ASSISTÊNCIA SOCIAL, VOLUNTARIADO E CULTURA NARCÍSICA

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ASSISTÊNCIA SOCIAL E VOLUNTARIADO DE ELITE NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO: estratégia de controle e “inclusão tópica” dos pobres
Leila Maria Passos de Souza Bezerra
1
Resumo: O artigo analisa a re-significação híbrida do voluntariado e
da assistência social, incluídos nas estratégias de controlegerenciamento da pobreza no Brasil contemporâneo. Para tanto,
realizou-se pesquisas bibliográfica, documental e de campo. Este
voluntariado entre desiguais preconiza uma solidariedade
indiferenciada dos indivíduos singularizados, cujas ações no campo
sócio-assistencial e de controle da pobreza sinalizam para uma
inclusão tópica e seletiva dos “pobres”, oposta à figura do cidadão de
direitos e à materialização de sua cidadania social.
Palavras-chave: Assistência social, voluntariado e pobreza.
Abstract: The article examines the re-signification hybrid of voluntary
and social care, including strategies for poverty-management control
in contemporary Brazil. For this, there was research literature,
documentary and field. This volunteer advocates solidarity between
dissimilar undifferentiated uniqueness of individuals, whose actions in
the social-welfare and poverty control signal to a topical and selective
inclusion of the "poor", opposite the figure of the citizen rights and the
realization of their social citizenship.
Key words: Social assistance, voluntary and poverty.
1
Mestre. Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected]
1. INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva compreender, interpretar e analisar criticamente a re-significação
híbrida do voluntariado de elite e da assistência social materializados no agir voluntáriosolidário no Brasil anos 20002. A re-significação híbrida do voluntariado e dos solidarismos
sociais, presente nos anos 1990 e início do século XXI no país, alia-se à tendência
neoconservadora-narcisista presente na vida contemporânea, em consonância com a matriz
político-cultural do ajuste estrutural de cariz neoliberalizante. Reconfigurado em nosso
imaginário social, o voluntariado inclui-se nas formas atuais de regulação das expressões da
questão social3 brasileira, em sintonia com a perspectiva de um “Welfare Pluralist ou Mix”
que propõe uma suposta co-responsabilização entre Estado, Sociedade e Mercado no
campo sócio-assistencial (Pereira, 2000). Nessa perspectiva, o caso de voluntariado entre
desiguais ora pesquisado alicerça-se no apelo dirigido à solidariedade indiferenciada,
transclassista e seletiva do Eu voluntário e “incluído” para agir de maneira imediatistapragmática, singularizada e intimista diante da pobreza e da miséria dos ditos “excluídos”,
“vulneráveis” ou em “situações de risco sociais”, via de regra, sem considerá-las como
expressões contundentes da questão social inerente ao modo de vida capitalista, adensada
no Brasil contemporâneo em meio à crise do capital mundializado.
O fortalecimento do voluntariado e dos solidarismos no campo sócio-assistencial como
uma das formas de controle e gerenciamento da crescente pauperização sinaliza para os
riscos de assistencialização da proteção social no país (Mota, 2008) que, ao reiterar a figura
do “pobre incivil” (Telles, 1999) – destituído de dinheiro, de poder e de direitos – em
oposição ao cidadão de direitos, despolitiza a questão social e as formas sócio-históricas
2
Vale ressaltar que este artigo consiste em um recorte da dissertação de mestrado em sociologia defendida por esta
pesquisadora acerca dos significados dos discursos e práticas do voluntariado contemporâneo na ótica dos agentes
voluntários atuantes em entidade filantrópica sem fins lucrativos atuantes em entidade filantrópica sem fins lucrativos sediada
em Fortaleza-Ce, que presta assistência social a crianças e adolescentes das classes subalternas. Na perspectiva de desvelar
criticamente as significações deste enfoque no voluntariado e suas implicações para a assistência social na atual regulação
social no país, realizou-se pesquisas bibliográfica, documental e de campo. Optou-se pela pesquisa qualitativa empreendida
junto a representantes do nomeado “voluntariado de elite” (pertencentes às camadas médias e altas). Utilizou-se as técnicas
de entrevista semi-estruturada e de observação participante. Optou-se por omitir as falas dos interlocutores de pesquisa,
destacando-se as significações apreendidas na aventura da pesquisa, conforme os resultados explicitados neste texto.
3
Compreende-se a Questão Social como um fenômeno sócio-histórico vinculado originalmente à lógica do capital em termos
do modo de produção e reprodução material e espiritual (ídeo-política) da vida no capitalismo. Corresponde à outra face da
acumulação do capital, conforme ressalta Iamamoto ao definir questão social como: “(...) o conjunto das expressões da
sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum, ou seja, funda-se na contradição fundamental do capitalismo: a
produção cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se amplamente social, enquanto a produção dos seus frutos mantém-se
privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (Iamamoto, 1999: 27). Em versão mais contemporânea de sua obra, a
citada autora afirma que a Questão Social expressa desigualdades e discriminações não só econômicas, mas também
políticas, sociais e culturais de grupos e classes mediatizadas por relações de gênero, étnico-raciais, geracionais e formações
regionais, colocando em foco os vínculos entre amplos segmentos da Sociedade Civil e do Estado.
construídas para seu enfrentamento no campo das relações entre as classes e destas com
o Estado.
Assim, considera-se relevante desnaturalizar este voluntariado entre desiguais e a
assistência social (privada) metamorfoseada em ações solidárias no contexto brasileiro
marcado pela minimização e desresponsabilização do Estado no social. Em primeiro lugar
porque, sob o discurso da “parceria” e da “participação” da sociedade civil pela via dos
solidarismos sociais e conclame ao voluntariado para agir no campo sócio-assistencial e
restrito ao gerenciamento da pobreza, tem-se preconizado formas de inclusão tópica
opostas à materialização de direitos de cidadania social do público-alvo de suas ações. Em
segundo lugar, conforme analisa Behring (2008), devido a tais estratégias de controleadministração da pobreza restringirem a abordagem da questão social à sua expressão
máxima do pauperismo, sem tocar a crescente precarização do trabalho e o aumento da
superpopulação relativa no processo de reprodução social no capitalismo contemporâneo,
agudizada num contexto de contra-reforma do Estado, de restrição de direitos sociais e do
não-direito ao trabalho nos marcos da acumulação flexível e do projeto neoliberal.
2. Desvelando a re-significação híbrida do voluntariado e o recurso à assistência
social privada no Brasil contemporâneo: estratégias de controle e “inclusão tópica”
dos pobres.
As formas de regulação social propostas no Brasil contemporâneo têm exigido a
participação da sociedade civil, propalada também no discurso neoconservador de cariz
(neo)liberalizante que defende a co-responsabilização e parcerias entre Estado, Sociedade
e Mercado, com destaque para o campo sócio-assistencial. Nestes moldes, a "sociedade
civil" fora reduzida a terceiro setor4, bem como sua “participação” se faz nos limites das
parcerias e do "consenso" em torno da regulação das expressões máximas da questão
social – a pobreza e a miséria – de maneira a assumir responsabilidades, até então,
4
Para Fernandes (2000, 27), o terceiro setor compõe-se "(...) de organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela
ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental, dando continuidade às práticas tradicionais da caridade,
da filantropia e do mecenato e expandindo seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito
de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil". Tal noção combina significantes de contextos históricos e
simbólicos distintos que, segundo este autor, apresenta as seguintes características comuns aos seus programas e plataformas
de natureza prática, a saber: faz contraponto às ações do governo; faz contraponto às ações do mercado; projeta uma visão
integradora da vida pública; e resgata o pensamento trinário de complementaridade entre Estado, Sociedade e Mercado. Para
uma análise crítica contundente, conferir MONTAÑO, C. Terceiro Setor e Questão Social: crítica ao padrão emergente de
intervenção social. 3.ed. São Paulo: ,Cortez, 2005.
prerrogativas do Estado de Bem-Estar Social via políticas públicas responsáveis, em tese,
pela operacionalização dos direitos da cidadania social (Barcellona, 1994).
Nessa perspectiva, a figura do cidadão de direito parece perder centralidade em
relação às imagens dos “novos-velhos pobres” para quem têm sido canalizadas tanto
políticas públicas pontuais, focalizadas e seletivas, como as ações de assistência social
privada, ambas passíveis de erodir os sentidos político-coletivos dos direitos de cidadania
ativa e conflitual (Barcellona, 1994). A questão social aparece cada vez mais reduzida à
pobreza encarnada nas noções contemporâneas de “exclusão, vulnerabilidade ou em riscos
sociais” que, disseminadas no “senso comum e no senso comum douto”, são tomadas a
priori para traduzir segmentos de classe submetidos aos processos de pauperização que se
agudizam no contexto de ajuste estrutural e de crise do capitalismo. Por sua vez, passam a
exigir formas de regulação social centradas na assistência social advindas seja da
sociedade civil, seja do Estado, em oposição às iniciativas garantidoras do direito ao
trabalho.
E sob o discurso de amenizar "estados de falta e de privação dos excluídos" e de
gerenciar a "nova/velha pobreza" brasileira dos anos 1990 e 2000, ganham visibilidade
pública formas de regulação social originalmente inscritas na matriz conservadora
hierárquica-autoritária5, dentre as quais se incluem as experiências de voluntariado
expressivas de uma cultura dos solidarismos sociais, parcerias e consensos transclassistas.
De fato, os processos de ajuste estrutural têm redefinido a regulação social no Brasil,
sobretudo, mediante o chamamento à amorfa "sociedade" para assumir parcela das
responsabilidades estatais com o social. Dentre estas estratégias instituídas pelas elites
político-culturais brasileiras, parecem ganhar relevo o enfraquecimento e a destituição da
assistência social como política pública transversal, recentemente inserida no campo do
direito. Em contraponto, visualiza-se uma revalorização do voluntariado e dos apelos aos
solidarismos sociais, que tende a fortalecer a imagem da assistência social como "ajuda
privada e benevolente" de indivíduos singularizados e grupos de “incluídos” envolvidos na
garantia da coesão social. A via assistencial – com foco nas ações privatistas – tem
5
Essa primeira matriz - chamada aqui de "incivilidade" para usar a expressão cunhada por Vera Telles (1999) - designa a
tradição conservadora hieráquica-autoritária a partir da qual se gestou um padrão de sociabilidade brasileira
obstacularizador da construção de um princípio de reciprocidade capaz de conferir ao Outro (o diferente) o estatuto de sujeito
de interesses válidos e direitos legítimos (Telles, 1999). Refere-se à tradição político-cultural fundada em relações de
dependência pessoal, hierarquias, diferenças e privilégios, constantemente reiteradas nas relações sociais cotidianas.
Focalizo, então, as suas implicações diretas sobre as interpretações da Questão Social brasileira e as formas propostas para
sua regulação, destacando a atribuição de um lugar social aos pobres. Na análise de Vera Telles (1999), essa matriz políticocultural fixou suas raízes por dentro da legalidade instituída na vida brasileira.
assumido, mesmo, status prioritário no gerenciamento das desigualdades sociais,
configurando-a como lócus privilegiado de voluntários que se legitimam na cena pública por
assumirem causas coletivas de forma singularizada e, supostamente, “desinteressada e
altruísta”.
Na matriz do ajuste estrutural de inspiração neoliberalizante, o voluntariado
contemporâneo passa a ser reconhecido como uma das forças político-culturais
responsáveis pela gestão e controle do "social" na esfera da “sociedade civil”. Nas
propostas deste “novo/velho” ator político – emanadas e assumidas nos planos
governamental e da sociedade civil –, o sócio-assistencial encarna, via de regra, as
situações-limite vivenciadas pelos setores ora nomeados de “excluídos, vulneráveis e/ou em
riscos pessoais e sociais”.
A rigor, nos discursos e nas práticas do voluntariado contemporâneo pesquisado, esta
via assistencial de gestão racionalizada, privatista e pretensamente apolítica da “nova-velha”
pobreza brasileira ganha relevância, situando-se como “humanismo solidário”, para além do
"jogo de interesses" presente na sociedade, em especial, nas relações tensas entre as
classes sociais e destas com o Estado nas lutas pela preservação, conquista e/ou
materialização de direitos. Assim (re)posta, esta assistência social privada encarna o
entrecruzamento das três matrizes político-culturais que se entrecruzam na vida brasileira
presente: a conservadora hierárquico-autoritária, a democratizante e a do ajuste estrutural6
(Bezerra, 2005). E lança desafios à materialização da proteção social de caráter
democrático e universalista que se pretenda a contrapor-se às saídas (neo)conservadoras
de gestão da pobreza impregnadas no imaginário social e nas práticas voluntaristas no
campo sócio-assistencial.
Parece constituir-se, assim, um aparente paradoxo na vida brasileira contemporânea
em termos de uma re-significação híbrida da assistência social. Por um lado, no plano
jurídico-político, a assistência social foi elevada ao patamar de política pública de direito de
cidadania social, inserida no tripé da Seguridade Social, como um “direito do cidadão e
dever do Estado brasileiro”, regida por princípios de universalidade, a partir de sua
regulamentação pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS - Lei no. 8742 de 07/12/93)
da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) e da Norma Operacional Básica da
Assistência Social (NOB-SUAS/2005). Por outro lado, no plano da ação governamental
6
Considera-se importante apreender as seguintes matrizes político-culturais indispensáveis à compreensão e interpretação
dos significados de voluntariado e assistência social na tessitura da cultura narcísica contemporânea na sociedade brasileira: a
matriz da incivilidade – conservadora hierárquico-autoritária; a democratizante, instaurada a partir dos anos 1970 e 1980,
ainda em curso; e, por último, a matriz do ajuste estrutural, aqui denominada de neoconsevadora e narcisista.
anunciada pelo “Estado Ajustador”7 (Carvalho, 1999) e das iniciativas “solidarísticas” de
parte da sociedade civil brasileira, observa-se os riscos de reforço do assistencialismo e de
refilantropização da questão social já anunciadas por Yasbek (2000) e Mota (2008). Riscos
encarnados, em parte, numa perspectiva emergencial-pragmática de gerenciar-controlar a
pobreza brasileira, cuja tendência prevalecente aponta para o fortalecimento das ações
sócio-assistenciais privadas em sintonia com as políticas de combate à pobreza focadas nos
programas de transferência de renda, a exemplo da ação prioritária do governo federal
brasileiro: o Programa Bolsa Família8.
Nos moldes do ajuste estrutural, a assistência social (privada) arrisca-se a reassumir
seu caráter historicamente descontínuo, casuístico e fragmentário, pautada em ações
incapazes de alterar o complexo padrão de desigualdades e discriminações neste País.
Pode reafirmar sua condição de "ajuda" isolada voltada a garantir a “sobrevivência do pobre
na miséria” (Telles, 1999), caracterizada pelos seguintes aspectos: seletividade e
focalização do público-alvo das ações assistenciais, proporcionadas através de programas e
projetos sociais de natureza pontual e emergencial-pragmática; ações assistenciais
marcadas por forte apelo à participação do “mercado” e, sobretudo, da "sociedade" para agir
diante das situações-limites de amplos setores considerados excluídos, vulneráveis e em
risco sociais, seja através do reforço ao agir voluntário-solidário, seja através da parceria
público/privado, preconizado, inclusive, na Política Nacional de Assistência Social (PNAS,
2004). De fato, o reiterado apelo aos “solidarismos e voluntarismos” enfatiza a assistência
social privada como complementar e, por vezes, substituta do Estado na execução das
ações sócio-assistenciais.
No cenário contraditório dos anos 1990 e 2000, marcado pela “confluência perversa”
entre os processos da democratização inconclusa e do ajuste estrutural neoliberalizante
(Dagnino, 2001), sobre o chão histórico da matriz da “incivilidade” (Telles, 1999), a
assistência social vem sendo (re)desenhada e re-significada na vida brasileira. Nestes
7
O Estado Ajustador brasileiro ganha impulso durante os dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso que busca
redesenhar as ações do Estado no campo social, erigindo como estratégia máxima a criação do Programa Comunidade
Solidária à revelia da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Dentre as propostas deste Programa, destacou-se a
instauração de um modelo de voluntariado nacional e, de forma correlata, o fortalecimento das parcerias público/privado para
o gerenciamento do social.
8
Programa de transferência de renda com condicionalidades proposto pelo Governo Federal e lançado em 20/10/2003,
resultado da unificação de quatro programas federais: Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Vale-Gás e Cartão-Alimentação.
Instituído por medida provisória no. 132, de 20/10/2003, situa-se no âmbito da Presidência da República em suas ações
prioritárias de combate à pobreza. Destina-se às famílias pobres/indigentes com renda per capita de até ¼ de salário mínimo.
Registra-se a indicação de outros indicadores sociais, além da renda para composição de um índice a ser considerado na
seleção das famílias, como a escolaridade, condições de saúde, acesso a saneamento e à luz elétricas, numa perspectiva de
concepção multidimensional da pobreza.
quinze anos de promulgação da LOAS, a materialização da assistência social como política
pública vem marcada por “avanços e recuos”, convivendo, ao menos, duas significações no
imaginário individual e coletivo brasileiro: uma assistência isolada e restrita à sobrevivência
dos “pobres” e afeita a critérios seletivos, minimalistas e focalistas para sua suposta inclusão
social nos marcos da “baixa responsabilidade social” do Estado versus uma perspectiva
original e desafiadora de política pública de assistência social em seu caráter nãocontributivo, transversal e suplementar à rede de políticas sociais públicas, garantidora de
direitos e voltada aos cidadãos que dela necessitarem (LOAS, 1993; PNAS, 2004).
Em verdade, a formatação contemporânea da regulação social brasileira aponta
ambiguamente para o reforço de uma prática da assistência social (privatista) traduzida em
“ajuda solidária”, refém da “boa vontade de cada um” e fora do controle social público e
democrático. Essa “ajuda” instaura-se no campo social-assistencial como proveniente, via
de regra, dos setores ditos “privilegiados” (os voluntários de elite), instituída sob o aval do
Estado Ajustador. Dentre as estratégias propostas de garantia da assistência social nos
moldes até então demarcados, o recurso feito ao voluntariado traduz-se em expressão
contemporânea da “cidadania possível” pela via da chamada “participação solidária” da
suposta “boa sociedade contra o social” (Ribeiro, 2000), mas também do “mercado” através
do discurso da “responsabilidade social empresarial”.
Nessa linha argumentativa,
afirma-se que a conclamação ao “voluntariado
contemporâneo”, nas décadas de 1990 e 2000, trouxe à tona sentidos híbridos vigentes no
imaginário brasileiro em relação à pobreza/ aos pobres, ao voluntariado e à própria
significação da assistência social, atrelados às ações religiosas, filantrópicas e
assistencialistas9,
inscritas
originalmente
na
matriz
político-cultural
conservadora
hierárquico-autoritária (Telles, 1999).
9
Para Leilah Landim (1993), há uma identificação histórica das práticas voluntárias com a filantropia e a caridade cristã no
Brasil, em especial, porque as primeiras iniciativas de criação de "organizações sem fins lucrativos" nas áreas de assistência
social, saúde e educação de caráter voluntário, advieram das igrejas e grupos religiosos - sobretudo, o catolicismo. Segundo a
autora, o papel da Igreja católica e dos grupos religiosos foi fundamental na criação destas organizações, fazendo-se
protagonista no enfrentamento das expressões da questão social brasileira desde os tempos coloniais - onde a Igreja católica
predominou como órgão público de organização da sociedade civil - em sua posterior aliança com o Estado e os setores
industriais a partir dos anos 1930 e, posteriormente, no pós-1964 e redemocratização, atuando em duas vertentes: a
filantrópica e a associativista - fundada em ideários individualistas e igualitários (Landim, 1993). Numa sociedade marcada
por fortes traços religiosos e frágeis redes de proteção social como o Brasil, não há nítidas fronteiras entre o universo
religioso e as atuais "organizações sem fins lucrativos" no campo social-assistencial, ou seja, a assistência social se
desenvolveu mediada por "organizações sem fins lucrativos" de caráter religiosos ou laico e seu corpus de voluntários e
funcionários atuando de forma simbiótica. Na ótica de Mestriner (2001), o fato da assistência social, filantropia e
benemerência (caridade católica) na realidade brasileira serem percebidas como sinônimos, obscurece a relação histórica
Estado-Sociedade no enfrentamento da questão social, sobretudo, através do princípio de subsidiariedade entre o estatal e o
privado no campo social-assistencial. Desde sua gênese, o Estado brasileiro tem mantido, assim, uma prática de repasse das
suas responsabilidades no social para a sociedade - identificada com as "organizações sem fins lucrativos" em todas a sua
Nesse contexto político-cultural complexo do Brasil nos últimos 17 anos, (re)põe-se na
cena pública um ator que permeia o imaginário individual e coletivo, em sua versão dita
“tradicional”, por referência às formas arcaicas das elites interpretarem e regularem as
expressões da questão social como problema de ordem moral, eclesiástica ou laica. Esta
(re)posição, materializada na figura do voluntariado contemporâneo, reitera formas de
inclusão tópica do público-alvo das “ações solidárias”, vinculadas à re-significação das
seguintes noções-chave: participação da sociedade civil, solidariedade, voluntariado e
cidadania. Estas noções, inscritas nos discursos deste ator político e materializadas em
"ações solidárias" concretas, imediatas e singularizadas, são realizadas no presente e
focalizadas em indivíduos e/ou grupos sociais atendidos localmente, por tempo determinado
e “classificados” como em situações de exclusão, vulnerabilidade e risco sociais.
Nos discursos do voluntariado local, a realização destas ações depende da “boa
vontade” dos voluntários e do estabelecimento das chamadas "parcerias", firmadas com os
setores governamental, empresarial, agências multilaterais de financiamento e/ou outras
entidades sócio-assistenciais e Organizações Não-Governamentais (ONG´s) de grande
porte. Para tanto, o “voluntariado de elite” mobiliza sua rede de relações privadas nãomercantis expressivas de uma “sociabilidade primária” (Castel, 2001) – parentesco,
amizades pessoais, vizinhança - para o estabelecimento destas parcerias e a captação de
recursos necessários à consecução dos objetivos de cunho sócio-assistencial. Elementos
constituídos, portanto, fora dos critérios públicos e políticos de consecução e de
materialização dos direitos da cidadania social, afeitos ao enfraquecimento dos espaços
públicos de negociação e disputa dos destinos da cidade e dos critérios de justiça social e
igualdade; do reconhecimento da legitimidade dos conflitos e dos direitos. Nesse sentido, a
pesquisa explicitou certa sintonia entre uma cultura do narcisismo (Lasch, 1990), do
hedonismo e do consumismo de massa e o apelo à “participação da sociedade” dirigida à
reeditada figura do voluntariado de elite para agir, pela via assistencial, nas situações-limite
das expressões da questão social brasileira.
4. A GUISA DE CONCLUSÃO: voluntários, narcísicos e cidadãos?
diversidade - restringindo-se a um caráter complementar na execução de ações emergenciais, focalizadas e seletivas. Tal
tendência tem se aprofundado nas últimas duas décadas com o ajuste econômico brasileiro, cujo foco central tem sido
reforma do Estado.
Em verdade, o viés narcísico-hedonista não parece estranho às formas de regulação
da pobreza propostas no atual contexto sócio-histórico brasileiro, sobretudo, quando reedita
a figura do voluntário como último destinatário de uma "cidadania possível” e singularizada,
fora das dimensões coletiva e política. Essa “cidadania” do “voluntariado de elite” tornou-se
sinônimo de "ajuda solidária", seja pela doação de horas de tempo livre, seja pelas doações
financeiras e materiais. Em ambas as formas de "participação" neste campo, o apelo é
direcionado ao indivíduo singularizado, consagrando simbolicamente os seguintes
elementos inter-relacionados: a livre iniciativa individual, típica das sociedades (neo)liberais;
uma moral fundada no "sentimento/emoção" privados; o culto à felicidade e aos prazeres
pessoais de "ir ao encontro do outro indeterminado"; movido pelo senso pessoal de autogratificação, pelos desejos de auto-valorização e de prestígio sociais. A tessitura destes
elementos parece fazer deste voluntariado um estilo de vida e uma opção personalizada, em
consonância com as formas contemporâneas de regulação da questão social brasileira,
sobremodo, quando restrita ao campo sócio-assistencial e ao combate-gestão da pobreza.
Esse voluntariado contemporâneo ora estudado preconiza formas de inclusão tópica
dos segmentos pauperizados que, a rigor, materializa o acesso a bens e serviços sociais
específicos oferecidos a setores socialmente reconhecidos como “pobres” (excluídos,
vulneráveis, em situações de risco), vivenciando situações-limites de sobrevivência. O
público-alvo desses bens e serviços tem acesso, assim, a um tipo de "consumo de bemestar" específico à sua “situação-problema”. E, em última instância, sua inclusão,
permanência e/ou exclusão neste acesso tópico ao “bem-estar” depende da atuação do
voluntariado, relativa a duas condições: primeiro, as possibilidades financeiras vinculadas à
capacidade de indivíduos, grupos ou instituições voluntárias captarem recursos financeiros
ou materiais num cenário marcado pela disputa por recursos públicos e/ou privados; e,
segundo, depende da "boa vontade" e/ou “livre escolha pessoal" dos mais diversificados
tipos de voluntariado para aderirem a estas ações e/ou doações, responsáveis diretos pela
definição dos critérios seletivos de “inclusão-exclusão” do público-alvo de suas “ações
solidárias’.
Em síntese, esta inclusão tópica é uma concessão, uma benevolência de quem a
pratica, não um direito social de cidadania conquistado e reconhecido no espaço público e
no campo da política. Portanto, pode repor-se a lógica hierárquica das relações entre
superiores e inferiores na vida brasileira atual, encarnada nas relações assimétricas entre o
“voluntariado de elite” e o “público-alvo” de suas ações. Em última instância, precipita-se a
eliminar além do conflito legítimo de opiniões sobre a vida em sociedade, a dimensão
imaginativa de um outro futuro possível, a ser construído por sujeitos coletivos e plurais no
espaço público democrático, mediante a crítica do presente, de contestação do modo de
vida e do imaginário capitalistas ainda vigentes na contemporaneidade.
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