais os seres
sociais pautam suas ações e concepções
de mundo, reproduzem e recriam essas
mesmas convenções e práticas. Existem
diversas adolescências, cujas relações de
gênero são construídas com possibilidades
e espaços demarcados, que não se podem
transgredir, sob pena de se ser pressionado
e censurado11.
Ao longo dos debates entre as adolescentes, em diferentes momentos, pôde-se
perceber a atualização dessas convenções
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em seus discursos, bem como as ambivalências que marcam a tensão entre a norma
convencionada e as suas práticas. Verificouse como operam diferentes modelos de
masculinos e femininos, que reforçam estereótipos de masculinidade e feminilidade.
Esses elementos podem ser mais bem percebidos nas diversas formas como significam o início da vida sexual para as meninas
e os meninos e o impacto desses significados na negociação do uso de preservativo.
No que diz respeito às razões pelas
quais o início da vida sexual acontece e
suas consequências, elas elencam:
“Falta de instrução dos adolescentes.
Também acho que a baixa renda tem muita
influência nisso. Já que ele tem dinheiro e
eu não tenho, vou ficar com esse mesmo”.
“Só porque você perdeu a virgindade
com uma pessoa, eles pensam que você
tem que se perder com ele e se perder com
todos os homens que vê pela frente”.
Pode-se perceber nestas falas como as
adolescentes atualizam valores relativos a
um modelo de masculinidade, associando a
virilidade à figura do homem provedor, ao
mesmo tempo em que se sentem prejudicadas pelas sanções destinadas às mulheres
pelo início da vida sexual. Percebem que
aquilo que é vivido por elas como perda
é visto como um ganho para os homens.
Essas concepções também foram verificadas por Vidal12 na análise do conteúdo de
redações de alunos adolescentes de escolas
públicas do interior do estado de São Paulo.
Outro aspecto externado por elas foi a
ocorrência de transformações após terem
relações sexuais. As meninas adquirem um
novo papel na sociedade e lhes são atribuídas novas funções, tendo elas que pensar
duas vezes para não agirem como criança:
passam a assumir mais responsabilidade e
são cobradas a terem atitudes de mulheres
adultas, como trabalhar, arrumar uma casa
para morar, cuidar do marido etc.
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“Muda totalmente o relacionamento
com a família: ’Ué, tu já não é mulher, vai
caçar um serviço, vai arranjar uma casa, vai
cuidar do teu marido’”.
Nestas concepções sobre as expectativas de atitudes designadas à relação de gênero, há um impacto direto nas negociações do uso do preservativo nas relações
sexuais, o que pode resultar num maior
risco de DSTs/AIDS.
“Ah, na hora da vontade a gente não
quer nem saber.”.
“É muita lenha do menino... A menina
já ta lá naquele... fogo todo... Se ela gostar
dele, eu acho que ela faz.”
“A pessoa fica com medo de ser agredida, de ser estuprada. A maioria aceita.”
“Ah, se eu falar não, o que é que ele
vai achar? Ele não vai me querer.”
Enquanto algumas afirmam recusar
manter relação sexual desprotegida, outras revelam que por vezes é difícil recusar
quando são tomadas pelo desejo; e outras,
ainda, salientam temer perder o namorado ao não aceitarem suas imposições em
relação ao sexo sem preservativo. Ressaltase, ainda, a justificativa sempre utilizada
da confiança como confirmação do afeto
associada ao não uso do preservativo.
O padrão sexual reprodutivo da mulher, em que a atividade sexual está relacionada com vínculos afetivo/amorosos,
deixa-a mais vulnerável às DSTs/AIDS e
à gravidez não planejada, pois facilmente dispensam o uso do preservativo por
confiarem em seus parceiros ou o substituem por outros métodos contraceptivos.
Corroborando estes achados, Borges13 evidenciou, em estudo sobre iniciação sexual
na adolescência, que entre os homens foi
mais frequente o uso de algum método
contraceptivo na última relação sexual do
que entre as mulheres. Apesar de o comportamento sexual feminino se aproximar
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do masculino no que diz respeito ao período de início da atividade sexual, a motivação para o engajamento sexual ainda está
associada às expectativas tradicionalmente
atribuídas à mulher, ao amor romântico
e ao compromisso. A persistência de padrões tradicionais hegemônicos de gênero
é verificada quando as jovens valorizam
a existência de um vínculo afetivo com o
parceiro na decisão de ter relações sexuais.
Relação de gênero e (in)
fidelidade
De forma geral, os relatos das adolescentes apontam para a reprodução, ao
menos no nível discursivo, de convenções
de gênero e de sexualidade, às quais correspondem modelos de feminilidade e
masculinidade. Com o intuito de finalizar
esta análise e demonstrar de forma mais
explícita como opera o diferencial de gênero, tomamos como exemplo os relatos
sobre fidelidade e infidelidade.
“Ah, acho que o homem trai mais que
as mulheres. Mulher trai por vingança!
Mulher corna é normal, homem corno é
chifrudo!”
“Mulher é piranha e o homem é o garanhão, o gostoso!”
“Homem pode, mulher não. E não vai
sair com ela só de beijinho e abraço, ele
não resiste. É instinto dele. Se não fica com
ninguém, já acha que ele é veado.”
Como se pode perceber nos excertos
escolhidos, há uma generalização consensual entre as pesquisadas acerca de uma
suposta “natureza” infiel masculina. Tal
característica está associada a uma sexualidade desenfreada que não é passível de
ser controlada, já que se trataria de algo
“inato”. Nas meninas, diferentemente dos
meninos, o intercurso sexual está associado
ao afeto e dissociado do prazer hedonista.
Aquelas que insistem em transgredir essa
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norma, deliberada e explicitamente, sofrem
sanções sociais em função do controle moral do grupo. Enquanto os meninos nessa
condição são tratados como “garanhões”
e muitas vezes referidos como motivo de
orgulho de seus pais, as mulheres são difamadas e acusadas de “piranha, de galinha”.
Se as mulheres também traem, como
admitem, elas o fazem de forma discreta,
por uma questão de “vingança” porque
foram já traídas. Ou seja, não seria da “natureza” feminina o desejo de estar com
outros homens. Aquelas que insistem em
transgredir essa norma, deliberada e explicitamente, sofrem sanções sociais em função do controle moral do grupo.
O curioso de se constatar é que, mesmo com essa clareza acerca da natureza
infiel masculina, em uma relação estável
de namoro permeada por significados de
confiança e afeto, as meninas acabam dispensando o uso de preservativos nas relações. E aqui se impõem outras questões de
ordem mais complexa que merecem atenção. Além dos sentidos já explicitamente
atribuídos ao fato do ato sexual com confiança, eximir-se do uso do preservativo
pode, também, estar diretamente associado a uma escolha por engravidar. Se o ato
sexual é percebido como um rito de passagem para a vida adulta, engravidar, ter um
filho e, quem sabe, casar são a confirmação desta mudança de status14. Há, portanto, um projeto de vida que atualiza as
convenções de gênero e sexualidade que
regem o seu universo. Elas se empenham
num ideal de conjugalidade marcado pela
complementaridade de gênero – aos homens cabem determinadas obrigações e
direitos, como a provisão do lar, enquanto
às mulheres cabem outros, como cuidar da
casa e da prole – o que acaba por não se
sustentar na vivência prática15, 16.
Entre os ideais e valências diferenciais
de gênero há, na maior parte das vezes, a
disjunção entre o pensado e o feito, que
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desembocam em assimetrias de gênero e
situações de violência. De acordo com alguns pesquisadores, a violência de gênero é tão naturalizada culturalmente, que
muitos homens ignoram que a estão praticando e muitas mulheres não se percebem
violentadas. Este comportamento está entre os fatores geradores do aumento da
vulnerabilidade às DSTs, já demonstrada
em estudos com adolescentes17, 18.
Em função do cenário das relações
de gênero, as mulheres se encontram em
desvantagem na negociação do uso da
camisinha. Enquanto para elas a primeira
relação sexual está envolta numa expectativa de que seja este um momento decisivo
para a construção de um relacionamento
verdadeiro, eles a encaram no contexto de
iniciação pessoal no qual a relação com a
parceira conta pouco. A desigualdade nas
relações entre homens e mulheres dificulta
o exercício seguro da sexualidade.
> Conclusão
O aumento do número de moças com
atividade sexual nos últimos anos, principalmente as de menor escolaridade19, assim como o consequente acréscimo da incidência de DSTs, tem demandado grande
custo social e individual aos adolescentes,
às suas famílias e à sociedade em geral. Este
estudo evidenciou que as adolescentes de
comunidades populares da cidade do Rio
de Janeiro iniciam cedo a atividade sexual,
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principalmente em razão da necessidade
de adequação ao seu universo social de referência. As questões relacionadas com o
gênero, estruturantes das relações sociais
e das instituições, também se destacaram,
contribuindo para ampliar o contexto de
vulnerabilidade à sexualidade desprotegida e ao risco de DST devido à assimetria
presente nas relações afetivo-sexuais e à
reprodução de convenções tradicionais de
gênero e sexualidade.
A adolescência é uma etapa da vida
que exemplifica singularmente a ampliação dos riscos à saúde provocada por um
sistema de convenções de gênero e de
sexualidade marcadamente assimétrico,
que confere maior valência ao masculino.
Os profissionais da saúde devem considerar esses conceitos a fim de obter melhor
resultado em suas ações preventivas e
curativas.
A determinação do comportamento
sexual seguro é complexa, pois vários fatores interferem nas escolhas dos indivíduos20. Em sendo assim, as políticas públicas
devem incorporar estas informações a fim
de enfocar a adolescência/juventude em
suas múltiplas dimensões – macrossocial,
interpessoal e individual – e criar espaços
de discussão e questionamento para o
aprendizado e a construção conjunta de
novas possibilidades.
Trabalho financiado pelo Ministério da Saúde/UNESCO (Processo: AS-5381/2006).
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Adolescência & Saúde
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