INTRODUÇÃO Esta é a nossa primeira aula de Genética. Você já ouviu falar várias vezes deste tema. Deve também ouvir muito na mídia da importância dos avanços da Genética para nossa sociedade. É mesmo de esperar que se fale muito em Genética; como Moore chamou a atenção, esta ciência está na base do entendimento de diversas áreas da Biologia. Mas será que você realmente entende o objeto de estudo da Genética? Vamos fazer uma viagem ao passado e acompanhar os passos que levaram à construção do nosso conhecimento sobre a natureza e transmissão da herança biológica. Essa estratégia está baseada no artigo Science as a way of knowing – Genetics, publicado por Moore em 1986 no periódico American Zoologist (Volume 26: 573-747). Chamamos de Genética a ciência que estuda a natureza do gene e os mecanismos de herança biológica. A Genética é um dos campos do conhecimento que mais se desenvolveu no último século. É incrível imaginar que até o século XX muito pouco se sabia sobre a natureza da hereditariedade e que neste início do século XXI estamos cercados dos avanços dessa ciência. Embora a curiosidade pelo entendimento dos processos que resultam na transmissão da herança biológica remontem a cerca de 400 a.C., pode-se dizer que a ciência da Genética começou em 1865, com o trabalho de Gregor Mendel, um monge austríaco que formulou as leis fundamentais da herança. No entanto, seu trabalho só foi descoberto pela comunidade científica em 1900, e a partir daí o esforço e a criatividade de muitos pesquisadores, associados a um modelo de metodologia científica, permitiram grandes avanços na compreensão dos eventos pelos quais os fatores de Mendel, que hoje chamamos de genes, expressam sua informação. Passamos das obscuras unidades que Mendel chamava de “fatores” para a identificação do DNA como a base química da herança. Esse conhecimento gerou tecnologia que vem permitindo manipular o material genético, ampliando nossa visão de como os genes funcionam, como podem ser detectados, modificados ou corrigidos. Veja no quadro a seguir alguns exemplos da aplicação dos avanços conquistados pela Genética nas últimas três décadas do século XX. Não é preciso ser um geneticista para já ter ouvido falar deles, pois estão no nosso dia-a-dia, sendo relevantes para muitos aspectos da vida humana e da sociedade, incluindo saúde, produção de alimentos e questões jurídicas. 1976 - Criada a primeira companhia de Engenharia genética, a Genetch, que produziu a primeira proteína humana em uma bactéria geneticamente modificada e, em 1982, comercializa a primeira droga produzida pela Engenharia Genética, a insulina humana. 1983 – É mapeado nos EUA o primeiro gene relacionado a uma doença, um marcador para a doença de Huntington encontrado no cromossomo 4. O estudo permitiu o desenvolvimento de um teste diagnóstico. 1985 – O britânico Alec Jeffrey publica artigo que descreve a técnica de identificação que ficou conhecida como “impressão digital” por DNA, que permitiu a elucidação mais precisa de crimes e testes de paternidade. 1986 – Plantas de tabaco geneticamente modificadas para se tornarem resistentes a herbicidas são testadas em campo pela primeira vez, nos EUA e França. 1990 – A terapia genética é utilizada pela primeira vez, com sucesso, em uma menina de quatro anos com um tipo de deficiência no sistema imunológico chamado ADA. 1994 – Liberação do tomate Favr Savr, o primeiro alimento geneticamente modificado cuja venda é aprovada pela FDA (agência de fármacos e alimentos dos EUA). 1996 – Nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado a partir de uma célula de um animal adulto pelo Instituto Roslin (Escócia) e pela empresa PPL Therapeutics. Dolly morreu de envelhecimento precoce em fevereiro de 2003. 2000 – Pesquisadores do consórcio público Projeto Genoma Humano e da empresa privada norteamericana Celera anunciam o rascunho do genoma humano, que seria publicado em fevereiro de 2001. No Brasil, pesquisadores anunciam o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, a causadora da doença do amarelinho em cítricos. Fonte: Folha de S. Paulo, especial 1953 DNA 2003 – A hélice do milênio, páginas 4 e 5. Artigo produzido por Luisa Massarani (jornalista) e Fábio Gouveia (biólogo), do Museu da Vida / Casa Oswaldo Cruz / Fiocruz e Ildeu de Castro Moreira, professor de Física e História da Ciência da UFRJ. ENTÃO, VAMOS VOLTAR NO TEMPO? A curiosidade pela forma como as características são transmitidas gerações após gerações é muito antiga. Já na Grécia, cerca de 400 a.C., o filósofo Hipócrates, considerado o Pai da Medicina, propôs a hipótese da pangênese para explicar a transmissão de características entre as gerações. Hipócrates admitia que a hereditariedade baseava-se na produção de partículas por todas as partes do corpo e na transmissão dessas partículas para a descendência no momento da concepção. Note que nessa hipótese está embutido o conceito de hereditariedade de caracteres adquiridos, o que foi retomado por Lamarck muito tempo depois. Aristóteles (384-322 a.C.), em seu livro Geração dos Animais, que trata de problemas de hereditariedade e de desenvolvimento, discutiu a hipótese da pangênese proposta por Hipócrates e não considerou que essa fosse uma boa explicação para a transmissão da herança. Entre os argumentos para rejeitar a hipótese da pangênese, Aristóteles inclui: 1. Podem-se observar semelhanças entre pais e filhos que não se restringem à estrutura corporal, como a voz ou o jeito de andar. Como características não estruturais poderiam produzir as tais partículas para sua transmissão? 2. Certas crianças pareciam herdar características de ancestrais remotos; 3. Indivíduos mutilados podiam produzir descendência perfeita; 4. Se o pai e a mãe produzem partículas precursoras de todo o corpo, os descendentes não deveriam ter duas cabeças, duas pernas etc.? Segundo Aristóteles, deveria haver uma base física para a hereditariedade no sêmen produzido pelos pais. Ele questiona: “Por que não admitir diretamente que o sêmen... origina o sangue e a carne, ao invés de afirmar que o sêmen é ele próprio tanto sangue quanto carne?” Embora não pareça, a contribuição de Hipócrates e Aristóteles foi um grande começo. Hipócrates foi capaz de identificar um problema científico: como se dá a transmissão de características entre as gerações? Este é, possivelmente, o passo mais difícil de todos para o avanço do conhecimento. Ele ainda propôs uma hipótese explicativa e a escreveu de maneira compreensível. Aristóteles também propôs uma hipótese para explicar a hereditariedade que, embora vaga, foi fundamental para todo trabalho posterior na área. Essa idéia permitiu que se deixasse de atribuir à hereditariedade uma base sobrenatural ou emocional e se passasse a pensá-la como resultado da transmissão de algum tipo de substância pelos pais. Durante a Idade Média o interesse pelas questões científicas praticamente cessou no mundo ocidental. Foi o período em que a Igreja exerceu hegemonia sobre o pensamento humano. Com a RENASCENÇA, o interesse volta, a observação e a experimentação passam a ser aplicadas de forma sistemática na tentativa de compreender a natureza. Para compreendermos os avanços da Genética a partir dessa retomada da investigação científica, precisaremos ter uma noção de como evoluiu a nossa maneira de fazer e pensar a ciência.