Pensar pra que

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Filosofia: pensar pra quê?1
Wilson Correia2
“Jamais se delega a função de pensar” (Alain).
A pergunta “filosofia: pensar pra quê?” nos coloca uma tarefa que é a de tentarmos
estabelecer um objetivo para nossa atividade de pensamento no âmbito da filosofia.
Contudo, o que é pensar filosoficamente?
Do ponto de vista etimológico, “filosofia” significa amor pela sabedoria, paixão
pelo saber. Trata-se de uma busca racional pela construção de informações e
conhecimentos não dogmática, mas aberta. Assim, a verdade que a filosofia persegue é
sempre uma verdade flexível, passível de ser refeita e sempre provisória. É com esse
propósito que a filosofia debruça sobre o ser e sobre a realidade, em suas múltiplas
dimensões, fazendo-se crítica e rigorosa. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a
filosofia “tem o próprio saber como questão principal, de modo que o objeto por
excelência da filosofia seria a própria filosofia” (GIACOIA JÚNIOR, 2009, p. 82). É
ela o campo propício à experiência e ao exercício de pensamento, visando à reflexão
sobre o que já foi produzido no campo filosófico, mas, também, buscando criar e
produzir à medida que problematiza sobre o existente ou cria problemas novos sobre os
quais investiga.
Nessa perspectiva, então podemos indagar: qual é a utilidade da filosofia? Como
diz Marilena Chauí:
“Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se
não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes
estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da
cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas
artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa
sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa
prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então
podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os
seres humanos são capazes” (CHAUÍ, 2000, p. 17).
1
Texto-base da palestra homônima, proferida Prof. Wilson Correia, ocorrida nas dependências do Projeto
Tecelendo, coordenado pela Profa. Andreia Santos, do Centro de Formação de Professores da UFRB, no
dia 20 de abril de 2011, entre 19h00min e 22h00min.
2
Licenciado em Filosofia (PUC-Goiás), com especialização em Psicopedagogia (UFG) e mestrado (UFU)
e doutorado em Educação (UNICAMP). Adjunto em Filosofia da Educação no Centro de Formação de
Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: [email protected].
É por que iniciamos perguntando sobre o que é pensar. Giacoia Júnior asseguranos que pensamento designa o “Conjunto da atividade mental; representação intuitiva,
sensível ou conceitual; ideia” (2009, p. 139), exatamente aquilo com que a filosofia se
ocupa de maneira primordial.
Ora, as atividades mentais compreendem, entre outras, as de: perceber,
memorizar, praticar uma linguagem, conscientizar-se, associar, avaliar, comparar,
compreender, escolher, decidir, interpretar, julgar, refletir e verificar. Por meio desses
atos cognitivos, representamos, sensível, racional ou intuitivamente, o real, tornando
presente o ausente.
Por isso, esse conjunto de ações mentais resulta em ideias ou formas de ver o
existente. Daí falarmos em cosmovisão, mundividência ou visão de mundo. Pensar em
geral, pois, e pensar filosoficamente, é fundamental ao ato de produzir informações e
conhecimentos com vistas para a sabedoria. Decisivo ao ato de produzir sentido
existencial.
Desse modo, o pensamento filosófico humano associa-se aos fenômenos
mentais, na linha do que nos indica Descartes: “O que é uma coisa que pensa? É uma
coisa que duvida, que entende, que concebe, que afirma, que quer, que não quer, que
imagina também e que sente” (DESCARTES, Princípios da filosofia, 1,32).
E, ainda:
“Pela palavra pensamento entendo tudo aquilo que se faz em nós de tal
modo que nos apercebamos imediatamente por nós próprios. É por isso que
não somente entender, querer, imaginar, mas também sentir é aqui a mesma
coisa que pensar” (DESCARTES, Princípios da filosofia, 1,9).
Mesmo havendo quem faça distinção entre pensar e sentir, entre pensamento e
volição, parece certo que a atividade cognitiva de pensar filosoficamente é
imprescindível para que possamos compreender, no sentido de que se trata de “um
modo de conhecimento que supõe que o sujeito é um intérprete que participa do
processo ou da realidade cuja estrutura e sentido ele procura apreender, descrever e
explicar” (GIACOIA JÚNIOR, 2009, p. 46).
Dessa maneira, torna-se crucial o saber pensar. Sem isso, o que fazer das
informações, dos conhecimentos e saberes a que se tem acesso no percurso da educação
formal? (não é sem motivos que a filosofia sempre esteve presente em nossos cursos
universitários, e, agora, também na educação básica brasileira).
Com os materiais simbólicos da informação, do conhecimento e do saber
filosófico, imbuindo-se de propósito e determinação, quem pensa pode analisar. E
analisar é a capacidade de identificar, descrever e conceituar as partes de um todo,
estabelecendo as relações que essas partes mantêm entre si, sejam elas relacionadas a
um todo aperceptivo, teórico ou material e prático.
Entremeando a análise, surge a atividade cognitiva denominada comparação.
Sem comparar, como estabelecer as semelhanças e as diferenças entre as partes de um
todo e mesmo entre fenômenos, coisas, seres e relações?
Segue-se daí que quem analisa comparando tem facilitada a tarefa de classificar
e de determinar as classes a que pertencem os objetos explorados. E classificar só é
possível a quem se dedica a criticar, no sentido de separar, julgando e examinando com
acuidade cognitiva “o que” pertence “a que” em face dos fenômenos, suas causas e seus
efeitos, suas implicações e suas relações.
Todo esse percurso faz sentido quando sabemos que a atividade de pensamento
é a que nos garante na tarefa de deduzir: tirar conclusões sobre os objetos pensados, o
que só é possível mediante o entendimento das relações existentes entre partes de um
todo e entre coisas, seres e fenômenos aos quais aplicamos nosso espírito. É a chegada a
conclusões seguras sobre os objetos investigados o fato que nos possibilita prever e
antecipar conseqüências, facilitando-nos a escolha, a decisão e nossa ação no mundo.
Se abordamos o ato de pensar filosoficamente relacionado com nossa vida
estudantil, então nos parece plausível a ideia de que todo esse percurso que compreende
as atividades cognitivas contribuem para o ato de sintetizar. A síntese identifica-se com
a reconstrução das partes de um todo, de maneira a não nos perdemos no particular, mas
de modo a articulá-lo com o geral, bem como o singular e o universal, o uno e o diverso.
Por fim, essa síntese filosófica pode funcionar como prova e comprovação da
verdade sobre o objeto de estudo, pesquisa ou investigação. Aí valem os dados, as
informações e os aspectos logicamente encadeados que sustentam a compreensão que
deve subsidiar nossa decisão e nosso ser, estar e agir na sociedade e no mundo.
Mas... para que tudo isso? Pensar filosoficamente para quê? Talvez valha a pena
fazer o exercício de entender que o ato pensar filosoficamente, e de pensar por conta
própria, talvez nos ajude:
- a aquilatar o valor de pensar para não ser pensado, decidir para não ser
decidido, autoguiar-se para não ser guiado, na busca da autonomia cognitiva;
- a assumir o desafio de construirmos um modelo social justo e que preze a
liberdade, tornando-nos senhores de nossos próprios destinos;
- a batalhar pelo nosso direito à cultura da cidadania e da felicidade, sem as
quais somos um entre a multidão, um número apenas;
- a buscar o sentido e o significado do mundo, da história e do saber do povo,
bases do sentido existencial e do nosso propósito na sociedade e no mundo;
- a cultivar a consciência crítica para uma ação consequente ao longo de nossa
vida, salvaguardando nossa proatividade;
- a deixar para trás nossa ingenuidade perante os processos existenciais, o que
não se faz sem o discernimento entre o bem e o mal, o bom e o mau;
- a educar formando homens e mulheres cientes de seus papéis pessoais e
sociais, sabendo que a educação é o processo que faz o humano ser o que ele é;
- a encarar o desafio da busca pelo sentido existencial ante a perplexidade do
mundo, valorizando nosso espanto e nossa admiração perante a realidade;
- a entender qual o real valor do pertencimento ao gênero humano, fazendo-nos
livres das discriminações, preconceitos, guetismos, manias, fanatismos e obtusidades;
- a estabelecer o que significa fazer política com “P” maiúsculo, tendo diante dos
nossos olhos o valor da coisa pública, do bem comum e da vida social compartilhada;
- a melhor equilibrar nossas contradições, nossas frustrações e nossas
esperanças, uma vez que vivemos antagonismos e conflitos diversos ao longo de nossa
vida particular, profissional e social;
- a não abrir mão da luta pelo autoconhecimento e do conhecimento do outro,
pois, sem esses conhecimentos, não saberemos o valor de nossa identidade e
subjetividade;
- a não cair na tentação dos sectarismos estreitos que nos fazem fechados em nós
mesmos, como se fôssemos mônadas plenipotentes e absolutamente indivisíveis;
- a não sucumbir perante as asfixiantes ideias dominantes e dos poderes
estabelecidos, posto que também podemos ser portadores de poder;
- a potencializar o amor intelectual ao que de humano nos colhe dia após dia,
potencializando em nós a empatia ontoantropológica fundamental;
- a pugnar por uma economia realmente justa, plural e igualitária, empregando as
riquezas que produzimos sob o viés da ética da solidariedade;
- a radicalizar os valores de uma democracia, o mais ampla possível, posto que
podemos ser plurais e diferentes sem ter que aniquilar nosso sentimento de igualdade;
- a superar nosso modo mágico de representar o mundo, a vida e a sociedade,
uma vez que nossa história é socialmente construída, ainda que com limitações e
determinações multiformes e amplamente variadas;
- a valorizar o saber da vida, do mito, da filosofia, da ciência, da técnica e das
artes, empregando sapientemente as informações, conhecimentos e saberes que nós
mesmos produzimos com os pés no chão da interdisciplinaridade epistêmica;
- a viver nossas múltiplas diferenças com equidade e com liberdade, pois um
humano não nasceu para ser servo ou escravo do outro, mas para dele se fazer um
companheiro, uma companheira;
- a transcender nossos preconceitos e nossas manias dogmáticas, dado que a vida
mesma é aberta e pede inter-relações as mais arejadas possíveis.
Por fim, pensar filosoficamente pode nos encaminhar para a compreensão de
que, atualmente, falta-nos a virtude da humildade ôntica, essa que coloca os humanos
em pé de igualdade em meio aos demais existentes, merecedores de respeito, os quais
pedem mais que compaixão – pede-nos o senso de pertencimento.
Referências bibliográficas
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
DESCARTES, R. Princípios de filosofia. Trad. J. Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.
GIACOIA JÚNIOR, O. Pequeno dicionário de filosofia contemporânea. São Paulo:
Publifolha, 2009.
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