Estratificação do risco e controlo da pressão arterial. Carlos Perdigão

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risco e controlo
da pressão arterial
Estratificação do
A perspectiva tradicional da abordagem dos factores
de risco era a do tratamento isolado de cada um dos
factores de risco presentes em cada indivíduo. Assim, tratavam-se os valores elevados da pressão arterial, do colesterol ou da glicemia, sem atender ao contexto clínico
em que eles se inseriam.
O conceito de risco cardiovascular global veio modificar esta prática, valorizando o conjunto de factores de
risco em presença (idade, sexo, consumo de tabaco, hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes), no entendimento
de que a doença cardiovascular se deve à inter-relação
destes diversos factores de risco.
Surgem, assim, as tabelas de avaliação do risco cardiovascular, em que se entra em linha de conta com um
conjunto de factores de risco, com o objectivo de avaliar o
grau de risco de cada indivíduo. A primeira tabela a ser
largamente aplicada na prática clínica foi a de Framingham, mas hoje as mais utilizadas na Europa são as
tabelas do SCORE, propostas pela Sociedade Europeia de
Cardiologia.
O SCORE entra em linha de conta com a idade, o sexo, o
consumo de tabaco e os valores da pressão arterial sistólica
e do colesterol total. Atribui, assim, o grau de risco de um
indivíduo ter uma doença cardiovascular fatal a 10 anos.
Este conceito trouxe uma nova abordagem da
hipertensão arterial, expressa nas últimas recomendações
da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade
Europeia de Cardiologia, que propõem o início do
tratamento anti-hipertensivo de acordo com o grau de
risco cardiovascular e o nível da pressão arterial. Podemos
ver na Figura 1 que, por exemplo, para uma pressão
arterial inicial de grau I (sistólica entre 140-159 mmHg ou
diastólica entre 90-99mmHg) o tratamento farmacológico
é proposto logo de início, desde que a pressão arterial não
esteja controlada depois de algumas semanas de alterações do estilo de vida e que estejam presentes três ou
mais factores de risco. De notar que mais de 80% dos
doentes hipertensos apresentam outros factores de risco.
Carlos Perdigão
Professor Agregado de Cardiologia da Faculdade de
Medicina de Lisboa. Fellow da Sociedade Europeia de
Cardiologia. Membro de diversas sociedades científicas
da área da sua especialidade. Vice-Presidente da
Sociedade Portuguesa de Cardiologia no biénio 20052007. Coordenador do Grupo de Estudo de Risco
Cardiovascular. Editor da Revista Factores de Risco.
Factores que influenciam a abordagem clínica
As Recomendações para a Prevenção Cardiovascular
de 2003 da Sociedade Europeia de Cardiologia,
consideravam de alto risco um SCORE igual ou superior a
5%. No entanto, as Recomendações de 2007, passaram a
designar “de risco aumentado” os indivíduos neste nível
de risco. Do ponto de vista prático, a classificação em alto,
médio e baixo risco, se bem que arbitrária, poderá ter
interesse na percepção, quer pelo médico quer pelo
doente, da situação em que este se encontra e da
possibilidade de mudar de grau de risco. Por isso, aqui
apresentamos uma estratificação do risco em três fases,
que se apoia nesta classificação do grau de risco. Na
verdade, o mesmo se pode obter valorizando apenas o
grau de risco, não o classificando em alto, médio ou baixo,
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Recebido para publicação: Fevereiro de 2011
Aceite para publicação: Fevereiro de 2011
Revista Factores de Risco, Nº21 ABR-JUN 2011 Pág. 76-81
Figura 1
Início do tratamento da hipertensão arterial, em função do nível da pressão arterial e do grau de risco do doente
Fase 2 - Indivíduos sem doença aterosclerótica
clínica ou equivalente (aplicar as tabelas do SCORE)
1 - risco baixo (probabilidade menor que 5% de morte
por doença cardiovascular no período de 10 anos)
2 - risco médio (probabilidade entre 5% e 9% de
morte por doença cardiovascular no período de 10 anos)
3 - risco alto (probabilidade igual ou maior do que
10% de morte por doença cardiovascular no período de
10 anos)
Na estratificação do risco podemos considerar três
fases, que constituem um a maneira prática de fazer a
avaliação de risco num dado indivíduo:
Fase 1 - Identificar doentes com alto risco de
eventos coronários
1 - Manifestações clínicas da doença coronária,
revascularizações, isquemia silenciosa
2 - Acidente vascular cerebral ou acidente isquémico
transitório
3 - Aneurisma de aorta abdominal, doença arterial
periférica ou claudicação intermitente
4 - Insuficiência cardíaca congestiva (etiologia
isquémica)
5 - Estenose carotídea maior ou igual a 50%, estenose
de artéria renal
6 – Diabetes, doença renal crónica
Fase 3 - Identificar agravantes de risco que levam
o indivíduo à categoria imediatamente superior
1 - História Familiar de DC prematura (< 55 anos ou
feminino < 65 anos)
2 - Critérios de síndrome metabólica
3 - Microalbuminúria (30-300 mg/min)
4 - Hipertrofia Ventricular Esquerda
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Estratificação do risco e controlo da pressão arterial
«Do ponto de vista prático, a classificação em alto, médio e baixo
risco, se bem que arbitrária, poderá ter interesse na percepção, quer
pelo médico quer pelo doente, da situação em que este se encontra
e da possibilidade de mudar de grau de risco.»
5 - Insuficiência renal crónica (Taxa de filtração glomerular estimada < 60 ml/min)
6 - Proteína-C-Reativa de alta sensibilidade >3 mg//L
7 - Evidência de doença aterosclerótica subclínica (estenose/espessamento de carótida (IMT) > 1mm; score de
cálcio coronário > 100 ou > percentil 75 para idade ou
sexo; índice tornozelo braço-ITB < 0,9
Quando o risco avaliado pelo SCORE for superior a 5%
e especialmente se se aproxima dos 10%, ou se existe
lesão de órgão-alvo, está indicado iniciar o tratamento farmacológico. No entanto, no idoso, o tratamento farmacológico não está recomendado para um grau de risco inferior a 10%, excepto para indicações específicas.
Até onde baixar a pressão arterial?
As Recomendações para a Hipertensão Arterial da
SEH/SEC, de 2007, com o Reappraisal publicado em 2009,
propõe os seguintes alvos a atingir no tratamento do
doente hipertenso:
Na Figura 2, adaptada das Recomendações da Sociedade
Europeia de Hipertensão e da Sociedade Europeia de Cardiologia, apresentamos as lesões subclínicas de órgão que poderão influenciar a abordagem clínica do doente hipertenso.
Figura 2
Variáveis clínicas para estratificar o risco cardiovascular global. Lesão subclínica de órgão
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Revista Factores de Risco, Nº21 ABR-JUN 2011 Pág. 76-81
<140/90mmHg na HTA não complicada
<130/80mmHg na HTA associada a diabetes, doença
renal crónica ou doença cardiovascular
Os ensaios clínicos e os estudos de vigilância têm
mostrado de forma consistente que a pressão arterial
sistólica é muito mais difícil de controlar do que a pressão
arterial diastólica (próximo dos 100% para a diastólica e
inferior a 50% para a sistólica).
Na verdade, o risco cardiovascular sobe de forma
contínua a partir de uma pressão arterial sistólica de
115mmHg. Mas os benefícios da redução da pressão
arterial no doente hipertenso verificam-se para reduções
até aos 140mmHg de pressão arterial sistólica, limiar esse
que desce para os 130mmHg nos diabéticos e nos doentes
com elevado risco cardiovascular.
Não existem estudos clínicos prospectivos e
aleatorizados que definam qual o valor óptimo da pressão
arterial sistólica em doentes hipertensos não complicados,
pelo que a actual prática clínica é empírica. A redução da
pressão arterial deve pois ser enquadrada na redução
global do risco, de acordo com a avaliação de risco feita a
partir das tabelas do SCORE.
«Quando o risco avaliado
pelo SCORE for superior a 5%
e especialmente se se aproxima
dos 10%, ou se existe lesão
de órgão-alvo, está indicado
iniciar o tratamento
farmacológico.»
Dado que a idade, a redução da pressão arterial
diastólica e o risco cardiovascular estão intimamente associados após os 55 anos e que a partir desta idade a pressão arterial sistólica tende a subir e a pressão arterial diastólica tende a diminuir, a pressão de pulso (pressão arterial sistólica – pressão arterial diastólica), um factor de risco cardiovascular independente, tende a aumentar progressivamente.
Isto foi comprovado no Framingham Heart Study, em
que a pressão arterial diastólica elevada foi factor de risco
nos indivíduos com menos de 50 anos, enquanto a
pressão arterial sistólica elevada era factor de risco mais
importante nos idosos.
A curva em J da pressão arterial diastólica para o
enfarte do miocárdio verificou-se em estudos como o TNT,
o ONTARGET, o HOT, o ACTION e o PROVE-IT, especialmente
em indivíduos com doença coronária.
Pelo que, com os dados actualmente disponíveis, não
podemos afirmar que durante o tratamento antihipertensivo, após atingirmos os valores de 140-90mmHg,
uma maior redução melhore o prognóstico cardiovascular.
Ainda a curva em J na pressão arterial
Numa análise de estudos em doentes hipertensos,
Farnett encontrou uma curva em J entre a pressão arterial
diastólica e os eventos cardíacos, mas não em relação aos
acidentes vasculares cerebrais. Também não verificou uma
curva em J entre a pressão arterial sistólica e os eventos
cardíacos. Messerli, numa análise do Cardiovascular Health
Study, verificou uma relação em J entre a pressão arterial
diastólica e o enfarte do miocárdio, aumentando a incidência
deste para uma pressão diastólica inferior a 70 mmHg.
O problema vem de que, reduzindo a pressão arterial
sistólica, se reduz os acidentes vasculares cerebrais, mas a
concomitante descida mais acentuada da pressão arterial
diastólica pode aumentar os eventos cardíacos. Sabe-se
que o chamado fluxo zero, onde a perfusão das artérias
coronárias cessa, anda por volta dos 40-50mmHg de
pressão arterial diastólica.
« Em doentes com mais de 50 anos, Williams propõe
que o diagnóstico se deve centrar exclusivamente na pressão
sistólica, em vez de se considerar a pressão sistólica
e a diastólica, como até aqui.»
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Estratificação do risco e controlo da pressão arterial
Figura 3
Evolução da pré-hipertensão, desde a influência dos estilos de vida à síndrome metabólica
Hipertensão sistólica versus diastólica.
O que importa tratar?
Verifica-se que cerca de 40% dos hipertensos no grupo
etário inferior a 40 anos, têm hipertensão diastólica
isolada, enquanto que, entre os 40 e os 50 anos, 1/3 dos
hipertensos têm hipertensão diastólica isolada. Em
doentes com mais de 50 anos, Williams propõe que o
diagnóstico se deve centrar exclusivamente na pressão
sistólica, em vez de se considerar a pressão sistólica e a
diastólica, como até aqui. Mesmo nos hipertensos com
menos de 50 anos, embora a pressão diastólica deva ser
sempre controlada, o controlo da pressão sistólica deve ser
o objectivo principal.
e da diabetes, no que hoje denominamos síndrome
metabólica ou, talvez melhor, síndrome cardiometabólica.
O emagrecimento, a restrição de sal, o consumo de
alimentos ricos em potássio, a restrição de bebidas
alcoólicas e a prática regular de actividade física têm um
papel importante na prevenção da hipertensão arterial.
«O emagrecimento,
a restrição de sal, o consumo
Tratar a pré-hipertensão?
O JNC-VII considera como pré-hipertensão a pressão
arterial sistólica entre 120 e 139mmHg e a pressão arterial
diastólica entre 80 e 89mmHg, a partir de duas ou mais
medições adequadamente realizadas com o indivíduo
sentado, em duas ou mais consultas médicas. Considerando esta definição, 31% dos americanos são pré-hipertensos.
Os estilos de vida parecem condicionar a evolução da
pré-hipertensão (Figura 3). Assim, a diminuição da
actividade física e o aumento da ingestão calórica levou
ao excesso de peso e à obesidade, estimulando a insulinoresistência e o hiperinsulinismo. Estas situações levam ao
aparecimento da pré-hipertensão, da HTA, da dislipidemia
de alimentos ricos em potássio,
a restrição de bebidas alcoólicas
e a prática regular de actividade
física têm um papel importante
na prevenção da hipertensão
arterial.»
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Conclusão
Bibliografia recomendada
1. Mancia G, De Backer G, Dominiczak A et al. 2007 Guidelines for
the Management of Arterial Hypertension: The Task Force for the
Management of Arterial Hypertension of the European Society of
Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology
(ESC). J Hypertens 2007; 25:1105–1187.
As Recomendações dão hoje ao médico uma ferramenta de consulta fácil e aplicação compreensível para a
abordagem do doente hipertenso na prática clínica. Mas
recordamos aqui o trabalho de Wexler, da Universidade de
Ohio, EUA, que avaliou junto dos médicos de cuidados primários: 1 – o conhecimento das recomendações para a
hipertensão arterial; 2 – as dificuldades para o seu controlo (médico versus doente); 3 – e a auto avaliação da sua
abordagem terapêutica da hipertensão. Verificou que:
1 – os médicos conhecem as recomendações; 2 – acham
que actuam bem, atribuindo essencialmente à má aderência do doente a falta de eficácia no controlo da pressão
arterial; 3 – no entanto, metade dos inquiridos não tomaram a iniciativa de intensificar o tratamento da hipertensão, quando a pressão arterial era superior às preconizadas nas recomendações, para qualquer situação de risco
(hipertensão essencial, doença cardíaca, diabetes ou
doença renal). Temos, pois, que insistir no cumprimento
dos objectivos que as Recomendações propõem.
2. Mancia G, Laurent S, Agabiti-Rosei et al. Reappraisal of
European guidelines on hypertension management: a European
Society of Hypertension Task Force document. Journal of
Hypertension 2009, 27: 2121–2158.
3. Graham I, Atar D, Borch-Johnsen K, Boysen G, Burell G, Cifkova
R, et al. European guidelines on cardiovascular disease
prevention in clinical practice: executive summary. Fourth Joint
Task Force of the European Society of Cardiology and other
societies on cardiovascular disease prevention in clinical practice
(constituted by representatives of nine societies and by invited
experts). Eur J Cardiovasc Prev Rehabil 2007; 14 (Suppl 2):E1–E40.
4. Abreu-Lima C. Avaliação do risco cardiovascular no indivíduo.
Revista Factores de Risco 2007; nº4: 14-24.
5. Emberson J, Whincup P, Morris P, Walker M, Ebrahim S.
Evaluating the impact of population and high-risk strategies for
the primary prevention of cardiovascular disease. Eur Heart J
2004; 25:484:91.
Carlos Perdigão
6. Arguedas JA, Perez MI, Wright JM. Treatment blood pressure
targets for hypertension. Cochrane Database Syst Rev 2009;
3:CD004349.
7. The ACCORD study group. Effects of intensive blood pressure
control in type 2 diabetes mellitus. New Engl J Med 2010; DOI:
10.1056/NEJMoa1001286.
8. Rui Póvoa R, Souza D.Ainda o conceito da curva-J entre a
pressão arterial e a doença arterial coronária. Revista Factores de
Risco 2010; nº 17(Abr-Jun): 72-75.
9. Messerli FH, Gurusher GS. The J-Curve between blood pressure
and coronary artery disease or essential hypertension”- Exacty
how essential? J Am Coll Cardiol. 2009, 54:1827-1834
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