ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA LEI N. 11.161/2005

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ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA LEI N. 11.161/2005: BREVES
APONTAMENTOS
Anna Luíza Leme Calgaro da FONSECA (PG/UEM)1
Universidade Estadual de Maringá
Dulce Elena Coelho BARROS (UEM)2
Universidade Estadual de Maringá
Resumo: O artigo abordará a lei ordinária nº. 11.161/2005, a qual institui o idioma
espanhol como disciplina obrigatória a ser ofertada pelas escolas públicas e privadas de
ensino médio. A legislação, que traz em seu bojo o ensino dessa língua estrangeira revelase atravessada por relações de poder passíveis de serem acessadas por meio de uma
concepção de linguagem como parte do convívio social e dialeticamente interconectada a
outros elementos sociais. Ponto de vista que se coaduna com os preceitos da Análise
Crítica do Discurso (ACD) que, entre outros fatores, busca retratar, em meio às suas
discussões teóricas e método de acesso aos discursos hegemônicos, a necessidade de
equilíbrio entre forma e função nos estudos relacionados ao funcionamento social da
linguagem. A hipótese norteadora deste trabalho é a de que não se pode reduzir a
linguagem a seu papel de ferramenta social, tampouco reduzi-la ao caráter formal, pois,
conforme preconiza Marcuschi (2005), língua não é forma nem função, e sim atividade
significante e constitutiva. A busca desse equilíbrio é justamente uma das contribuições da
ACD, eis que se nos apresenta como uma abordagem social e linguisticamente orientada
(Fairclough, 2001). É justamente sob esse viés que focalizaremos a imposição normativa
trazida pela lei.
Palavras – chave: Análise crítica do discurso; lei; ensino de língua espanhola.
Introdução
1
Programa de Pós Graduação em Letras. Aluna não regular. Departamento de Teorias Linguísticas e
Literárias. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná,
Brasil. [email protected]
2
Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil. [email protected]
A aprendizagem de uma língua estrangeira, juntamente com a língua materna, é um
direito de todo o cidadão, conforme expresso na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB - Lei nº 9.394/96) e na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos
(UNESCO, 1996). Portanto, permitir ao aluno conhecer outra língua se configura como um
exercício pleno da democracia, e a escola, enquanto espaço legítimo para sua realização,
não pode eximir-se disso.
A questão da democratização do conhecimento, nesse ínterim, tem feito parte dos
constantes debates sobre os rumos da educação brasileira, em meio ao desafiador contexto
do século XXI que, entre outros fatores, determina valores, comportamentos e práticas
sociais.
Para Lisboa (2009), desde a década de 1990 o ensino de língua espanhola tem
apresentado um considerável crescimento em território brasileiro. Esse crescimento pode
ser reconhecido na ordem direta do crescimento da procura pelo curso de língua espanhola
nos estabelecimentos de ensino. Isso se deve, em parte, ao aumento das atividades
comerciais entre o Brasil e países latino-americanos, que têm como principal idioma a
língua espanhola, bem como à vinda de empresas estrangeiras para o território brasileiro.
Nesse cenário comercial de impacto educacional, as discussões sobre a inserção
obrigatória da Língua Espanhola no currículo do Ensino Médio, por determinação da lei
11.161/2005, nos têm chamado a atenção. Nosso interesse, neste artigo, é lançar luz sobre
aspectos discursivos que atravessam o texto jurídico em foco, discutindo o seu impacto
sobre a rede de ensino público do país.
Há de se considerar que a implantação da Língua Espanhola no currículo do ensino
médio é instrumento imprescindível de democratização do ensino de idiomas na rede
pública e, sobretudo, de inclusão, porque possibilita ao estudante entrar em contato com o
universo de informações e conhecimentos que, diariamente, são inseridos na cultura
brasileira, por meio da língua espanhola.
De acordo com Jaeger (2009), a língua espanhola pode ser considerada um fator
que integra os povos vizinhos que vivem no continente latino-americano, como foi
apontado em projetos de lei dos anos de 1958 até 2005. No entanto, as propostas de
integração através do idioma são muito diversas, sendo preciso considerar que todas elas
buscam, de alguma forma, unir os povos e estabelecer uma união latino-americana.
Nesse sentido, ao possibilitar o aprendizado da língua espanhola, falada nos países
vizinhos do território brasileiro, a lei 11.161/2005 se nos apresenta enquanto proposta de
construção de um processo comunicativo mais efetivo entre as diferentes nações do
continente latino-americano, em cujo bojo estaria a “vontade” dos legisladores de verem
concretizada a aproximação dos diferentes povos.
Conforme defende Lodares (2004, apud Jaeger, 2009), no que concerne aos
aspectos econômicos, a inclusão brasileira na comunidade linguística hispânica pode
proporcionar a inclusão de mais de 170 milhões de consumidores potenciais de bens e
serviços relacionados ao idioma espanhol.
Nesse passo, a assimilação ou aprendizagem da língua espanhola pelos estudantes
brasileiros serviria não apenas para suprir as necessidades comunicativas das nações
envolvidas, posto que essa prática incide sobre estruturas econômico-comerciais. Nesse
sentido, a iniciativa, oficializada em lei, configuraria, por si só, conforme o texto de lei nos
faz crer, a abertura de um leque maior de oportunidades aos eventuais alunos brasileiros
proficientes em língua espanhola.
Ao concebermos as práticas linguístico-discursivas como parte do convívio social,
que estão, dialeticamente, interconectadas a outros elementos sociais (FAIRCLOUGH,
2003), é possível asseverar que a produção do texto de lei em foco não se constrói alheio às
relações de força e poder que se estabelecem entre sujeitos por meio da linguagem,
conforme apregoam os estudos em Análise Crítica do Discurso (ACD).
É importante destacar que através da Análise Crítica do Discurso (ACD) é possível
que se construa a compreensão de uma abordagem social e linguisticamente orientada
(FAIRCLOUGH, 2001 a). Sob este foco, é importante considerar, que não basta a
transmissão das noções gramaticais da língua ao se buscar o aprendizado de um idioma, é
imprescindível que se desenvolvam habilidades linguísticas, que se tenha a capacidade de
compreender diálogos, interpretar textos, ou seja, a assimilação de um idioma implica na
possibilidade de utilizá-lo como instrumento de ação comunicativa.
A imposição normativa caracterizadora dos textos de lei serve de testemunho de
que é preciso ler/consumir essa modalidade textual pensando nos efeitos ideológicos
causados. Vejamos que a lei 11.161/2005 omite a problemática que afeta o sistema
educacional brasileiro, qual seja, o da falta de professores habilitados para se dedicar ao
ensino da Língua Espanhola.
Posto que não se pode reduzir a linguagem ao seu papel de ferramenta social,
tampouco reduzi-la ao caráter formal, pois “língua não é forma nem função, e sim
atividade significante e constitutiva” (MARCUSCHI, 2005, p. 3), é necessário que nos
debrucemos sobre o texto de lei aqui analisado encarando-o como resultado de práticas
sociais situadas e não como peça linguística com fim em si mesmo.
Este estudo se pauta, sobretudo, nas considerações teóricas trazidas por Carmen
Rosa Caldas-Coulthard na obra “Da análise do discurso à análise crítica do discurso”, a
qual contempla, de forma ímpar, os pressupostos teórico-metodológicos de Norman
Fairclough que atravessam a corrente de estudos intitulada Análise Crítica do Discurso.
Breves comentários sobre a análise crítica do discurso
A Análise Crítica do Discurso é um campo de estudos que se preocupa em
examinar o texto como algo que reflete o social. Conforme nos faz saber Caldas-Coulthard
(2008), em relação ao nível textual, os/as analistas críticos do discurso fazem a descrição
das formas lingüísticas. No que concerne ao nível discursivo e da prática social, buscam
interpretar os textos buscando entender os aspectos textuais relativamente aos seus
enquadramentos sociais e ideológicos.
Em suma, a Análise Crítica do Discurso volta-se para os aspectos sociais do texto,
que, muitas vezes, se nos apresentam pautados em normas/convenções previamente
estabelecidas que, em condições propícias, passam a valer como verdade incontestável.
Magalhães (2005) nos lembra que em termos de filiação disciplinar, pode-se
afirmar que a ACD confere continuidade aos estudos convencionalmente referidos como
Linguística Crítica, desenvolvidos na década de 1970, especialmente na Universidade de
East Anglia.
Segundo Colares (2012), a ACD apresenta uma conceituação do sujeito não como
aquele que age com certa autonomia, mas como sujeito construído através de processos
discursivos carregados de ideologia, dentro do contexto social em que age. É nesse sentido
que a ACD se volta para o discurso como forma de manifestação e/ou controle do poder e
para o discurso como forma de construção da realidade social.
Para o britânico Norman Fairclough (2001), o discurso é uma prática ideológica e
também política que pode contribuir para que se estabeleça, mantenha e transforme
relações de poder, bem como entidades coletivas nas quais se constroem essas relações
interpessoais.
Fairclough (2001) ainda explica que para que se possa analisar o discurso como
prática da sociedade, como reflexo da política e das ideologias correntes, é necessário
empreender uma análise tridimensional. O modelo sugerido por esse estudioso se volta
para: a) a análise textual, que procura observar questões estruturais, como a coesão,
gramática e também o vocabulário; b) a análise discursiva, que volta seu foco para a
produção, distribuição e consumo textual, bem como para as circunstâncias da prática
discursiva; c) a análise social, voltada para a verificação da matriz social do discurso, suas
ordens e efeitos ideológicos e também políticos. A abordagem metodológica da ACD,
segundo Fairclough, apresenta, portanto, três dimensões: a descrição do texto, a
interpretação da interação e a explicação de como as duas primeiras dimensões estão
inseridas na ação social.
Até os anos de 1960, o foco dos estudiosos estava dirigido à gramática em geral; no
início do século XX, Saussure, um expoente da Linguística, reagiu frente às correntes
ortodoxas, aludindo que o objeto da descrição linguística era a língua e não o discurso ou
fala. Uma língua, segundo o estudioso, era um sistema de signos, uma espécie de entidade
a qual os sociólogos chamariam de “fato social”. Fatos sociais, de acordo com Durkheim
(1895) 1966, seriam ideias (representações) na mente coletiva de uma sociedade.
Hodge e Kress (1988), conforme afirma Caldas-Coulthard (2007:16), propõem que
aquilo que Saussure excluiu do objeto da linguística, neste momento, precisa ser retomado
para que possamos entender a relação entre a linguagem e os significados sociais. Assim,
acreditam esses estudiosos que Saussure privilegiou a questão social sobre a individual,
contudo, sob um viés abstrato, não encontrado na observação da ordem social concreta.
Caldas-Coulthard (2007) faz igualmente menção a outra corrente, encabeçada por
Voloshinov, que se contrapunha à corrente saussuriana de estudos das questões de
linguagem e passa a defender a ideia que “a forma dos signos é condicionada pela
organização social das pessoas envolvidas e pelas condições de suas interações”
(VOLOSHINOV, 1973, p. 21). Todas essas vertentes contribuíram para que a análise do
discurso alcançasse a interdisciplinaridade, ante suas ligações com a Antropologia,
Sociologia, Psicologia, entre outras ciências.
Conforme destaca Caldas-Coulthard (2007), para Fairclough (1992) as abordagens
críticas descrevem as práticas discursivas e tentam mostrar como o discurso é
condicionado por ideologias e pelas relações de poder. A ACD volta-se, portanto, para “os
efeitos construtivos que o Discurso tem sobre as identidades sociais, as relações sociais e
os sistemas de conhecimento e credos, os quais não são aparentes para os participantes
discursivos” (Caldas-Coulthard , 2007, p. 28).
Outras abordagens críticas podem ser encontradas em Fowler et al. (1979, 1991),
Pêcheux (1982), e na pesquisa sobre linguagem e gênero social (CAMERON, 1985, 1990,
COATES; CAMERON, 1988).
Caldas-Coulthard (2008) nos faz, também, lembrar das contribuições recebidas de
teóricos como Foucault, Bourdieu, Althusser e Habermas para a consolidação dos estudos
em Análise Crítica do Discurso.
Estudar o discurso equivale, portanto, a voltarmo-nos para algo muito particular.
Algo que se encontra em relação direta com grupos sociais que, pelas práticas lingüísticas,
determinam as práticas discursivas recorrentes, a quais, por sua vez, passam a determinar
comportamentos e identidades sociais.
De acordo com Kress (1985) apud Caldas-Coulthard (2008, p.7):
Discursos definem e limitam o que é ou não é possível se dizer (e por
extensão, o que é ou não é possível se fazer) em relação a instituições
particulares [...] Um discurso nos dá uma série de possibilidades sobre
uma área de atuação, organiza e dá estrutura à maneira pela qual falamos
sobre um tópico, uma coisa, um processo... Assim, ele nos proporciona
descrições, regras, permissões e proibições das ações sociais e
individuais.
Para Fairclough (2001), mesmo que o discurso procure estabelecer posições às
quais os intérpretes precisariam se adaptar, esses intérpretes são mais do que sujeitos do
discurso, são sujeitos sociais, que carregam suas diversas experiências sociais, construídas
em momentos únicos de suas vidas. Assim, se os processos interpretativos disponíveis não
são divididos de forma igual, os pontos distintos alteram a forma como os discursos podem
ser interpretados, mostrando um discurso mais ou menos forte e explícito.
Ainda segundo Fairclough (2001), os discursos podem contribuir para a construção
das estruturas sociais, haja vista que os mesmos possibilitam a construção não apenas das
relações sociais, mas das próprias instituições.
Análise crítica do discurso da lei n. 11.161/2005
Para o consultor da Câmara Legislativa (DF), Leo Van Holthe: Interpretar o direito
significa extrair o significado de um determinado texto legal. Antigamente, a interpretação
era tida como uma atividade meramente declaratória, cabendo ao intérprete apenas
desvendar o único sentido possível de uma norma (correspondente à vontade da lei ou do
legislador).
Entende-se atualmente que o intérprete, partindo de sua pré-compreensão (seus
valores, ideologias, preconceitos, etc.), pode agregar novos sentidos à lei, através da
manipulação da linguagem (definindo, por exemplo, o que se deva entender por
“relevante”, “urgente”, “interesse social”, etc.) e da escolha dos valores, que, sob a sua
perspectiva, inspiraram a elaboração do texto legal.
De acordo com Caldas-Coulthard (2008), é preciso compreender que o analista do
discurso está envolto em enredos sociodiscursivos, como as relações de poder e
dominação, que orientam nossas relações interpessoais. Neste estudo, lançamos mão de um
gênero textual em particular, a saber, a lei 11.161/2005, buscando compreender as
convenções que podem conduzir ou determinar a sua produção. Nosso interesse se volta
igualmente para os modos pelos quais as práticas discursivas são negociadas e
modificadas.
Essa relação fundamental entre o texto, as práticas discursivas que o atravessam e a
realidade a partir da qual ele é escrito, lido ou falado, é imprescindível para que se possa
compreender a verdadeira complexidade das práticas lingüísticas.
Inserido em um ambiente democrático, é fundamental que se conheçam os
caminhos tomados pelo intérprete (quais princípios e métodos adotou), para se aferir um
patamar de racionalidade de sua decisão, bem como se os seus valores estão afinados com
os preceitos da Carta da República (HOTHE, 2010).
Desse modo, lembrando que o Brasil em seus aspectos geográficos, está circundado
por países cuja a língua oficial é o espanhol, este idioma ganhou destaque de tal forma que
foi editada a lei em foco. Neste estudo, verifica-se a necessária interpretação da lei
11.161/2005, sancionada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
aos 5 de agosto de 2005, com publicação no DOU dia 8 de agosto daquele ano.
Segundo Junger (2005) apud Souza (2010), muitos pontos de contato podem ser
percebidos entre o espanhol e o português. Os fatores de aproximação entre os dois
idiomas são considerados propícios ao despertar de um maior interesse pelo idioma
espanhol por parte dos alunos brasileiros.
Com o foco na familiaridade que se tem com a língua espanhola, bem como através
do embasamento na temática dos vizinhos, que têm como língua materna o espanhol, se
construiu a lei 11.161, defendendo a importância do aprendizado do espanhol nas escolas
brasileiras, buscando uma aproximação das nações que dividem o continente sul
americano.
Para que fosse possível uma análise mais abrangente acerca desta lei,
didaticamente, iniciamos a análise da textualidade da lei 11.161, partindo de seus artigos e
parágrafos. Inicialmente, é importante mencionar que o presente estudo fomenta uma
análise interpretativa a fim de estabelecer possíveis modos de entendimento da lei. Nosso
estudo estará sistematizado, a fim de uma melhor compreensão, em 3 (três) blocos.
O primeiro bloco consiste na análise dos artigos 1° e 7°, o segundo será
compreendido dos artigos 2°, 3° e 4°, e, finalmente, o último se volta para a análise do
artigo 5°. A escolha desta forma de expor o trabalho, além de didática, reúne os artigos que
estão relacionados entre si.
Primeiro bloco de análise - artigos 1º e 7º da lei 11.161/2005
Nos artigos citados abaixo, é possível observar que, após a promulgação da lei
11.161, o governo brasileiro estipulou um prazo de cinco anos para que as escolas
pudessem se adequar e realizar a implantação. Considerando que é obrigatório que a escola
ofereça o ensino de língua espanhola, contudo, ao aluno, é facultativa a sua participação
nessas aulas.
Art. 1o O ensino da língua espanhola, de oferta obrigatória pela escola e
de matrícula facultativa para o aluno, será implantado, gradativamente,
nos currículos plenos do ensino médio.
§ 1o O processo de implantação deverá estar concluído no prazo de cinco
anos, a partir da implantação desta Lei.
§ 2o É facultada a inclusão da língua espanhola nos currículos plenos do
ensino fundamental de 5a a 8a séries.
Art. 7o Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.
O caput do artigo 1º traz em seu contexto a temática central da lei, implicando seu
caráter imperativo: as instituições brasileiras de ensino médio “devem” ofertar a disciplina
“língua espanhola”, no entanto, cabe ao aluno ponderar sobre a necessidade ou não de
cursar a disciplina, posto que, para ele, a matrícula na disciplina é facultativa. Esse modo
de constituição da lei subestima, a nosso ver, não apenas valor pedagógico da disciplina,
mas o seu alcance social e a sua contribuição nos setores de natureza econômica.
De acordo com Souza (2010), já havia se tentado, através da Lei de Diretrizes e
Bases, incluir a língua espanhola no currículo escolar brasileiro, mas não basta incluir no
currículo escolar, pois a predominância da língua inglesa ainda irá prevalecer:
A princípio, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases) pressupõe uma melhoria
importante com respeito ao incluir uma língua estrangeira como
disciplina obrigatória, no Ensino Fundamental e Médio. Na prática, do
ensino Fundamental essa inclusão muda pouco ou quase nada, já que
continua a predominar a língua inglesa, mas, no Ensino Médio, há
possibilidades de uma segunda língua estrangeira optativa, que oferece
um importante campo de crescimento da língua espanhola (SOUZA,
2010, p. 03).
O modo a ser instituído vem em contrapartida no parágrafo primeiro: “no prazo de
cinco anos, a partir da implantação desta Lei”, em seguida a incisão de onde e como
seguem o raciocínio do legislador do seguinte modo: “nos currículos plenos do ensino
fundamental de 5a a 8a séries”.
Assim, o legislador impôs determinadas regras para a conclusão da lei, deixando
em abstrato ou no vácuo a sua real efetivação. Essa questão de prazo deixou diversos
estados da Federação com uma interpretação a seu critério. Alguns estados como Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul regulamentaram a presente lei, nos anos de 2006 e 2007, eis
que segundo tais interpretações até o ano de 2010 deveria o idioma espanhol estar sendo
lecionado no ensino médio. Embora nessa linha interpretativa, outros estados, por
exemplo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, interpretaram a “lei do espanhol” como sendo o
prazo de 5 (cinco) anos, a partir de sua implementação.
Desse modo, verifica-se a possibilidade de inúmeras interpretações de um texto
legal, podendo, inclusive, servir às variadas argumentações, como teses que sustentam
manobras, dentre elas aquelas que se voltam para os interesses político-administrativos.
Segundo bloco de análise - artigos 2º, 3º e 4º
Art. 2° A oferta da língua espanhola pelas redes públicas de ensino
deverá ser feita no horário regular de aula dos alunos.
Art. 3° Os sistemas públicos de ensino implantarão Centros de Ensino de
Língua Estrangeira, cuja programação incluirá, necessariamente, a oferta
de língua espanhola.
Art. 4° A rede privada poderá tornar disponível esta oferta por meio de
diferentes estratégias que incluam desde aulas convencionais no horário
normal dos alunos até a matrícula em cursos e Centro de Estudos de
Língua Moderna.
Analisando o discurso dos fragmentos destacados acima, surge uma indeterminação
que configura as possibilidades a serem utilizadas por essa rede privada, conforme deixam
claros os termos – “diferentes estratégias” –, deixando, desse modo, aberto um vão que
tudo admitiria – “desde ... até ...”. Essa indeterminação, de acordo com a análise crítica do
discurso, aponta para a legitimação da prática do ensino de língua espanhola nas escolas de
rede particular, possibilitando mais escolhas para que essas ofereçam a disciplina em seu
currículo.
Ademais, do ponto de vista do ensino de línguas estrangeiras em contexto escolar,
acreditamos que esse fragmento da lei funciona no sentido de explicitar uma disjunção
entre a língua estrangeira da escola e a língua estrangeira dos cursos livres – nessa
textualidade legal denominados, aparentemente, como “Centros de Ensino de Língua
Estrangeira” ou “Centro de Estudos de Língua Moderna”.
Os discursos que atravessam os artigos 3° e 4° da lei no 11.161/2005, ao preverem
a implantação de “Centros de Ensino de Língua Estrangeira” nos sistemas públicos de
ensino (artigo 3°) e a matrícula dos alunos “em cursos e Centro de Estudos de Língua
Moderna” na rede privada (artigo 4), materializam, no texto de lei, essa disjunção. Nesse
sentido, configuram o poder de legitimar uma prática que se vincula ao processo de
“desoficialização” do ensino das línguas estrangeiras em contexto escolar.
Segundo a lei, essa disciplina deve ser concebida como um conteúdo
extracurricular, podendo ser estudada isoladamente, sem vínculos com as demais
disciplinas que compõem a grade do Ensino Médio, em centros e institutos que se dedicam
exclusivamente a esse ramo de atividade e não se vinculam ao planejamento escolar de
modo geral.
Nesse sentido, existem algumas expressões que destacamos, tais como “redes
públicas”, “horário regular”, “Centros de Ensino de Língua Estrangeira”, “rede privada”.
Em relação à expressão “horário regular de aula dos alunos”, embora
aparentemente pueril e simples de análise, foi objeto de longas discussões. O principal
objetivo neste aresto resta em como possibilitar o fornecimento desta disciplina estrangeira
na grade curricular. Como a lei faculta ao aluno cursar tal disciplina, assim, somente os
alunos interessados estariam sujeitos ao horário. Como visto em outro momento, a
tendência e a possibilidade interpretativa pode ser, uma vez mais, diferente em cada estado.
No estado do Mato Grosso, a expressão “horário regular” é compreendida como
aquele período em que o aluno está matriculado. Já para o estado de Minas Gerais, esse
horário será em contra turno que o aluno estiver matriculado, ou no 6º horário do turno
diurno (RODRIGUES, 2010).
A textualidade legal permite, justamente, as duas interpretações supra mencionadas,
sem estabelecer com precisão qual está correta ou errada.
Ainda, quando a lei lança em seu contexto, a problemática do ensino e público e
privado deixa claro a existência de diferenças entre as duas modalidades, sendo que cada
rede poderá instituir ao seu modo a implantação do ensino do espanhol.
Em verdade, trata de uma maneira de confirmar que o ensino de língua estrangeira,
na escola não é muito bom. Uma confissão, portanto.
A respeito dessa dicotomia foi elaborado Parecer pelo CNE/CEB: “A Lei nº
11.161/2005 introduz dois termos estranhos à legislação e normas educacionais brasileiras,
sob a forma de substantivos próprios: Centros de Ensino de Língua Estrangeira e Centros
de Estudo de Língua Moderna. Curiosamente, o primeiro mandado implantar-se nos
“sistemas públicos de ensino” (outro termo verdadeiramente esdrúxulo à legislação,
normas e terceirizações no Brasil); e o segundo para ser eventualmente acessados pelo
aluno da rede escolar privada.
Isso posto, aponta-se a oportunidade de registrar nossa curiosidade sobre a origem
destes termos e de sua concepção, ou melhor, da recepção pelos leitores do país deste tipo
de instituição no âmbito da “educação escolar” e da Educação Básica dos brasileiros. E,
sobretudo, podemos aproveitar esta oportunidade para consignar nossa dúvida sobre a
legalidade de elemento desta natureza, em caráter impositivo para a arquitetura
institucional dos sistemas de ensino e dos órgãos executivos dos entes federados
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2008).
O discurso do parecer pode ser enfocado de modo irônico, ao dizer: “registrar nossa
curiosidade”, o que redunda em expressar a incoerência, entre executores da lei e dos
próprios legisladores, que criam normas que sofrem interpretações múltiplas.
Terceiro bloco de análise – artigos 5º e 6º
Art. 5° Os Conselhos Estaduais de Educação e do Distrito Federal
emitirão as normas necessárias à execução desta Lei, de acordo com as
condições e peculiaridades de cada unidade federada.
Art. 6° A União, no âmbito da política nacional de educação, estimulará e
apoiará os sistemas estaduais e do Distrito Federal na execução desta Lei.
Nessa derradeira etapa do trabalho, verifica-se que a lei estabelece quem
regulamentará as “normas necessárias à execução desta Lei”, elegendo os “Conselhos
Estaduais de Educação” para tal finalidade.
Vislumbra-se também que cada Conselho seguirá “as condições e peculiaridades de
cada unidade federada”. Os Conselhos Estaduais seguem o Conselho Nacional de
Educação que mencionado pela lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei nº
9.304/96, art. 8º, §1º1), sendo competente para matérias relativas à educação.
Os Conselhos Estaduais estão ligados à realidade de cada unidade autônoma da
federação (estado membro). Gonzales (2008), em sua dissertação de mestrado, traça um
pequeno percurso dos lugares em que o espanhol foi ganhando ou perdendo na educação
nacional. A autora trata a lei 11.161 como um “acontecimento discursivo” que rompe com
“[...] a memória de não-especificação das línguas estrangeiras que vimos observando a
legislação, pois surge para delimitar o lugar de uma língua: a espanhola”.
Trata-se, portanto, ao menos no âmbito nacional, de um fato novo e polêmico, um
acontecimento que, segundo Gonzales (2008), desata efeitos (como a redação das
Orientações Curriculares para o Ensino Médio, em 2006), efeitos esses que afetam antigas
rotinas de ensino de línguas nas escolas, como línguas fundamentalmente veiculares.
O que salta aos olhos no contexto deste estudo é justamente a ideologia implicada
no texto legal. Ao exigir de forma coercitiva a implantação da língua espanhola na escola,
o legislador acaba por menosprezar a pertinência do ensino-aprendizagem desse idioma
nas escolas brasileiras. O texto nega, por assim dizer, a necessidade urgente da população
do território nacional, também país integrante do Mercosul, adquirir fluência e domínio da
língua espanhola. Somadas a isso, aparecem no texto de lei ambiguidades interpretativas
que tanto comprometem a efetiva aplicação da lei nas instituições de ensino.
Considerações Finais
Para a consecução da aprendizagem de línguas, é necessário mais do que o
conhecimento linguístico. Sabe-se que estudar um idioma não se limita apenas à pura
análise das relações entre os signos, através da fonologia, morfologia e sintaxe, ou as
relações dos signos com a concepção de realidade que representam, através da semântica.
Assim, para que se considere a presença do ensino de um determinado idioma na grade
escolar, é fundamental que se exija, também, o preparo da estrutura educacional para que
possa ser oferecido um ensino de qualidade, e não apenas uma disciplina inclusa na grade
curricular.
Além disso, é necessário compreender a análise das relações entre os signos e seus
usuários e o contexto envolvido, fator pretendido pela Pragmática. Portanto, não basta a
implementação de um novo idioma por meio de uma lei, é preciso que esteja de acordo
com a realidade do país, sendo importante por parte de todos, inclusive dos legisladores, o
domínio discursivo e interpretativo de cada verbete da lei.
A lei por sua vez desconsidera uma série de necessidades e acaba fragmentando o
contexto social, dando ênfase à questão da necessidade de aprendizagem da língua, mas
também impondo o ensino, de uma nova língua sem considerar a realidade social, e
destacar os obstáculos a serem superados para que a língua seja ensinada de maneira
adequada.
No entanto, é possível compreender que a lei também tem a sua importância e é
preciso que seja valorizada pelos educadores, pois ela garante que nas escolas públicas e
privadas se tenha outra opção de língua estrangeira, que vá além da língua inglesa. Com a
intenção, também, de proporcionar um laço comunicativo mais efetivo com os países
vizinhos, que têm como língua materna a língua espanhola.
Nesse sentido, é possível concluir que a implantação da referida lei precisa ser
analisada de várias formas, com a análise de seus pontos positivos e também observação
dos negativos. Questões que envolvam a educação e o aprendizado, de uma forma geral,
precisam ser discutidas com afinco, para que possa se construir melhorias e para que o
aprendizado possa ocorrer da melhor maneira possível.
Destacando, também, que os pontos ambíguos no conteúdo da lei, que geraram
várias interpretações precisam ser revistos e esclarecidos, para que a sociedade ter seus
direitos garantidos, e para a melhor realização do processo de ensino-aprendizagem.
Referências:
BRASIL. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996.
BRASIL. Lei nº 11.161/05, de 05 de agosto de 2005.
BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares nacionais: língua estrangeira/ensino
fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CALDAS-COULTHARD, C. R. Scliar-Cabral (org.). Desvendando discursos: conceitos
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