REVISTA BRASILEIRA 71 - I - Book.indb

Propaganda
Poe s i a
Poemas
Per Jo hns
F
iccionista, ensaísta, tradutor. Nascido no Rio de Janeiro, de
pais dinamarqueses, em 7/12/33. Formou-se em Direito,
mas nunca exerceu a profissão. Trabalhou em empresas industriais,
comerciais e de serviços, tendo vivido em S. Paulo de 1962 a 1970.
Foi cônsul da Dinamarca no Rio de Janeiro de 1978 a 1990. Reside atualmente em Teresópolis. Como crítico literário colaborou,
entre outros órgãos da imprensa, em O Globo (regularmente de 1977
a 1981), Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo. Aulas e conferências
de literatura brasileira nas Universidades de Aarhus, Copenhague e
Odense, na Dinamarca, no período de 1991 a 1997.
Como tradutor, verteu para o português entre outros autores
Hans Christian Andersen, Karen Blixen e J. P. Jacobsen.
Estreou em livro com o romance A revolução de Deus, em 1977.
Teve quatro de seus livros traduzidos para o dinamarquês, com boa
acolhida, além de contos traduzidos para o norueguês e italiano.
Prêmio Jabuti (As aves de Cassandra) – romance indicado – em
1991. Em 2006, seu livro Dioniso crucificado foi premiado pela Academia Brasileira de Letras, na categoria Ensaio, Crítica e História
Literária. Em 2011, o romance Hotéis à beira da noite esteve entre os
dez indicados para o Prêmio Jabuti.
239
Per Johns
(Pre) texto
Certas palavras
mais do que sentido,
sentem.
Rebelam-se
contra o impingido
e retornam às raízes
de um significado
perdido.
Nascem poema
e se extraviam na prosa.
Florescem nos passos
e se desfazem nos rastros.
Fulgem no rizoma
e se apagam na copada.
Urge ajudá-Ias
em sua volta sofrida
à flor da pele
de quem as pronuncia.
Marias
Marina Maria e la Parisô
Clara Maria e Pia Maria
Mariana ou Marialba ou Mary Lô
a de sobrenome Saudade
e até Marias sem nome.
240
Poemas Tecem-se e destecem-se
Em minhas noites insones
Rarefeitas, esgarçadas.
Como nuvens, perfeitas.
Quando elas estavam
Quem faltava era eu.
Agora que estou
são elas que se foram.
As quatro estações num país do Norte
Primavera
A madrugada
deslizou no espelho
de um lago
(havia cisnes
entre brumas).
Melros cantaram
em cheio
no vazio crepuscular
de meus passos.
Foi quando
sem ter dormido
amanheci.
Verão
O dia se alonga
claro, sem descanso
e o lusco-fusco
241
Per Johns
em fúria de branco
madruga insidioso.
Transfigura a noite
que se omite.
Outono
Lenta melancolia
de folhas rubras
tinge os dias,
embala as noites.
Desprendem-se nos ares
seivas e humores.
Espíritos se evolam
das raízes mortas.
O vento bate
às portas de quem somos
num silvo insistente.
Ninguém atende.
Inverno
Medram sementes
em frinchas de gelo.
Ressonam trigais
em campos sombrios.
Sonham pardais
em estalactites
de beirais arredios.
242
Poemas Sob a neve
tranquila, imóvel
a vida se faz saudade
do que já foi e é nada.
O mundo descansa,
a seiva hiberna.
Fermentam-se vinhos
das dores passadas.
Nesse sono fecundo
quem almejaria ainda
sofrer futuro?
A trapaça dos tordos
(...) Shall we follow
The deception of the thrush?
T.S.Eliot
Havia um melro cor de noite. Chamavam-no de sol-sorte. Na certa, porque
trazia sol no bico amarelo ao Norte ensombrado por mais um longo inverno.
Até os mortos ressuscitavam com seu canto.
E havia no Sul a pino, em quintais de antigamente, um seu irmão sulino,
todo preto até no bico. Apelidado de sol-das-almas, na certa porque iluminava
as pessoas por dentro. Trazia a quem o ouvia contrito um destino benfazejo.
Auguravam ambos que se uniriam numa alma sem distância. Ao ouvi-los,
ninguém mediria os confins da vida com números frios.
Ambos mentiam, trapaceavam.
Prometiam o que não passava de saudade antecipada.
243
Per Johns
Onde antes nascia a lua
Por trás do rendilhado verdejante
onde antes
a lua pastoreava
seus viventes
horda furiosa
armada até os dentes
avança e resseca
a sementeira das nascentes
e faz da lua exangue
um destroço
que se joga fora
Autorretrato
Se não se pode ter tudo
se o todo é defeso
tenha-se ao menos
o pouco que restou
no poço do esquecimento
e vive, além da morte
de cada instante.
Mazelas e querelas
corroeram o corpo
que encolheu, minguou
mas a alma sobreviveu
a si mesma
nos olhos que soletram
o que nunca teve
ou se perdeu.
244
Poemas Ars poetica
A arte de trazer para perto
o que está longe
sem que perca o encanto que tinha
quando estava longe, e era incerto.
Flor vista
uma única vez
e que não se repete.
As almas de Plotino
De seu áspero casulo entrevado
desprendem-se leves mariposas
ébrias de livores que se adivinham
nas débeis frinchas do escuro.
Ali revoam e se esfalfam em vão
até que um certo Vulcano, guardião
de almas que se desgarram do rebanho
aos resmungos torne a juntá-las
em sua gruta apinhada de escombros.
Os gnomos
Dizem que os gnomos
Esconderam-se nas raízes
cansados de aparecer para quem não os vê.
Agora, flutuam no limbo
de um nada florido
que insiste em ser tudo.
245
Per Johns
Educacão pelo nada
O que conta
não é nem a gramática
nem a taboada.
O que conta
é essa aragem que se espraia
janela adentro
ao sol do espanto.
Chaves oníricas
1
A cada chave que procuro
perco as que levava comigo
ou encontro as que não procurava.
Acabarei sem chave nenhuma
diante de portas fechadas
ou com muitas chaves
num vazio de portas
que já se abriram.
2
Abismado e solto
no éter puro
jogo fora as chaves
ou tolhido e preso
numa trama escura
fecho as portas
e me jogo fora.
246
Poemas O fauno
Em passo de dança
um fauno avança
jardim afora.
Transpõe de um salto as idades
de então e agora
mas logo se esfuma
em outra esfera
muito além de mim
e do jardim.
Momento
A gaivota flana
branca e leve
mas não voa: é voada
por ventos invisíveis
Estilhaço de um poema longo
Vi claramente visto o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo.
Camões
Louvo-te por seres
criatura feita de mesclas
humanas e celestes
em que cintilam e naufragam
no ocre de lamas terrestres
fulgurações de safiras
incrustações de rubis
e em cavernas escuras
247
Per Johns
cadentes asas
de falenas em chamas.
Simbiose perfeita
de brejo e fogo-fátuo
que deslumbra e liberta
aprisiona e se apaga.
Louvo-te por seres
a que misteriosa navega
entre a margem do rio em que estou
e o lume vivo que se avista ao longe
mas jamais se alcança.
A iara da cachoeira
Estóica, sobrevivia
às agruras de mais um dia.
De seus flancos deflorados
algas verdes e azuis
em frangalhos escorriam.
Lentamente, sem pressa
água mole em pedra dura
toda ela se diluía
em simples matéria-prima.
Sísifo
Sobrevive em mim estranha força inesperada.
Vara muros e túneis de mistério, mas não chega nunca ao outro lado.
Exaure-se em si, agônica, exangue.
E de novo recomeça.
248
Poemas Ritmo
São intemporais os ritmos
das estações
das marés
e dos ventos.
Só o homem inventou o relógio
e extraviou-se no tempo.
Perdeu a hora
e a bússola que o guiava.
Noturno
Teus seios
são navios noturnos
iluminados
de velas pandas
no rumo de quem fomos?
Que navios são esses
se a carne é escolho
em que náufragos, soçobramos?
A que plagas nos levariam
seios e mar
se apenas fossemos vento?
Flebas
Quando aqui passei
em remotas idades
do mar o fluxo e refluxo
era esse mesmo.
249
Per Johns
Eram esses mesmos
o vento e as aves marinhas
o poente, as andorinhas.
Os homens mudaram.
Outras casas e ruas surgiram.
Povoaram-se de sombras.
Vaga um homem morto
Nesse vestígio do que ficou.
Talvez Flebas, o fenício...
Prece
Louvados sejam os rios
de uma religião sem nome
em busca da mesma foz
Louvados sejam seus guias
perdidos no escuro
em busca da mesma luz
Louvados sejam os males
que obstinados suportamos
com a paciência de Jó
Louvados sejam os bens
que nos remetem de volta
à parcimônia de tudo
Louvados sejam esses vestígios
que levamos conosco
e que nos levam consigo
250
Poemas Louvando a Deus ou Deus
ou que outro nome tenha
em nome de quem somos
Arqué da memória
I
Algumas portas.
Vislumbres que se reportam a memórias sepultas.
Janela que se abre
como vela no breu da noite e se extingue, suspiro
no tempo (vento).
E o que fica nas retinas:
uma paisagem ou nem mesmo a janela?
II
A moeda enferrujada
meio encurvada no chão,
verso e reverso roídos por igual.
A botina velha esfacelada
desmemoriada do pé que a vestiu.
A fendida boca da moringa
Que não guarda nem sombra
da boca que nela bebeu.
E até um fraque preto, sem pessoa
que o vista na memória
de quem um dia foi vivo.
Mastro sem vela, sino sem bronze
a dobrar por finados, no plural das mortes que ninguém viu.
251
Per Johns
Restos fósseis (mel no vazio da memória)
à espera de quem os decifre
com um olho na terra, outro no céu.
Enigma
Há um sabor de alento
quando a mão espalmada
saúda o vento que passa
sem peias, aberto.
Na palma desabrocha
uma flor que vem de longe.
Floresce entre os dedos
mas some, se a mão se fecha.
252
Poe s i a
Poemas
Ma r i a na I a n e l l i N
asceu na cidade de São Paulo em 1979. Poeta, mestre em
Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é autora de Trajetória de Antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista do Prêmio Bravo! Prime de Cultura 2006 e do
Prêmio Jabuti 2006), Almádena (2007 – finalista do Prêmio Jabuti
2008 e indicado ao Prêmio Portugal Portugal Telecom 2008) e Treva alvorada (2010 – Menção Honrosa no Prêmio Casa de las Américas 2011 e pré-finalista do Prêmio Portugal Telecom 2011), todos
os livros publicados pela Editora Iluminuras. Em 2008 recebeu o
Prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) de Literatura
na categoria Juventude. Tem participação nas coletâneas Mutações
(CMS Editora, São Paulo, 2003), Antología de poesía brasileña (Ed.
Huerga&Fierro, Espanha, 2007), Dicionário amoroso da Língua Portuguesa (Ed. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2009), Um Rio de Contos
– Antologia Luso-Brasileira (Ed. Tágide, Portugal, 2009), O prisma das
muitas cores – Antologia de amor portuguesa e brasileira (Ed. Labirinto, Portugal, 2010), Roteiro de poesia brasileira – anos 90 (Editora Global, São
Paulo, 2011). Tem poemas publicados nas revistas literárias ETC
253
Mariana Ianelli – Literatura e Arte (Travessa dos Editores, Curitiba, 2006), Poesia Sempre – Portugal (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2007), Callema – A fenda do tempo e do
texto (Portugal, 2008), Revista de Ciência e Cultura (Campinas, 2008), Poesia Sempre – Mística e Poesia (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2009), Revista Pessoa
– Literatura lusófona (Brasil/Portugal, 2011) Coyote (Londrina, 2010), Cuadernos
hispanoamericanos de Madrid (Espanha, 2011), Revista da Casa de las Américas (Cuba,
2011), Revista E – Sesc (São Paulo, 2011). Publicou os ensaios Por uma poética do
feminino, na Revista Ângulo – Faces femininas da literatura (Lorena, 2010), e O Projeto
poesia-experiência de Mário Faustino, a partir de seu estudo de mestrado, na Revista
Olho d’Água, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, São José
do Rio Preto (2010). Escreveu uma breve biografia de Arcangelo Ianelli para
o livro IANELLI (Via Impressa, 2004). Participou do Projeto de Incentivo à
Leitura da Academia Paulista de Letras – Escritor na Biblioteca, nos anos de
2004, 2005 e 2010, e Escritor na Escola, nos anos de 2007 e 2010. Escreveu
crônicas semanais para o site literário Vida Breve em 2011. Dos eventos literários de que já participou, destacam-se Les Printemps des Poètes, em Rennes, França (2001), Jornada de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul (2007), Recital
a Duas Vozes com o poeta Manuel Lucía Megías, no Instituto Cervantes de
São Paulo (2011), Semana Literária e Feira do Livro Sesc de Curitiba (2011).
Trabalha atualmente na catalogação da obra de Arcangelo Ianelli para a realização de um Catalogue Raisonné do artista e prepara seu novo livro de poesia,
com publicação prevista para final de 2012. Colabora como resenhista para
os jornais O Globo – Caderno Prosa&Verso (RJ) e Rascunho (PR). Mantém
o site oficial: http://www.uol.com.br/marianaianelli/.
254
Poemas Neste lugar
Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.
Um jardim entregue
Às chuvas e aos ventos.
O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.
Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.
Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.
255
Mariana Ianelli Legião
As estátuas cobertas de hera
Os casulos debaixo da escada
O chão perigoso, esverdeado
Mas ninguém se lembra
Que em outros tempos
Coisas minúsculas se agarravam
E cresciam atrás dos reposteiros
Toda uma orgia assim igual a essa,
De trepadeiras e crisálidas,
Uma legião de verdades escondidas
Que a seu tempo conquistaria tudo,
Rebentando a céu aberto, arremetendo
Sem mais fazer sombra pela casa.
256
Poemas Descobrimento
Será como chegar extenuado,
Mas chegar,
Depois de uma viagem
Que foi quase sempre angústia
De se debater num mar adversário
E então o inexprimível
De pisar em terra firme
E ainda ser capaz do passo distraído,
Essa glória de juventude
De se deixar levar
E será algo tão novo
Como se nunca tivesse existido
Nunca tivesse nem mesmo
Sido desejado –
Um caminhar estrangeiro
Por entre o orvalho e a névoa,
Um frescor de primeiro dia,
Um momento sem passado,
A chance de tocar um mundo novo
Como dois azuis se podem tocar
Sem pecado.
257
Mariana Ianelli Dádiva
Vem de uma extinta batalha
O calor dessa ternura
Que é uma espécie de cansaço.
Quando a palavra não ousa,
Conversam os nossos olhos
Sobre descampados, carcaças tristes,
Um cenário de fumaça
De uma devastação que nos deu
O ritmo e as razões de um salmo.
O que nos dizemos
Os amantes se dizem, os irmãos,
Os cúmplices numa atrocidade.
Dizem os olhos
A noite que viram do outro lado
E o translúcido,
Finíssimo domo de orvalho
Que começamos a ver (e nos envolve)
No começo de uma lágrima.
258
Poemas Campo de cassianas
Eterna a tua juventude sobre a mesa
Que abdicou do triunfo sem orgulho
De todos nós que sobrevivemos
A pelo menos um desconsolo mortal.
Eterno o teu corpo adolescente
Se oferecendo num banquete divino,
Sendo envolvido, devorado lentamente,
Atraído por uma forma indestrutível de virtude.
Na tua imagem um sem-fim de sutilezas
Que não se apagam por falta de emoção
Senão o contrário, que abrasam, que fustigam
Com uma beleza que nunca nos pediu retribuição.
É no mármore o teu busto querendo ser tocado
É no torpor à sombra de uma grande asa
Em um dos bíblicos jardins do oriente
A idade da inocência em que tua vida se calou.
Como a cada ano os lírios, os gladíolos,
Os cravos e os crisântemos, todos brancos,
Também o teu nome rebenta e se multiplica
Num imenso campo mágico de cassianas.
259
Mariana Ianelli Fantasia
Depois da bruma que seduz ao erro
Depois da grande decepção e do escrúpulo
Mesmo que te doendo como a um animal
Perdido, arremessado no vazio de um campo,
Pudesse vingar pura a criança
No sopro que te deu vida, coração fremente,
Deslumbramento à margem dos abismos,
Um guizo de túrgidas estrelas e nada mais...
260
Poemas Arca da lembrança
Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória,
Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala
E sobre a mesa o espelho d’água
A ocasião do ato secreto
De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,
Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais
Todo o imenso dorso de um barco naufragado.
261
Mariana Ianelli Os teus olhos
Que estejam vivos em algum lugar
Os teus olhos –
Não importa onde se demorem,
Que coisas afaguem, que outras molestem,
Importa que estejam vivos e curiosos
Esses olhos
E olhem para dentro alguma vez
E o que vejam
Seja alguma força de sequóia
Presa à terra desde o império
De outros tempos
E seja ainda uma fonte de pedra,
Sejam águas correntes e o privilégio
De uma calma repleta
(O regozijo da sombra
Passado o terror das guerras)
Que dessa multidão, desse rubor de sumo
E segredo de floresta
Se encham os teus olhos,
E só então se esfumem, e só então se fechem.
262
Poemas Carta de Chankay
A partir de uma carta sem data
Sobre as ruínas de Puruchuco, no Peru
Esse pouco roubado de uma urna
É quanto basta – esse pouco
Depurado de tragédia,
Um restante de partes desencontradas
Que produzem a saudade
Feito um cacho de uvas negras –
Fragmentos revolvidos, misturados
Ao prazer de ver nascer uma verdade,
A verdade de uma carta
Que escamoteia um século
E fantasticamente fala do presente
Como numa profecia desvendada.
Fala a carta de uma viagem a Chankay,
De um todo de areia e céu e, ao longe, o mar,
Fala de uma travessia no deserto
E do vaso de um túmulo violado
Por cujas fendas o vento silva num lamento
E nesse lamento um encanto mais potente
Do que a mágoa.
Arrepanhamos esses cacos magníficos,
Sem mais semelhança com o que morre,
Arrepanhamos de galerias profundíssimas
Um tempo já sem tempo de vaidades
E o sabor de roubar essa relíquia –
A saudade feito um cacho de uvas negras –
Nos ensina a gostar da nossa história.
263
Mariana Ianelli Uma manhã
Haverá nisso pureza, sob a luz
Que ainda nos chega
De uma estrela há anos extinta:
Duas sombras que se amam
Porque foi em outra vida
A encruzilhada
De irreconciliáveis diferenças.
Desabrochada da noite
Como de um combate imenso,
Uma centelha do princípio dos tempos:
Numa cama de escombros
Nosso abraço inevitável,
Nossa nudez sem vexame
No ermo das coisas desfeitas.
264
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