Departamento de Teologia O MOVIMENTO (SIMBOLISMO) “RASGAR” NO EVANGELHO DE MARCOS (1,10; 15,38) Aluna: Lídia Maria Carneiro de Resende Orientador: Geraldo Dondici Vieira Introdução Conhecer com profundidade um texto bíblico, por pequeno que seja, é um processo que exige grande esforço e um estudo acurado. O presente trabalho é continuidade de um projeto de estudo e pesquisa com base no Evangelho de Marcos 1,10 e 15,38. Trata-se da pesquisa intitulada “O CÉU SE RASGA, RASGA-SE O VÉU DO TEMPLO: A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE JESUS”. Desenvolveu-se basicamente analisando os versículos de Marcos, acima citados, comparando-os com outros textos da Sagrada Escritura e da literatura antiga que também marcam o movimento de “rasgar” e outros de mesmo sentido. Ademais de retomar o trabalho já realizado, apresentamos aqui o estudo de uma possível inclusão apocalíptica (ou escatológica) de Marcos 1,10 e 15,38, fundamentada no verbo “rasgar” (σχίζω). Antes, porém, destacamos alguns elementos das sociedades da Grécia e de Roma, para melhor situar o Evangelho de Marcos no contexto histórico que o envolve. Sobretudo o contato com a religião greco-romana do primeiro século, ajuda a evidenciar o ambiente apocalíptico do qual emergem nossos textos escolhidos. Do mesmo modo, fazemos uma apresentação do Evangelho em estudo dentro do quadro dos outros escritos evangélicos, entendendo que cada um deles não é somente uma “peça” ou parte de um todo, senão que traz uma mensagem significativa e profunda para as comunidades de seu tempo e para nossos dias. (Com relação à pesquisa anterior, amplia-se esta parte da inserção de Marcos no conjunto dos evangelhos). Acrescentamos ainda uma parte de hermenêutica, para aproximação das citações bíblicas aos leitores de hoje. Eis o propósito fundamental que nos acompanha durante cada etapa de estudo e pesquisa: procurar demonstrar que o simbolismo do verbo “rasgar” (σχίζω) presente nos dois versículos (no início e no final), forma uma inclusão apocalíptica e é uma das chaves de leitura do Evangelho de Marcos. Desta forma, possibilita (aos leitores das Escrituras Cristãs) o encontro com esta chave de leitura e o enriquecimento com um assunto pouco explorado pela Exegese, favorece o crescimento da divulgação da Boa Nova hoje. Contexto histórico Sociedade Greco-romana Para melhor compreender um trabalho de exegese como é o nosso, convém conhecer o contexto histórico em que se insere o escrito. A orientação dos exegetas para o estudo de um texto bíblico é buscar o enfoque histórico, que envolve o tempo da origem do escrito, o ambiente de seu autor e dos primeiros leitores. Dito de outra forma, para obter a compreensão do texto é importante conhecer sua história contemporânea. Muitos autores acordam em afirmar que Marcos escreveu para as comunidades da Itália, ou seja, a leitores romanos (e seu próprio nome é de origem romana – “servo 1 Departamento de Teologia de Marte”?). Há alguns que afirmam que escreveu para comunidades da Síria. Segundo a tradição, o evangelista acompanhava a Pedro em suas pregações, traduzindo-as para o grego; era, portanto, seu intérprete na missão no mundo helênico. Porém não somente isto justifica a origem do texto de Marcos; pode ser útil apresentar o testemunho da Tradição da igreja primitiva, fundamentado em termos que aparecem no próprio escrito: Conforme uma tradição antiga, o evangelho foi escrito em Roma. Em geral, os numerosos latinismos encontrados em Marcos podem ser excluídos como termos militares e técnicos de uso corrente. Em duas ocasiões notáveis, contudo, uma expressão grega é explicada pelo seu equivalente latino: “...duas lepta (moedas gregas), isto é, um quadrante (moeda romana)” (12,42); o “interior do pátio, isto é, do Pretório” (15,16). Esses Esclarecimentos levam a crer que o evangelho foi escrito em Roma. 1 Em se tratando de um texto de literatura antiga em meio Greco-romano, recorremos a uma apreciação histórica sobre a realidade desses dois povos e sua influência no tempo em que foi escrito o Evangelho segundo Marcos. Destacaremos brevemente o que nos parece mais importante sobre alguns aspectos. Os dois povos, segundo Fustel de Coulanges, podem ser reunidos no mesmo estudo porque “eram dois ramos duma mesma raça e que falavam dois idiomas derivados da mesma língua, tiveram também um fundo de instituições comuns e atravessaram uma série de revoluções semelhantes”.2 Percebemos no estudo histórico da Grécia e de Roma que há uma influência fortíssima da religião na vida da sociedade. Em outras palavras, muitos aspectos da vida social têm seu fundamento nas crenças e seu sustento na instituição religiosa. Era a religião que ordenava a vida das pessoas: lar, propriedade, herança. Parentes são aqueles que têm os mesmos deuses domésticos. Cada família tinha seu deus protetor. E mais: A comparação das crenças e das leis mostra que a religião primitiva constituiu a família grega e romana, estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixou os graus de parentesco, consagrou o direito de propriedade e o direito hereditário. Esta mesma religião, depois de ter alargado e estendido a família, formou uma associação maior e governou nela como na família. 3 Havia sempre um altar na casa de um grego ou de um romano. As famílias tinham o deus da força, o deus da riqueza, sempre invocado sobre os filhos para que tivessem saúde e abundância de bens. Não obstante, o que estas duas sociedades possuem de crenças e instituições nas épocas de auge e brilhantismo, exprime uma herança de um passado remoto, de muitos séculos antes, e até mesmo vinda de outras sociedades antigas, como a dos Árias do Oriente. Os ritos sacrificais, as crenças sobre a alma e a morte, os ritos fúnebres e cerimônias de casamento incidem na vida das pessoas. Acreditava-se que a alma era imortal, que a vida é apenas transformada e continua mesmo após a sepultura. Daí os cultos e oferendas aos mortos observarem “ritos tradicionais e fórmulas determinadas”.4 1 HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia. A revelação, a Promessa, a realização, 4. ed. São Paulo: Paulus, 1985. p. 453. 2 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudo sobre o culto, o direito e instituições da Grécia e de Roma. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1929. p. 5. 3 Ibid., p. 8-9. 4 Ibid., p. 18. 2 Departamento de Teologia Entre romanos e gregos era comum aceitar a deificação da dinastia. Era de interesse dos reis e não tiveram dificuldades em serem aceitos como deuses, ainda em vida. Havia muitas outras modalidades de divindades e a adoração aos elementos da natureza. Esta vivência e costumes eram já combatidos pelos judeus como idolatria, causa de ambição e egoísmo, desordens sociais e total ausência de paz. No tempo em que Marcos escreve seu evangelho é grande a perseguição aos cristãos por parte do Império Romano. O povo vivia subjugado pela religião do império e oprimido também pela autoridade. Era muito problemático para os cristãos proclamarem a fé em Jesus Cristo quando estavam sob o jugo de um império em que as pessoas adoravam ao imperador como um deus. Eram comuns os cultos ao imperador. Os cristãos, porém, recusavam tais cultos, procurando manter sua fidelidade a Jesus Cristo, e por tal postura sofreram como numa “tempestade”. As comunidades foram perseguidas, impedidas de se reunir. Muitos discípulos e discípulas morreram; outros negaram a fé (Mc 14,71), traíram (14,10.45) ou fugiram (14,50), se dispersaram (14,27).5 Vale ressaltar que também no meio judaico a sociedade girava em torno da estrutura religiosa, representada pelo Templo. Entretanto, os judeus se sustentavam de forma diferente aos gregos e romanos. Para os judeus era impossível deixar a fé em YHWH, e em sua vida jamais aceitavam desvincular ética e religião. Encaravam a idolatria como responsável pala marginalização do homem, geradora de uma sociedade que destrói as relações humanas; seguir aos ídolos é opor-se e rejeitar ao Deus vivo e verdadeiro. Era cada vez mais difícil a vida dos que aceitavam a Boa Nova de Jesus. Mesmo havendo um respeito e continuidade de alguns elementos do judaísmo, há nos crentes em Cristo uma total mudança de critérios para a apreciação dos valores sociais, culturais e religiosos. Eles seguem uma inspiração que procede do próprio Cristo, pelo Espírito Santo. Resultado de um processo Esclarecemos anteriormente que o presente trabalho reúne conteúdos de pesquisa anterior. Refere-se ao projeto inicial “O CÉU SE RASGA , RASGA-SE O VÉU DO TEMPLO: A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE JESUS”, sobre uma das chaves de leitura do Evangelho de Marcos, que é a da inclusão literária pelo verbo σχίζω (rasgar) , com base nos textos 1,10 e 15,38. A partir desta estrutura, organizamos o conteúdo, realizamos alguns acréscimos, sobretudo a inclusão apocalíptica (complementando bibliografia) para dar corpo ao texto que temos em mãos. É conveniente retomar a referida pesquisa a partir da inserção de Marcos no conjunto dos evangelhos. Nesta apresentação, há, portanto, acréscimos com relação ao trabalho anterior. Os Evangelhos Cada Evangelho, que não é simplesmente descrição da vida de Jesus, provém da visão própria do respectivo evangelista, querendo todos eles atingir e convencer determinadas comunidades. Devem, portanto, ser explicados e entendidos com base a esse contexto. 5 CNBB. Caminhamos na estrada de Jesus. O Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 18 3 Departamento de Teologia O Evangelho segundo Marcos Não se pode dizer que se conhece um evangelho em seu conjunto apenas por suas fontes e influências. O Evangelho atribuído a Marcos, o segundo de nosso cânon, tem muitas formas de ser conhecido com profundidade. Porém, abordaremos aqui basicamente sua relação com os outros chamados evangelhos sinóticos. Há uma relação profunda da questão das fontes em Marcos com a questão sinótica e a origem dos demais evangelhos. Do ponto de vista da dependência literária, muitos estudiosos admitem a prioridade de Marcos em relação a Mateus e Lucas (e também João), escritos possivelmente a partir do ano 70. Os autores tratam a chamada “questão sinótica”, explicada a partir da “teoria das duas fontes”: Mateus e Lucas tomam como base o evangelho de Marcos e também uma fonte comum que conheceram, qualificada como fonte “Q”. Cada um deles também trabalhou suas próprias fontes. Esta, como outras hipóteses, é sujeita a críticas. Eis o esquema gráfico que representa a chamada “teoria das duas fontes”:6 Vida e mensagem de Jesus Pregação dos apóstolos Tradição oral nas Comunidades cristãs Coleções de feitos e ditos de Jesus Evangelho Marcos (a.65) Evangelho Mateus (a.70) Fonte “Q” Evangelho Lucas (a.75) Vale salientar que Marcos e os outros evangelhos trazem não uma biografia (de Jesus) ou biografias (de Jesus e dos apóstolos, discípulos etc), mas um anúncio da mensagem de salvação e libertação ao povo. Refletem os problemas, a realidade, os desafios das comunidades em torno das quais cresce a Boa Nova, Evangelho de Cristo. Texto grego de Mc 1, 10 kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/maw`j peristera.n katabai/non eivj auvto,n\7 6 Cf. GALDEANO, Fernando Martínez. Descubre la Bíblia. Madrid: EDICEL – Centro Bíblico Católico, 2004. p. 131. 7 NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. p. 89. 4 Departamento de Teologia Tradução E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele.8 Análise lexicográfica Kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j peristera.n katabai/non eivj auvto,n Texto Classe gramatical Tradução Kai. Conjunção coordenada E euvqu.j Advérbio logo avnabai,nwn Verbo particípio presente ativo masculino ao subir singular Evk Preposição genitiva de tou/ Artigo definido genitivo neutro singular a u[datoj Nome genitivo neutro singular comum água Ei=den Verbo indicativo aoristo ativo 3ª. pessoa viu singular scizome,nouj Verbo particípio presente passive acusativo rasgarem-se masculino plural tou.j Artigo definido acusativo masculino plural os ouvranou.j Nome acusativo masculino plural céus kai. Conjunção coordenada e to. Artigo definido acusativo neutro singular o pneu/ma Nome acusativo neutro singular Espírito w`j Conjunção subordinada como peristera.n Nome acusativo feminino singular uma pomba katabai/non Verbo particípio presente ativo acusativo descendo neutro singular Eivj Preposição acusativa sobre auvto,n\ Pronome acusativo masculino 3ª. pessoa do Ele singular Análise ou crítica textual Segundo NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, em Mc 1,10, a expressão εις αυτόν (“sobre ele”), no versículo 10c, vem precedida do sinal Þ, indicando que neste ponto há uma inclusão, isto é, uma inserção de palavras em um ou mais manuscritos. Conforme pode conferir-se em Jo 1,33, a expressão apresenta a variante de και μενον (“e permanecer"), atestada pelas seguintes testemunhas segundo os tipos de manuscritos: Uncial (אalef ), do século V; W, um dos textos bem considerados do Segundo Testamento, também datado do século V e pelo minúsculo 33. A variante é testemunhada ainda por poucos manuscritos latinos que divergem do texto majoritário e por uma parte dos manuscritos da versão boáirica. A segunda variante está sinalizada por ┌, indicando uma substituição simples de εις (αυτόν) por επ (que também significa “sobre”), testemunhada pelo uncial א, vários textos do Segundo Testamento, presentes nos outros três evangelistas, nos 8 Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. p. 1759. 5 Departamento de Teologia Atos dos Apóstolos, várias Epístolas, manuscritos de versões latinas, pela família 1 da versão de Antioquia, pelo minúsculo 33, pelo texto majoritário ou massorético e os manuscritos da versão siríaca. Uma terceira variante sugere o próprio texto a expressão εις αυτόν, testemunhada por escritos proto-alexandrinos, pelos unciais mai sculos presentes em vários textos dos Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Epístolas, pela família do minúsculo 13, número 2427, (datado aproximadamente do século XIV) e poucos outros manuscritos (de vários séculos) que divergem do texto majoritário. Contexto literário A citação faz parte do chamado “prólogo” de Marcos (1,1-13), que consta da atividade de João Batista, o batismo de Jesus e a tentação. Insere-se mais precisamente no evento do batismo de Jesus, que proclama a sua vocação messiânica. Jesus é o Esperado das nações, o Messias servo e solidário com a humanidade pecadora.9 Sobre esta perícope, Carlos Mesters, um dos conhecidos biblistas que atuam no Brasil aponta: [...] descreve a grande mudança que ocorreu na vida de Jesus por ocasião do batismo. O céu se abriu e ele teve uma visão. Deus Pai falou: “Tu és o meu filho amado!” Aquela experiência mudou tudo na vida de Jesus. Naquela hora ficou clara a sua missão, e ele a assumiu.10 Logo no início de seu Evangelho, Marcos apresenta a Jesus como o Filho de Deus. Ele não é somente o ungido, o Messias, mas o próprio Filho, o primogênito, o unigênito do Pai. É em si o rosto de Deus. A beleza de Deus na eternidade é revelada em Jesus Cristo. Por Ele, podemos ver a beleza de Deus nas pessoas. Jesus é a perfeição da verdade, da verdade das palavras, da verdade das pessoas; é a perfeição do bem, das pessoas, da história. Já está presente neste início de Marcos o que está no chamado apocalipse sinótico (13,27): “Então verão a vinda do Filho do homem”. Nesta apresentação da vinda de Jesus e os céus que se abrem está a certeza de Deus entre o povo. Em torno desta apresentação da vinda de Jesus desenvolvem-se uma série de acontecimentos que testificam o que Marcos anuncia nos primeiros versículos de sua obra: “[...]Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” (Mc 1,1). Os dois personagens principais do contexto em que se insere nosso texto são Jesus e João Batista. Estes dois personagens são introduzidos pela expressão narrativa deu-se que; aconteceu que; daí; então. Elementos aparentemente antagônicos descrevem as relações entre João e Jesus na apresentação feita por Marcos: João marca o antes e Jesus o depois; com João se dá a preparação e com Jesus a realização, o cumprimento da promessa; João batiza com água e Jesus com o Espírito Santo; João é o menor, menos digno, o amigo do noivo, enquanto Jesus é o maior, o mais digno, o noivo. João é profeta enquanto Jesus é o Filho de Deus. A imagem dos “céus que se rasgam” expressa a comunicação de Deus. Jesus é o reflexo da sabedoria de Deus, reflexo no grau absoluto de perfeição, o mais luminoso. Sobre ele o céu se abre e o Espírito desce; ouve-se ainda a voz do Pai (sobre a qual comenta Mesters): “A frase que o Pai falou era do profeta Isaías, que 9 GARCIA RUBIO, Alfonso. Encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para nossos dias. 8 ed. – revista e atualizada. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 30-31. 10 MESTERS, Carlos. Entre nós está e não o conhecemos. Círculos Bíblicos. São Paulo e São Leopoldo: Paulus e CEBI, 1996. p. 39. 6 Departamento de Teologia anunciou o Messias servidor (Is 42,1). Jesus conhecia a Bíblia e, assim, descobriu que o Pai estava lhe indicando a missão de ser o Messias servidor de todos”.11 Jesus é a imagem de Deus, em quem Deus se faz um de nós e nos revela a sua face. E mais: assume totalmente as nossas dores, como servo sofredor. Por Ele e nele, mulheres e homens reverenciam a Deus sem humilhar-se. Pelo contrário, os crentes em Cristo entendem e aceitam que a reverência a Ele os eleva e enobrece, pois servir a Deus é reinar com Ele. No batismo de Jesus por João no Jordão são descritas várias ações: Jesus subiu da água, elevou-se; viu o Espírito Santo descendo sobre Ele. Foi ouvida uma voz: “Tu és o meu Filho[...]”12. Esse conjunto de ações concomitantes são unidas pelo logo, imediatamente (euvqu.j) partícula sempre recorrente ao longo do evangelho de Marcos. Texto grego de Mc 15,38: Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ13 Tradução E o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo.14 Análise lexicográfica Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ Texto Kai. To. katape,tasma Tou/ Naou/ Classe gramatical Conjunção coordenada Artigo definido nominativo neutro singular Nome nominativo neutro singular comum Artigo definido genitivo masculino singular Nome genitivo masculino singular comum Tradução E o Véu do Santuário evsci,sqh Verbo indicativo aoristo rasgou-se passivo 3ª. pessoa do singular eivj du,o Preposição acusativa Adjetivo cardinal acusativo neutro plural de grau Preposição genitiva Advérbio Preposição genitiva Advérbio avpV A;nwqen E[wj ka,tw em dois de cima até embaixo 11 Ibid. p. 40-41. Mc 1,11. 13 NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. p.145. 14 Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. p. 1784. 12 7 Departamento de Teologia Análise ou crítica textual Trazemos o texto grego de Mc 15,38 para facilitar a compreensão de seu aparato crítico: Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o Þ avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ Nesta versão do Novum Testamentum Graece, vigésima sétima edição de NESTLE-ALAND, notamos a presença de Þ, símbolo que indica que há uma inclusão de avpV (preposição genitiva de) em merh que também tem o sentido de sair de uma parte até chegar a outra. Tal variante tem o testemunho nos Atos dos Apóstolos, algumas Epístolas, na versão latina (parcial) e em vários manuscritos da vulgata. Há também a presença do termo em textos do Primeiro Testamento, tanto nos livros da Torah (Pentateuco), na literatura profética e na obra deuteronomista de história. Não se encontrou registros de que σχίζω ocorra na literatura sapiencial. Podemos dizer que se trata de uma mudança de linguagem, uma mudança entre as apresentações, conservando, porém, o seu sentido. Essa relação entre os dois termos, encontrada em vários textos, amplia-se e se clarifica em cada um deles. Contexto literário Situamo-nos no contexto da morte de Jesus. É o ponto culminante da revelação, momento de forte intimidade (identidade) de Jesus Cristo com Deus, a ponto de rasgar o véu do templ. É na sua inteira doação que Jesus se revela plenamente como o Filho, idêntico ao Pai. O texto nos ajuda a entender que a cruz é o lugar escolhido, a forma de Deus mostrar um ato grandioso por aparente insignificância e fraqueza. Mais ainda: Cristo crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios”15, é a sabedoria de Deus que possibilita o surgimento de uma humanidade nova e uma nova ordem do cosmos. O texto antecedente a Mc 15,38, narra o último momento de vida de Jesus. Ele está na cruz e dá seu último (grande) grito e expira (Mc 15,37). O que podemos dizer a respeito deste último grito de Jesus? Pode ser o grito do inocente que sofre pelos outros, para que aqueles por quem sofre – que vivem aflitos – por seu sofrimento sejam aliviados de sua aflição. É o brado de libertação de todo sofrimento, dor e agonia; o grito de entrega total em favor da humanidade. É o grito solidário de Jesus com os gritos de todo o povo que sofre e, como o povo de Deus que vivia a aflição e a escravidão no Egito clamou e foi ouvido (Ex 3,7), grita por mais justiça e pelo fim da opressão. Pelo sangue derramado na cruz, Cristo nos resgatou16, alcançou a reconciliação de todo gênero humano e a pacificação de todo o universo. (cf. Cl 1,20). É o total dom de si. Já não é possível entregar mais, pois não existe amor maior que dar a vida (cf. Jo 15,13). John L. Mckenzie fala da “morte salvífica”, já conhecida na filosofia e na poesia dos gregos. Encontramos na lenda e na história gregas relatos de homens que morreram defendendo seu povo, sua cidade. Não é difícil recordar este tema nos poemas de Homero, que “têm uma mística de morte e de batalha que refletem a têmpera da idade heróica. Sente-se esta mesma mística no Arco do Triunfo, no monumento de guerra de Edinburgh ou no cemitério de Gettysburg”.17 Para a literatura grega, e, sobretudo para a filosofia, tem muita importância a morte de Sócrates, considerada injusta, sobretudo para os filósofos como Platão, que a 15 1Cor 1,23. Cf. 1Cor 7,23; 1Pd 1,18-19. 17 MCKENZIE, John L. Os grandes temas do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes, 1972. p.111. 16 8 Departamento de Teologia conta de forma comovedora. É a morte de um filósofo que é exemplo porque se conserva com o espírito sereno diante de uma sentença injusta que lhe é aplicada. Entre os romanos também há lendas de mortes heróicas. Na literatura do Primeiro Testamento pouco se entrevê desse heroísmo, a não ser na morte de Sansão. A morte de Jesus só pode ser entendida dentro de sua missão de libertação numa perspectiva de fé. Do contrário, é desprezível e sem valor; é a redução do homem à decadência e ao fracasso. Posterior à nossa citação, temos a referência ao oficial romano que havia visto Jesus expirar e disse: “ Verdadeiramente este homem era filho de Deus!” (Mc 15,39). Quem se encontra de pé junto da cruz de Jesus é um pagão. Ele ouve o seu grito. Vê como expira. Diante do fato, ele reconhece em Jesus o Filho de Deus.Verdadeiramente! Para Gerard S. Sloyan, diante da proclamação da morte de Jesus, todos (também os gentios), devem chegar a um ato de fé, a ter essa mesma atitude do centurião. 18 A afirmação de Jesus como Filho de Deus está logo no início do Evangelho de Marcos, escrito em meio Greco-romano, em meio pagão. É o título dado a Jesus desde o começo. Por ela Marcos intitula seu escrito evangelístico. Ela revela a verdadeira identidade de Jesus. Elementos simbólicos de Mc 1,10 e 15,38 Sem dúvida nosso trabalho sobre o simbolismo em Mc 1,10 e 15,38, dá-se sobretudo a partir do verbo “rasgar” (σχίζω). No entanto, convém tratar também dos outros dois principais símbolos a que o verbo se refere nas duas citações: o céu e o véu do templo. O céu Símbolo reflexo de uma experiência humana universal e necessária: Deus se revela ao homem através da sua “criação toda”. A Bíblia distingue perfeitamente o céu físico – da mesma natureza que a terra – e o céu de Deus. Em outras palavras, o céu como fenômeno natural e como fato teológico. A origem e o significado são incertos no hebraico (‘sãmayim). Na LXX encontra-se geralmente no plural e no Segundo Testamento tanto no singular como no plural e pode significar: o céu das estrelas e das nuvens. Da mesma forma que para nós, para o hebreu o céu é uma parte do universo, em contato com a terra, embora diferente dela. No livro do Gênesis (1,1) e em Mt 24,35, fala-se do “céu e a terra”. Há no israelita uma sensibilidade ao esplendor do céu; anda em busca de sua luz e admira profundamente sua transparência (Ex 24,10). É para ele impressionante o firmamento ser sólido e inabalável (Gn 1,18). Parece ser constituído como a terra, com fundamentos, colunas que o sustentam firmemente (cf. Jó 26,11 e 2Sm 22,8). Fala-se se das janelas dos céus, através das quais cai a chuva (Gn 7,11; 2Rs 7,2.19). É dos céus que YHWH manda os ventos, a neve e o granizo, quando necessários. Vários textos falam dos céus como a morada de Deus. 19 Alguns ressaltam que há uma profunda ligação entre o céu e os santuários da terra. A fé do povo hebreu é que Deus escuta do céu a oração que seus filhos fazem na terra: Que teus olhos estejam abertos dia e noite sobre esta casa, sobre este lugar 18 19 Cf. SLOYAN, Gerard S. Evangelho de Marcos. São Paulo: Edições Paulinas, 1975. p. 99. Gn 11,5; 19,24; Dt 10,14; 1Rs 22,19; Sl 11,4; 148,4; Jó 22,13ss; Is 63,19; Mt 5,16.45; 6,1. 9 Departamento de Teologia do qual disseste: ‘Meu nome estará lá’. Ouve a prece que teu servo fará neste lugar. Escuta as súplicas de teu servo e de teu povo Israel, quando orarem neste lugar. Escuta do lugar onde resides, no céu, escuta e perdoa.20 O céu é um símbolo universal; representa universalmente os poderes superiores. O fato de situar-se acima tem equivalência a ser poderoso. É o trono do Rei, de Deus. É símbolo direto da transcendência.21 O profeta Elias é arrebatado de entre os vivos e é levado aos céus; privilégio único no Primeiro Testamento, relatado em 2Rs 2,1.11: Eis o que aconteceu quando Iahweh arrebatou Elias ao céu no turbilhão: Elias e Eliseu partiram de Guilgal,[..] E aconteceu que, enquanto andavam e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu ao céu no turbilhão.22 O céu, como a terra, possui extremidade. Assim nos testifica um dos versículos do Segundo Testamento, situado dentro do chamado apocalipse de Marcos: “Então ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu” (Mc 13,27). O próprio Evangelho de Marcos ainda nos fala do céu como a morada de Cristo ressuscitado. Atesta que o Senhor Jesus “foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19).23 Fora da perspectiva bíblica também encontramos a apresentação simbólica do céu: Ouranos se acha no Gr de Homero em diante, com o significado de “abóbada celeste”, “o firmamento”. Visto como tudo que aquilo abrange, ouranos é divino. Em Platão, o “céu pode ser equacionado com o -> tudo, o cosmos (-> Terra). Os céus estrelados, considerados como habitação dos deuses, ficaram sendo o ponto da partida para a investigação da existência e do conhecimento absoluto. 24 O véu do Templo Tomando o verbete de um dos dicionários bíblicos disponíveis que nos pareceu claro a respeito deste símbolo importante em nossa pesquisa, destacamos: (tradução própria) Havia no templo (e no tabernáculo) dois véus ou cortinas: um, entre o átrio e o templo (o tabernáculo; hebr. mãsãk: Ex 26,26s; 40,33, etc.); outro, entre o hekal e o debir ( pãrõket, incidentalmente mãsãk: Ex 26,31-35; 40,21, etc.). O primeiro não tinha importância alguma no culto: o segundo, interior, se aspergia em algumas ocasiões com sangue dos sacrifícios. 25 20 1Rs 8, 29-30. Cf. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. p. 227. 22 Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. p. 508. 23 Esta referência encontra-se também em At 3,21; Ef 1,20, Hb 8,1; 1Pd 3,22. 24 BROWN, Colin; LOTHAR, Coenen (orgs). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Tradução Gordon Chown. – 2. ed. v.1. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 341. 25 HAAG, H.; BORN, A. van den; AUSEJO, S. de. Diccionario de la Biblia. Barcelona: Editorial Herder, 1966. p. 1993. 21 10 Departamento de Teologia Com o que nos apresenta este verbete surge uma questão que convém comentar: o Templo dos judeus, construído por Salomão (como também o tabernáculo) tinha dois véus: um exterior e outro interior. O primeiro, que ficava na porta, entre o átrio e o tabernáculo (cf. Ex 40,33), em hebraico é chamado de mãsãk, e não tinha valor cultual. Apenas separava o Santo dos ambientes externos, sendo, desta forma, visível por todos. Este véu era feito “de púrpura violeta, púrpura escarlate, carmesim e linho fino retorcido, obra de bordador” (cf. Ex 26,36). O erguiam “cinco colunas de acácia” recobertas de ouro e “cinco bases de bronze” fundido (cf. Ex 26,37). No interior do Templo achava-se outro véu (em hebraico, pãrokêt; algumas vezes usa-se o mesmo termo mãsak), confeccionado de “púrpura violeta e escarlate, carmesim e linho fino retorcido” bordado com querubins. Suspendiam-no “quatro colunas de acácia recobertas de ouro” e com bases de prata. Este era muito importante e tinha um significado cultual, posto que separasse o Lugar Santo do Santo dos Santos (cf. Ex 26,31-35; 40, 21 etc). Como bem nos esclarece o verbete citado, na realização dos sacrifícios, algumas vezes este véu era aspergido com o sangue dos animais. Somente o atravessavam os sacerdotes que entravam no Santuário do Senhor para a oferta do incenso (cf. Lc 1,9). Na tentativa de responder à questão de qual dos véus do Templo se tratava: o exterior ou o interior, que separa o Santo do Santo dos Santos, admite-se que, pelo termo grego (katape,tasma), ambas são possíveis. [...] opinam muitos exegetas que o “véu do templo” (katape,tasma) que segundo Mt 27,51, se rasgou de cima a baixo à morte de Jesus, é o véu interior. Outros notam, com razão, que somente o rasgar-se o somente o rasgar-se o véu exterior podia ser manifestação divina visível para o povo.26 No entanto, constatamos que em se tratando do véu interior, o simbolismo é mais acentuado. Por este e outros motivos consideramos a este em nosso estudo. Simbolismo do verbo σχίζω O verbo σχίζω tem uma fisionomia própria para ser identificado nas duas citações desta pesquisa (Mc 1,10 e 15,38), o que já se pode perceber pela apresentação dos outros dois símbolos a que se refere. Tal como é aplicado em Mc 1,10, σχίζω relaciona-se com o ἀνοίγω - “abrir” (os céus) de Isaías 63,19. Já Mc 15,38, com διαρρήγνυμι - “rasgar” (as vestes) de Gn 37,34 e similar em 2 Sm 1,11 e Jó 1,20, conforme tentamos demonstrar anteriormente. Há esta possibilidade de 1,10 inspirar-se particularmente em Is 63,19: “Oxalá fendesses o céu e descesses”; porém o termo σχίζω é uma tradução do hebraico qr‘. O entendimento que se tem do verbo na parte essencial do batismo de Jesus em Marcos (1,10) – o céu que se rasga – é que se refere a uma revelação escatológica, um testemunho de que Deus é favorável ao seu povo, através de seus mensageiros e, sobretudo, seu Ungido. Assim se mostra nas visões do “céu que se abre”, conforme Ez 1,1; At 7, 56; 10,11; Ap 4,1; 19,11. Deus, sendo o que Ele é, o puro amor, o amor gratuito, quis se revelar. Manda seu Filho, o mais humano dos humanos. Verdadeiro homem no sentido de perfeitamente humano: tem a maneira humana de atuar, de sofrer, de chorar diante da morte do amigo 26 Trata-se do mesmo verbete do Diccionario de la Biblia acima citado. Podemos aplicar ao nosso texto de Mc em lugar de Mt. 11 Departamento de Teologia e diante da cidade de Jerusalém que não quer se converter. Ele fala ao coração de todos, sobretudo dos mais pequeninos. Se rasga de amor pelo humano. O verbo σχίζω indicando o rasgão do véu do Templo pode ser a forma encontrada pelo evangelista para descrever a manifestação do novo, de que em Jesus acontece algo inesperado. Jesus se choca com as falsas religiões. Cria uma incompatibilidade entre a gente que buscava outra forma de Deus. Ele é a novidade plena do Pai apresentada ao mundo para a salvação universal. Ele é Deus se revelando. Nele, Deus se manifesta efetivamente no tempo, intervém na história e permanece identificado com aqueles de quem sempre foi amparo e proteção. Em Jesus, realiza sua obra de maneira antes nunca vista, nunca esperada, como jamais foi ouvido (cf Is. 64,3). Revela-se a beleza de Deus faz tudo por amor. Como prova deste grande amor, seu próprio Filho se entrega até o extremo. E o rasgar-se o véu é uma revelação de sua glória. Inclusão apocalíptica de Mc 1,10 e Mc 15,38 No primeiro momento de nossa pesquisa investigou-se a possibilidade das duas citações (acima apresentadas) formarem uma inclusão literária, o que afirmou-se ser possível pelo seu teor simbólico. O céu que se rasga e o rasgar-se do véu do Templo constituem um evento que pode ser entendido simbolicamente. Analisando as duas citações do Evangelho de Marcos percebemos a evolução que se dá ao movimento de “rasgar”. Os céus se rasgam para que se manifeste a salvação que vem de Deus. Tudo o que Deus faz é para manifestar sua misericórdia infinita, que vem ao encontro da fragilidade humana. Esta verdade é assim descrita pela Igreja: “Te louvamos Pai Santo, porque és grande... À tua imagem criaste ao homem... E quando por desobediência perdeu tua amizade, não o abandonaste ao poder da morte: senão que, compadecido, estendeste a mão a todos para que te encontre o que te busca. E tanto amaste ao mundo, Pai Santo, que ao cumprir-se a plenitude dos tempos, nos enviaste como Salvador a teu Único Filho”27 Depois que os céus se abrem, o Evangelho dirige um constante apelo à conversão e à fé. Com a morte e ressurreição de Jesus, “rasga-se o véu” e nos são abertas as portas do Reino por ele anunciado: de paz, justiça, igualdade e amor. Ele nos inaugura o “novo céu e a nova terra” (Is 65,17; Ap 21,1). Basicamente desenvolve-se daqui por diante o segundo aspecto do método. Refere-se a um aprofundamento do tema do simbolismo ou movimento de “rasgar” dado pelo verbo σχίζω, trazendo o elemento da inclusão apocalíptica. Para a compreensão e interpretação de um escrito bíblico, é muito importante saber a que gênero literário pertence.28 Cada um deles, como a profecia, historiografia, a poesia, a apocalíptica, exprime de modo próprio o que querem transmitir. Deve-se fazer atenção a esse aspecto ao estudar, analisar tanto os livros do Primeiro Testamento quanto os do Segundo. Considerando no Evangelho de Marcos nossas duas citações (1,10 e 15,31) como parte da literatura apocalíptica, faremos a tentativa de explicar e aprofundar esse gênero. 27 28 Cf. Conferencia Episcopal Española. Oração Eucarística VI. 7º EGB, p. 69-71. Cf. Papa Pio XII. Divino afflante Spiritu 12 Departamento de Teologia Temos que “O adjetivo apocalíptico é derivado do termo apocalipse, uma tradução próxima do termo grego apokalypsis, o qual quer dizer literalmente desvelamento (o qual é também o sentido literal da palavra latina revelatio, do qual o termo inglês revelation é derivado)”.29 Uma vez exposto este preâmbulo, faz-se necessário deter-nos um pouco sobre o termo revelação e sua aplicação como tema referente a Jesus. A Revelação Diz um vocabulário bíblico que revelação é “quando a visão direta do mistério de Deus substituir nos homens o conhecimento de fé”.30 Neste estudo jogamos com as palavras apocalipse e revelação, para melhor explicar o sentido do que queremos transmitir. A revelação de Jesus Cristo A revelação concentrada em Jesus Cristo no Segundo Testamento completa a começada no Primeiro. É Nele que tem sua consumação final. Agora ela não é mais transmitida por múltiplos intermediários, mas é revelada pelo próprio Filho de Deus, ao mesmo tempo autor e objeto da revelação. Em Cristo Jesus, a revelação se dá pelos fatos, pelas palavras e por sua própria pessoa. A Revelação pelos fatos se dá pela existência histórica de Jesus e o coroamento desta por sua morte e sua ressurreição. Em Cristo se dá a consumação final do que era evocado só em figuras. Nele cumpre-se plenamente o que antes fora prometido. Ele é quem realiza nos fatos o conhecimento do conteúdo real da promessa feita aos pais. Quando falamos da Revelação pelas palavras nos referimos a que se proclamam “as coisas escondidas desde o começo do mundo” (Mt 13,35). Se não se explicasse por palavras o sentido dos atos de Jesus e de sua vida, a revelação pelos fatos ficaria incompreendida. Pelas palavras Jesus transmite claramente o mistério do Reino (cf. Mc 4,11), revela o sentido oculto das Escrituras. É graças a Ele que a revelação chega à sua plenitude: “Nada há de oculto que não venha a ser manifesto, e nada em segredo que não venha à luz do dia” (Mc 4,22). Na Revelação pela pessoa de Jesus o mistério de Deus atinge aos homens: Transcendendo as palavras e os fatos da vida de Jesus, os homens chegam até o centro misterioso de seu ser; aí é que encontram afinal a revelação divina. Jesus não só contém em si mesmo o Reino e a salvação que anuncia, senão que ele é a revelação viva de Deus. Sendo o Filho do Deus vivo”(Mt 16,16), é só ele que conhece o Pai e pode revelá-lo (Mt 11,27). Por outro lado, o mistério da sua pessoa chega aos pequenos por uma revelação do Pai. As relações íntimas do Filho com o Pai das quais o AT não tinha conhecimento, constituem o ponto culminante da revelação trazida por Jesus[...]31 Se no Primeiro Testamento permanecia envolto em sombras o conhecimento do plano de Deus, de sua promessa, o evento Cristo é o que agora “rasga os céus e o véu”, 29 Cf. DE BOER, Martinus. Escatologia apocalíptica judaica e o Novo Testamento. Revista Estudos de Religião, São Bernardo do Campo. UMESP. n.19, p. 86, dez. 2000. 30 LÉON-DUFOUR, Xavier (dir). Vocabulário de Teologia Bíblica. Tradução de Frei Simão VOIGT, O.F.M. 4ª. edição. Vozes, Petrópolis, 1987, p. 905-906. 31 Ibidem. 13 Departamento de Teologia dissipando toda ambiguidade e apagando toda sombra; já não é uma presença velada sob símbolos, mas que revela plenamente o plano divino. Alguns autores seguem e desenvolvem a hipótese de que a apocalíptica judaica foi a matriz que possibilitou intercâmbios religiosos e simbólicos entre judeus e cristãos mesmo após a chamada “separação entre sinagoga e igreja” ou “igreja e sinagoga”. A espiritualidade comum entre os dois grupos é possível pela linguagem e a escatologia da apocalíptica, quando considerada verdadeiramente como matriz de espiritualidade e não somente como um sistema de interpretação da história. Ao olharmos o material da literatura cristã primitiva, percebemos grande quantidade de escritos na perspectiva da apocalíptica judaica. Não somente no Apocalipse de João, como também na experiência de comunidades como a de Marcos, no cristianismo pós-paulino, a apocalíptica cristã é encontrada de forma determinante nas primeiras compreensões “cristológicas” acerca de Jesus de Nazaré.32 Os apocalipses trazem grandes princípios espirituais, que dão profundidade à vida das pessoas que têm acesso aos mesmos. É necessária uma análise em sua totalidade e não voltar a atenção apenas aos detalhes que os formam. A apocalíptica enquanto constituída pela experiência religiosa extáticovisionária nos serve de pano de fundo para a compreensão de nossas duas citações de Marcos (1,10 e 15,38). Nos dois textos o que acontece é algo notório, visto, revelado diante dos olhos da fé, da experiência religiosa. Quando na primeira citação está claro que “ele viu os céus se rasgando” e a segunda declara firmemente que “o véu do Santuário se rasgou”, se nos apresentam dois momentos de uma mesma verdade: Deus veio habitar conosco e tem um grande poder de amor manifesto plenamente em Jesus (desde a encarnação), no batismo e mesmo na cruz, prelúdio de ressurreição. A crítica textual da Bíblia de Jerusalém sobre Mc 15,39 traz: Lc faz o centurião dizer: verdadeiramente este homem era justo (23, 47). Ele, portanto viu em Marcos 15,39 uma alusão ao texto de Sb 2,18: “Se o justo é filho de Deus, ele o assistirá e o libertará das mãos de seus adversários”. É anúncio velado da ressurreição[...]. A profissão de fé do centurião forma inclusão com a proclamação da voz celeste por ocasião do batismo de Cristo (1,11+; cf. 1,1+). 33 As primeiras palavras do evangelho segundo Marcos anunciam que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. O que aconteceu antes da Páscoa é anunciado à luz do mistério pascal. Jesus que, pregado na cruz, rasga o véu do Santuário do Templo, é o mesmo anunciado por Marcos ao começar seu evangelho. Porém, desenvolve-se em Marcos o “segredo messiânico”; no escrito deste evangelista é típico Jesus evitar o título de Messias e proibir a divulgação de seus feitos messiânicos. Parece querer deixar como algo misterioso aquilo que, como que ultrapassando suas atividades terrestres, possa revelar que Ele é o mesmo que ressuscitará como juiz do mundo – Filho do Homem, título muito querido pelo Jesus de Marcos.34 Vários biblistas estudiosos do tema, trataram esta questão. Em seus trabalhos, tentaram mostrar que o caráter escondido do messias pertencia às ideias apocalípticas do tempo de Jesus. Reconhecem que é importante colocar-se primeiramente a questão de Jesus ter ou não se apresentado como messias. É o próprio acontecimento messiânico 32 Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Apocalíptica e as origens cristãs. Revista Estudos de Religião, São Bernardo do Campo. UMESP. n.19, p. 7 (apresentação), dez. 2000. 33 Cf. Nota b da BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. p. 1784. 34 Cf. Mc. 2,9; 8,31.36; 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,22a e b.41.62. 14 Departamento de Teologia que dá origem ao segredo messiânico. De qualquer modo, não parece haver nenhum obstáculo que impeça de afirmar que, em Marcos, Jesus é o Messias. Para a cosmovisão cristã, o evangelista serve-se da expressão “rasgar os céus” que aprece no primeiro versículo trabalhado (Mc 1,10) para significar a disponibilidade de Deus que quebra ao silêncio e se manifesta. O “rasgar o véu” brota desse mesmo sentido. Jesus, pela sua encarnação, missão e morte, veio desmistificar o que estava nas mãos de poucos. Há entre os judeus quem diga que este véu interior do Templo tinha 30 centímetros de espessura e várias juntas de bois não conseguiriam rompê-lo. No entanto, rasgou-se de cima até embaixo quando Cristo morreu. Esta é a opinião de muitos exegetas: que na morte de Jesus, rasgou-se de alto a baixo o véu (xatapetasma) interior do templo de Herodes (Mc 15,38). O véu que podia ser ultrapassado apenas pelos sacerdotes e os sumo sacerdotes, pessoas puras e habilitadas para adentrar o Santo dos Santos, se rasga, e ao povo é revelado o que o véu escondia. Conforme vimos o véu do tabernáculo encobria, ocultava da vista o santo dos Santos. Em Hb 10,20, o passar através do véu (que servia para esconder do povo o que se passava no Templo) para o Santo dos Santos é comparado com o caminho da vida do cristão, o qual, pela virtude da encarnação de Jesus (véu=carne), penetra no santuário celeste ou a glória de Deus. É por Jesus, sacerdote e vítima, que se abre o caminho para o Santo dos Santos (cf. Hb 10,19). Há um ponto comum entre o rasgar-se o céu e o rasgão no véu do Templo como revelação: em Jesus Deus se revela plenamente, entregando-se à humanidade. Jesus que se revela no batismo e na morte de cruz entrega sua vida como livre oferta na fidelidade a Deus, para garantir mais vida à criação inteira. Estes sinais da revelação de Deus ajudam a conhecer melhor a Jesus Cristo, que vem para estar no nosso meio e manifestar, por sua Palavra e seus feitos, uma presença amiga, ao mesmo tempo incômoda, provocadora, convocadora para a missão. No instante da morte de Jesus rasga-se o véu do templo de alto a baixo. Esse rompimento de cima para baixo revela que quem o realizou foi Deus e não o homem. Só de Deus podem vir atos como este. Os homens são apenas instrumentos nas mãos de Deus para que possa realizar através deles seus propósitos. Não havia poder humano nenhum sobre Jesus. Unicamente o poder de Deus que fez da morte de seu Filho um sacrifício divino. Somente na morte de Jesus é que o véu se rasgou. E não foi um rasgo pequeno. Rasgou-se em dois, de alto a baixo, dando a todos os seres humanos uma abertura direta ao Santo dos Santos (cf. Hb 10,19-20). Cristo é a via de acesso ao Pai. Ele é “o caminho, a verdade e a vida” (cf. Jo 14,6). Tem a vida em si mesmo para que por Ele possam viver todos aqueles que o ouvem, ou seja, que obedeçam à sua voz, sua palavra (cf. Jo 5,25-26). A crucificação e morte de Cristo não dão ao cristão razão para desanimar da caminhada. Sua carne rasgada, como sua vinda, rasgou para nós o céu para nele podermos adentrar. Depois da morte há a ressurreição. E é por sua morte e ressurreição que Cristo nos reserva não simplesmente o perdão dos pecados, senão que por Ele nos é transmitida “toda a plenitude de Deus” (cf. Ef 3,19 e Cl 2,10). É por causa dele que quem crê deve encher-se de esperança e continuar perseverante na vida comum, na intimidade com Deus, no fazer o bem (cf. Hb 10,21-25) e ter a confiança de chegar ao trono da graça (Hb 4,16). Jesus dá um grande grito e expira. E o véu do templo se rasga. É através da infusão da natureza do Filho de Deus nos demais filhos, que estes são conduzidos à presença do Pai (cf. Hb 2,10). Não há outra maneira de elevação do homem à plenitude 15 Departamento de Teologia da vida senão por meio de Jesus (ver Ef 1,23). E assim, na morte de Jesus se dá o paradoxal acontecimento do véu que se rasga – se divide – para nos unir, por Ele, ao Pai e ao Espírito. O “Véu rasgado” supõe a revelação do que estava velado no judaísmo do Primeiro Testamento, o que estava oculto aos olhos do povo, à mente e coração de alguns. A morte de Jesus, marco em sua obra de redenção, reabre a todos a casa de Deus. Outra lição que tiramos do acontecimento do véu é que o Templo já não é suficiente para esconder nada, ou melhor, já não se pode ocultar da vista do povo o que lá acontecia. Não há espaço para camuflar, para esconder a corrupção, a limitação de uma instituição que se voltava mais à exploração do povo que à defesa de sua vida. Com o véu, a religião aparente abafava a corrupção reinante nos seus dirigentes. Até o último instante Jesus denuncia; mais ainda: desvela completamente e faz aparecer de forma clara a verdade escondida atrás das estruturas: A morte de Jesus inaugura outro templo, outro sacerdócio e outro culto superior ao existente. Para os cristãos, o templo dos judeus perdeu o sentido e a lei ficou submissa à leitura e interpretação feitas por Jesus, assim, esse rasgo que se faz na cortina do templo, decreta a falência deste tipo de culto e inaugura uma religião de comunidades e comunhão (At 2,42-46; 4,32-36). 35 O rasgar-se o véu do templo marca não apenas o rompimento de uma velha estrutura religiosa e a abertura e revelação a todos do que antes estava “oculto”, mas a vitória decisiva de Jesus contra as forças do mal. Se em Marcos podemos falar de um desenvolvimento messiânico, é na cruz que o Messias de Deus se revela por completo. A cruz e ressurreição de Jesus é o ápice apocalíptico, é a plenitude de toda a revelação. É o grande clarão para as testemunhas das atividades de Jesus ao longo de sua vida. Mas não somente: é o cumprimento “de toda a justiça”, justiça e todo o bem para todas as pessoas, para toda a criação. É a plenitude da missão daquele por quem se rasgou o céu. Da mesma forma que o céu se rompeu para trazer a Deus entre os homens, rompe-se o véu da morte para dar lugar ao aparecimento da plena vida. E é Jesus o protagonista destes acontecimentos. Podemos entrever a dimensão apocalíptica também neste escrito de São Jerônimo a respeito do texto (E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando...): “Tudo isto, que foi escrito, foi escrito para nós, pois antes de receber o batismo, temos os olhos fechados e não vemos as coisas celestes”. E ainda no acréscimo: “Nós mesmos, que nos encontramos aqui, vemos os céus abertos ou fechados segundo a diversidade de nossos méritos. A fé plena tem os céus abertos, mas a fé vacilante os tem fechados.36 O rasgo do véu vem libertar Israel do ritualismo da antiga aliança representada pelos objetos guardados no lugar santo e dar-nos acesso direto junto ao Pai (cf. Ef 2,18). É o próprio Jesus o novo Templo. Nele há o encontro entre Deus e o ser humano. Há um forte simbolismo em Mc 1,10 e 15,38; mas ao teor simbólico dos textos, une-se o racional, a afetividade; corpo-universo. Os elementos simbólicos são uma 35 MAZZAROLO, Isidoro . Evangelho de Marcos. Estar ou não estar com Jesus. Rio de janeiro, Mazzarolo editor, 2004.p 49. 36 SAN JERONIMO, Comentário al Evangelio de San Marcos, Biblioteca de patrística. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1995, , España, pp 34-35 16 Departamento de Teologia indicação da atuação divina na realidade terrestre e incluem o movimento de ir de encontro ao transcendente. Ainda assim, o mistério do Filho fica velado sob uma aparência humilde: a do Filho do Homem chamado a sofrer (Mc 8,31). Mesmo após sua ressurreição, Jesus não se manifestará ao mundo na plenitude de sua glória. No contexto de perseguição e sofrimento das comunidades marcanas, o apocalipse é uma forma de reavivar a esperança de seus membros e encorajá-los para que se mantenham fiéis, perseverantes na fé. Jesus vivia em época apocalíptica sem ser apocalíptico. Ele anunciava a Boa Nova em tempo de catástrofe, de desgraça. Hermenêutica Há uma conexão entre o acontecimento salvífico atestado no batismo e na cruz de Jesus com a história do mundo em que vivemos. Consideradas do ponto de vista teológico, como é a nossa fé é nossa teologia. Há no ser humano de hoje e de todos os tempos a necessidade de uma vida humana, de uma vida ética autêntica, de uma vida religiosa. Aceitar o apocalipse de Deus que “rasga os céus” comporta primeiramente uma visão de beleza de nosso olhar para Deus, um verdadeiro sentido de Deus, uma compreensão de que “Deus é” desde o começo, que está aqui e agora, mais dentro de cada pessoa que ela mesma. Há o convite de abrir o coração e pensar amorosamente em Deus. É importante partir não apenas de uma ideia, mas de um sentido vivido de Deus; não como todo poderoso, juiz, que considera tudo para ver o que está errado... A prioridade é que Deus é amor. Porque ele é assim, é que existe tudo para nós. Se “os céus se rasgam e rasga-se o véu do templo”, Deus deve ser nossa primeira preocupação em matéria religiosa. Deus sempre presente em cada um, sempre presente em si mesmo e no outro, como luz que ilumina a vida. Pode-se ter devoções na medida em que conduzam a Deus. “A grande fraqueza da Igreja é que não se dá a devida prioridade a Deus em tudo e não se tem esse profundo sentido de Deus como a beleza e que conduz na volta para Ele” (Cardeal Chuni, arcebispo de Paris nos anos 50. O sentido de Deus). Ver em Deus a beleza e a luz que é o centro de tudo e para onde convergem todas as perfeições. Diante de todas as dificuldades, Deus espontaneamente se volta para os homens e mulheres. É mister o ser humano entrar na teologia apocalíptica para sempre ver a Deus como beleza suprema, como a suma perfeição para a qual toda a perfeição converge. A verdade de que Deus é eterna glória deve ser proclamada. A glória divina da Trindade resplandece na Cruz. É a luz da fé dentro da noite. A grandeza de Deus é a glória revelada em seu Filho que se faz visível para nós da maneira mais humana que é viver amando e morrer de amor. Neste momento a palavra absoluta é a unidade: um só Deus, um só Cristo, um só homem, uma só Igreja, uma só fé. Este ponto é decisivo. Podemos avançar nele deixando de lado as objeções e superando as reservas de muitos tipos. Jesus Cristo é, portanto, a nossa esperança, a certeza da existência de Deus, do grande amor que tem pela humanidade. Por Ele, há uma esperança necessária e a fé na vida eterna, argumentada pela justiça. A nova vida, o retorno de Cristo, são necessários para restabelecer a justiça. Só com Deus podemos ter esperança. A justiça só pode vir de Deus que “rasga os céus”. E nossa fé nos diz que Ele faz justiça. A imagem do véu que se rasga deve ser esperança para nós. Não nos deve impor medo, pois Deus é graça. Chama-nos, sim, à 17 Departamento de Teologia responsabilidade, a abrir os nossos olhos para as necessidades dos outros, para o diálogo e a tolerância. Há o apelo a tornar-se próximo, não minimizando nossas pertenças coletivas, não perdendo nossa identidade, mas abrindo-nos cada vez mais às múltiplas possibilidades de encontro, de rompimento das distâncias e afastamentos cotidianos.37 Quando Deus Trindade, comunidade de amor, “rasga o céu” e vem ao nosso encontro, “rasgando” também “o véu” da centralidade religiosa na autoridade, na instituição, certamente nos faz um apelo: sair do nosso individualismo e buscar espaços de fraternidade, encontros dialogais, formar comunhão (koinonia), construir comunidades “onde possam se desenvolver relações realmente humanas e humanizadoras”.38 A grande filosofia de Hegel é mostrar que o espírito se manifesta na história. A beleza de Deus em si: Pai, Filho e Espírito Santo é ser um Deus amor, Deus da intimidade com a gente, que nos transforma. Amor que transforma a pessoa amada no Amado (São João da Cruz). O verbo “rasgar” é usado para desmistificar, não para banalizar. Porém as coisas não ficaram diferentes automaticamente. Jesus se envolve na comunidade humana para que esta se sinta valorizada em suas capacidades e perceba a importância de caminhar partilhando da presença de um Deus que é doação, amor e serviço. A abertura do céu mostra um peregrino que vem visitar a todos os povos. Jesus é a porta. Nada mais há de escondido. Para o evangelista João é o que ele chama de “verdade”. Em Marcos, significa que o amor de Deus foi rasgado (aberto plenamente) aos nossos olhos. Como o véu do templo de Herodes foi rasgado, rompeu-se também o véu de separação entre o lugar da glória de Deus e o homem pecador (cf. Lv 16, 2). Quem determinou que as relações da convivência humana se regulem pela ordem que Ele mesmo estabeleceu foi o próprio Deus criador, solícito de tudo. O anúncio de sua Boa Nova hoje é missão da comunidade. Conclusões A pesquisa ofereceu bases bibliográficas que permitiram atender às exigências do seu objeto de estudo: mostrar que não é sem sentido que Marcos abre e fecha o seu evangelho com a utilização do verbo grego σχίζω (rasgar), presente em 1,10 e 15,38. Esta é uma importante chave de leitura. Pontuou, ao mesmo tempo, a inclusão apocalíptica (ou escatológica) de Marcos, fundamentada no mesmo verbo acima citado (com uma evolução da pesquisa anterior que oferecia as duas citações e, sobretudo o verbo σχίζω (“rasgar”) como possibilidade de inclusão literária. Em Marcos, este rasgar é uma imagem (ícone) da revelação definitiva de Deus e para toda a humanidade. Esta é a certeza cristã. Com o estudo de várias fontes foi possível apontar algumas relações entre os dois textos: relações de ordem sintática, ou seja, ligação de elementos linguísticos iguais ou parecidos; relações de ordem semântica (são as mais evidentes, são as relações de conteúdo lexical e teológico) e relações de ordem pragmática (interligações entre as funções comunicativas dos dois textos). A comparação de termos buscando estas relações ajuda a compreender a atuante mensagem salvífica de Jesus a partir de Marcos. Nele, Deus manifesta uma palavra a ser ouvida e feita realidade em todos os séculos da história: não haja barreiras de separação entre as pessoas. Com a vida, morte e 37 Cf. THEOBALD, Christoph. Transmitir um Evangelho de liberdade. Tradução João Carlos Nogueira. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 138. 38 GARCÍA RUBIO, Alfonso; PORTELLA AMADO, Joel (orgs.). espiritualidade cristã em tempos de mudança. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. p. 94-95. 18 Departamento de Teologia ressurreição de Jesus, todos são atingidos pela graça que supera injustiças e cria fraternidade e comunhão. A pesquisa ressaltou a linguagem, cultura e teologia dos cristãos do mundo grego do primeiro século da EC. É encaminhada a partir de alguns meios didáticos para o ensino tanto do grego como da pedagogia da transmissão de valores humanos, como espiritualidade, tolerância e diálogo interreligioso. Ressalta ainda a importância de tomar os escritos apocalípticos como mensagem para a vida e não unicamente como enigmas difíceis de decifrar ou simplesmente palavras que nos servem de remédio imediato contra as vicissitudes de nossos dias. Aponta para um desafio à questão ética: solidariedade para com os outros, abertura para a história de vida pessoal e grupal. Apresenta o convite aos homens e mulheres de hoje serem apaixonados por esse mundo onde Deus habitou. Para esse mundo Ele “rasgou o céu e o véu”. O presente projeto de pesquisa é de relevância para a sociedade e o nosso momento atual, pois contribui e para uma melhor compreensão dos textos sagrados antigos, que estão na base dos valores éticos da sociedade ocidental e para o diálogo inter-religioso, fundamental para a construção de uma sociedade de paz. Referências 1 - BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002. 2- BROWN, Colin; LOTHAR, Coenen (orgs). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Tradução Gordon Chown. – 2. ed. v.1. São Paulo: Vida Nova, 2000. 3- CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 4 - COLAVECCHIO, L. Ronaldo. O Caminho do Filho de Deus. São Paulo: Paulinas, 2005. 5- COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010. 6- COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudo sobre o culto, o direito e instituições da Grécia e de Roma. 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