sobre a comunicação não verbal

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SOBRE A
COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL
INGEBORG BORNHOLDT - COORDENADORA
ALIDA FUHRMEISTER
ELEONORA SPINELLI
ELIANE GOLDSTEIN
JOYCE GOLDSTEIN
MAGALI FISCHER
TULA BISOL BRUM
PORTO
ALEGRE,
OUTUBRO
DE
2003
2
Resumo
O trabalho enfoca a comunicação na prática clínica, abordando
aspectos pré-verbais e não verbais como a ação, o brincar e o desenho. A
comunicação não verbal e sua tradução para o verbal têm interesse específico na
psicanálise de crianças e adolescentes, bem como na de pacientes muito
perturbados, regressivos e com dificuldade na formação de símbolos.
As autoras realizam aportes teóricos, oferecendo respaldo suficiente para a
discussão teórico-clínica. Através de vinhetas clínicas de um caso, observam
diferentes formas de comunicação não verbal, mesmo na presença de uma
patologia grave como a apresentada pelo paciente.
"O que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode
convencer-se de que nenhum mortal pode guardar um
segredo. Se os seus lábios permanecem silenciosos, ele
conversa com a ponta dos dedos; a revelação transpira
dele por todos os poros. E assim, a tarefa de fazer
3
consciente os recessos mais ocultos da mente é desse
modo inteiramente possível de realizar".
(Freud, 1905, p. 75).
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INTRODUÇÃO
Na procura de sintonia da relação transferencial/contratransferencial,
analista e analisando comunicam-se através de palavras e de muitos outros códigos
não verbais. Nosso intuito é enfocar a comunicação no trabalho clínico abordando
aspectos pré-verbais e não verbais. A comunicação não verbal é, antes de tudo,
uma comunicação inconsciente que poderá ser conscientizada ou não.
Pretendemos realizar aportes teóricos que nos dêem respaldo
suficiente para discussão teórico-clínica.
Cada indivíduo, no seu desenvolvimento, foi transformando ações
somáticas ou musculares (pré-verbais) e suas necessidades mais elementares em
sentimentos. Estes, por sua vez, podem transformar-se em pensamentos e
linguagem semântica. A partir destes estágios iniciais, há uma progressão evolutiva
de emprego de elementos verbais.
Todavia, a comunicação não verbal e sua tradução para o verbal têm
interesse específico na psicanálise de crianças e adolescentes, bem como na de
pacientes muito perturbados, regressivos e com dificuldades na formação de
símbolos.
A criança adquire, gradativamente, a linguagem falada. Em climas
emocionais harmoniosos brotam sincronias que possibilitam a comunicação entre
uma personalidade que está no início de sua construção e ainda sem ou apenas
com rudimentar linguagem “falada”, de um lado. De outro, uma mente ou
personalidade estruturada o suficiente para captar e decodificar estes elementos não
verbais e transformá-los em pensamentos. O modelo mãe-bebê é o fenômeno típico.
Quando existem suficientes identificações/contraidentificações projetivas que
permitem captar o que ainda não é representado por palavras, processos
secundários podem evoluir. Dentro do processo psicanalítico essas mesmas
sincronias possibilitam a comunicação e tradução dos elementos inconscientes
(infantis e/ou censurados e reprimidos) do paciente com seu par: o analista. No
campo analítico também se dá a comunicação interna dos objetos e fantasias
acionados no próprio analista e mobilizados na contratransferência.
A comunicação da criança pode vir pelo olhar, posturas corporais,
ação, choro, singulares movimentos do corpo, entonação e ritmos da voz, pelo
brincar e desenhar. O receptor (a mãe ou seu substituto; ou ainda, o analista na
5
sessão) pela rêverie, forma em si uma imagem do sentido, realiza uma
representação na sua mente atribuindo-lhe um significado e responde em palavras
e/ou atitudes.
O diálogo possível ocorre entre as distintas partes da personalidade
total de cada um e entre as fantasias espaço-temporais, nas quais um se imagina e
coloca o outro formando um fundo de movimentos de projeção e introjeção ativos e
comunicados no campo analítico. As partes envolvidas comunicam-se através de
“diálogos” com elementos inconscientes e eventualmente conscientes que se
ajustam e desajustam na busca de sintonia entre livre-associação e atenção
flutuante.
Ilustraremos o tema com vinhetas clínicas de um mesmo paciente ao
longo do seu tratamento e desenvolvimento. Diferentes formas de comunicação não
verbal podem ser observadas mesmo na presença de uma patologia grave. As
vinhetas são pinçadas de vários momentos e estágios evolutivos de Téo, um menino
que até os 9 meses apresentou um desenvolvimento dito normal. Após uma vivência
traumática interrompeu sua comunicação. O tratamento iniciou aos 5 anos do
paciente e teve uma duração de 16 anos. Partimos da patologia para nos
aproximarmos do desenvolvimento normal. Tal como Melanie Klein utilizou o
material de um paciente que não simbolizava (Dick) para falar de símbolos,
utilizaremos o material de Téo, inicialmente sem comunicação, para falarmos da
comunicação.
DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-CLÍNICO
Téo tinha 5 anos no primeiro contato com sua analista. Era marcante o
seu desligamento do mundo à sua volta. O olhar era vazio e distante e o balanceio
do corpo intenso. Qualquer movimento, ainda que estimulado, só acontecia quando
conduzido. Caminhava como um "robot" de forma automática, quase sem vida. A
comunicação parecia impossível.
Vemos Teo, neste momento isolado, impossibilitado de comunicar-se
com o mundo externo. O desejo e a intenção de comunicação estão alojados no
objeto externo. A postura, a expressão e os movimentos do corpo de Téo são
códigos à espera da recepção e tradução do seu sentido. A mãe e a analista tentam
compreender os significados de suas ações e se comunicar com ele. No paciente
não há comunicação pré-verbal; Téo não busca o objeto.
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O início das cinco sessões semanais era sempre igual: a analista ia até
a sala de espera para buscá-lo. Aí a reação - ou a não reação - dava-se sempre no
“mesmo tom”: Téo não olhava, não se conectava, e então, com o auxilio da mãe e
da analista dirigia-se até a sala de atendimento. Lá sentava, começava seu
balanceio, buscava a palha1 permanecendo fechado em seu mundo. Para chamá-lo,
a analista sentava a sua frente, buscava seus olhos e ia lhe descrevendo tudo o
que tinha na sala e na caixa de brinquedos.
Na sala de atendimento havia também uma caixa de areia e este
parecia ser o lugar mais confortável para Téo. Catava algum uma “palha” que
manipulava, estereotipadamente em frente ao seu rosto.
No estado dual inseparável entre mãe e bebê, a vivência messiânica, é
ameaçada com o nascimento. Este estado original de ruptura desperta uma
ansiedade primitiva que Freud denominou de Urangst. “Aniquilamento” (Melanie
Klein, Bion, Meltzer); “desmantelamento” (Winnicott, Meltzer); “rupturas no senso de
continuidade” (Winnicott) são termos que encontramos na literatura. “Estes estados
mentais de angústia primitiva, originada pela separação do objeto quando o ser
humano ainda não pode conceber em palavras ou pensamentos suas vivências,
eqüivalem ao sucumbir. A dor psíquica pela separação vem do pesar pela perda de
algo anterior”. (Bornholdt, I. 2001, p. 5).
Através dos olhos e do contato boca-seio, o bebê tenta restabelecer a
união. O seio é o primeiro objeto a emergir de sua confusão sensorial. As primeiras
noções e representações surgem a partir de percepções traduzidas e atendidas pela
mãe. Assim sendo, os rudimentos de representações de espaço e de tempo surgem
da relação objetal na qual há vivências de ser alimentado, ter sido alimentado e de
vir a ser alimentado, de alguma forma, por alguém. Há um trânsito, entre elementos
corporais (pré-verbais) de um lado e significação no outro (no objeto externo). No
clima emocional desta interação o ego que, antes de tudo, é um ego corporal (Freud,
1923), inicia sua capacidade de comunicar-se não verbalmente.
A entonação entre o pré-verbal do bebê e o verbal da mãe conduz o
primeiro, progressivamente, ao pensar e dizer. Deste encontro entre o exercício de
laleo do bebê (“música de linguagem”) e a verbalização da mãe emerge um início de
simbolização (Meltzer).
1
palha: denominação dada pelos pais a qualquer fio ou cisco que encontrasse, cuja característica era de ser
muito fino ou/e comprido. O nome “palha” surgiu porque, inicialmente, eram cabinhos de trigo.
7
O
“som”
emitido
pela
mãe
formado
pelos
ritmos
cardíacos,
respiratórios, compassos, entonação da voz, “setting” da amamentação, postura,
expressão facial, cheiro, movimento corporal e gestos evoca respostas no bebê.
Nesta interação “musical”, os sons da mãe funcionam como objeto organizador e
continente para as vivências primitivas ainda não significadas. A integração
harmônica destes múltiplos elementos “sonoros” compõe uma melodia pela união de
notas e frases musicais em continuidade temporal. A psicanálise poderia ser
imaginada como um contínuo ensaio no qual são criadas estas melodias.
De acordo com Meltzer, “a linguagem na sua gênese tem dois
caminhos, um nível mais primitivo de canção-dança (a forma mais primitiva de
formação de símbolos), para a comunicação de estados mentais e emocionais
mediante o uso não patológico da identificação projetiva. A este cimento de
gramática profunda se superpõe, posteriormente o nível lexical das palavras para
designar objetos, ações e qualidades do mundo externo, ou seja informação” (p.
207).
Sugere ainda este autor que “...a evolução do nível canção-dança do
discurso gramatical profundo de laleo e balbuciar, ao nível lexical da comunicação
social, depende do passo do Teatro Bucal a um Teatro Onírico, para gerar os
sentidos. Isto significa que a diferenciação do mundo externo e interno é essencial
para compreender que se um quer que seus pensamentos sejam transmitidos, deve
vocalizá-lo...” (p. 212).
Nesse processo de aprendizado para pensar as emoções, destaca-se
a função rêverie materna (relação continente-conteúdo). Estamos dentro do
fenômeno da comunicação primitiva que ocorre através da identificação projetiva
realista (Bion) na “linguagem” entre self e objeto. A curiosidade se desenvolve no
bebê impulsionando-o em direção ao objeto. Surgem as primeiras noções de self e
objeto que auxiliam o bebê a colocar-se em um sistema espaço-temporal do mundo
externo e interno.
A criança pequena ao explorar a mãe, de acordo com Klein, explora
seu corpo e descobre o mundo. Podemos pensar esse sofisticado processo de
exploração como a base da comunicação. O êxito desta comunicação resultará,
então, no “aprender com a experiência” (Bion, 1962).
As experiências de reciprocidade afetiva propiciam compartilhar um
mesmo estado mental gerando um sentido de identidade e estabelecimento do self
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corporal. A repetição de experiências desenvolve na mente a capacidade de
representar a ausência e, posteriormente, simbolizar e desenvolver a palavra, o
pensamento, o rabisco, a imaginação, o desenho e a capacidade para brincar.
Em Téo não podemos observar o registro da dor pela ausência, pois
não registra a presença. O pequeno paciente ainda não pode simbolizar. Permanece
mergulhado dentro de si mesmo com mínima possibilidade de comunicar-se com o
mundo externo.
O bebê nasce preparado para encontrar-se com a verdade (MoneyKirle, Meltzer, Bion) e equipado com um impulso para conhecer. A relação com o
seio pensante da mãe (vínculo K) capacita-o para tolerar as frustrações. Esta
primeira relação de objeto é básica e imprime um modelo de relacionamento, no
qual se desenvolvem conceitos. As deformações tanto na constituição quanto na
utilização do modelo (pensemos em Téo) também fazem parte da formação dos
alicerces de uma relação com o mundo. Esta relação, gradualmente, estabelece
códigos e formas que vão do pré-verbal ao verbal. A criança necessita desenvolver o
conceito de espaço-tempo (as noções de algo anterior e posterior ao momento bem
como as da existência de espaços com um “dentro” e um “fora”) para desenvolver o
pensamento onírico e, após, o pensamento verbal.
A análise estava no segundo ano. As respostas de Téo se
observavam mais na entrada e saída das sessões. Ele já não precisava mais ser
conduzido. Quando via a analista lhe estendia a mão. A mãe comunicou que, às
vezes, Téo almoçava e ia até a porta (a sessão era depois do almoço). Surgem
insipiente representações temporais. Dentro do consultório, a atividade consistia em
ficar sentado na caixa de areia e jogar repetitivamente areia sobre si mesmo. A
analista lhe descrevia que ele estava se cobrindo e Téo respondia continuando o
movimento, que algumas vezes era intercalado pelo uso da palha e o balanceio.
Certo dia, o balanceio ficou muito intenso e Téo começou a chorar pela
primeira vez revelando o (re)início de uma permeabilidade ao mundo externo.
Algo estava sendo comunicado. Tudo parecia tão igual, no entanto,
ouviam-se foguetes ao longe. Numa segunda vez que isso aconteceu, novamente
havia foguetes lá fora e, desta vez, mais intensos o que provocou uma reação mais
intensa em Téo. Agora, além de chorar, batia com a cabeça na parede. Téo estava
reagindo, mostrando medo, pavor, angústia. A analista lhe disse que tinha um
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barulho muito forte “lá fora” e que ele parecia assustado “lá dentro” (tênues
representações espaciais).
Teria ele “perdido a voz” quando aos 9 meses chamou tanto pelo
objeto e este não veio? Ter alguém que possa sentir seu medo, ouvir seu choro,
poderá possibilitar que ele readquira a voz? É uma conjetura imaginativa (Meltzer).
No desenvolvimento normal ocorrem constantes e graduais traduções
do inconsciente ao consciente. A mãe para o bebê, o analista para o analisando ou
ainda uma parte da própria mente com uma outra parte “comunicam-se” realizando
estas traduções de significados. Há um canal de comunicação entre o que é mais
primitivo e o que é mais desenvolvido. Este canal é necessário para escoar o fluxo
de emoções e vivências que, assim, adquirem significado e representação em
processos secundários. O êxito depende da fertilização e desenvolvimento do
modelo ♀♂.
Para Matte-Blanco a comunicação se efetua pela função tradutora da
mente. Esta permite uma aproximação da experiência emocional primitiva, e a
entrada da realidade emocional no campo da consciência. O espaço mental surge
no lugar do objeto originário concreto e a atividade do pensamento, encontra nas
emoções, que partem do corpo, sua matriz originária.
A partir do registro dos sentimentos despertados na relação com o
mundo de objetos que também estão no mundo externo (como o som de foguetes
de “fora” que causam medo “dentro”) outros foram ocorrendo.
No decorrer do terceiro ano a analista observa o primeiro olhar de
Téo para algo: uma tomada de luz. Olhou fixa e atentamente para a tomada durante
toda uma sessão. Após, veio a informação da mãe de que havia estado em sua casa
um eletricista e que Téo acompanhara o seu trabalho parecendo interessado.
Foram, então, incluídos fios elétricos e pequenos postes2 de madeira em sua caixa.
Desta vez, ao invés do olhar vazio, Téo olhou para este material e colocou as suas
mãos sobre as da analista para tocá-lo. Manuseou por muitas sessões os fios até se
interessar pelos postes! Olhou-os por muitas sessões e só depois pegou uma
dessas pequenas madeiras enrolando os fios nela. Fez isso durante as sessões de
aproximadamente um mês. A analista o acompanhava em silêncio observando seus
movimentos internos e também traduzindo muitas vezes em palavras e gestos
2
Postes: pequenos pedaços de madeira de aproximadamente 30 cm de comprimento e 3 cm de diâmetro.
10
circulares com os próprios braços e mãos dizendo “Téo, enrolado, enrolando... Teo
enrolado em si mesmo...Téo, Téo, Téo...”.
Após mais um mês aproximadamente, Téo foi para a caixa de areia
levando para lá os fios e os postes. Enquanto a analista lhe descrevia seus movimentos
mais autônomos e seu humor mais alegre com o que ocorria ali, Téo surpreendeu
novamente. Tomou uma segunda destas lascas de madeira e ligou os dois postes com o
fio. Agora a analista descreve e interpreta seus sentimentos de “estar ligado”. Ele emerge
mais e mais do seu próprio universo. Até ria com a analista em um clima temporário de
satisfação e contentamento nas sessões. Podemos pensar que Téo começa a brincar e o
brincar se amplia com a inclusão de mais postes e possibilidades, interpretados como
novos aspectos e outros objetos.
Esta vinheta destaca a importância da passagem da incomunicabilidade à
comunicação pré-verbal. O “novo olhar” demonstra que agora já há uma ligação com
a analista.
Téo segue evoluindo no setting analítico e fora dele. O olhar já não
está perdido e os familiares se mostram entusiasmados com os progressos de Téo
procurando estimulá-lo. Neste contexto é anunciada a gravidez da mãe. Téo chega a
sessão que sucede a notícia sem olhar para a analista e nada que está a sua volta.
A palha volta a ser usada intensamente. O balanceio também é intenso e ele bate
com a cabeça na parede. Nas sessões grita, se urina e joga areia sobre si, porém
agora com força, parecendo não querer sentir-se envolvido e sim, querer sucumbir a
ela. Há uma forte regressão. No entanto agora (como no evento dos foguetes) Téo
já registra e comunica sua dor e sofrimento. A analista trabalha relacionando todo o
seu estado e manifestações com a gravidez da mãe. A raiva, medos e ameaça que
este bebê representa. Téo, durante muitas sessões parece não ouvir. É puro
balanceio e palha.
Nasce o irmão e ele coloca mais um poste na sua brincadeira. Téo está
podendo ampliar o seu mundo com novos objetos e novos recursos de
comunicação.
A atividade lúdica é uma das excelentes formas de comunicação não
verbal. Através dela a criança se comunica subjetiva e objetivamente, já capacitada
a estabelecer relações simbólicas. O brincar promove o desenvolvimento, a
subjetividade e, como Freud (1920) ensinava, é uma forma de elaborar conflitos
inconscientes permitindo, simultaneamente, o movimento entre prazer e desprazer.
11
O mecanismo de personificação no jogo das crianças estudado por Klein (1929)
permite que estas atribuam os papéis mais variados e contraditórios de aspectos do
seu mundo interno aos personagens que imaginam. Assim, brincando, a criança
pode se comunicar não verbalmente, satisfazendo pulsões, empregando defesas e
elaborando mais e mais realidades internas e externas. O brincar é a área potencial
(Winnicott, 1951) de um complexo de fantasias e ilusões criado na faixa
intermediária entre o mundo interno e externo. Este mesmo autor revela a
preparação do caminho para um brincar juntos e estabelece uma analogia com o
processo analítico.
Téo sai definitivamente da caixa de areia e está no seu terceiro ano de
análise. Deixa os postes de lado e começa a brincar com os brinquedos da sua
caixa, mais intensamente com a família. Após mais dois anos sua mãe telefona para
a analista e informa que ele disse sua primeira palavra: ‘chega’.
Estava tendo uma crise de brabeza, o pai gritou ‘chega’ e ele repetiu
‘chega’.
Na sessão, Téo vai direto para a caixa e pega um carrinho. A analista
intervém dizendo:
A – Hoje não vamos brincar de família. Chega de brincar de família.T –
Chega.
Ficam por um tempo repetindo o ‘chega’, enquanto ele move o carro
em círculo.
Podemos pensar a palavra "chega" e sua relação com a função
paterna. A interdição paterna foi determinante para o fim do silêncio de Téo.
Ademais, nos parece interessante ser o "chega" a sua primeira palavra. Chega de
silêncio! Seria este o significado? Interessante retomar aqui o fator traumático
relacionado com o desligamento de Téo do mundo, ou da sua reclusão em seu
próprio mundo. Ele ficara sozinho, abandonado gritando muito. Supõe-se que tenha
ficado neste estado por muitas horas sem que ninguém viesse em seu auxílio.
Ninguém pôde dizer-lhe um "chega, tu não estás mais sozinho, o pai e a mãe estão
contigo". Anos depois Téo está de novo aos gritos. Agora a mãe e o pai estão ali
podendo acolher, dizendo o "chega" que aos 9 meses não pode ser dito em tempo
hábil. Levantamos a hipótese de que houve uma ressignificação da situação
traumática e a conseqüente interrupção do seu silêncio.
12
Virginia Ungar destaca que a atitude analítica é metacomunicada na
sessão. Gradualmente o paciente toma este modelo da capacidade de imaginar do
analista identificando-se. Para Ungar, desta forma, surge o criativo e o novo no
interjogo da capacidade de imaginar de ambos os membros da dupla analítica.
Com o desenvolvimento cognitivo em andamento e o processo
simbólico mais disponível, também a expressão gráfica se desenvolve como
possibilidade de comunicação não verbal. O desenho pode ser equiparado a uma
comunicação narrativa, uma forma análoga ao discurso verbal do adulto. Porém sua
expressão simbólica contém formas de representações semelhantes ao trabalho
onírico. Enquanto a comunicação verbal está mais voltada para o processo
secundário e o pensamento racional e lógico, a comunicação gráfica permanece
com os conteúdos tanto de processo primário como secundário, podendo ser
analisado com as mesmas propriedades do sonho. Isto adquire particular
importância se levarmos em consideração que as conexões entre os símbolos e o
que
é
simbolizado
tornam-se
cada
vez
mais
inconscientes
durante
o
desenvolvimento da repressão e das defesas que fazem parte do crescimento.
Téo também passou a utilizar desenhos como recurso de comunicação
mesmo depois de adquirir a linguagem falada.
Aos 21 anos chega numa sessão e diz: Chorei. A – Por que tu
choraste? T – Não dá de dizer. A – Será que dá para dizer desenhando? Téo
ruboriza, pega o lápis vermelho e desenha algo como um coração e uma flecha.
Pinta o restante da folha de preto. A analista diz que ele está falando algo sobre o
amor e Téo ri sem jeito, abaixa a cabeça. .A – E o coração está com esta flecha e
com preto em volta porque tu achas que ela não gosta de ti? T – Ela tem namorado.
Nunca vai gostar de mim. Pega outra folha e desenha um menino comentando: ele
tá sempre sozinho. A analista lhe diz que ele se sente sozinho. T – Eu sou esquisito,
ninguém de guria vai me querer .Depois disso diz que quer brincar de carrinho e
caminhão. T – O caminhão tem que carregar uma grande mudança pra bem longe,
mas o carrinho tem que ir sempre junto.
COMENTÁRIOS FINAIS
Meltzer destacou que, quanto mais integrado o indivíduo, maior sua
capacidade de imaginação e, aqui acrescentamos, de comunicação.
Ressaltamos que a comunicação não verbal permanece presente em
todas as etapas posteriores nas quais outras possibilidades mais desenvolvidas vão
se somando.
13
Retornando a Téo e sua psicopatologia, podemos observar o
desenvolvimento psíquico como um filme em câmara lenta. A capacidade de
comunicação instalou-se gradualmente ao longo de 16 anos de tratamento: Téo e o
balanceio; Téo e a palha; Téo e o choro; Téo e a tomada; Téo e os fios; e,
finalmente, Téo e a palavra. Evolutivamente o que era apenas corporal e emoções
foi tendo uma representação também psíquica. Um espaço mental surgiu e Téo foi
realizando conjeturas sobre objetos concretos, sensações e fenômenos tanto a sua
volta quanto nos seus sentimentos. Nesta exploração, então, foi desenvolvendo, na
medida do possível, capacidades para brincar, desenhar e falar. A maior capacidade
de discriminação e alguma percepção da transitoriedade registram uma experiência
de vida já um tanto rica e dolorosa, revelando alguma capacidade para se comunicar
e transitar no mundo externo e interno. Pode-se pensar que nos primeiros estágios
da análise havia uma incapacidade de tolerar o excesso de turbulência emocional. O
"diálogo" analítico resgatou a capacidade de comunicação de Téo, que foi
interrompida aos 9 meses. Através deste "diálogo" a experiência emocional
enquistada foi ressignificada gerando novas construções psíquicas e novas formas
de comunicação. Com tais elaborações Téo, aos poucos desenvolveu a
possibilidade de olhar, se surpreender, tolerar o não saber, querer se comunicar,
conhecer e ser conhecido. Cabe lembrar do choro, sua primeira reação sonora ao
mundo externo e interno. Talvez apenas uma descarga motora. Mais tarde, com a
interdição do pai surge o "chega", que significou o momento do basta, do "chega" de
silêncio.
Depois Téo consegue expressar verbalmente para a analista que tem
sentimentos e fantasias (um mundo íntimo e privado), que necessita transmitir,
compreender, conhecer, tornar-se mais criativo e imaginativo, mas "não dá de dizer"
para uma mulher. E assim vai embora, partindo no seu "caminhão mudança",
levando seu "carrinho", talvez significando um mundo interno mais povoado e
humanizado; um self mais constituído e discriminado.
No encontro com nossos pacientes partilhamos estados emocionais na
busca de significados para suas estruturas enigmáticas. Isso nos coloca no centro
da psicanálise, ou seja, no fenômeno da comunicação que inicia de inconsciente
para inconsciente. Nossas intervenções verbais, bem como aquelas que vêm
através da nossa ação e atitude, são produtos gerados pela comunicação
inconsciente
traduzida
(em
alguma
medida)
para
o
consciente.
Quando
14
descrevemos situações e interpretamos, o material não verbal é transformado em
verbal. No canal de comunicação há um fluxo de material inconsciente que pode se
conscientizar parcialmente e que liga os pacientes de todas as idades e níveis de
funcionamento ao seu analista. Pelo silêncio, ação, brincar, olhar, fala, tom emitemse mensagens a procura de significados. De fato, ao falarmos sobre comunicação
não verbal, nos referimos a uma extensa rede cujos canais interligam diferentes vias
dentro do analista, dentro do paciente e entre paciente e analista.
Em cada traço de caráter da personalidade de cada indivíduo, habita
um enredo imaginativo que pode ser compreendido ou não. Porém, o não verbal
sempre flui nas profundezas das comunicações.
15
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