Livros Analisados Farsa de Inês Pereira

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Livros Analisados
Farsa de Inês Pereira
Preparação: Prof. Menalton Braff
O Autor
Bem pouco se sabe sobre a vida de Gil Vicente. Presume-se que tenha
nascido por volta do ano de 1465, segundo alguns, em Guimarães. Não
existem documentos que o comprovem. Em 1485, aos vinte anos,
provavelmente, casa-se com Branca Bezerra. Ingressa no palácio real na
qualidade de ourives, mais tarde Guarda-Mor das Jóias da Coroa, cargo
que acumula com as funções de organizador e animador de festas e
outros eventos no palácio do rei. Em 1502, mercê de sua familiaridade
com o palácio, entra na câmara da rainha, Dona Maria, que permanece de
cama, para saudar a chegada do príncipe herdeiro, futuro Dom João III. É
sua estréia como autor e ator, representando o Auto da Visitação
(também conhecido como Monólogo do Vaqueiro). Instado pela Rainha
Velha, Dona Leonor, a repetir no Natal o Monólogo, Gil Vicente, contudo
prepara sua segunda peça ( Auto Pastoril Castelhano) para a ocasião. Os
aplausos o entusiasmam, os pedidos de outras peças o acompanhariam
pelo resto da vida. Provavelmente tenha morrido em 1537, pois sua
última peça (Floresta de Enganos) foi encenada em 1536.
A Obra
A Farsa de Inês Pereira deve ser entendida como uma peça narrativa, com
início meio e fim, em que uma ação desencadeia a ação seguinte, até seu
final. As personagens estão todas envolvidas na mesma seqüência de
ações, disputando espaço todas entre si. E isso a diferencia da maioria
dos autos, tão comuns no teatro de Gil Vicente, de ação fragmentária,
com mera justaposição de sketches sem conexão dramática. Pode-se
começar por qualquer um deles ou omitir algum sem grande prejuízo da
peça. Eram colares onde desfilavam os tipos sociais mais diversos como
contas. Neste último tipo de peças, as personagens são quase sempre
alegorias (representação de uma entidade abstrata - o verão, a ambição,
vícios, virtudes, etc. - ou de grupos sociais - camponeses inocentes,
fidalgos orgulhosos, etc. - ou de profissionais - sapateiros ambiciosos,
juízes corruptos, etc.). Ao contrário, na Farsa de Inês Pereira, a
personagem central (Inês), tem desenvolvimento psicológico bem nítido,
faz parte de um enredo, encaminhando-se, desde o início, para um final
cômico, como personagem evolutiva. A peça foi escrita para rebater a
suspeita de pessoas da corte que suspeitavam da autoria vicentina de
peças anteriores. Julgavam-no incapaz, sem escola, para tanto. Gil
Vicente propõe-lhes que lhe dêem um mote e a peça é seu
desenvolvimento. Mais quero asno que me carregue do que cavalo que
me derrube é o tema proposto.
Personagens
Inês Pereira, moça casadoira, leviana, pensando apenas em enfeitar-se e
divertir-se.
A mãe, mulher comum, com algumas posses, pensamento típico da Idade
Média. Sensata, religiosa, tipo bem popular.
Lianor Vaz, alcoviteira, tipo muito comum no teatro de Gil Vicente e na
sociedade de seu tempo.
Pero Marques, o parvo, primeiro pretendente de Inês, inicialmente
rejeitado, com quem Inês casa depois de enviuvar. Ele é o burro que me
carregue.
Brás da Mata, escudeiro fanfarrão, mentiroso a respeito de seu estado
(pobreza), bem falante, bem cantante, é escolhido para marido por Inês.
É o cavalo que me derrube.
O moço, ajudante de ordens do escudeiro. Vive descontente com a
pobreza a que o arrasta o patrão.
Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros. São os dois que localizam Brás
de Mata e o trazem até Inês.
Ermitão, antigo enamorado de Inês, que vai tornar-se seu amante.
Local
Quase na totalidade da ação, esta se passa na casa de Inês Pereira e sua
mãe. No final, Inês Pereira e Pero Marques estão na estrada,
atravessando um rio, a caminho da ermida, onde Inês terá um encontro
amoroso com o Ermitão. Deve-se observar que a passagem do primeiro
espaço para o segundo se dá de maneira ilógica, sem interrupção de um
diálogo iniciado em casa.
Tempo
O tempo histórico (ou externo) é a contemporaneidade de Gil Vicente, ou
seja, fins da Idade Média. O tempo narrativo, a exemplo do espaço, não é
mimético, não copia a realidade, pois se passam três meses, por exemplo,
sem que se perceba esta passagem. Ações que demandariam dias ou
semanas, acontecem sem interrupção de uma mesma cena.
Observação: Gil Vicente desconhece ou, pelo menos, despreza as três
unidades clássicas estabelecidas por Aristóteles em sua poética e norma
rígida na tragédia clássica. O tempo não pode sofrer solução de
continuidade - um dia de duração (não da peça, que dura pouco mais ou
menos uma hora, mas daquela fatia de vida que ela representa). O
espaço não pode ter diversidade (o palco, em geral, representava o
patamar de uma escadaria em frente a um palácio). A ação tem que ser
una, girando em torno do desenvolvimento de um único conflito, uma
única célula dramática).
A ação
Inês Pereira está dentro de casa, sozinha, fingindo que está costurando.
Está revoltada, pois sente-se escrava até mesmo dos objetos
(coisificada):
Inês - Renego deste lavrar
e do primeiro que o usou!
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mao é d'aturar!
(...)
E assi hei-de estar cativa
em poder de desfiados? - costura em travesseiros
Está colocada aí a problemática do casamento. Difícil, em Portugal da
época, com os homens pelos mares nunca dantes navegados. Mas Inês
precisa fugir da prisão.
Chegando da missa, a mãe, e a repreende por não estar trabalhando:
Mãe - Acaba esse travesseiro!
Hui! Naceo-te algum unheiro?
Ou cuidas que é dia santo?
Aqui, nesta segunda cena, já se pode perceber a diferença de linguagem
(característica de Gil Vicente = adequação da linguagem ao tipo humano
ou social) entre a Mãe e Lianor Vaz, mulheres mais velhas, que falam
através de estereótipos lingüísticos, típicos do pensamento popular
medieval (ditados, frases feitas) e Inês, de linguagem desabrida, quase
sempre irônica e debochada.
Mãe - Cal'te, que poderá ser,
que "ante a Páscoa vem os Ramos".
Não te apresses tu, Inês
"Maior é o ano que o mês:"
Neste momento entra Lianor Vaz, a alcoviteira, e trás uma carta de Pero
Marques. Mas antes, esconjura-se com o que lhe aconteceu: Na estrada,
foi atacada por um clérigo que a queria seduzir. Momento cômico, com
emprego de ironia, tematiza a corrupção do clero.
Lianor - Diz que havia de saber
se era eu fêmea se macho.
(...)
- Irmã, eu t'assolverei
c'o breviario de Braga. (novo trocadilho = braguilha)
(...)
Quando vio revolta a voda (voda, pode ser o mesmo que bodas, mas
também pode ser troca da consoante
inicial por uma homorgânica)
foi e esfarrapou-me toda
o cabeção da camisa.
Já se pode observar, a esta altura, que a peça toda é escrita em
redondilhos maiores. Um pouco a frente, novo calembur de efeito
humorístico:
Lianor - Mas queria-me conhecer!
(no sentido bíblico, "conhecer" pode ser "possuir")
Logo abaixo, Lianor diz "...que amiga e bom amigo/mais aquenta que o
bom
lenho.", empregando um ditado popular, como acima ficou dito.
Durante a leitura da carta de Pero Marques (o parvo), percebe-se o
linguajar debochado de Inês.
Inês - Na voda de seu avô,
ou onde me viu ora ele?
Inês não se agrada do pretendente pelos absurdos que diz, mas a mãe,
sabedoria poupular, pés no chão, insiste:
Queres casar a prazer/no tempo d'agora, Inês?/Antes casa em que te
pês,/que não é tempo
d'escolher."
Encerra-se a terceira cena para a entrada de Pero Marques. Cheio de
palavras sem sentido, de parvoíces como sentar-se de costas para as
mulheres e outras asneiras. As mulheres afastam-se e, vendo-se a sós
com Inês, alega que está ficando noite e não pode ficar sozinho com uma
donzela. Ela se revolta com a matutice e enxota-o de sua casa. As
mulheres voltam e se espantam com o fato de que ele já se fora. Em
seguida entram os judeus casamenteiros, com notícia de que haviam
encontrado um escudeiro como Inês havia encomendado: discreto, que
fale com espírito, que tanja a viola, etc.
Entra o Escudeiro. Seu Moço entra renegando a vida miserável que leva,
quase pondo a perder o projeto do Escudeiro. Vencida a resistência da
Mãe, Inês e o Escudeiro se casam. Em seguida ele se põe a pregar as
janelas, a fazer suas proibições, que são várias. Inês não deve responderlhe nunca, não pode ficar à janela, não pode ir a missa, não pode
conversar com homem ou mulher. Terminadas as proibições, declara que
parte para o Marrocos,
"me vou fazer cavaleiro.", e deixa seu moço tomando conta de Inês. Logo
depois chega uma carta dizendo que Brás da Mata fora morto por um
camponês mouro (sozinho). Liberta, Inês despede o Moço, e pede a Lianor
Vaz que lhe traga novamente Pero Marques. Depois do casamento,
aparece um ermitão pedindo esmola, falando castelhano O bilingüismo é
outra das características de Gil Vicente).
Ermitão - Señores, por caridad
dad limosna al dolorido,
ermitaño de Cupido
para siempre em soledad.
Ao descobrir no Ermitão um admirador enamorado, Inês promete-lhe
visitá-lo na ermida, o que faz em seguida, cavalgando seu marido,
enquanto canta uma cantiga em que ridiculariza Pero, que, a cada estrofe,
estribilha:
Pois assi se fazem as cousas". Inês canta: Marido cuco (corno) me
levades (...) Bem sabedes vós, marido,/ quanto vos amo:/sempre fostes
percebido/pera gamo. (corno) E é assim que termina a peça.
Considerações finais: "Entendendo que a sociedade de seu tempo era
corrupta, guiada por interesses materiais e desprovida de sinceridade nos
propósitos, o autor procura mostrar a história de um aprendizado. Inês
Pereira, ao passar pela experiência conjugal, aprende uma lição que
marca para sempre: o mundo é dos espertos, dos mais adaptados ao jogo
do ser/parecer." (Álvaro Cardoso Gomes)
Poeta dos maiores, do Humanismo português, Gil Vicente passou à
história, principalmente, como o pai do teatro português, como seu
fundador. Foi o primeiro dramaturgo português a fixar um texto para a
representação. Dos momos e entremezes, dos mistérios, milagres e das
moralidades, formas do teatro medieval, nada nos resta. Um teatro
despojado, sem cenários especiais ou guarda-roupa brilhante, de gestos
muitas vezes improvisados, mas com o texto (redondilhos rimados) bem
definido. Isso foi o que nos ficou. Um homem de seu tempo, um pé na
tradição medieval, outro na modernidade, na observação do que ocorria a
seu redor, eis Gil Vicente.
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