A ESCUTA DA PALAVRA DE DEUS 1. “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, dar-nos a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), isto é, que todas as pessoas, por meio de Cristo, a Palavra feita carne, tenham acesso ao Pai, no Espírito Santo, e assim se tornem participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4)”.[6] “A novidade da revelação bíblica consiste no fato de que Deus se faz conhecer por meio do diálogo que Ele deseja ter conosco”.[7] A teologia, em todas as suas diversas tradições, disciplinas e métodos, está radicada no ato fundamental de ouvir na fé a Palavra de Deus revelada, o próprio Cristo. A escuta da Palavra de Deus é o princípio definitivo da Teologia Católica, que leva à compreensão, ao anúncio e à formação da comunidade cristã: “a Igreja é edificada sobre a Palavra de Deus, ela nasce e vive por essa palavra”.[8] “O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais também em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3).[9] O mundo inteiro deve ouvir o chamado à salvação, “a fim de que, pelo anúncio da salvação, ouvindo creia, crendo espere, esperando ame”.[10] 2. Teologia é a reflexão científica sobre a revelação divina, que a Igreja aceita pela fé como verdade salvífica universal. A plenitude e a riqueza desta revelação são muito grandes para ser acolhidas por uma única teologia, e, de fato, como são recebidas de maneiras diversas pelos seres humanos, dão origem a múltiplas teologias. Na sua diversidade, todavia, a teologia está unida no serviço à única verdade de Deus. A unidade da teologia, portanto, não requer uniformidade, mas sim um único foco na Palavra de Deus e uma explicação de suas riquezas inumeráveis pelas teologias, capazes de dialogar e se comunicar umas com as outras. Da mesma forma, a pluralidade de teologias não deverá implicar fragmentação ou discórdia, mas sim a exploração das inumeráveis formas da única verdade salvífica de Deus. 1.1. O primado da Palavra de Deus 3. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). O evangelho de João começa com um “prólogo”. Este hino destaca o alcance cósmico da revelação e o ponto culminante da revelação na encarnação da Palavra de Deus. “O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,3-4). Criação e história constituem o espaço e o tempo em que Deus revela a si mesmo. O mundo, criado por Deus por meio de sua Palavra (cf. Gn 1), é também, no entanto, o cenário para a rejeição de Deus pelo seres humanos. Todavia, o amor de Deus para com eles é sempre infinitamente maior; “e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam” (Jo 1,5). A encarnação do Filho é a culminância de seu imutável amor: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). A revelação de Deus como Pai, que ama o mundo (cf. Jo 3,16; 35), realiza-se na revelação de Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, o Filho de Deus, o “Salvador do mundo” (Jo 4,42). “Muitas vezes e de modos diversos”, Deus falou através dos profetas dos tempos antigos; mas na plenitude dos tempos, ele nos falou “por meio de seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb 1,1-2). “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que estava voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18). 4. A Igreja venera extremamente as Escrituras, mas é importante reconhecer que a fé cristã não é uma “religião do livro”; cristianismo é a “religião da Palavra de Deus”, não de “uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo”.[11] O evangelho de Deus é fundamentalmente testemunhado pela Sagrada Escritura do Antigo e Novo Testamento.[12] As Escrituras são “inspiradas por Deus e consignadas por escrito de uma vez para sempre”; portanto, “comunicam imutavelmente a palavra do próprio Deus e fazem ressoar através das palavras dos Profetas e Apóstolos a voz do Espírito Santo”.[13] A Tradição é a transmissão fiel da Palavra de Deus, testemunhada no cânon das Escrituras por meio dos profetas e apóstolos e na leiturgia (liturgia), martyria (testemunho) e diakonia (serviço) da Igreja. 5. Santo Agostinho escreveu que a Palavra de Deus foi ouvida por autores inspirados e transmitida por suas palavras: “Deus fala através de um ser humano em forma humana; e, falando assim, ele nos procura”.[14] O Espírito Santo não só inspirou os autores bíblicos para encontrarem as palavras certas de testemunho, mas também assiste os leitores da Bíblia em cada época para entender a Palavra de Deus nas palavras humanas das Sagradas Escrituras. A relação entre a Escritura e a Tradição está enraizada na verdade que Deus revela na sua Palavra para nossa salvação: “os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, para nossa salvação, quis confiar nas Sagradas Escrituras”,[15] e através dos tempos o Espírito Santo “induz os fiéis a toda verdade e faz habitar neles abundantemente a palavra de Cristo em toda a sua riqueza (cf. Cl 3,16)”.[16] “A Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé”.[17] 6. Um critério da teologia católica é o reconhecimento da primazia da Palavra de Deus. Deus fala “muitas vezes e de modos diversos”: na criação, através dos profetas e sábios, por meio das Sagradas Escrituras e, de forma definitiva, através da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Verbo feito carne (cf. Hb 1,1-2). 1.2. A fé, resposta a Palavra de Deus 7. São Paulo escreve em sua carta aos Romanos: “A fé vem da pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rm 10,17). Aqui, ele ressalta dois pontos importantes. De um lado, ele explica que a fé decorre da escuta da Palavra de Deus, sempre “pelo poder do Espírito de Deus” (Rm 15,19). Por outro lado, ele esclarece os meios pelos quais a Palavra de Deus chega aos ouvidos humanos: fundamentalmente, por meio daqueles que foram enviados para proclamar a Palavra e para despertar a fé (cf. Rm 10,14-15). Disso resulta que a Palavra de Deus por todo o tempo pode ser proclamada autenticamente apenas sobre o fundamento dos apóstolos (cf. Ef 2,20-22) e na sucessão apostólica (cf. 1Tm 4,6). 8. Visto que Jesus Cristo, o Verbo feito carne, “é simultaneamente o Mediador e a plenitude de toda a Revelação”,[18] a resposta que a Palavra procura, ou seja, a fé, é também pessoal. Pela fé, os seres humanos se entregam inteiramente a Deus, em um ato que envolve a “total submissão” do intelecto e da vontade ao Deus que se revela.[19] “A obediência da fé” (Rm 1,5) é, portanto, algo pessoal. Pela fé, os seres humanos abrem seus ouvidos para escutar a Palavra de Deus e também suas bocas para oferecer-lhe oração e louvor; eles abrem seus corações para receber o amor de Deus, que é derramado neles através do dom do Espírito Santo (cf. Rm 5,5); e “a fim de que pela ação do Espírito Santo a vossa esperança transborde” (Rm 15,13), uma esperança “que não decepciona” (Rm 5,5). Assim, uma fé viva pode ser entendida como abrangendo tanto a esperança quanto amor. Paulo enfatiza, além disso, que a fé evocada pela Palavra de Deus reside no coração e dá origem a uma confissão verbal: “Se confessares com a tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Pois quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,9-10). 9. A fé, portanto, é a experiência de Deus, que implica o conhecimento dele, visto que a revelação dá acesso à verdade de Deus que nos salva (cf. 2Ts 2,13) e nos torna livres (cf. Jo 8,32). Paulo escreve aos Gálatas que, enquanto crentes, “conhecendo Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus” (Gl 4,9; cf. 1Jo 4,16). Sem a fé seria impossível ter uma percepção dessa verdade, porque ela é revelada por Deus. Além disso, a verdade revelada por Deus e acolhida na fé não é algo irracional. Pelo contrário, ela dá origem ao “culto espiritual (logiké latreía)”, que Paulo afirma envolver a renovação da mente (Rm 12,1-2). Que Deus existe e é um, o Criador e o Senhor da história, pode ser conhecido com a ajuda da razão a partir das obras da criação, de acordo com uma longa tradição encontrada no Antigo (cf. Sb 13,1-9) e no Novo Testamento (cf. Rm 1,18-23).[20] No entanto, somente através da fé podemos conhecer que Deus se revelou a si mesmo através da encarnação, morte e ressurreição de seu Filho para a salvação do mundo (cf. Jo 3,16), e que Deus em sua vida interior é Pai, Filho e Espírito Santo. 10. “Fé” é tanto ato de crença ou de confiança quanto também o que é crido ou confessado, ou seja, fides qua e fides quae, respectivamente. Ambos os aspectos operam juntos inseparavelmente, uma vez que a confiança é a adesão a uma mensagem com um conteúdo inteligível, e a confissão não pode ser reduzida a simples palavras sem conteúdo, mas deve vir do coração. A fé é, ao mesmo tempo, uma realidade profundamente pessoal e eclesial. Ao professar a própria fé, os cristãos dizem tanto “eu creio” quanto “nós cremos”. A fé é professada na koinonia do Espírito Santo (cf. 2Cor 13,13), que une todos os cristãos a Deus e entre si (cf. 1Jo 1,1-3), e atinge a sua expressão máxima na Eucaristia (cf. 1Cor 10,16-17). As profissões de fé se desenvolveram no seio da comunidade dos fiéis desde os tempos mais antigos. Todos os cristãos são chamados a dar testemunho pessoal da própria fé, mas os Credos permitem a Igreja de professar a sua fé. Essa profissão de fé corresponde ao ensinamento dos apóstolos, à Boa Nova, na qual a Igreja permanece firme e pela qual é salva (cf. 1Cor 15,1-11). 11. “Houve, contudo, também, falsos profetas no seio do povo, como haverá entre vós falsos mestres, os quais trarão heresias perniciosas, negando o Senhor que resgatou e trazendo sobre si repentina destruição” (2Pd 2,1).[21] O Novo Testamento mostra abundantemente que, desde os primórdios da Igreja, algumas pessoas propuseram uma interpretação “herética” da fé comum, uma interpretação contrária à Tradição Apostólica. Na primeira carta de João, a separação da comunhão de amor é um indicativo do ensinamento falso (1Jo 2,18-19). A heresia, portanto, não só distorce o Evangelho, como também prejudica a comunhão eclesial. “Heresia é a negação pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela”.[22] Quem é culpado de tal obstinação contra o ensinamento da Igreja deve substituir seu próprio julgamento pela obediência à palavra de Deus (o motivo formal da fé), a fides qua. A heresia serve como um lembrete de que a comunhão da Igreja só pode ser assegurada se fundada na base da fé católica em sua integridade, e impele a Igreja a uma busca cada vez mais profunda da verdade na comunhão. 12. Um critério da teologia católica é que ela tem a fé da Igreja como fonte, contexto e norma. A teologia mantém a fides qua e a fides quae unidas. Ela expõe o ensinamento dos apóstolos, a Boa Nova sobre Jesus Cristo, “segundo as Escrituras” (1Cor 15,3-4), como regra e estímulo da fé da Igreja. 1.3. Teologia, a compreensão da fé 13. O ato da fé, em resposta à Palavra de Deus, abre a inteligência do crente para novos horizontes. São Paulo escreve: “Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Jesus Cristo” (2Cor 4,6). Nessa luz, a fé contempla o mundo inteiro de uma maneira nova; o vê de um modo mais verdadeiro, porque, pelo poder do Espírito Santo, compartilha a perspectiva do próprio Deus. É por isso que Santo Agostinho convida todos os que buscam a verdade a “crer para compreender” (intelligas crede ut).[23] Recebemos “o Espírito que vem de Deus”', diz São Paulo, “a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus” (1Cor 2,12). Além disso, por meio desse dom, somos atraídos até para a compreensão do próprio Deus, porque “o Espírito tudo perscruta, até mesmo as profundezas de Deus”. Ao ensinar que “nós temos o pensamento de Cristo” (1Cor 2,16), São Paulo dá a entender que pela graça de Deus nós temos uma certa participação até no próprio conhecimento que Cristo tem de seu Pai e, assim, no conhecimento que Deus tem de si mesmo. 14. Tendo recebido pela fé “as insondáveis riquezas Cristo” (Ef 3,8), os crentes procuram entender cada vez mais plenamente o que eles acreditam, meditando em seus corações (cf. Lc 2,19). Guiados pelo Espírito e utilizando todos os recursos da sua inteligência, eles se esforçam para assimilar o conteúdo inteligível da Palavra de Deus, de modo que esta possa tornar-se luz e alimento para sua fé. Eles pedem a Deus que possam ser “levados ao pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda sabedoria e discernimento espiritual” (Cl 1,9). Este é o caminho que conduz à compreensão da fé (intellectus fidei). Como Santo Agostinho explica, isso se desdobra do próprio dinamismo da fé: “Aquele que agora entende por uma verdadeira razão aquilo que ele acreditava anteriormente apenas pela fé, com certeza é a ser preferido a quem ainda deseja entender o que crê. No caso deste não sentir tão pouco um tal desejo e considerasse como único objeto a crer a verdade que ainda devesse entender, ignoraria o próprio motivo da fé”.[24] Esse trabalho de inteligência da fé, por sua vez, contribui para alimentar a fé e fazê-la crescer.[25] Assim é que “fé e razão são como duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”.[26] O caminho do intellectus fidei é a trajetória para a crença, que é a sua fonte e princípio permanente, para chegar à visão na glória (à visão beatífica; cf. 1Jo 3,2), dos quais o intellectus fidei é uma antecipação. 15. O intellectus fidei assume várias formas na vida da Igreja e na comunidade dos crentes, de acordo com os diferentes dons dos fiéis (lectio divina, meditação, pregação, teologia como ciência, etc.). Torna-se teologia, no sentido estrito, quando o crente se compromete a apresentar o conteúdo do mistério cristão de uma forma racional e científica. A teologia é, portanto, scientia Dei na medida em que é uma participação racional no conhecimento de que Deus tem de si mesmo e de todas as coisas. 16. Um critério da teologia católica é que, precisamente como a ciência da fé, a “fé busca compreender” (fides quaerens intellectum),[27] ela tem uma dimensão racional. A teologia se esforça para compreender o que a Igreja crê, e que pode ser conhecido sub specie Dei. Como scientia Dei, a teologia procura compreender de forma racional e sistemática a verdade salvífica de Deus.