A DESPATOLOGIZAÇÃO DAS IDENTIDADES TRANS. A MEDICINA LEGAL E O DIREITO NAS DISCUSSÕES FORMULADAS PELAS TEORIAS FEMINISTAS E QUEER. Sabrina Guerra Guimarães* Lina Maria Brandão de Aras* RESUMO A presente comunicação discute o contexto histórico da patologização das identidades homossexual, lésbica, transgêneros, transexuais e intersexuais e a todos/as os/as indivíduos que exercem as múltiplas possibilidades de gênero denominadas por Beatriz Preciado como “Multidões Queer”, para analisarmos como os discursos de uma ciência excludente colocaram essas pessoas na zona do chamado “submundo”, fazendo-as/os reféns de uma sociedade que aprendeu de geração em geração, que homens e mulheres só podem possuir uma identidade sexual heteronormativa reprodutora de padrões estereotipados de feminilidade e masculinidade. Por conseguinte, analisaremos livros de Medicina Legal que atendem as questões jurídicas no seu ramo da Sexologia Forense que ainda na atualidade segue utilizando terminologias patologizantes ao tratar da homossexualidade, lesbianidade e transgêneros como distúrbios ou transtornos as orientações sexuais e identidades de gênero dos indivíduos, inclusive utilizando o sufixo “ismo”. Portanto, essas discussões auxiliarão na crítica a uma ciência hegemônica, androcêntrica e heteronormativa, assim como para fomentar a discussão no campo do Direito analisando o que avançou e o que ainda é necessário avançar para que as “Multidões Queer” sejam respeitadas na sociedade. Palavras-chave: Despatologização. Medicina Legal. Direito. Feminismos. Teorias Queer. 1. INTRODUÇÃO É inegável a contribuição da Teoria Feminista para a Teoria Queer, e a que achamos mais pertinente é a crítica que os feminismos destinam a ciência, no que tange a exclusão das mulheres desse campo, através de discursos que as inferiorizaram tomando seus corpos e sexualidade como objetos de estudo para * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista FAPESB. [email protected] * Doutora em História e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] 2903 comprovar sua fragilidade, sua anatomia mal desenvolvida que as transformavam num subproduto do corpo do homem, esse pensamento percorreu diferentes épocas e foi reforçado por diferentes cientistas. Entretanto, essa discussão possibilitou que estudiosas/os queer também atentassem para o que foi vislumbrado pela ciência diante de corpos que não se enquadram nos padrões científicos tidos como “normais”. Se tem pênis = homem e vagina = mulher e que ambos exerçam identidades de gênero próprias ditadas pelo seu sexo biológico. Acontece que, como bem definiu Judith Butler (2003), sexo é gênero, mas gênero não é sexo, e que ambos são construções culturais que demarcam e definem os corpos e são normatizados pela linguagem. Rubin (1998) traz uma contextualização histórica do século XIX em diante e chama a atenção para o final dos anos 1940 até o inicio dos 60 quando os homossexuais foram perseguidos como criminosos e que, em São Francisco - EUA, na década de 1950, foram caçados pela polícia. Perseguição a gays, lésbicas, prostitutas ou qualquer pessoa que fugisse dos padrões heterossexuais era constante. Desta forma, a proposta de Rubin traz elementos de um quadro descritivo e conceitual para pensar sobre o sexo e suas políticas, pois a autora espera contribuir na “criação de um corpo de pensamento sobre sexualidade que seja preciso, humano e genuinamente libertador”. Portanto, clama por uma teoria radical que denuncie e acabe com a opressão sexual e o essencialismo sexual, tendo o sexo como algo imutável, a-social e trans-histórico, que foi legitimado e reproduzido pela medicina, psiquiatria e psicologia. E mais: que se tenha em mente que a biologia não determina a sexualidade. Rubin trabalha com a pirâmide sexual, demonstrando como se organiza hierarquicamente os indivíduos na sociedade de acordo com as suas práticas sexuais, atribuindo distintos valores. Afirmando que no mundo ocidental o sistema de valor sexual é definido pela heteronormatividade. Heterossexuais maritais e reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica. Clamando um pouco abaixo se encontram heterossexuais monogâmicos não casados em relação conjugal, seguidos pela maioria de heterossexuais. O sexo solitário flutua ambiguamente [...] Casais lésbicos e gays estáveis, de longa 2904 duração, estão no limite da respeitabilidade, mas sapatões de bar e homens gays promíscuos estão pairando um pouco acima do limite daqueles grupos que estão na base da pirâmide. As castas sexuais mais desprezadas correntemente incluem transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadores do sexo como as prostitutas e modelos pornográficos, e abaixo de todos, aqueles cujo erotismo transgride as fronteiras geracionais. (RUBIN, 1998, p. 1314). Seguindo esse raciocínio faremos um breve contexto histórico no tocante à identidade homossexual, no sentido de que as manifestações pelos direitos partiram desses sujeitos. Perceberemos o quanto a prática sexual dessas pessoas foram patologizadas, ditadas pela medicina, mas que, através de lutas contra as normatizações que regulavam seus corpos, conquistaram a despatologização, o que ainda vem lutando as pessoas trans e inter no que diz respeito aos seus direitos. 2. ARTICULANDO OS MOVIMENTOS CONTESTATÓRIOS E A MEDICINA LEGAL Os movimentos homossexuais se instituíram nos Estados Unidos e Europa no final da década de 60, em especial a partir de junho de 1969, tendo como marco uma série de conflitos entre manifestantes gays, lésbicas, travestis e drag queens contra os constantes e diferentes tipos de violência efetivada pela polícia. Os confrontos foram iniciados no bar gay chamado Stonewall em Nova York, mas segundo Deco Ribeiro (2011), no Brasil foi necessário esperar por Dez anos para que os primeiros movimentos pró-gay começassem a dar as caras, no início dos anos 1980: em São Paulo, com a fundação do histórico grupo Somos; no Rio, com o jornal Lampião; em Salvador com a criação do Grupo Gay da Bahia, o primeiro a conseguir registro em cartório. Eram grupos que passavam a dar mais visibilidade aos não-heteros sexuais e lutavam pelo reconhecimento de seus plenos direitos. (P. 155) Com a explosão da epidemia de AIDS, no final dos anos 1980, a comunidade homossexual foi extremamente atingida, 2905 Muitos grupos se desmobilizaram, enquanto outros passaram a se dedicar exclusivamente ao combate à doença, conhecida então, erroneamente, como “peste gay”. No total, foram necessários 15 anos para que essa população fosse às ruas com força para exigir seus direitos a plenos pulmões. (P. 155). Mesmo com as manifestações e a crescente luta pelos direitos das diversas identidades, a incessante busca de se definir o que era o homossexual foi determinada pela tríade: pecado, doença e crime, que após Stonewall começava a ser pensada na forma de política de identidade (na luta pelos direitos) e Queer (na abjeção). No Brasil, ao contrário dos EUA e Europa, a homossexualidade nunca foi crime, mas, em compensação, a violência simbólica foi e é imensa, e recebeu grande contribuição da ciência para legitimar a patologização dessas identidades. Nesse sentido que Peter Fry (1985, p. 10), em O que é a homossexualidade, no capítulo intitulado “Pecado, crime, doença e sem-vergonhice”, traz a definição do que ela pode ser pra cada pessoa, permeada pelos discursos, sejam eles religiosos ou médicos. Afirma, ainda, que não existe uma verdade absoluta para definir o que é a homossexualidade, mas que de uma coisa ele tem certeza, é de que ela precisa ser arrancada do campo da psicologia e da medicina, pois o monopólio do discurso partiu dessas duas áreas do conhecimento a partir da segunda metade do século XIX. Fry discorre sobre o pensamento do médico legista Leonídio Ribeiro na década de 1930, que deixou, assim como outros, uma herança aos dias atuais de pensamentos retrógrados, reafirmados por novos médicos que escrevem os livros de medicina legal sem, ao menos, se preocuparem com a revisão destes no que se refere às pessoas trans, pois apesar da já despatologizada identidade homossexual eles continuam a manter o sufixo ismo para o trato do “homossexualismo e lesbianismo”. Esse autor cita exemplos de como as pessoas homossexuais foram classificadas por médicos legistas, Os médicos não se satisfazem apenas em declarar a homossexualidade uma anomalia orgânica, pois as origens endócrinas desta “doença” também acarretariam outras patologias. Assim é que surge o “homossexual” que é esquizoide, paranóide, 2906 etc... Ribeiro dedica um capítulo inteiro ao sadismo, e através de uma descrição minuciosa de “Febrônio, índio do Brasil” que teria estrangulado uma série de rapazes, estabelece uma clara relação entre sadismo e homossexualidade. Mas, com a mudança do status da “homossexualidade” de pecado para “doença”, abre-se a possibilidade de cura. (FRY, 1985, p. 65-66). Comenta a comunicação apresentada pelo Dr. E. De Aguiar Whitaker na Primeira Semana Paulista de Medicina Legal, em 1937, sobre o estudo realizado com oito homossexuais detidos pela polícia de São Paulo, onde diagnosticou essas pessoas como de personalidades doentias e com necessidade de correção, o que tais conclusões demonstram é o preconceito do pesquisador para com as pessoas pesquisadas. Fry justifica e cita longamente o trabalho deste médico em seu livro, Pelo fato dele exemplificar a maneira pela qual a medicina é empregada para controlar a homossexualidade. Apesar de não haver no Código Penal Brasileiro nenhuma menção da homossexualidade como crime, podemos ver que a Medicina Legal se achava no direito de sugerir “acção médico correcional” para os delinquentes, além de punição do crime específico de que eram acusados. Podemos imaginar o que isto significa se lembrarmos que a liberdade de um homem poderia estar na dependência de um parecer deste tipo nos conselhos carcerários existente em cada Estado brasileiro. (Fry, 1985, p. 69). Discorre, ainda, em sua obra sobre outras áreas e teorias tão excludentes quanto medicina legal. As teorias biologizantes levaram os homossexuais a cirurgias inaceitáveis ao pensamento contemporâneo, como a retirada dos lóbulos frontais do cérebro relacionadas com a produção de fantasias e do prazer sexual, queima através de choques elétricos de uma pequena seção do hipotálamo e, também, a castração. Técnicas semelhantes à tortura também foram usadas de forma cruel e humilhante, como a aplicação de medicamentos que causassem enjoo para que as pessoas deixassem de ser homossexual. Concluiu afirmando que a ciência médica foi a que mais incisivamente disseminou os discursos e os legitimou contra os homossexuais. Podemos perceber que a medicina atuava e continua a agir politicamente no que diz respeito a homossexualidade. A partir do século XIX, ao tachar os homossexuais de doentes, ela justificou sua “cura”, sua conversão em heterossexuais. Desta maneira a medicina 2907 exerceu um forte controle social contra a homossexualidade e em favor da heterossexualidade. (P. 77). Nesse sentido, foram analisados livros publicados recentemente na área da Medicina Legal para perceber como esses discursos foram transportados através dos anos, demonstrando o quanto carecem de novas interpretações e análises. Antes de citar algumas obras, cabe conceituar a Medicina Legal, Croce e Delton Croce Júnior (1998), a definiram como “a ciência e arte extrajurídica auxiliar alicerçada em um conjunto de conhecimentos médicos, paramédicos e biológicos, destinados a defender os direitos e os interesses dos homens e da sociedade” (P. 1). Ela se divide em inúmeros ramos e dentre elas está a Sexologia Forense que é o ramo da Medicina Legal que estuda a atividade sexual humana relacionada às questões jurídicas, cíveis e criminais. Portanto, é dentro da Sexologia Forense que se estuda os crimes sexuais, a prostituição, o perigo e contágio e também os “distúrbios ou transtornos do instinto sexual” onde versará a nossa discussão, percebendo o quanto eles estão defasados e não contemplam as chamadas “minorias”: homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros e outros. Daremos alguns exemplos destes livros, indagando o por que ainda se utilizam dos sufixos ismos nas identidades despatologizadas como a homossexual e lésbica. Em uma das edições mais atuais, encontramos para além do tratamento como doença a essas identidades, um discurso que começa indiretamente contra as teorias feministas e queer, condenando qualquer literatura que favoreça a relação que não seja heterossexual. A sexualidade é sempre um assunto que, ao ser tratado, impõe um certo cuidado. Ultimamente vem-se notando uma irrefreável inflação dessa forma de literatura, cujo interesse é atrair os menos avisados a veredas da sexomania e do erotismo. Tem sido comum falar de sexo a qualquer pretexto, ao até sem pretexto algum utilizando-se falsos conceitos científicos ou escamoteados por propósitos pouco recomendáveis. No relacionamento sexual do homem e da mulher, não existe apenas a satisfação da posse carnal. Há, isto sim, uma compensação afetiva que ultrapassa a simples exigência instintivo material e que oferece significações maiores. O perigo está no fato de que a juventude ávida de inovações, impregnada de sexo e erotismo, possa deixar-se arrastar por uma ideologia sexual, definida 2908 por alguns como forma de realização, mas que, na maioria das vezes, leva-os a terríveis frustrações. (FRANÇA, 2011, p. 271) As identidades trans ainda são patologizadas, mas devido às lutas constantes dos movimentos feministas e queer caberia nessa, tão atual, edição de França uma nota se referindo aos recentes debates sobre a despatologização. Transtornos da identidade sexual. A identidade sexual é a consciência imutável que alguém tem de pertencer a um ou outro sexo. Seu transtorno, portanto, consiste na identificação persistente com o outro sexo e um mal-estar com o seu próprio, querendo ser do sexo oposto. Esse é um assunto que vem causando muitos desafios devido à sua delicadeza e complexidade. (Id. Ibidem, 2011:271-272). Da mesma forma, trata a homossexualidade e lesbianidade que já foi despatologizada como transtorno: Homossexualismo masculino - chamado também de uranismo ou pederastia, é uma das formas mais comuns de transtorno da identidade sexual. No entanto o problema do homossexualismo continua a desafiar, principalmente pela sua repercussão e pelo seu crescimento em todas as partes. A psicologia e a psicanálise disputam a primazia da elucidação e da justificação desta opção sexual. Seja qual for a sua etiologia, o homossexual tem de ser encarado como alguém que fez uma opção sexual e não como antes, um caso estritamente médico. Homossexualismo feminino também chamado de safismo, lesbianismo ou tribadismo. É muito mais comum do que se pensa. Vai desde os ciúmes perseguidores até a prática de atos libidinosos. Existem como na inversão masculina, graus variados que vão desde os tipos masculinizados (feições, hábitos, disfarces e maneiras de se portar) até os tipos femininos, delicados e ternos, nos quais jamais se poderia pensar numa inversão sexual. Também se distingue em ativas e passivas. Começa essa inversão muitas vezes em colégios, internatos, presídios, conventos e até nos prostíbulos, pelas amizades estreitas e continuadas. Não é raro encontrar-se uma lésbica, com filhos assumindo uma dupla personalidade, muitas vezes sem nenhuma aparência. A promiscuidade, o receio da gravidez, as decepções com os homens, os maus-tratos dos maridos, a educação moderna, a nova literatura, o comportamento masculino na atualidade, aproximando-se do unissexo, e a solidão podem ser considerados, entre outros, como elementos da gênese dessa anomalia. A chamada emancipação da mulher através dos princípios definidos pelos movimentos feministas e o exagero da liberdade que se apregoa têm determinado, sem dúvida, o aumento assustador do safismo. (Id. Ibidem, 275- 276). (Grifos nosso). 2909 Nesta citação fica evidente o discurso de ordem de gênero patriarcal, atacando o movimento feminista, que para ele é uma ameaça ao modelo heterossexual. O autor prossegue patologizando a lesbianidade: As particularidades mais curiosas e constantes são: a aversão pelo sexo masculino e um amor violento, fustigado por ondas incessantes de ciúme passional quando se vêem abandonadas. Ciúme que deixa de ser prova de amor para se constituir em ódio e inveja. Mas um pecado que já nasce perdoado porque nasce no coração. Muitas vivem juntas e felizes numa água-furtada ou apartamento de luxo, dividindo o amor e a alegria. Outras terminam a convivência de maneira trágica e passional traídas pelo ciúme e pelo abandono. (Id. Ibidem, 276-277). Após explanar de forma infundada e preconceituosa a homossexualidade feminina o autor retoma a discussão sobre o “transexualismo”. De todos os transtornos da identidade sexual, o transexualismo ou síndrome de disforia sexual é aquele que mais chama atenção, pela sua complexidade e por seus desafios às questões morais, sociais e jurídicas. Roberto Farina (In transexualismo, São Paulo: Editora Novolunar, 1982) define-o como uma pseudossindrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na qual o individuo se conduz como se pertencesse ao gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura por meio da cirurgia de reversão genital, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero. (Id. Ibidem, 2011:275). França ao se referir aos aspectos médicos legais traz a diferenciação entre eles: Antes de qualquer análise, é necessário que se faça uma distinção entre transtorno da preferência sexual, transtorno da identidade sexual e perversão sexual. Na primeira situação, o individuo faz opção por certas práticas sexuais que, na identidade, são toleradas sem maiores censuras como a mixoscopia e o onanismo. No transtorno da identidade sexual, a pessoa se identifica sexualmente com o mesmo sexo, imitando o sexo oposto ou agindo como se fora igual, como nos casos do homossexualismo e do travestismo, que a sociedade começa aceitar como questão da preferência de cada um. E a perversão sexual, a manifestação mais abjeta da sexualidade, cuja prática denota um comprometimento moral e psíquico muito grave, e que justifica maior interesse médico-legal, como nos casos do bestialismo, da necrofilia e da pedofilia. (Id. Ibidem: 279) 2910 Apesar de parecer amenizado os aspectos voltados para o transtorno da identidade sexual, ele categoricamente sentencia as escolhas feitas pelos indivíduos que não aceitam a sua identidade de gênero e, também, aquelas pessoas que realizam a mudança de sexo: Na verdade o que se faz comumente nessas cirurgias é tão só a emasculação e a castração, com aproveitamento de retalhos de pelo do pênis e do saco escrotal para a confecção de uma aparente genitália feminina. Essa prática resume-se, pois, na confecção de um canal revestido de tegumento em comunicação com o reto. Em suma, uma rude mutilação e uma disfarçada oficialização para uma pseudo- heterossexualidade, que- sob qualquer pretexto- tema representação de homossexualismo. Castrar e emascular um individuo, querendo valer-se de um suposto “sexo psicossocial”, parece-nos, à primeira vista, um método apressado e simplista de resolver uma situação complexa que deixa suas raízes num psiquismo alterado. Uma coisa é certa: pode-se até mudar o “sexo-civil”. No entanto, ninguém poderá transformar realmente, um sexo em outro: nem o endocrinologista, nem o psiquiatra, nem o juiz, nem mesmo Deus. (Id. Ididem: 280). (Grifo nosso) Outro autor, Flaminio Fávero (1991), apesar de tratar do “travestismo e disfarcismo” não discute a homossexualidade como “homossexualismo”, mas afirma que são doentes psíquicos. Na forma congênita chamada de uranismo, o indivíduo bem conformado sexualmente é um doente psíquico; tem ele pendor homossexual, pudor também homossexual, consciência absoluta do ato sexual invertido, mas sendo conduzido a ele por verdadeira obsessão. Além disso entrega-se preferivelmente ao exercício de profissões do sexo oposto ao seu do qual, ainda assume, certas particularidades de caráter, atitude, vestes (travestismo ou disfarcismo). (P. 811) O livro de Celso Martins (2010) é voltado para concursos públicos e não se diferencia dos demais nas abordagens: Os conceitos de transtornos de personalidade devem considerar a sociedade dominante. Alguns casos devido à agressão moral e/ ou física que produzem, enquadram-se exclusivamente como aberrações, chegando à condição de psicopatias; outros, embora firam ainda alguns padrões sociais enquadram-se em desvios sexuais. (P.114). 2911 Esse autor também utiliza o sufixo ismo para denominar “homossexualismo” masculino ou uranismo ou pederastia; “Homossexualismo” feminino ou safismo, “lesbianismo” ou tribadismo”. (Id. Ibidem, p. 115). A nona edição do livro de Genival Veloso França (2011) é a mais preconceituosa diante dos demais livros analisados e, por isso, indagamos: como o/a discente de Medicina, de Direito e outros profissionais que se preparam para concurso público recebem as informações postas nessas obras? Esses livros acabam por reforçar a heterossexualidade como única possibilidade da sexualidade dos indivíduos. 3. O DIREITO A militância festejou em 17 de maio de 1990 em Assembleia Geral da OMS (Organização Mundial de Saúde) a retirada do código 302.0 da CID (Classificação Internacional de Doenças) que caracterizava o “homossexualismo” como doença, DISTÚRBIO e perversão. Logo, o sufixo ismo que remetia a patologização foi abolido e o termo homossexualidade começou a ser adotado pelos filiados da OMS. Em 05 de maio de 2011, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) julgaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que reconhecia a união estável entre casais do mesmo sexo. O ministro Ayres Britto argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF. Colling (2011) considera essas conquistas importantes para as comunidades LGBT e não as desqualificam, mas formula questões relevantes para se pensar no Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>. Acesso em: 16/out/2014. 2912 que ainda é preciso conquistar, dizendo que apostamos demais em leis e decretos que de fato são necessários/as como a criminalização da homofobia, mas apenas criminalizar não extinguirá de fato o problema, se não temos uma estrutura de educação. Exatamente nesse sentido é que Louro (2001) evidencia a necessidade de uma pedagogia e um currículo queer onde se possa trabalhar com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades, e que para isso precisamos “questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-comportadas de conhecimento e de identidade... ao colocar em discussão as formas como o “outro” é constituído, levariam a questionar as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável para a existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido, assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os processos que produzem as diferenças, o currículo passaria a exigir que se prestasse atenção ao jogo político aí implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural, seria imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das negociações constitutivos das posições que os sujeitos ocupam”. (P. 550). Louro complementa e oferece as ferramentas descritas por Colling, quando ele afirma não ser suficiente a criminalização da homofobia. Retorno a Colling porque além dele demostrar a tensão entre os movimentos, pensa em estratégias e discursos que para além das políticas identitárias subvertam e questionem de forma permanente as normas hegemônicas, para que as próprias pautas não colaborem pra normatizar o que é ser gay, lésbica, bi, trans... ele acaba por contribuir com a pedagogia queer de Louro ao elaborar inúmeros questionamentos, dentre eles sobre o por que queremos uma vida mais parecida possível com a dos heteros? Colling volta a reforçar que os movimentos não podem reprimir as inúmeras possibilidades de gênero e, nesse sentido, Beatriz Preciado (2011), trata da crítica feita por gays, lésbicas e pessoas trans ao movimento feminista, por ele invisibilizar essas pessoas deixando em aberto essa lacuna e dando espaço para a chamada 2913 Teoria Queer que foi influenciada por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, pelas suas análises do poder, do discurso e desconstrução. A Teoria Queer acaba por se recusar a classificar os indivíduos de forma universal como: homem, mulher, homossexual e heterossexual, pois as possibilidades de gênero são muitas e não se encerram em termos binários, não os universalizando também, mas trazendo-os para o bojo da sociedade, informando a existência destes enquanto indivíduos dentro de um universo sexista e heteronormativo, ou seja, “as minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer”. (PRECIADO, 2011, p.14). As críticas elaboradas por Colling, Preciado e Louro remetem ao conceito de humanidade e o que é ser humano? Berenice Bento (2011), expõe de forma lúcida como é vista as pessoas trans na sociedade. A noção de humanidade que nos forma não é metafísica ou ontológica. O conceito de humano está assentado em um projeto político que retira humanidade daqueles que não tem um gênero compatível com o sexo. Para que a diferença sexual fosse compreendida como algo necessário para o indivíduo entrar na ordem simbólica, portanto, humano, e tornar-se sujeito, foi resultado de uma extensa e intensa produção discursiva do saber/poder médico e pelas ciências psi. Enquanto a diferença sexual estiver no centro da invenção do humano moderno, a transexualidade e outras expressões de gênero que negam essa precedência estarão relegadas ao limbo existencial. (P. 90-91) Mas o “limbo existencial” não é o que desejam as pessoas queer, que buscam através da militância os seus direitos, e logo, os avanços têm sido conquistados inspirados na Lei de Identidade de Gênero nº 26.743/2012 da Argentina, a mais avançada mundialmente, concedeu a despatologização das identidades trans, vitória essa que muito se deve a atuante militância de travestis, transexuais e transgêneros daquele país. O ponto máximo desta lei está em conceder o nome social sem a obrigatoriedade de se realizar a cirurgia de redesignação sexual, o que respeita expressamente a identidade de gênero do indivíduo. Glanc (2013) analisa os artigos desta lei e informa que prefere começar do final, quando é dito: 2914 Toda norma, regulação ou procedimento deverá respeitar o direito humano a identidade de gênero das pessoas. Nenhuma norma, regulação ou procedimento poderá limitar, restringir, excluir ou suprimir o exercício do direito a identidade de gênero das pessoas, devendo interpretar-se e aplicar-se as normas sempre a favor do acesso ao mesmo”. Assim, a Lei marca o direito a identidade de gênero das pessoas como um direito humano, o qual não é pouca coisa: não só se aplicam todos os princípios orientadores e institutos próprios dos direitos humanos, mas que deixa claro que o direito a identidade de gênero representa um direito fundamental das pessoas para a vida em sociedade, com o respaldo e a legitimação estatal. O mesmo artigo estabelece que o direito aqui consagrado não pode ser obstruído por nenhuma lei de nenhuma hierarquia normativa, e que deverá interpretar-se sempre a favor de seu acesso, que só reforça a inclusão da identidade de gênero um direito humano. (P. 94) O autor entra em consonância com o exposto por Berenice Bento (2011) quando ela trata da retirada da humanidade desses indivíduos, ele percebe que com a Lei de Identidade de Gênero Argentina se pode garantir essa humanidade: Não se trata de mudar João por Pedro: se trata de sentir-se mulher, sentir-se homem, e que isso se reflete na identidade, na vestimenta, no corpo, de poder ver e chamar-se como se sente. A partir daí se escreve toda a vida de uma pessoa [...] E por isso o Estado deve recompor e garantir a legitimidade desses padrões de vida em sociedade que uma vez lhes foram renegadas. E não se pode ignorar o fato da carga emocional que carrega o direito a identidade de gênero em nosso país, onde a ditadura cívico-militar de 1976-1983 arrasou com a identidade de muitíssimas pessoas: não deixemos que a democracia faça o mesmo. (P. 96). Apesar de concluir que a Lei de Identidade de Gênero Argentina é um enorme ganho para as pessoas trans, Glanc tece uma crítica de que essa lei só da possibilidade de adequar-se a um dos gêneros pré-estabelecidos socialmente de homem ou mulher e acaba por não reconhecer que as identidades são múltiplas e que não deveria ser o Estado a determinar a forma de viver de cada indivíduo e conclui, Que a Lei de Identidade de Gênero representa um avanço no andaime que constrói uma sociedade mais justa. Reconhece, legitima, respeita e respalda os planos de vida das pessoas, sem nenhum juízo de valor. Admite, identificando ele com os direitos humanos, que não se trata de petições especiais, mas que forma parte do seu dever como o Estado assume a responsabilidade em 2915 caso de não concretude do direito em questão, assim seja por obstrução, ou por insuficiência em suas ações. O direito inclui a um grupo historicamente subjugado, dando lugar legal que se merece: não é o mesmo que toda sociedade, mas que requer maior atenção, pois é necessário recompor uma situação consequência de anos e anos de vulnerabilidade e desigualdade. (P. 99) Com base e influência na Lei de Identidade de Gênero Argentina, que o Deputado Jean Wyllys e a Deputada Érika Kokay propuseram o Projeto de Lei 5.002/2013, que dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973 e se chamará Lei João W Nery (em justa homenagem ao primeiro trans homem do Brasil). CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto é nítida a percepção de como a ciência manipula e discursa sobre os corpos, colocando-os numa lógica binária biológica de homem/mulher, reguladas constantemente pela heteronormatividade. É importante ressaltar que tal situação é legitimada até mesmo em livros de Medicina Legal e se constituiu, neste artigo, o cerne das preocupações, visto que eles são consultados por estudantes de direito e medicina, que se formarão para ocupar cargos importantes que regulam a nossa sociedade, como médicos, advogados, delegados, juízes, promotores... e isso nos faz indagar como essas pessoas estarão preparadas para lhe dar com as inúmeras identidades de gênero? Nesse sentido, a militância e a constante vigilância feminista e queer, que apesar das tensões entre si, estão unidas pela conquista dos direitos das múltiplas possibilidades de gênero, acreditam que mudanças ocorrerão como já ocorreram na Argentina, e vem inspirando políticos do Brasil a encaminhar projeto de lei semelhante para a garantia dos direitos e respeito as multidões queer. REFERÊNCIAS BENTO, Berenice. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: ____. Stonewall + 40 no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2011. 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