risco e controlo da pressão arterial Estratificação do A perspectiva tradicional da abordagem dos factores de risco era a do tratamento isolado de cada um dos factores de risco presentes em cada indivíduo. Assim, tratavam-se os valores elevados da pressão arterial, do colesterol ou da glicemia, sem atender ao contexto clínico em que eles se inseriam. O conceito de risco cardiovascular global veio modificar esta prática, valorizando o conjunto de factores de risco em presença (idade, sexo, consumo de tabaco, hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes), no entendimento de que a doença cardiovascular se deve à inter-relação destes diversos factores de risco. Surgem, assim, as tabelas de avaliação do risco cardiovascular, em que se entra em linha de conta com um conjunto de factores de risco, com o objectivo de avaliar o grau de risco de cada indivíduo. A primeira tabela a ser largamente aplicada na prática clínica foi a de Framingham, mas hoje as mais utilizadas na Europa são as tabelas do SCORE, propostas pela Sociedade Europeia de Cardiologia. O SCORE entra em linha de conta com a idade, o sexo, o consumo de tabaco e os valores da pressão arterial sistólica e do colesterol total. Atribui, assim, o grau de risco de um indivíduo ter uma doença cardiovascular fatal a 10 anos. Este conceito trouxe uma nova abordagem da hipertensão arterial, expressa nas últimas recomendações da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade Europeia de Cardiologia, que propõem o início do tratamento anti-hipertensivo de acordo com o grau de risco cardiovascular e o nível da pressão arterial. Podemos ver na Figura 1 que, por exemplo, para uma pressão arterial inicial de grau I (sistólica entre 140-159 mmHg ou diastólica entre 90-99mmHg) o tratamento farmacológico é proposto logo de início, desde que a pressão arterial não esteja controlada depois de algumas semanas de alterações do estilo de vida e que estejam presentes três ou mais factores de risco. De notar que mais de 80% dos doentes hipertensos apresentam outros factores de risco. Carlos Perdigão Professor Agregado de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia. Membro de diversas sociedades científicas da área da sua especialidade. Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia no biénio 20052007. Coordenador do Grupo de Estudo de Risco Cardiovascular. Editor da Revista Factores de Risco. Factores que influenciam a abordagem clínica As Recomendações para a Prevenção Cardiovascular de 2003 da Sociedade Europeia de Cardiologia, consideravam de alto risco um SCORE igual ou superior a 5%. No entanto, as Recomendações de 2007, passaram a designar “de risco aumentado” os indivíduos neste nível de risco. Do ponto de vista prático, a classificação em alto, médio e baixo risco, se bem que arbitrária, poderá ter interesse na percepção, quer pelo médico quer pelo doente, da situação em que este se encontra e da possibilidade de mudar de grau de risco. Por isso, aqui apresentamos uma estratificação do risco em três fases, que se apoia nesta classificação do grau de risco. Na verdade, o mesmo se pode obter valorizando apenas o grau de risco, não o classificando em alto, médio ou baixo, 76 Recebido para publicação: Fevereiro de 2011 Aceite para publicação: Fevereiro de 2011 Revista Factores de Risco, Nº21 ABR-JUN 2011 Pág. 76-81 Figura 1 Início do tratamento da hipertensão arterial, em função do nível da pressão arterial e do grau de risco do doente Fase 2 - Indivíduos sem doença aterosclerótica clínica ou equivalente (aplicar as tabelas do SCORE) 1 - risco baixo (probabilidade menor que 5% de morte por doença cardiovascular no período de 10 anos) 2 - risco médio (probabilidade entre 5% e 9% de morte por doença cardiovascular no período de 10 anos) 3 - risco alto (probabilidade igual ou maior do que 10% de morte por doença cardiovascular no período de 10 anos) Na estratificação do risco podemos considerar três fases, que constituem um a maneira prática de fazer a avaliação de risco num dado indivíduo: Fase 1 - Identificar doentes com alto risco de eventos coronários 1 - Manifestações clínicas da doença coronária, revascularizações, isquemia silenciosa 2 - Acidente vascular cerebral ou acidente isquémico transitório 3 - Aneurisma de aorta abdominal, doença arterial periférica ou claudicação intermitente 4 - Insuficiência cardíaca congestiva (etiologia isquémica) 5 - Estenose carotídea maior ou igual a 50%, estenose de artéria renal 6 – Diabetes, doença renal crónica Fase 3 - Identificar agravantes de risco que levam o indivíduo à categoria imediatamente superior 1 - História Familiar de DC prematura (< 55 anos ou feminino < 65 anos) 2 - Critérios de síndrome metabólica 3 - Microalbuminúria (30-300 mg/min) 4 - Hipertrofia Ventricular Esquerda 77 Estratificação do risco e controlo da pressão arterial «Do ponto de vista prático, a classificação em alto, médio e baixo risco, se bem que arbitrária, poderá ter interesse na percepção, quer pelo médico quer pelo doente, da situação em que este se encontra e da possibilidade de mudar de grau de risco.» 5 - Insuficiência renal crónica (Taxa de filtração glomerular estimada < 60 ml/min) 6 - Proteína-C-Reativa de alta sensibilidade >3 mg//L 7 - Evidência de doença aterosclerótica subclínica (estenose/espessamento de carótida (IMT) > 1mm; score de cálcio coronário > 100 ou > percentil 75 para idade ou sexo; índice tornozelo braço-ITB < 0,9 Quando o risco avaliado pelo SCORE for superior a 5% e especialmente se se aproxima dos 10%, ou se existe lesão de órgão-alvo, está indicado iniciar o tratamento farmacológico. No entanto, no idoso, o tratamento farmacológico não está recomendado para um grau de risco inferior a 10%, excepto para indicações específicas. Até onde baixar a pressão arterial? As Recomendações para a Hipertensão Arterial da SEH/SEC, de 2007, com o Reappraisal publicado em 2009, propõe os seguintes alvos a atingir no tratamento do doente hipertenso: Na Figura 2, adaptada das Recomendações da Sociedade Europeia de Hipertensão e da Sociedade Europeia de Cardiologia, apresentamos as lesões subclínicas de órgão que poderão influenciar a abordagem clínica do doente hipertenso. Figura 2 Variáveis clínicas para estratificar o risco cardiovascular global. Lesão subclínica de órgão 78 Revista Factores de Risco, Nº21 ABR-JUN 2011 Pág. 76-81 <140/90mmHg na HTA não complicada <130/80mmHg na HTA associada a diabetes, doença renal crónica ou doença cardiovascular Os ensaios clínicos e os estudos de vigilância têm mostrado de forma consistente que a pressão arterial sistólica é muito mais difícil de controlar do que a pressão arterial diastólica (próximo dos 100% para a diastólica e inferior a 50% para a sistólica). Na verdade, o risco cardiovascular sobe de forma contínua a partir de uma pressão arterial sistólica de 115mmHg. Mas os benefícios da redução da pressão arterial no doente hipertenso verificam-se para reduções até aos 140mmHg de pressão arterial sistólica, limiar esse que desce para os 130mmHg nos diabéticos e nos doentes com elevado risco cardiovascular. Não existem estudos clínicos prospectivos e aleatorizados que definam qual o valor óptimo da pressão arterial sistólica em doentes hipertensos não complicados, pelo que a actual prática clínica é empírica. A redução da pressão arterial deve pois ser enquadrada na redução global do risco, de acordo com a avaliação de risco feita a partir das tabelas do SCORE. «Quando o risco avaliado pelo SCORE for superior a 5% e especialmente se se aproxima dos 10%, ou se existe lesão de órgão-alvo, está indicado iniciar o tratamento farmacológico.» Dado que a idade, a redução da pressão arterial diastólica e o risco cardiovascular estão intimamente associados após os 55 anos e que a partir desta idade a pressão arterial sistólica tende a subir e a pressão arterial diastólica tende a diminuir, a pressão de pulso (pressão arterial sistólica – pressão arterial diastólica), um factor de risco cardiovascular independente, tende a aumentar progressivamente. Isto foi comprovado no Framingham Heart Study, em que a pressão arterial diastólica elevada foi factor de risco nos indivíduos com menos de 50 anos, enquanto a pressão arterial sistólica elevada era factor de risco mais importante nos idosos. A curva em J da pressão arterial diastólica para o enfarte do miocárdio verificou-se em estudos como o TNT, o ONTARGET, o HOT, o ACTION e o PROVE-IT, especialmente em indivíduos com doença coronária. Pelo que, com os dados actualmente disponíveis, não podemos afirmar que durante o tratamento antihipertensivo, após atingirmos os valores de 140-90mmHg, uma maior redução melhore o prognóstico cardiovascular. Ainda a curva em J na pressão arterial Numa análise de estudos em doentes hipertensos, Farnett encontrou uma curva em J entre a pressão arterial diastólica e os eventos cardíacos, mas não em relação aos acidentes vasculares cerebrais. Também não verificou uma curva em J entre a pressão arterial sistólica e os eventos cardíacos. Messerli, numa análise do Cardiovascular Health Study, verificou uma relação em J entre a pressão arterial diastólica e o enfarte do miocárdio, aumentando a incidência deste para uma pressão diastólica inferior a 70 mmHg. O problema vem de que, reduzindo a pressão arterial sistólica, se reduz os acidentes vasculares cerebrais, mas a concomitante descida mais acentuada da pressão arterial diastólica pode aumentar os eventos cardíacos. Sabe-se que o chamado fluxo zero, onde a perfusão das artérias coronárias cessa, anda por volta dos 40-50mmHg de pressão arterial diastólica. « Em doentes com mais de 50 anos, Williams propõe que o diagnóstico se deve centrar exclusivamente na pressão sistólica, em vez de se considerar a pressão sistólica e a diastólica, como até aqui.» 79 Estratificação do risco e controlo da pressão arterial Figura 3 Evolução da pré-hipertensão, desde a influência dos estilos de vida à síndrome metabólica Hipertensão sistólica versus diastólica. O que importa tratar? Verifica-se que cerca de 40% dos hipertensos no grupo etário inferior a 40 anos, têm hipertensão diastólica isolada, enquanto que, entre os 40 e os 50 anos, 1/3 dos hipertensos têm hipertensão diastólica isolada. Em doentes com mais de 50 anos, Williams propõe que o diagnóstico se deve centrar exclusivamente na pressão sistólica, em vez de se considerar a pressão sistólica e a diastólica, como até aqui. Mesmo nos hipertensos com menos de 50 anos, embora a pressão diastólica deva ser sempre controlada, o controlo da pressão sistólica deve ser o objectivo principal. e da diabetes, no que hoje denominamos síndrome metabólica ou, talvez melhor, síndrome cardiometabólica. O emagrecimento, a restrição de sal, o consumo de alimentos ricos em potássio, a restrição de bebidas alcoólicas e a prática regular de actividade física têm um papel importante na prevenção da hipertensão arterial. «O emagrecimento, a restrição de sal, o consumo Tratar a pré-hipertensão? O JNC-VII considera como pré-hipertensão a pressão arterial sistólica entre 120 e 139mmHg e a pressão arterial diastólica entre 80 e 89mmHg, a partir de duas ou mais medições adequadamente realizadas com o indivíduo sentado, em duas ou mais consultas médicas. Considerando esta definição, 31% dos americanos são pré-hipertensos. Os estilos de vida parecem condicionar a evolução da pré-hipertensão (Figura 3). Assim, a diminuição da actividade física e o aumento da ingestão calórica levou ao excesso de peso e à obesidade, estimulando a insulinoresistência e o hiperinsulinismo. Estas situações levam ao aparecimento da pré-hipertensão, da HTA, da dislipidemia de alimentos ricos em potássio, a restrição de bebidas alcoólicas e a prática regular de actividade física têm um papel importante na prevenção da hipertensão arterial.» 80 Revista Factores de Risco, Nº21 ABR-JUN 2011 Pág. 76-81 Conclusão Bibliografia recomendada 1. Mancia G, De Backer G, Dominiczak A et al. 2007 Guidelines for the Management of Arterial Hypertension: The Task Force for the Management of Arterial Hypertension of the European Society of Hypertension (ESH) and of the European Society of Cardiology (ESC). J Hypertens 2007; 25:1105–1187. As Recomendações dão hoje ao médico uma ferramenta de consulta fácil e aplicação compreensível para a abordagem do doente hipertenso na prática clínica. Mas recordamos aqui o trabalho de Wexler, da Universidade de Ohio, EUA, que avaliou junto dos médicos de cuidados primários: 1 – o conhecimento das recomendações para a hipertensão arterial; 2 – as dificuldades para o seu controlo (médico versus doente); 3 – e a auto avaliação da sua abordagem terapêutica da hipertensão. Verificou que: 1 – os médicos conhecem as recomendações; 2 – acham que actuam bem, atribuindo essencialmente à má aderência do doente a falta de eficácia no controlo da pressão arterial; 3 – no entanto, metade dos inquiridos não tomaram a iniciativa de intensificar o tratamento da hipertensão, quando a pressão arterial era superior às preconizadas nas recomendações, para qualquer situação de risco (hipertensão essencial, doença cardíaca, diabetes ou doença renal). Temos, pois, que insistir no cumprimento dos objectivos que as Recomendações propõem. 2. Mancia G, Laurent S, Agabiti-Rosei et al. Reappraisal of European guidelines on hypertension management: a European Society of Hypertension Task Force document. Journal of Hypertension 2009, 27: 2121–2158. 3. Graham I, Atar D, Borch-Johnsen K, Boysen G, Burell G, Cifkova R, et al. European guidelines on cardiovascular disease prevention in clinical practice: executive summary. Fourth Joint Task Force of the European Society of Cardiology and other societies on cardiovascular disease prevention in clinical practice (constituted by representatives of nine societies and by invited experts). Eur J Cardiovasc Prev Rehabil 2007; 14 (Suppl 2):E1–E40. 4. Abreu-Lima C. Avaliação do risco cardiovascular no indivíduo. Revista Factores de Risco 2007; nº4: 14-24. 5. Emberson J, Whincup P, Morris P, Walker M, Ebrahim S. Evaluating the impact of population and high-risk strategies for the primary prevention of cardiovascular disease. Eur Heart J 2004; 25:484:91. Carlos Perdigão 6. Arguedas JA, Perez MI, Wright JM. Treatment blood pressure targets for hypertension. Cochrane Database Syst Rev 2009; 3:CD004349. 7. The ACCORD study group. Effects of intensive blood pressure control in type 2 diabetes mellitus. New Engl J Med 2010; DOI: 10.1056/NEJMoa1001286. 8. Rui Póvoa R, Souza D.Ainda o conceito da curva-J entre a pressão arterial e a doença arterial coronária. Revista Factores de Risco 2010; nº 17(Abr-Jun): 72-75. 9. Messerli FH, Gurusher GS. The J-Curve between blood pressure and coronary artery disease or essential hypertension”- Exacty how essential? J Am Coll Cardiol. 2009, 54:1827-1834 81