Os conselhos operários e a diferença entre a democracia dos

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Os conselhos operários e a
diferença entre a democracia
dos
trabalhadores
e
a
democracia burguesa
José Pereira de Sousa Sobrinho
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A polêmica em torno do conceito de democracia operária
contrapondo a democracia burguesa costuma ser resolvida no
debate da esquerda sobre o argumento de que a primeira é
superior à segunda, uma vez que representa a democracia da
maioria – a classe trabalhadora – contra a minoria – a
burguesia. Sem discordar que esse fato é significativo,
entendemos que as distinções entre as duas possibilidades de
regime e participação política não se resolvem de maneira tão
simples, restritas às questões quantitativas. Para examinar a
questão tomamos como exemplo a experiência dos conselhos
(sovietes) operários instalados na Revolução Russa.
Os conselhos surgiram pela primeira vez na revolução de 1905,
sob o regime autocrático russo, “durante a primeira greve
geral de operários, quando as fábricas de Petrogrado e os
sindicatos enviaram delegados” (REED, p. 135, 2007) ao Comitê
Central que cumprir o papel de Conselho de Delegados
Operários. Surgindo como algo similar a um comando de greve –
com os membros eleitos por local de trabalho ou ramo da
produção – acabou por se tornar um instrumento de direção
política da luta dos trabalhadores russos.
A existência de um organismo de poder político dos
trabalhadores gera uma situação de duplo poder, uma vez que os
meios de gestão da sociedade ficaram divididos entre o estado
russo e os conselhos operários, justo porque parte das
atribuições do funcionamento social passaram a receber
instruções ou ordens do conselho de operários. A existência de
um poder paralelo aos órgãos do estado russo coloca como
alternativa política a passagem de todo poder de decisão a
respeito da ordem social para o domínio dos conselhos.
A experiência dos conselhos operários derrotada em 1905
ressurge após a revolução de fevereiro em 1917. No seu
interior se travam algumas das principais lutas políticas pelo
destino da revolução, os Bolcheviques, especialmente Trotsky e
Lênin (1988, p. 6) perceberam nos conselhos o “embrião do
governo operário”. Ante a situação de duplo poder, novamente
instalada, a luta política conduzida pelos Bolcheviques por
dentro dos conselhos, levou a passagem de todo poder de
decisão a respeito do funcionamento social para os conselhos,
impondo a supressão do governo provisório e a consequente
construção da democracia operária.
Essa alternativa política coloca na ordem do dia a consumação
de outro modelo de Estado, dirigido pelo proletariado, impondo
como regime da ditadura democrática do proletariado. A junção
aparentemente contraditória e inconciliável entre a ideia de
ditadura e democracia em verdade representa uma alternativa à
democracia burguesa, uma vez que essa não passa – mesmo com o
sufrágio universal – de uma ditadura democrática da burguesia.
Para além da ideia de supressão da democracia ou participação
política o conceito de ditadura democrática do operário busca
refutar a ideia de democracia como um conceito universal, ante
uma sociedade divida em classes. De fato, a prática da
democracia sempre representa o favorecimento de uma das
classes essenciais existentes na sociedade capitalista –
burgueses, proprietários de terra e classe trabalhadora. Nesse
sentindo, demarca claramente que a democracia e
consequentemente os espaços de decisão política não são
insetos ou neutros com relação à desigualdade econômica
surgida da forma de reprodução social, instalada com a
exploração do trabalho assalariado. Por sua vez, esse caráter
ditatorial da democracia burguesa está escondido, disfarçado
por detrás do discurso de que o direito ao voto conquistado
com o sufrágio universal é uma possibilidade real de mudança,
representa um espaço de igualdade de participação independente
da condição de classe, raça ou gênero dos participantes
políticos. Ou seja, a ditadura democrática da burguesia
sustenta-se puramente sobre o discurso de igualdade que é
formal. Nesse sentido, a ideia que a democracia operária
representa uma democracia de outro tipo passa essencialmente
por suprimir o discurso da igualdade formal, e tratar de fato
das desigualdades reais entre as classes.
Para tanto, o caráter qualitativamente distinto da democracia
fundada no interior dos conselhos operários incorporada pelo
Estado operário, nos seus primeiros anos da revolução, não
está em sua forma de representatividade ou mesmo em sua
capacidade de agregar uma ampla maioria da população
trabalhadora em seus espaços decisórios como geralmente
costumamos reproduzir em nossos argumentos em defesa da
democracia operária. A delimitação da democracia dos sovietes
por esses referidos critérios não seria capaz de ultrapassar
as fronteiras estipuladas pela própria filosofia liberal a
respeito da ideia de democracia como pautada pela decisão da
maioria ante o sufrágio universal.
Partindo das análises de Reed (2007), Lênin (1988) e Trotsky
(2007), podemos entender que a democracia operária tem um
conteúdo realmente distinto e superior em relação à democracia
burguesa. A democracia liberal encontra seu fundamento na
igualdade puramente formal entre os membros da sociedade, ou
seja, o a democracia burguesa se restringe a ideia de que
todos são iguais perante o estado, partindo disso todos teriam
o poder de decisão e de participação igual nos processos de
decisão política, negando as desigualdades provocadas pelo
domínio privado do poder econômico, a restrição do acesso aos
meios de comunicação ou mesmo a perpetuação do domínio da
máquina pública que acabam por gerar condições infinitamente
desiguais para a disputa política para os membros e partidos
da classe trabalhadora. Em verdade essa desigualdade de classe
define o caráter da democracia burguesa, sua função esta em
consolidar e perpetuar os mecanismos de decisão política como
instrumentos indissociáveis do poder econômico, gestando para
burguesia um regime com ares de democracia, mas quem seu
conteúdo é de fato uma ditadura do poder econômico, ou seja,
uma ditadura burguesa. Nesse sentindo, o conteúdo
contraditório da democracia burguesa está no fato de encontrar
a igualdade formal como seu fundamento, para de fato sustentar
a permanência da desigualdade real, ou seja, um regime que
cria meios para eternizar a propriedade privada dos meios de
produção e a exploração do trabalho assalariado como base da
desigualdade de classe.
O segundo fundamento da democracia liberal está justamente em
negar a luta de classes. Nessa direção, as disputas políticas
originadas dos projetos societários das diferentes classes
sociais ficam maquiadas, assim, a democracia seria um
exercício da convivência harmônica dos diferentes cidadãos e
suas diversidades de pensamento, as quais seriam resolvidas
pelo voto, que define o projeto e visão de mundo a ser
aplicada na gestão do estado. Desse modo, no plano da
democracia burguesa, a luta de classes que se expressa na luta
da burguesia pela manutenção da propriedade privada está
disfarçada, camuflada por detrás da suposta igualdade formal.
A questão é que a luta de classes está somente velada no plano
da democracia liberal: na verdade, ela existe desde o modelo
de voto censitário nos primeiros momentos da instalação das
repúblicas burguesas e, de modo mais recente, a criação de
instrumentos legais que inviabilizam o debate e a apresentação
de propostas das organizações de esquerda. A ditadura burguesa
é gestada ante a ilusão de igualdade de participação e a na
suposta inexistência da luta de classes, tendo como objetivo
central a contínua exploração e expropriação do proletariado,
e, consequentemente, a reprodução das desigualdades de classe.
A democracia operária sustenta-se sobre os fundamentos opostos
ao da democracia burguesa, na experiência dos conselhos
operários o fundamento da sua prática política estava
justamente na existência da desigualdade real entre os
sujeitos sociais, entendendo a prática democrática como um
mecanismo de neutralização e superação das desigualdades
constituídas nas sociedades de classes, incluindo em sua
aplicação instrumentos políticos limitadores dos poderes
econômicos inerentes às classes dominantes. Desse modo, ao
contrário da versão liberal, a democracia operária tem como
fim a criação de mecanismos de superação radical das
desigualdades sociais, tomando como propósito a concretização
da igualdade real, ou seja, trata-se do movimento oposto a
experiência liberal que tem como finalidade a manutenção da
propriedade privada dos meios de produção. Nesse aspecto
encontramos o conteúdo essencial da democracia operária posta
em ação pelos conselhos, a prática da democracia operária é
inseparável da consumação de um plano de expropriação dos
expropriadores. Para tanto, essa democracia sob os moldes
contrários do voto censitário, cria barreiras para a
participação política dos detentores do poder econômico. Aqui,
trata-se justamente de impedir que as decisões políticas sejam
submetidas à ditadura do poder econômico, utilizando a
política como instrumento de dominação sobre os antigos
dominadores e garantindo a total liberdade de participação
política para os membros da classe trabalhadora. Ou seja, a
ditadura se efetiva sobre a burguesia, com a finalidade de
neutralizar e destruir seu poder econômico, e não sobre toda a
sociedade.
Portanto, o segundo fundamento distingue a democracia operária
da democracia burguesa. , trata-se do posicionamento da luta
de classes enquanto categoria explicita, clara, tomando o
exercício da democracia é o ato de colocar em prática a luta
política contra a burguesia. Ao contrário da vertente
burguesa, na qual a luta de classes da burguesia contra as
organizações operárias existe de forma disfarçada no respeito
às leis e à propriedade, na experiência operária, a luta de
classes é assumida explicitamente como pressuposto do
funcionamento da democracia. Assim, os conselhos operam sobre
a dinâmica de uma ditadura que tem como objetivo central por
fim à exploração e expropriação do trabalho social por uma
classe, ou seja, o exercício da democracia está associado à
extinção das desigualdades sociais e das próprias classes.
Essa é a tarefa dos conselhos: converter a propriedade privada
em propriedade social e criar um sistema baseada num plano de
produção marcada pela participação de todos com o trabalho
socialmente útil e uma distribuição gradativamente mais
igualitária da produção social.
Nesse sentido, a efetivação de democracia operária parece
violenta e ditatorial. De fato o centro de sua ação é mudança
radical da ordem social. Nessa dimensão, é explicitamente
violenta, contudo, a ditadura democrática da burguesia contém
em seu interior a violência da desigualdade gestada sobre a
opulência, do desemprego e contra a reação dos trabalhadores.
Em verdade não há possibilidade de democracia harmônica
enquanto persistirem as classes sociais. O real sentindo e sua
superioridade em relação à democracia burguesa está no fato de
que sua aplicação representa a efetivação de uma sociedade sem
classes, de uma sociedade igualitária. Ou seja, a experiência
democrática protagonizada pelos conselhos assume a existência
das contradições de classe e busca criar os meios políticos
para sua superação. Nesse sentido, a democracia operária
cumpre o papel de romper a unidade historicamente surgida na
sociedade de classes entre poder econômico e político,
convertendo a existência do poder econômico na premissa que
permite a redução dos poderes políticos da antiga classe
dominante. Nesse plano, podemos concluir que a experiência dos
conselhos operários significa a consumação de democracia
qualitativamente distinta não somente por representar o
domínio da maioria sobre a minoria, mas por carregar em sua
efetivação uma prática política que visa à concretização da
igualdade real e à supressão das classes sociais.
Referências:
LÊNIN, Vladimir Ilich. Carta de Longe: a primeira etapa da
primeira revolução. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Editora
Alfa-Omega, 1988, p 1-9.
TROTSKI, Leon. O Que Foi a Revolução Russa. In: Revista
Marxismo Vivo, nº 16, 2007, p. 52 – 67.
REED, John. Os Sovietes em Ação. In: TROTSKY, Leon. A
Revolução de Outubro. São Paulo: Boitempo, 2007.
Reforma
ou
revolução:
a
estratégia dos conselhos e a
força da democracia direta
Valério Arcary
“A ausência de uma transição
triunfante ao socialismo em
um dos países capitalistas
avançados é a questão. A
debilidade
crítica
da
primeira (posição) é sua
dificuldade de demonstrar a
plausibilidade de umas
conformações de duplo poder em democracias parlamentárias
consolidadas: todos os exemplos de soviets ou conselhos até
agora surgiram em autocracias decadentes (Russia, Hungría,
Austria), regimes militares fracassados (Alemanha), estados
fascistas em ascenso ou derrocados (Espanha, Portugal). O
ponto débil da segunda, ao contrário, é sua dificuldade de
proporcionar uma explicação convincente da posibilidade de
um desmantelamento gradual e em paz social de um Estado
capitalista construído para a guerra de classe, ou de uma
transformação positiva da economia de mercado em seu oposto
histórico: todos os exemplos de governos reformadores que
existiram até hoje não fizeram mais que adaptar-se ao Estado
e à economia capitalista transformando sua própria natureza
e seus próprios objetivos no lugar de mudar os da sociedade
que governavam (Inglaterra, Noruega, Suécia, Alemanha
Ocidental, Áustria).” (Perry Anderson. Teoria, política e
história: un debate com E. P. Thompson.)
O marxismo só falou inglês até hoje como um fenômeno
essencialmente intelectual. Uma das ironias do século é que o
“latim moderno” foi, até hoje, uma língua estranha ao
principal movimento social dos últimos cem anos. Ao longo do
século XX, tanto na Inglaterra, quanto, em uma medida
incomparavelmente maior, nos EUA, apenas setores minoritários
da vanguarda do proletariado se organizaram sob as bandeiras
do marxismo revolucionário, e a rigor, até mesmo as formas
mais moderadas das idéias igualitaristas e socialistas, só
conquistaram o apoio da maioria dos trabalhadores na GrãBretanha, sob a liderança do Labour Party, quando este já
tinha perdido o limitado impulso revolucionário de origem.
Nos EUA, nem sequer a experiência de um partido independente
de classe com influência de massas foi ainda realizada. Este
processo revela em que medida a influência do marxismo como
fenômeno político de massas está estreitamente vinculado aos
processos dos tempos da luta de classes. Em nenhuma
circunstância histórica as ideias revolucionárias conquistaram
uma base social expressiva fora de uma situação
revolucionária.
Os EUA e a Inglaterra estão entre os poucos países importantes
que não conheceram, nos últimos cem anos, qualquer tipo de
situação revolucionária. Foram as fortalezas históricas do
capital. Não nos deve surpreender, portanto, que os marxistas
acadêmicos nos países de língua inglesa sejam um pouco
atraídos pelo cepticismo.
Quando Perry Anderson escreveu as linhas da epígrafe não tinha
ainda ocorrido a onda revolucionária da primeira metade dos
anos 2000 que atingiu alguns países da América do Sul. Na
Argentina, Equador, Bolívia sucederam-se situações
revolucionárias contra governos eleitos nos marcos de regimes
democrático-liberais que já tinham pelo menos quinze anos,
alguns mais, de existência, com alternância eleitoral. Na
Venezuela uma onda de mobilização dividiu as Forças Armadas e,
pela primeira vez, no continente, derrotou um golpe militar
(como já tinha acontecido no Chile, entre 1972/73. Não há mais
razão, portanto, para desconsiderar a possibilidade de
situações de duplo poder, e a estratégia dos conselhos como
projeto revolucionário em países de regimes democráticos.
As principais revoluções do século XX, especialmente as
urbanas, conheceram as mais variadas formas de poder popular,
em geral, com uma origem inteiramente espontânea. Ao contrário
do que pensam muitos intérpretes doutrinários do marxismo, os
conselhos, ou outros órgãos de frente única das massas em
luta, que expressaram a democracia direta, construídos pela
mobilização, não nasceram de uma iniciativa política dos
marxistas. Não foram um projeto dos revolucionários.
Responderam a uma necessidade da mobilização social das massas
que precisam de se organizar. Por isso, a forma dos conselhos
foi recorrente. Ainda que o papel dos revolucionários não
tenha sido secundário.
Uma das maiores debilidades da onda revolucionária que
incendiou o Magreb e o Oriente Médio nos países de língua
árabe foi a ausência de organismos de duplo poder
independentes. As mobilizações no Cairo eram organizadas a
partir da saída das mesquitas, nas sextas feiras, ao final dos
cultos. Mas não deram origem a assembleias como formas
estáveis de debate e decisão dos rumos da luta. Não existiram
organismos unitários para organizar a frente única. A esquerda
não reuniu força social, ou não quis dividir. Ao temer ficar
em minoria, condenou-se a permanecer em minoria. Por isso, na
Praça Tahrir, cada força política construiu o seu palco e o
seu palanque, uma cacofonia que impediu a disputa dos
diferentes programas. Resultado: caiu o governo Mubarak, mas
não caiu o regime militar sustentado nas Forças Armadas que
tinham mantido no poder por trinta anos. E as diferenças com a
Irmandade Muçulmana que aceitou as condições para esta
transição ficaram obscuras para dezenas de milhares de
ativistas que queriam derrubar a ditadura. O que facilitou o
controle da organização mais estruturada, que era a Irmandade
Muçulmana, uma organização burguesa.
Já nas mobilizações de rua no Estado Espanhol, como nas
concentrações de massa na Puerta Del Sol de Madri, por
exemplo, os novos movimentos sociais construíram assembleias,
mas privilegiaram a forma de decisão por consenso. As formas
consensuais têm a sua importância, mas são insuficientes. E
podem originar um perigoso método: decidir por cima, sem
reconhecer o direito de votar por baixo, a não ser para
referendar o que as lideranças já tinham acordado. Este método
estabelece que o denominador comum das posições entre os
líderes é o limite do movimento. Essa disputa política foi,
porém, a essência da vitalidade da democracia direta. É ela
que potencializa a dinâmica revolucionária que permite a
existência da frente única dos assalariados, e que a
diferencia da unidade na ação. Acontece que o denominador
comum será sempre a posição mais moderada. Reconhece-se,
portanto, o direito de veto de uma minoria mais moderada. Sem
garantir o direito de uma posição minoritária mais radical
entre os líderes tentar ganhar pela argumentação a opinião da
maioria.
Desde a experiência pioneira da Comuna de Paris em 1871,
passando pelo soviet de São Petersburgo em 1905, até os
cordões industriais no Chile em 1973, ou as comissões de
soldados na revolução portuguesa em 1975, o que definiu as
experiências de poder popular foi a emergência das
necessidades políticas colocadas pela luta de classes, ou
seja, uma organização independente das classes proprietárias,
para lutar pela derrubada do governo e do regime de dominação.
Quais foram as suas principais diferenças com os organismos da
democracia representativa? Elas podem ser resumidas em cinco
traços comuns: (a) a exclusão do direito de voto e
representação para as classes proprietárias, portanto, para os
seus partidos; (b) a revogabilidade dos mandatos, com a
possibilidade permanente de destituição dos representantes
pelos representados; (c) a inexistência de uma burocracia de
funcionários profissionais e (d) a inexistência de duas
câmaras, um Senado e uma Assembleia, ou uma Câmara alta e uma
baixa; (e) por último e, talvez, o mais importante, os
conselhos foram o espaço em que as massas assalariadas se
apresentaram diante da nação como um sujeito social
independente, disposto a assumir a responsabilidade do poder,
tomando para si o controle dos seus destinos, posicionando-se
sobre os temas políticos nacionais mais importantes, para além
dos limites defensivos do sindicalismo.
Três foram as principais falsificações históricas sobre os
Conselhos: (a) não é verdade que estes organismos de luta eram
monolíticos, enquanto os parlamentos seriam politicamente
plurais. Ao contrário, os conselhos foram os espaços da
polêmica política mais acesa, com propostas moderadas em um
extremo, radicais em outro, e inúmeros matizes intermediários
entre eles; (b) não é verdade que a experiência histórica
teria demonstrado que a democracia direta seria menos
democrática que a indireta. Foram formas diferentes de
expressão da luta política nas sociedades contemporâneas.
Porque os parlamentos foram o espaço da luta política entre as
frações burguesas, em que os representantes do mundo
assalariado, quando estiveram presentes, estavam reduzidos ao
papel de espectadores marginais; (c) não é verdade que os
conselhos seriam formas de organização próprias de sociedades
atrasadas, ainda rurais, ou em transição para a urbanização, e
que a democracia liberal com representação indireta seria uma
forma mais civilizada de organização da luta política.
A presença em situações revolucionárias dos organismos desta
democracia direta, mesmo que embrionária, já expressava,
subjetivamente, uma disposição política das massas de que não
podiam confiar nas instituições do Estado. Surge, assim, uma
vontade de que para decidir a sua sorte, devem contar, em
primeiro lugar, consigo mesmos. O processo de descrédito das
diferentes instituições é, todavia, sempre muito desigual e
complexo, e tem os seus ritmos, dependendo de uma experiência
política prática, para a qual não existem atalhos.
O tema dos conselhos sempre foi muito polêmico na esquerda
mundial, em função da perspectiva estratégica que as suas
diversas componentes alimentavam em relação à democracia e à
revolução. Claro que, se as principais forças políticas que
são reconhecidas pelas massas, como seus porta-vozes, e nas
quais os trabalhadores depositam a sua confiança, convocam o
povo a confiar nas instituições do regime de dominação, seja
porque elogiam a lisura das eleições, e recomendam paciência
até ao próximo sufrágio, seja porque defendem os parlamentos,
os tribunais, etc., o processo de auto-organização é mais
difícil. Nessas circunstâncias, a desconfiança das massas
avança, como é óbvio, muito mais lentamente.
Os trabalhadores e as outras classes subalternas em luta,
assim como a juventude ficam dependendo, essencialmente, de
sua própria experiência para retirar lições sobre as
possibilidades de conquistar as mudanças que desejam, pelo
voto ou pelas lutas, ou por combinações variadas de
mobilizações e eleições. É por isso, que em inúmeras situações
revolucionárias, se estabelece uma dualidade de poderes
“híbrida”, atípica, se quisermos. Isso porque não tem sido
incomum uma quase completa perda da governabilidade sem que,
simultaneamente, tenham sido construídos órgãos de frente
única, que expressem, materialmente, a nova correlação de
forças. Esse instrumento de luta, se nos apoiarmos na
experiência histórica são os conselhos.
No entanto, quando as esperanças desmoronam, quando não lhes
resta outro caminho senão a sua mobilização, quando se
descobrem exasperadas pela impossibilidade de que as
instituições resolvam as suas demandas, as massas avançam na
construção dos organismos de duplo poder, ou atribuem novas
funções às suas organizações pré-existentes.
Esses organismos nascem da urgência de tarefas que não podem
ser mais adiadas, ou impulsionadas pela força das
reivindicações mais sentidas, e correspondem à necessidade de
resolver problemas inadiáveis (desde o abastecimento nos
cordões industriais chilenos, por exemplo, até o controle da
produção contra o lockout na revolução portuguesa).
Por isso, a experiência com a democracia direta surge como uma
resposta das massas ao fracasso da democracia representativa e
indireta, e de uma vontade de controlar elas mesmas as
decisões que as afetam, assim como de um aprendizado de que é
necessário controlar os seus líderes. As massas não procuram a
democracia direta e os organismos de auto-organização porque
gostam do exercício da política. Mas porque perderam a
esperança de que, por alguma outra forma, possam mudar as suas
vidas, e conquistar as suas reivindicações. Descobrem sua
força coletiva e nela depositam sua confiança.
Tudo isto posto, uma riquíssima experiência histórica, parece
até esdrúxulo que a polêmica teórico-política sobre a
estratégia gradualista de reformas, e a estratégia dos
conselhos tenha regredido tanto, que uma parte da esquerda
marxista ainda leve a sério a existência de uma suposta
“revolução bolivariana” na Venezuela. Como no México de
Cárdenas dos anos 1930, na Argentina de Perón dos anos 1945,
no Brasil de Getúlio e Jango dos anos 1950/1960, no Egito de
Nasser de 1956, na Argélia da FLN de 1966, a existência de
governos nacionalistas pode despertar ilusões nas massas, mas
não deveriam embriagar uma análise lúcida da natureza de
classe destes processos entre marxistas.
Por último, mereceria ser observado que os processos de
transição ao capitalismo não prescindiram, nos países
centrais, de uma revolução política, senão de uma guerra
civil. Holanda (1580/1648), Grã-Bretanha (1640/1648), França
(1789/1793). O que deve chamar a nossa atenção como lição
histórica. A questão estratégica da maior gravidade pode ser
anunciada de forma simples: se para uma transição histórica
entre duas classes proprietárias, a aristocracia e os
capitalistas, foi necessária uma ruptura revolucionária, por
que deveríamos considerar como plausível que uma transição
histórica que pretende abolir a existência de todas as classes
proprietárias poderia ser completada com métodos de negociação
gradual e concertada?
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