AIDS O que a psicanálise tem haver com isto?

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AIDS1
O que a psicanálise tem haver com isto?
AIDS
Whatpsychoanalysis has to do with this?
Resumo: As pessoas que se descobrem portadores do vírus causador da aids, são
submetidos a um trauma que pode provocar uma desestruturação nos processos
psíquicos e a instalação de um processo de menos valia, podendo chegar ao ponto do
esvaziamento do ego, num processo de melancolia. A rejeição social, o tabu e a
estigmatização são forças poderosas. Neste processo, cabe à psicanálise ocupar este
espaço para propiciar novos caminhos para estes pacientes.
Palavras-chave: Psicanálise, aids, manejo do paciente e a clinica.
Abstract: People who find out that have HIV are subjected to a trauma that can lead to
the disruption of the psychological process ant the installation of a whorthlessness
process, which may reach to the point of an ego emptying, in a process of
melancholy.Tha social rejection, the taboo and the stigmatization are powerful forces. In
this process, psychoanalysis must play the role in providing new paths to those patients.
Keywords: Psychoanalysis; aids, patient care and clinic
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Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - Sigla em inglês
Objetivo
Pretendemos, por intermédio deste trabalho, reforçar a necessidade e a
importância
do
envolvimento
das
práticas
psicanalíticas
na
abordagem
e
acompanhamento das pessoas vivendo com o vírus causador Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS, sigla em inglês).
Na tentativa de cumprir esse objetivo, faremos uma viagem no tempo até o
período do “nascimento” da epidemia da aids, seus desdobramentos e conseqüências no
mosaico social que deram origem ao preconceito e estigma, que acompanham essa
enfermidade deste o inicio, assim como seus “mitos” e “fantasmas”.
Com relação à importância da aproximação das práticas psicanalíticas ao universo
das pessoas que vivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, sigla em
inglês), usaremos a correlação de alguns textos Freudianos associados com minha
experiência clínica com pessoas soropositivas, assim como meu trabalho voluntário de
acolhimento/aconselhamento para pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) e apoio
psicológico no Grupo Pela Vidda/RJ (GPV/RJ), organização não governamental
(ONG), que atua há 23 anos na defesa dos direitos individuais e da cidadania dos
indivíduos afetados pela epidemia de aids, assim como de seus familiares, além de
desenvolver valioso trabalho no campo da prevenção, informação e educação.
O “nascimento” da epidemia da aids – Efeitos no campo das
representações sociais
Os primeiros relatos oficiais da aids ocorrem 1981, e neste momento essa doença
desconhecida ainda não era nomeada desta forma. Os primeiros casos surgem em gays
do sexo masculino nas cidades de Los Angeles, Califórnia e New York, sendo logo
denominada de Deficiência Relacionada a Gays (GRID, na sigla em inglês), não
demorando a surgirem novas denominações: “câncer gay” e “peste gay”2.
No ano seguinte, conclui-se que a nova doença estava relacionada ao sangue,
sendo alterado o perfil dos portadores, uma vez que foram relatados os primeiros casos
em heterossexuais, hemofílicos e outros grupos, além de recém-nascidos. Assim, nesse
2
George de Gouvêa, “Os Estigmas da Promiscuidade e da Morte – Impactos subjetivos diante do
diagnóstico da AIDS”, Rio de Janeiro, UVA, 2004, monografia de graduação.
2
ano aquela foi nomeada de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, passando ser
considerada uma epidemia, naquele momento já relatado em quatorze países.
Contudo a relação da aids com comportamentos desviantes e promíscuos constróise independente dos dados estatísticos, conforme CARVALHO apud GUIMARÃES
(2003, p. 115), nos mostra com relação ao paradigma que une as palavras aids e
preconceito no imaginário social brasileiro:
"Na situação brasileira os primeiros casos da doença foram detectados entre homens
da classe média, identificados pela prática homoerótica. A despeito da epidemia ter
se disseminado em todas as camadas econômicas da população, incluindo homens e
mulheres, por muito tempo foi caracterizada, quase exclusivamente, como praga
gay."
Da mesma forma que Herbert Daniel (1994, p.11) já pontuava a questão da
marginalização, que atravessa o cotidiano das pessoas vivendo com HIV/AIDS, e sua
correlação com o início desta epidemia, quando ela era associada aos chamados "grupos
de risco": "O doente de Aids carrega consigo os estigmas que marcavam grupos já
marginalizados e discriminados, como os homossexuais e os usuários de drogas. Tudo
isto leva o doente a um processo de clandestinização."
Neste processo, que mistura aspectos objetivos e subjetivos, ou seja, a doença e
sua representação social, George Rosen (1980, p.77) explica que a epidemia, como
objeto da História, passa a ser considerado um fenômeno social, sendo capaz de fazer
emergir aspectos simbólicos de uma determinada população atingida por esse evento.
Assim, Rosen deixa marcada a diferença entre o biológico e o social:
“Como fenômeno biológico, as causas da doença são procuradas no reino da
natureza; mas no homem possui ainda uma outra dimensão: nele a doença não
existe como ‘natureza pura’, sendo mediada e modificada pela atividade social e
pelo ambiente cultural que tal atividade cria”
Nessa mesma direção, Dilene Raimundo do Nascimento (2005, p. 166) ressalta
que, apesar da condição biológica da doença e de sua presença material e factível, ela
não se encerra nesta questão e nem se limita dentro desses parâmetros, escapando do
controle racional e alterando o mundo simbólico ao seu redor, fazendo emergir antigas e
novas representações no caldo do imaginário social. Dessa forma ela aponta que:
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“Apesar de o modelo biomédico conceber a doença como resultado de fatores
eminentemente fisiopatológicos, o componente subjetivo da enfermidade no doente
baseia-se na sua experiência interior da doença como problemática. Mas a
construção do significado dessa experiência não é um processo individual puro, e
sim o resultado de representações sociais, isto é, de processos de definição e
interpretação construídos intersubjetivamente, vale dizer, polifonicamente.”
Pretendi, com o abordado nesse item, registrar a importância da observação do
cenário inicial da epidemia de aids, assim como a imensa força simbólica dessa doença,
que talvez, como nenhuma outra na nossa historia moderna, tenha causado tantos ecos
envolvendo questões da sexualidade humana.
Desta forma, espero contribuir para
melhor compreensão das prováveis angustias que as PVHA’s possam apresentar em
nossos consultórios.
A Psicanálise – Manejo em pacientes soropositivos
Quero iniciar esse capitulo com a fala de um paciente, após alguns meses de
análise. Ele é soropositivo e me procurou por conta de sua sorologia e da dificuldade de
lidar com essa realidade. Ele me disse: “...eu não sou um vírus, eu sou uma pessoa que
tem um vírus aqui dentro.” O paciente tinha, inicialmente, dado uma enorme atenção a
sua condição sorológica, fazendo com que toda a sua vida girasse em torno desta
situação. Obviamente não adiantava comunicar ao paciente esta obviedade, assim,
através do processo analítico, ele chegou a essa conclusão com suas “próprias pernas”.
É preciso apontar que não existe um paciente soropositivo padrão, ou seja, com
características únicas e constitutivas. Vamos no deparar com pacientes em nossos
consultórios
que chegam
com
suas
estórias
individuais,
seus
preconceitos
internalizados, seus percursos emocionais e suas capacidades e recursos internos
próprios. A condição sorológica é apenas uma faceta daquele individuo, que traz
consigo todas as outras faces de sua vida.
Contudo, é importante frisar que encontrei alguns pontos em comum, que
atravessam a maioria dos pacientes recém-diagnosticados como soropositivos. Entre
esses pontos o mais presente é o que produz a convergência entre sorologia positiva e a
idéia da morte eminente, apesar do atual progresso da ciência no sentido da descoberta
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de novas drogas para o tratamento da aids. Com relação a esse aspecto, o psicólogo
Roberto Chateaubriand (1990, p. 12/13), participando de um seminário realizado no Rio
de Janeiro, observa sobre a relação dos pacientes soropositivos e a ideia da finitude:
"Saber que quando aquele relógio toca ele está me lembrando o tempo inteiro que
"eu sou mortal, eu estou com aids", ainda que não haja a presença de sintomas. [...]
Até onde a dificuldade que temos com isso, e que tentamos contornar diariamente,
não aparece como um sintoma de um conflito entre o que eu sei sobre esta aids,
estas representações sociais que apostam no elemento morte como fato
indissociável desta epidemia, e a esperança de vida que esse medicamento me
oferece.
[...] ...é uma questão do lugar que este sujeito ocupa hoje, de total
perplexidade frente a dicotomia entre aquilo que eu sei e aquilo que eu vivo".
É comum que pacientes recém-diagnosticados como soropositivos, cheguem ao
meu consultório falando: “sinto o chão se abrindo debaixo de meus pés”, “estou me
sentindo perdido, sem rumo” ou “vou morrer”, demonstrando que ainda estamos diante
da associação aids = morte, não obstante a disponibilidade de tratamento hoje existente.
Outra característica que encontro na clínica, esta ligada a um comportamento de
abstinência sexual, ou seja, me deparo com o relato de pacientes que suspenderam suas
atividades sexuais após o conhecimento da sorologia positiva.
Nesse quadro não
podemos deixar de lembrar o que nos ensina Freud, em O Narcisismo (1914, p. 103),
quando deixa claro que o individuo tende, no caso de doença, a focar todas suas
energias para o seu Eu, ou seja, redireciona sua libido. No que tange a essa observação,
ele nos instrui:
“Todos sabemos e consideramos natural que o sujeito atormentado por uma dor orgânica e
por incômodos diversos deixe de se interessar pelas coisas do mundo exterior que não digam
respeito ao seu sofrimento. Uma observação mais acurada nos mostra que ele também
recolhe seu interesse libidinal dos objetos de amor e que, enquanto estiver sofrendo, deixará
de amar. [...] Diríamos então: o doente recolhe seus investimentos libidinais para o Eu e
torna a enviá-los depois da cura.”
Neste mesmo texto, encontramos outro ponto que converge com a experiência
clínica, ou seja, a faceta do “anúncio” da mortalidade mediante o descobrimento da
sorologia positiva para o HIV. Esse acontecimento produz uma “ferida” narcísica, que
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ocorre pela contingência da realidade, que desnuda diante do Eu narcísico a concretude
fria da impossibilidade da vida eterna (ibid p. 110).
Retornando ao texto O Narcisismo (1914, p.112/115) acredito oportuno dirigir
nossa atenção ao conflito entre o Eu Ideal (toda a perfeição) e o Ideal de Eu (a perfeição
possível), assim como a influência e vigilância do Super EU (mais tarde renomeado de
Superego e, nesse texto, tratado como “censor”).
Parece-me bastante plausível
reconhecermos em alguns pacientes soropositivos o sofrimento causado pela destruição,
obviamente manifestada no campo subjetivo, de seus sonhos e projetos construídos no
campo do Ideal do Eu. Papel importante cumpre o Super Eu na geração de uma
profunda culpa em parcela de pacientes soropositivos em análise. Normalmente esses
se queixam do fato de estarem infectados e imputam a si próprios uma direta e exclusiva
responsabilidade pela soroconversão. Outro aspecto importante, provavelmente ligado,
também, a severidade do Super Eu, é a sensação de menos valia e inferioridade em
relação ao mundo ao seu redor, como se a condição de PVHA os transformassem em
pessoas de 2ª categoria no campo social.
Reforçando essa condição, me inclino a chamar a atenção para as observações de
Freud em relação ao autoconceito (ibid, p. 115/116) juízo que o individuo faz de si e
esta intrincado como um dos destinos da libido e as psicopatias. Tomando como
exemplo as neuroses de transferência, e o que me interessa em particular na análise de
caso de alguns pacientes soropositivos, percebo que fica demonstrado no processo
analítico um importante decréscimo da autoestima daqueles. Nesse aspecto Freud deixa
bastante claro que:
“A percepção da impotência, da própria incapacidade de amar, seja em consequência de
perturbações psíquicas ou perturbações corporais, tem o efeito de rebaixar fortemente o
autoconceito. E é aqui que se situa, a meu ver, uma das fontes dos sentimentos de
inferioridade relatados de forma tão espontânea pelos pacientes com neuroses de
transferência .”
Freud (1915, p.327) aborda, novamente, o tema da impermanência. Desta vez
inspirado nas circunstancias do 1º grande conflito mundial da humanidade. Ele, ao falar
sobre a morte, nos remete a impossibilidade de lidarmos com a compulsoriedade de
nossa finitude, e que “o inconsciente de cada um de nós esta convencido de sua própria
imortalidade”.
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Freud (ibid, p. 317) trata do desapontamento da humanidade com relação às
agruras da Guerra. Considero pertinente pinçarmos essa ponderação sobre o término
dos pressupostos da quimera humana pela colisão com a vida real, no caso, a dura
realidade da guerra. Desta forma ele explica que “Acolhemos as ilusões porque nos
poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca gozar de satisfações.”
Considero justo fazer uma analogia entre essa passagem e a comunicação do
diagnóstico da aids e seus desdobramentos, uma vez que a ilusão da imortalidade
sucumbe diante daquele comunicado.
Recorrerei, mais uma vez, a ferramenta da analogia, ou seja, irei observar os
pontos de contato que existem entre o que nos ensina Freud (1915) sobre o efêmero e
breve na vida humana, e as questões relativas à transitoriedade que emergem em
conseqüência do diagnóstico da soropositividade. Ele, em um texto escrito no contexto
da 1ª Grande Guerra (e sobre seus efeitos em certos aspectos da humanidade), nos
permite encontrar, atravessando um ponto em comum, as facetas da pretensão a
imortalidade, a transitoriedade compulsória, o luto e algumas questões sobre a libido.
Desta forma, é impossível não observar, na experiência clinica com soropositivos, o
retorno do recalcado (recalque da idéia de mortalidade), o susto com a constatação da
sua própria finitude, o luto pela constatação da realidade – e certa revolta- e o
esvaziamento da libido, acarretando um processo de baixa autoestima, ou dito de outra
forma, um acometimento de menos valia.
Importante lembrarmos-nos da importância de observar as circunstancias que
podem nos levar a considerar os perigos do luto não elaborado - sua forma patológica e o perigo do processo de melancolia – “melancolização” – na vida dos pacientes que se
descobrem portadores do vírus causador da aids. Na primeira hipótese, Freud (1917, p.
103/104) nos fala da perda de um objeto, no que se refere ao tangível e ao simbólico.
Assim, ele nos diz que “O luto é, em geral, a reação à perda de uma pessoa amada, ou à
perda de abstrações colocadas em seu lugar, tais como a pátria, liberdade, um ideal etc.”
Aqui, devemos considerar as duas possibilidades, onde o paciente vê perdas materiais e
imaginárias. No segundo caso, o paciente imola-se e culpa-se pela situação de infectado
pelo HIV. Neste caso, Freud (1917, p. 105) nos ensina que no melancólico existe “...a
extraordinária depreciação do sentimento-de-Si, um enorme empobrecimento do EU.”,
assim como nos indica que “O doente nos descreve seu Eu como não tendo valor, como
sendo incapaz e moralmente reprovável.” Não fica difícil identificarmos as ideias de
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autojulgamento moral, atravessado por cobranças definidas pelos conceitos de certo e
errado.
Importante levar em consideração, em nossas observações sobre a clínica com
pacientes soropositivos, o que Freud (1913, p. 31) assinala a respeito das restrições
impostas por certas crenças encontradas no âmago das sociedades. No caso em questão,
não se coaduna com a realidade desconsiderar a ligação da soropositividade com aquilo
que não pode ser tocado.
Assim, Freud diz que “certas pessoas e coisas estão
carregadas de um poder perigoso, que pode ser transferido através do contato com elas,
quase como uma infecção.” Desconsiderar que um soropositivo possa se sentir desta
forma pode ser um engano. Um imaginário, formado por fortes convicções de drama e
tragédia, pode fazer com que o HIV se transforme numa representação em que o
individuo se sinta interditado para a vida cotidiana, impedido de relacionar-se
integralmente com o seu entorno. Neste sentido, Freud, mais uma vez, reforça esta ideia
ao ressaltar que aquele que recebe o “atributo perigoso” (portador de um vírus) pode
atribuir-se um estado obscuro equivalente “a todas as coisas misteriosas, como a doença
e a morte e o que esta associado a elas através do seu poder e infecção ou contágio”.
Encerro esse texto, com a clara sensação que muito ainda poderíamos navegar
entre os textos Freudianos, procurando pontos de interseção com a clínica voltada para
pessoas vivendo com o vírus causador da aids. No entanto, quero reforçar o que
observei no inicio, ou seja, que quando nos deparamos com um paciente soropositivo,
temos em nossa frente um individuo que traz consigo suas experiências infantis, sua
estória construída ao lado dos protagonistas de sua vida e seus respectivos recursos
internos. Uma vida cheia de subjetividade, (in)certezas, (des)crenças e, principalmente,
dúvidas. Devemos considerar que estes pacientes chegam aos nossos consultórios com
um acréscimo as suas dores, ou seja, a sorologia positiva para o HIV.
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Referências:
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