SOBRE A COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL INGEBORG BORNHOLDT - COORDENADORA ALIDA FUHRMEISTER ELEONORA SPINELLI ELIANE GOLDSTEIN JOYCE GOLDSTEIN MAGALI FISCHER TULA BISOL BRUM PORTO ALEGRE, OUTUBRO DE 2003 2 Resumo O trabalho enfoca a comunicação na prática clínica, abordando aspectos pré-verbais e não verbais como a ação, o brincar e o desenho. A comunicação não verbal e sua tradução para o verbal têm interesse específico na psicanálise de crianças e adolescentes, bem como na de pacientes muito perturbados, regressivos e com dificuldade na formação de símbolos. As autoras realizam aportes teóricos, oferecendo respaldo suficiente para a discussão teórico-clínica. Através de vinhetas clínicas de um caso, observam diferentes formas de comunicação não verbal, mesmo na presença de uma patologia grave como a apresentada pelo paciente. "O que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode convencer-se de que nenhum mortal pode guardar um segredo. Se os seus lábios permanecem silenciosos, ele conversa com a ponta dos dedos; a revelação transpira dele por todos os poros. E assim, a tarefa de fazer 3 consciente os recessos mais ocultos da mente é desse modo inteiramente possível de realizar". (Freud, 1905, p. 75). 4 INTRODUÇÃO Na procura de sintonia da relação transferencial/contratransferencial, analista e analisando comunicam-se através de palavras e de muitos outros códigos não verbais. Nosso intuito é enfocar a comunicação no trabalho clínico abordando aspectos pré-verbais e não verbais. A comunicação não verbal é, antes de tudo, uma comunicação inconsciente que poderá ser conscientizada ou não. Pretendemos realizar aportes teóricos que nos dêem respaldo suficiente para discussão teórico-clínica. Cada indivíduo, no seu desenvolvimento, foi transformando ações somáticas ou musculares (pré-verbais) e suas necessidades mais elementares em sentimentos. Estes, por sua vez, podem transformar-se em pensamentos e linguagem semântica. A partir destes estágios iniciais, há uma progressão evolutiva de emprego de elementos verbais. Todavia, a comunicação não verbal e sua tradução para o verbal têm interesse específico na psicanálise de crianças e adolescentes, bem como na de pacientes muito perturbados, regressivos e com dificuldades na formação de símbolos. A criança adquire, gradativamente, a linguagem falada. Em climas emocionais harmoniosos brotam sincronias que possibilitam a comunicação entre uma personalidade que está no início de sua construção e ainda sem ou apenas com rudimentar linguagem “falada”, de um lado. De outro, uma mente ou personalidade estruturada o suficiente para captar e decodificar estes elementos não verbais e transformá-los em pensamentos. O modelo mãe-bebê é o fenômeno típico. Quando existem suficientes identificações/contraidentificações projetivas que permitem captar o que ainda não é representado por palavras, processos secundários podem evoluir. Dentro do processo psicanalítico essas mesmas sincronias possibilitam a comunicação e tradução dos elementos inconscientes (infantis e/ou censurados e reprimidos) do paciente com seu par: o analista. No campo analítico também se dá a comunicação interna dos objetos e fantasias acionados no próprio analista e mobilizados na contratransferência. A comunicação da criança pode vir pelo olhar, posturas corporais, ação, choro, singulares movimentos do corpo, entonação e ritmos da voz, pelo brincar e desenhar. O receptor (a mãe ou seu substituto; ou ainda, o analista na 5 sessão) pela rêverie, forma em si uma imagem do sentido, realiza uma representação na sua mente atribuindo-lhe um significado e responde em palavras e/ou atitudes. O diálogo possível ocorre entre as distintas partes da personalidade total de cada um e entre as fantasias espaço-temporais, nas quais um se imagina e coloca o outro formando um fundo de movimentos de projeção e introjeção ativos e comunicados no campo analítico. As partes envolvidas comunicam-se através de “diálogos” com elementos inconscientes e eventualmente conscientes que se ajustam e desajustam na busca de sintonia entre livre-associação e atenção flutuante. Ilustraremos o tema com vinhetas clínicas de um mesmo paciente ao longo do seu tratamento e desenvolvimento. Diferentes formas de comunicação não verbal podem ser observadas mesmo na presença de uma patologia grave. As vinhetas são pinçadas de vários momentos e estágios evolutivos de Téo, um menino que até os 9 meses apresentou um desenvolvimento dito normal. Após uma vivência traumática interrompeu sua comunicação. O tratamento iniciou aos 5 anos do paciente e teve uma duração de 16 anos. Partimos da patologia para nos aproximarmos do desenvolvimento normal. Tal como Melanie Klein utilizou o material de um paciente que não simbolizava (Dick) para falar de símbolos, utilizaremos o material de Téo, inicialmente sem comunicação, para falarmos da comunicação. DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-CLÍNICO Téo tinha 5 anos no primeiro contato com sua analista. Era marcante o seu desligamento do mundo à sua volta. O olhar era vazio e distante e o balanceio do corpo intenso. Qualquer movimento, ainda que estimulado, só acontecia quando conduzido. Caminhava como um "robot" de forma automática, quase sem vida. A comunicação parecia impossível. Vemos Teo, neste momento isolado, impossibilitado de comunicar-se com o mundo externo. O desejo e a intenção de comunicação estão alojados no objeto externo. A postura, a expressão e os movimentos do corpo de Téo são códigos à espera da recepção e tradução do seu sentido. A mãe e a analista tentam compreender os significados de suas ações e se comunicar com ele. No paciente não há comunicação pré-verbal; Téo não busca o objeto. 6 O início das cinco sessões semanais era sempre igual: a analista ia até a sala de espera para buscá-lo. Aí a reação - ou a não reação - dava-se sempre no “mesmo tom”: Téo não olhava, não se conectava, e então, com o auxilio da mãe e da analista dirigia-se até a sala de atendimento. Lá sentava, começava seu balanceio, buscava a palha1 permanecendo fechado em seu mundo. Para chamá-lo, a analista sentava a sua frente, buscava seus olhos e ia lhe descrevendo tudo o que tinha na sala e na caixa de brinquedos. Na sala de atendimento havia também uma caixa de areia e este parecia ser o lugar mais confortável para Téo. Catava algum uma “palha” que manipulava, estereotipadamente em frente ao seu rosto. No estado dual inseparável entre mãe e bebê, a vivência messiânica, é ameaçada com o nascimento. Este estado original de ruptura desperta uma ansiedade primitiva que Freud denominou de Urangst. “Aniquilamento” (Melanie Klein, Bion, Meltzer); “desmantelamento” (Winnicott, Meltzer); “rupturas no senso de continuidade” (Winnicott) são termos que encontramos na literatura. “Estes estados mentais de angústia primitiva, originada pela separação do objeto quando o ser humano ainda não pode conceber em palavras ou pensamentos suas vivências, eqüivalem ao sucumbir. A dor psíquica pela separação vem do pesar pela perda de algo anterior”. (Bornholdt, I. 2001, p. 5). Através dos olhos e do contato boca-seio, o bebê tenta restabelecer a união. O seio é o primeiro objeto a emergir de sua confusão sensorial. As primeiras noções e representações surgem a partir de percepções traduzidas e atendidas pela mãe. Assim sendo, os rudimentos de representações de espaço e de tempo surgem da relação objetal na qual há vivências de ser alimentado, ter sido alimentado e de vir a ser alimentado, de alguma forma, por alguém. Há um trânsito, entre elementos corporais (pré-verbais) de um lado e significação no outro (no objeto externo). No clima emocional desta interação o ego que, antes de tudo, é um ego corporal (Freud, 1923), inicia sua capacidade de comunicar-se não verbalmente. A entonação entre o pré-verbal do bebê e o verbal da mãe conduz o primeiro, progressivamente, ao pensar e dizer. Deste encontro entre o exercício de laleo do bebê (“música de linguagem”) e a verbalização da mãe emerge um início de simbolização (Meltzer). 1 palha: denominação dada pelos pais a qualquer fio ou cisco que encontrasse, cuja característica era de ser muito fino ou/e comprido. O nome “palha” surgiu porque, inicialmente, eram cabinhos de trigo. 7 O “som” emitido pela mãe formado pelos ritmos cardíacos, respiratórios, compassos, entonação da voz, “setting” da amamentação, postura, expressão facial, cheiro, movimento corporal e gestos evoca respostas no bebê. Nesta interação “musical”, os sons da mãe funcionam como objeto organizador e continente para as vivências primitivas ainda não significadas. A integração harmônica destes múltiplos elementos “sonoros” compõe uma melodia pela união de notas e frases musicais em continuidade temporal. A psicanálise poderia ser imaginada como um contínuo ensaio no qual são criadas estas melodias. De acordo com Meltzer, “a linguagem na sua gênese tem dois caminhos, um nível mais primitivo de canção-dança (a forma mais primitiva de formação de símbolos), para a comunicação de estados mentais e emocionais mediante o uso não patológico da identificação projetiva. A este cimento de gramática profunda se superpõe, posteriormente o nível lexical das palavras para designar objetos, ações e qualidades do mundo externo, ou seja informação” (p. 207). Sugere ainda este autor que “...a evolução do nível canção-dança do discurso gramatical profundo de laleo e balbuciar, ao nível lexical da comunicação social, depende do passo do Teatro Bucal a um Teatro Onírico, para gerar os sentidos. Isto significa que a diferenciação do mundo externo e interno é essencial para compreender que se um quer que seus pensamentos sejam transmitidos, deve vocalizá-lo...” (p. 212). Nesse processo de aprendizado para pensar as emoções, destaca-se a função rêverie materna (relação continente-conteúdo). Estamos dentro do fenômeno da comunicação primitiva que ocorre através da identificação projetiva realista (Bion) na “linguagem” entre self e objeto. A curiosidade se desenvolve no bebê impulsionando-o em direção ao objeto. Surgem as primeiras noções de self e objeto que auxiliam o bebê a colocar-se em um sistema espaço-temporal do mundo externo e interno. A criança pequena ao explorar a mãe, de acordo com Klein, explora seu corpo e descobre o mundo. Podemos pensar esse sofisticado processo de exploração como a base da comunicação. O êxito desta comunicação resultará, então, no “aprender com a experiência” (Bion, 1962). As experiências de reciprocidade afetiva propiciam compartilhar um mesmo estado mental gerando um sentido de identidade e estabelecimento do self 8 corporal. A repetição de experiências desenvolve na mente a capacidade de representar a ausência e, posteriormente, simbolizar e desenvolver a palavra, o pensamento, o rabisco, a imaginação, o desenho e a capacidade para brincar. Em Téo não podemos observar o registro da dor pela ausência, pois não registra a presença. O pequeno paciente ainda não pode simbolizar. Permanece mergulhado dentro de si mesmo com mínima possibilidade de comunicar-se com o mundo externo. O bebê nasce preparado para encontrar-se com a verdade (MoneyKirle, Meltzer, Bion) e equipado com um impulso para conhecer. A relação com o seio pensante da mãe (vínculo K) capacita-o para tolerar as frustrações. Esta primeira relação de objeto é básica e imprime um modelo de relacionamento, no qual se desenvolvem conceitos. As deformações tanto na constituição quanto na utilização do modelo (pensemos em Téo) também fazem parte da formação dos alicerces de uma relação com o mundo. Esta relação, gradualmente, estabelece códigos e formas que vão do pré-verbal ao verbal. A criança necessita desenvolver o conceito de espaço-tempo (as noções de algo anterior e posterior ao momento bem como as da existência de espaços com um “dentro” e um “fora”) para desenvolver o pensamento onírico e, após, o pensamento verbal. A análise estava no segundo ano. As respostas de Téo se observavam mais na entrada e saída das sessões. Ele já não precisava mais ser conduzido. Quando via a analista lhe estendia a mão. A mãe comunicou que, às vezes, Téo almoçava e ia até a porta (a sessão era depois do almoço). Surgem insipiente representações temporais. Dentro do consultório, a atividade consistia em ficar sentado na caixa de areia e jogar repetitivamente areia sobre si mesmo. A analista lhe descrevia que ele estava se cobrindo e Téo respondia continuando o movimento, que algumas vezes era intercalado pelo uso da palha e o balanceio. Certo dia, o balanceio ficou muito intenso e Téo começou a chorar pela primeira vez revelando o (re)início de uma permeabilidade ao mundo externo. Algo estava sendo comunicado. Tudo parecia tão igual, no entanto, ouviam-se foguetes ao longe. Numa segunda vez que isso aconteceu, novamente havia foguetes lá fora e, desta vez, mais intensos o que provocou uma reação mais intensa em Téo. Agora, além de chorar, batia com a cabeça na parede. Téo estava reagindo, mostrando medo, pavor, angústia. A analista lhe disse que tinha um 9 barulho muito forte “lá fora” e que ele parecia assustado “lá dentro” (tênues representações espaciais). Teria ele “perdido a voz” quando aos 9 meses chamou tanto pelo objeto e este não veio? Ter alguém que possa sentir seu medo, ouvir seu choro, poderá possibilitar que ele readquira a voz? É uma conjetura imaginativa (Meltzer). No desenvolvimento normal ocorrem constantes e graduais traduções do inconsciente ao consciente. A mãe para o bebê, o analista para o analisando ou ainda uma parte da própria mente com uma outra parte “comunicam-se” realizando estas traduções de significados. Há um canal de comunicação entre o que é mais primitivo e o que é mais desenvolvido. Este canal é necessário para escoar o fluxo de emoções e vivências que, assim, adquirem significado e representação em processos secundários. O êxito depende da fertilização e desenvolvimento do modelo ♀♂. Para Matte-Blanco a comunicação se efetua pela função tradutora da mente. Esta permite uma aproximação da experiência emocional primitiva, e a entrada da realidade emocional no campo da consciência. O espaço mental surge no lugar do objeto originário concreto e a atividade do pensamento, encontra nas emoções, que partem do corpo, sua matriz originária. A partir do registro dos sentimentos despertados na relação com o mundo de objetos que também estão no mundo externo (como o som de foguetes de “fora” que causam medo “dentro”) outros foram ocorrendo. No decorrer do terceiro ano a analista observa o primeiro olhar de Téo para algo: uma tomada de luz. Olhou fixa e atentamente para a tomada durante toda uma sessão. Após, veio a informação da mãe de que havia estado em sua casa um eletricista e que Téo acompanhara o seu trabalho parecendo interessado. Foram, então, incluídos fios elétricos e pequenos postes2 de madeira em sua caixa. Desta vez, ao invés do olhar vazio, Téo olhou para este material e colocou as suas mãos sobre as da analista para tocá-lo. Manuseou por muitas sessões os fios até se interessar pelos postes! Olhou-os por muitas sessões e só depois pegou uma dessas pequenas madeiras enrolando os fios nela. Fez isso durante as sessões de aproximadamente um mês. A analista o acompanhava em silêncio observando seus movimentos internos e também traduzindo muitas vezes em palavras e gestos 2 Postes: pequenos pedaços de madeira de aproximadamente 30 cm de comprimento e 3 cm de diâmetro. 10 circulares com os próprios braços e mãos dizendo “Téo, enrolado, enrolando... Teo enrolado em si mesmo...Téo, Téo, Téo...”. Após mais um mês aproximadamente, Téo foi para a caixa de areia levando para lá os fios e os postes. Enquanto a analista lhe descrevia seus movimentos mais autônomos e seu humor mais alegre com o que ocorria ali, Téo surpreendeu novamente. Tomou uma segunda destas lascas de madeira e ligou os dois postes com o fio. Agora a analista descreve e interpreta seus sentimentos de “estar ligado”. Ele emerge mais e mais do seu próprio universo. Até ria com a analista em um clima temporário de satisfação e contentamento nas sessões. Podemos pensar que Téo começa a brincar e o brincar se amplia com a inclusão de mais postes e possibilidades, interpretados como novos aspectos e outros objetos. Esta vinheta destaca a importância da passagem da incomunicabilidade à comunicação pré-verbal. O “novo olhar” demonstra que agora já há uma ligação com a analista. Téo segue evoluindo no setting analítico e fora dele. O olhar já não está perdido e os familiares se mostram entusiasmados com os progressos de Téo procurando estimulá-lo. Neste contexto é anunciada a gravidez da mãe. Téo chega a sessão que sucede a notícia sem olhar para a analista e nada que está a sua volta. A palha volta a ser usada intensamente. O balanceio também é intenso e ele bate com a cabeça na parede. Nas sessões grita, se urina e joga areia sobre si, porém agora com força, parecendo não querer sentir-se envolvido e sim, querer sucumbir a ela. Há uma forte regressão. No entanto agora (como no evento dos foguetes) Téo já registra e comunica sua dor e sofrimento. A analista trabalha relacionando todo o seu estado e manifestações com a gravidez da mãe. A raiva, medos e ameaça que este bebê representa. Téo, durante muitas sessões parece não ouvir. É puro balanceio e palha. Nasce o irmão e ele coloca mais um poste na sua brincadeira. Téo está podendo ampliar o seu mundo com novos objetos e novos recursos de comunicação. A atividade lúdica é uma das excelentes formas de comunicação não verbal. Através dela a criança se comunica subjetiva e objetivamente, já capacitada a estabelecer relações simbólicas. O brincar promove o desenvolvimento, a subjetividade e, como Freud (1920) ensinava, é uma forma de elaborar conflitos inconscientes permitindo, simultaneamente, o movimento entre prazer e desprazer. 11 O mecanismo de personificação no jogo das crianças estudado por Klein (1929) permite que estas atribuam os papéis mais variados e contraditórios de aspectos do seu mundo interno aos personagens que imaginam. Assim, brincando, a criança pode se comunicar não verbalmente, satisfazendo pulsões, empregando defesas e elaborando mais e mais realidades internas e externas. O brincar é a área potencial (Winnicott, 1951) de um complexo de fantasias e ilusões criado na faixa intermediária entre o mundo interno e externo. Este mesmo autor revela a preparação do caminho para um brincar juntos e estabelece uma analogia com o processo analítico. Téo sai definitivamente da caixa de areia e está no seu terceiro ano de análise. Deixa os postes de lado e começa a brincar com os brinquedos da sua caixa, mais intensamente com a família. Após mais dois anos sua mãe telefona para a analista e informa que ele disse sua primeira palavra: ‘chega’. Estava tendo uma crise de brabeza, o pai gritou ‘chega’ e ele repetiu ‘chega’. Na sessão, Téo vai direto para a caixa e pega um carrinho. A analista intervém dizendo: A – Hoje não vamos brincar de família. Chega de brincar de família.T – Chega. Ficam por um tempo repetindo o ‘chega’, enquanto ele move o carro em círculo. Podemos pensar a palavra "chega" e sua relação com a função paterna. A interdição paterna foi determinante para o fim do silêncio de Téo. Ademais, nos parece interessante ser o "chega" a sua primeira palavra. Chega de silêncio! Seria este o significado? Interessante retomar aqui o fator traumático relacionado com o desligamento de Téo do mundo, ou da sua reclusão em seu próprio mundo. Ele ficara sozinho, abandonado gritando muito. Supõe-se que tenha ficado neste estado por muitas horas sem que ninguém viesse em seu auxílio. Ninguém pôde dizer-lhe um "chega, tu não estás mais sozinho, o pai e a mãe estão contigo". Anos depois Téo está de novo aos gritos. Agora a mãe e o pai estão ali podendo acolher, dizendo o "chega" que aos 9 meses não pode ser dito em tempo hábil. Levantamos a hipótese de que houve uma ressignificação da situação traumática e a conseqüente interrupção do seu silêncio. 12 Virginia Ungar destaca que a atitude analítica é metacomunicada na sessão. Gradualmente o paciente toma este modelo da capacidade de imaginar do analista identificando-se. Para Ungar, desta forma, surge o criativo e o novo no interjogo da capacidade de imaginar de ambos os membros da dupla analítica. Com o desenvolvimento cognitivo em andamento e o processo simbólico mais disponível, também a expressão gráfica se desenvolve como possibilidade de comunicação não verbal. O desenho pode ser equiparado a uma comunicação narrativa, uma forma análoga ao discurso verbal do adulto. Porém sua expressão simbólica contém formas de representações semelhantes ao trabalho onírico. Enquanto a comunicação verbal está mais voltada para o processo secundário e o pensamento racional e lógico, a comunicação gráfica permanece com os conteúdos tanto de processo primário como secundário, podendo ser analisado com as mesmas propriedades do sonho. Isto adquire particular importância se levarmos em consideração que as conexões entre os símbolos e o que é simbolizado tornam-se cada vez mais inconscientes durante o desenvolvimento da repressão e das defesas que fazem parte do crescimento. Téo também passou a utilizar desenhos como recurso de comunicação mesmo depois de adquirir a linguagem falada. Aos 21 anos chega numa sessão e diz: Chorei. A – Por que tu choraste? T – Não dá de dizer. A – Será que dá para dizer desenhando? Téo ruboriza, pega o lápis vermelho e desenha algo como um coração e uma flecha. Pinta o restante da folha de preto. A analista diz que ele está falando algo sobre o amor e Téo ri sem jeito, abaixa a cabeça. .A – E o coração está com esta flecha e com preto em volta porque tu achas que ela não gosta de ti? T – Ela tem namorado. Nunca vai gostar de mim. Pega outra folha e desenha um menino comentando: ele tá sempre sozinho. A analista lhe diz que ele se sente sozinho. T – Eu sou esquisito, ninguém de guria vai me querer .Depois disso diz que quer brincar de carrinho e caminhão. T – O caminhão tem que carregar uma grande mudança pra bem longe, mas o carrinho tem que ir sempre junto. COMENTÁRIOS FINAIS Meltzer destacou que, quanto mais integrado o indivíduo, maior sua capacidade de imaginação e, aqui acrescentamos, de comunicação. Ressaltamos que a comunicação não verbal permanece presente em todas as etapas posteriores nas quais outras possibilidades mais desenvolvidas vão se somando. 13 Retornando a Téo e sua psicopatologia, podemos observar o desenvolvimento psíquico como um filme em câmara lenta. A capacidade de comunicação instalou-se gradualmente ao longo de 16 anos de tratamento: Téo e o balanceio; Téo e a palha; Téo e o choro; Téo e a tomada; Téo e os fios; e, finalmente, Téo e a palavra. Evolutivamente o que era apenas corporal e emoções foi tendo uma representação também psíquica. Um espaço mental surgiu e Téo foi realizando conjeturas sobre objetos concretos, sensações e fenômenos tanto a sua volta quanto nos seus sentimentos. Nesta exploração, então, foi desenvolvendo, na medida do possível, capacidades para brincar, desenhar e falar. A maior capacidade de discriminação e alguma percepção da transitoriedade registram uma experiência de vida já um tanto rica e dolorosa, revelando alguma capacidade para se comunicar e transitar no mundo externo e interno. Pode-se pensar que nos primeiros estágios da análise havia uma incapacidade de tolerar o excesso de turbulência emocional. O "diálogo" analítico resgatou a capacidade de comunicação de Téo, que foi interrompida aos 9 meses. Através deste "diálogo" a experiência emocional enquistada foi ressignificada gerando novas construções psíquicas e novas formas de comunicação. Com tais elaborações Téo, aos poucos desenvolveu a possibilidade de olhar, se surpreender, tolerar o não saber, querer se comunicar, conhecer e ser conhecido. Cabe lembrar do choro, sua primeira reação sonora ao mundo externo e interno. Talvez apenas uma descarga motora. Mais tarde, com a interdição do pai surge o "chega", que significou o momento do basta, do "chega" de silêncio. Depois Téo consegue expressar verbalmente para a analista que tem sentimentos e fantasias (um mundo íntimo e privado), que necessita transmitir, compreender, conhecer, tornar-se mais criativo e imaginativo, mas "não dá de dizer" para uma mulher. E assim vai embora, partindo no seu "caminhão mudança", levando seu "carrinho", talvez significando um mundo interno mais povoado e humanizado; um self mais constituído e discriminado. No encontro com nossos pacientes partilhamos estados emocionais na busca de significados para suas estruturas enigmáticas. Isso nos coloca no centro da psicanálise, ou seja, no fenômeno da comunicação que inicia de inconsciente para inconsciente. Nossas intervenções verbais, bem como aquelas que vêm através da nossa ação e atitude, são produtos gerados pela comunicação inconsciente traduzida (em alguma medida) para o consciente. Quando 14 descrevemos situações e interpretamos, o material não verbal é transformado em verbal. No canal de comunicação há um fluxo de material inconsciente que pode se conscientizar parcialmente e que liga os pacientes de todas as idades e níveis de funcionamento ao seu analista. Pelo silêncio, ação, brincar, olhar, fala, tom emitemse mensagens a procura de significados. De fato, ao falarmos sobre comunicação não verbal, nos referimos a uma extensa rede cujos canais interligam diferentes vias dentro do analista, dentro do paciente e entre paciente e analista. Em cada traço de caráter da personalidade de cada indivíduo, habita um enredo imaginativo que pode ser compreendido ou não. Porém, o não verbal sempre flui nas profundezas das comunicações. 15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARANGER, W (1971). Posición y Objeto en la Obra de Melanie Klein. Buenos Aires: Kargieman. BION, W, R (1975). A Memoir of the Future. Imago. ______. (1962). Aprendiendo de la Experiencia. Buenos Aires: Paidós, 1996. ______. (1963). Elementos del Psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1966. 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