Durkheim, Émile, A divisão do trabalho social, Lisboa, Editorial Presença, 1977 (trad. de De la division du travail social, Paris, publ. orig. : 1893 ; novo prefácio : 1902). [p. 79] « A divisão do trabalho desempenharia um papel muito mais importante do que o que se lhe atribui vulgarmente. Ela não serviria somente para dotar as nossas sociedades de um luxo, talvez invejável, mas supérfluo ; seria uma condição da sua existência. É através dela, ou pelo menos sobretudo através dela, que seria assegurada a sua coesão ; é ela que determinaria os traços essenciais da sua constituição. (…) é preciso verificar a hipótese que acabamos de apresentar sobre o papel da divisão do trabalho. Mas como proceder a esta verificação ? (...) é preciso sobretudo determinar em que medida a solidariedade que ela produz contribui para a integração geral da sociedade. [p. 80] (…) Para responder a esta questão (…) é indispensável começar por classificar as diferentes espécies de solidariedade social. Mas a solidariedade é um fenómeno completamente moral que, por si próprio, não se presta à observação exacta nem sobretudo à medida. Para proceder, quer a esta classificação, quer a esta comparação, é preciso portanto substituir o facto interior, que nos escapa, pelo facto exterior, que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo. Este símbolo visível é o direito. (…) Com efeito, a vida social, por todo o lado onde ela existe de uma maneira durável, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a organizar-se, e o direito não é outra coisa senão esta mesma organização, naquilo que tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode estender-se num certo sentido sem que a vida jurídica para aí se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Podemos assim estar certos de encontrar reflectida no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social.» [Índice :] « Solidariedade mecânica ou por similitudes : (…) As normas que o direito penal sanciona exprimem portanto as similitudes sociais mais essenciais ; por consequência, corresponde à solidariedade social, a qual deriva das semelhanças, e varia com ela. (…) A solidariedade que deriva da divisão do trabalho ou orgânica : (…) Relações positivas ou de cooperação que derivam da divisão do trabalho regem-se por um sistema definido de normas jurídicas que se pode chamar de direito cooperativo. » Durkheim, Émile, A divisão do trabalho social, Lisboa, Editorial Presença, 1977 (trad. de De la division du travail social, Paris, publ. orig. : 1893 ; novo prefácio : 1902). [p. 8] « Insistimos por várias vezes, no decurso do livro, no estado de anomia da vida jurídica e moral em que actualmente se encontra a vida económica. Nesta esfera de funções, com efeito, a moral profissional não existe verdadeiramente senão no estado rudimentar. Existe uma moral profissional do advogado e do magistrado, do soldado e do professor, do médico e do padre, etc. Mas, se se tentasse fixar numa linguagem um pouco definida as ideias correntes sobre o que devem ser as relações do empregador com o empregado, do operário com o empregador, dos industriais em concorrência uns com os outros e com o público, que indecisas fórmulas se obteriam ! [p. 10] Mas aquilo que faz, em particular hoje, a gravidade excepcional deste estado, é o desenvolvimento, até aqui desconhecido, que as funções económicas tomaram desde há cerca de dois séculos. Enquanto que outrora apenas desempenhavam um papel secundário, elas estão agora na primeira linha. Estamos longe do tempo em que eram desdenhosamente abandonadas às classes inferiores. Perante elas, vê-se cada vez mais recuarem as funções militares, administrativas, religiosas. Apenas as funções científicas estão em condições de lhes disputar o lugar ; e ainda assim, a ciência actualmente não tem prestígio senão na medida em que pode servir à prática, isto é, em grande parte, às profissões económicas. É por isso que se pode dizer, das nossas sociedades, não sem alguma razão, que elas são ou tendem a ser essencialmente industriais. Uma forma de actividade que tomou um tal lugar no conjunto da vida social não pode, evidentemente permanecer a este ponto não regulamentada sem que daí resultem as perturbações mais profundas. [p. 12] Nem a sociedade política no seu conjunto, nem o Estado, podem evidentemente cumprir esta função ; a vida económica, porque é muito especial e se especializa cada dia mais, escapa às suas competências e à sua acção. A actividade de uma profissão não pode ser regulamentada eficazmente senão por um grupo bastante próximo desta mesma profissão para lhe conhecer bem o funcionamento, para lhe sentir todas as necessidades e poder seguir todas as suas variações. O único que responde a estas condições é aquele que todos os agentes de uma mesma indústria reunidos e organizados num mesmo corpo formariam. É o que se chama a corporação ou o grupo profissional. » Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade), Tübingen, 1ª edição 1921 (citado a partir da 5ª ed., Tübingen, Mohr, Siebeck, 1976). [p. 198] « Efectivamente, uma ordem económica de tipo moderno, sem dúvida, não se poderia realizar sem uma ordem jurídica com características muito especiais, as quais se podem concretizar, na prática, apenas no âmbito de uma ordem ‘estadual’. A economia contemporânea baseia-se em hipóteses [de negócios] adquiridas através de contratos. Existe algum interesse próprio de cada um na ‘lealdade nos contratos’, assim como interesses comuns dos possuidores na protecção recíproca da posse. E ainda hoje os usos e os costumes determinam com alguma força o indivíduo. Mas a influência destas forças sofreu uma extraordinária perda de significado como consequência do abalo, por um lado, das condições ordenadas pela tradição, e por outro lado, da crença no seu carácter sagrado. Os interesses das classes divergem como nunca. A rapidez das transacções exige um direito que funcione de maneira rápida e segura, isto é, com a garantia do mais forte poder de coerção. E, acima de tudo, a economia moderna, em virtude das suas particularidades, aniquilou as outras associações, que sustentavam o direito e as suas garantias. Isto foi a obra do desenvolvimento do mercado. O domínio universal de uma formação social assente no mercado exige (…) um funcionamento do direito calculável, na base de regras racionais. » (conclusão do capítulo I da Segunda Parte, « A economia e as ordens sociais ») [p. 513] « (…) em todos os casos, o destino inevitável, em consequência do desenvolvimento técnico e económico, será (…) um crescente desconhecimento, por parte dos leigos, de um direito cuja substância técnica vai aumentar constantemente, ou seja a profissionalização do direito, bem como a qualificação do direito actualmente em vigor como aparato técnico e racional, isto é, susceptível de ser modificado em qualquer altura em função de finalidades racionais, e cuja substância perdeu qualquer carácter sagrado. » (conclusão do capítulo VII da Segunda Parte, « Sociologia do direito ») Neumann, Franz (1937), “Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft” (A transformação da função do direito na sociedade burguesa), Zeitschrift für Sozialforschung, 1937 (cit. a partir da reedição em Demokratischer und autoritärer Staat, Francoforte, Fischer Wissenschaft, 1986. [p. 55] « A teoria e a prática do direito sofrem uma mudança determinante no período do capitalismo monopolístico, que começa na Alemanha com a República de Weimar. Para a compreensão das transformações do direito, deve ter-se em conta não apenas as evoluções estruturais económicas, que já foram descritas muitas vezes. O facto político determinante na República de Weimar é o novo significado do movimento operário depois de 1918. A sociedade burguesa já não podia ignorar a existência de uma oposição de classes e tinha, (…) considerando este facto, que construir de alguma forma uma constituição. A solução técnica aqui foi o contrato, única maneira de se alcançar um compromisso político. (…) [p. 57] « Um sistema contratual apenas pode funcionar se os parceiros contratuais subsistem (…). O partido democrático, no entanto, desapareceu quase completamente na evolução política ulterior. Novos partidos, antes de mais o partido nacionalsocialista alemão, surgiram e dominaram numericamente os partidos tradicionais. A crise impediu os parceiros contratuais capitalistas em cumprir as suas obrigações contratuais, em particular a manutenção das instituições sociais. (…) [p. 58] Às transformações das estruturas económicas e políticas correspondeu uma viragem radical na teoria e na prática do direito. (…) [p. 62] Um direito natural oculto tinha sido, na realidade, aplicado sem escrúpulos durante todo este período. O tempo de 1918 a 1932 caracterizou-se por uma aceitação quase geral da doutrina do direito livre (Freirechtsschule), pela destruição da racionalidade e da calculabilidade do direito, por restrições ao sistema contratual, e por uma vitória das cláusulas gerais sobre as verdadeiras regras jurídicas. (…) [p. 67] No Estado autoritário, o significado das cláusulas gerais torna-se mais claro ainda. (…) Possibilitam uma aplicação das concepções políticas dominantes também nos casos onde são contraditas pelo direito positivo. Com efeito, na aplicação das cláusulas gerais, o juiz não deve, hoje, recorrer a uma ‘apreciação subjectiva’ ; ‘na aplicação das cláusulas gerais pelo juiz, pelo advogado (…) ou pelo docente de direito, são os princípios do Nacional-Socialismo que intervêm, imediatamente e exclusivamente’ (Carl Schmitt, 1933). (…) Existe unanimidade na literatura nacional-socialista neste ponto : a lei não é mais que a ordem do Führer, pois o direito ‘prerevolucionário’ apenas tem validade por força da vontade do Führer. » Parsons, Talcott (1954), “A Sociologist Looks at the Legal Profession”. [p. 381] “Esta exposição recordou factos bem conhecidos de todos os juristas […]. Referi-os, no entanto, para que fique claro que a profissão jurídica tem um lugar na nossa estrutura social, e que cumpre funções, no âmbito desta, das quais o jurista médio tem apenas uma consciência parcial. Este jurista faz o seu trabalho, no tribunal, representando o seu cliente, etc. de acordo com as instruções deste e sente, justificadamente, que este trabalho também é importante para a sociedade. O ponto essencial a tratar em conclusão é mostrar de que maneira […] estas funções são úteis para a sociedade. Desde que se tenha o cuidado de qualificar adequadamente traços específicos do seu papel e da sua situação, a profissão jurídica partilha características com outras profissões. […] O mais importante é que um membro de uma profissão se encontra entre dois aspectos da nossa estrutura social; no caso do direito entre a autoridade pública e as suas normas, por um lado, e o indivíduo privado ou o grupo cujas condutas ou intenções poderão ou não estar em conformidade ou não com a lei. […] [p. 382] As profissões, neste sentido, podem ser consideradas, sociologicamente, como o que chamamos ‘mecanismos de controlo social’. […] Pode presumir-se que a profissão jurídica faz isto, mas também faz duas outras coisas; primeiro prevenir o desvio, aconselhando o cliente de tal forma que este se mantenha mais em conformidade com as leis, eventualmente arrefecendo os seus ânimos; e, em segundo lugar, nos casos graves, representando o cliente no processo que conduzirá a uma decisão socialmente sancionada sobre o estatuto deste, decisão que determinará se este é inocente ou autor de um crime. [p. 384] […] A sua função em relação aos clientes não é, de modo algum, apenas ‘dar-lhes o que quiser’, mas em muitos casos de resistir as suas pressões e levá-los a tomar consciência de aspectos mais graves da sua situação, não apenas com referência ao que poderíam, mesmo com um apoio jurídico muito hábil, sofrer como consequências, mas também com referência ao que a lei lhes permitirá fazer. Neste sentido, o advogado representa uma espécie de amortecedor entre os desejos ilegítimos dos seus clientes e o interesse da sociedade. Neste caso, ‘representa’ a lei, mais do que o seu cliente. [p. 385] […] A conclusão destas considerações de senso comum é que o sociólogo deve considerar as actividades das profissões jurídicas como um dos mecanismos muito importantes pelos quais se mantém um relativo equilíbrio numa sociedade dinâmica e bastante instável.” Goffman, Erving (1961), Asylums. Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. [Terceira parte: Conclusões] “I. Ideologias oficiais e condutas efectivas Todos os estabelecimentos desenvolvem uma concepção oficial do que os seus membros lhes devem. Mesmo sem atribuirlhes com precisão uma tarefa específica como seria o caso para um guarda nouturno – a organização requer uma certa atenção, um certo conhecimento da situação do momento, uma certa disponibilidade para enfrentar acontecimentos inesperados. [...] Estas exigências, abrangentes ou limitadas, revelam - implícitamente mas também de maneira muito desenvolvida e precisa – a concepção que os responsáveis do estabelecimento têm das características do indivíduo para quem legislam. Mas em todos os estabelecimentos sociais existem reacções de defesa face a estas exigências: vemos como os membros recusam o esquema oficial do que deveria ser a sua contribução para a instituição e do que eles podem esperar por parte desta, e, mais profundamente, como recusam a concepção do mundo e deles próprios com a qual seriam supostos identificar-se. Onde se estava a contar com o entusiasmo, manifesta-se apatia; em lugar de fidelidade e assiduidade, de boa saúde, de uma actividade intensa, encontra-se indiferença, absentismo, doenças mais ou menos imaginárias e uma vasta gama de inactividades. Uma quantidade de pequenas histórias atraiçoam, cada uma à sua maneira, um desejo de liberdade: cada vez que se forma uma sociedade, surge uma vida clandestina.”