CASA DE SEMENTES: RELATO DA EXPERIÊNCIA DE ESTRUTURAÇÃO PARTICIPATIVA NO ASSENTAMENTO JACAMINHO, MT *1 *2 *3 *4 Aline Nava , Iberê Martí , Vinicius Teixeira Arantes , Alexandre de Azevedo Olival 2 Instituto Ouro Verde. E-mail: [email protected]; Universidade do Estado de Mato Grosso. E3 4 mail: [email protected]; Instituto Ouro Verde. E-mail: [email protected]; Instituto Ouro Verde. E-mail: [email protected] 1 RESUMO O presente trabalho apresenta a metodologia empregada pela equipe do projeto “Extensão Rural e Agricultura Familiar”, desenvolvido pela Universidade do Estado do Mato Grosso em parceria com o Instituto Ouro Verde junto ao assentamento Jacamim, no município de Alta Floresta – MT. Trata especificamente do processo de estruturação da casa de sementes do assentamento, como parte da estratégia de desenvolvimento definida por moradores, técnicos, professores e estudantes das UNEMAT. Esta definição foi feita após diagnóstico participativo realizado nas comunidades. Para a estruturação da casa de sementes, foram realizadas uma série de reuniões e capacitações no sentido de identificar as áreas e as matrizes para coleta, formar grupos de coletores de sementes e estruturar mecanismo de gestão da casa. Como principais resultados têm-se o envolvimento de jovens e o início do processo de recuperação de nascentes no assentamento. O trabalho reforça a idéia da importância da participação popular como base de quaisquer ações de desenvolvimento. Palavra chave: Agricultura familiar, agroecologia, sementes, sistemas agroflorestais. INTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta a metodologia empregada pela equipe envolvida no projeto “ExtensãoRural e Agricultura Familiar”, desenvolvido pela Universidade do Estado do Mato Grosso em parceria com o Instituto Ouro Verde, junto ao assentamento Jacamim, no município de Alta Floresta – MT. Oprincipal objetivo do projeto é a estruturação de mecanismo de extensão universitária que esteja articulado com as demandas da agricultura familiar da região e que possibilite o envolvimento ativo de estudantes, professores e agricultores familiares nas questões do desenvolvimento sustentável. Alta Floresta é um município localizado na região extremo norte de Mato Grosso, em uma área conhecida como Portal da Amazônia em pleno “arco do desmatamento da floresta amazônica”. Tratase de uma região que possui 86% dos estabelecimentos rurais relacionados à agricultura familiar, existindo mais de 70 projetos de assentamento de reforma agrária, envolvendo cerca de 20.000 famílias assentadas (OLIVAL, 2004). O modelo de desenvolvimento adotado na região não difere daquele existente em grande parte da fronteira agrícola brasileira, com a derrubada das florestas nativas para a produção agropecuária. De fato, a região do Portal da Amazônia já possui um desmatamento acumulado superior a 50% de sua área total. Apesar da forte presença da agricultura familiar, a falta de estrutura para a sustentabilidade deste segmento faz com que o desmatamento seja acompanhado pelo processo de concentração de renda e terras (PICOLI, 2006). O Assentamento Jacamim foi criado a 13 anos, sendo a maioria de seus moradores, oriundos de um antigo garimpo da região. Localiza-se a cerca de 90 Km da sede do município de Alta Floresta e conta com cerca de 73 famílias atualmente residindo no local. As principais atividades econômicas são a prestação de serviço para proprietários de grandes áreas na região, o funcionalismo público e a pecuária extensiva de corte e leite. A baixa produtividade aliada a utilização de práticas como queimadas e a ampla utilização de agrotóxicos agravam o quadro ambiental do local. O diálogo estabelecido entre estudantes e professores da UNEMAT, técnicos do Instituto Ouro Verde e agricultores permitiu identificar as principais demandas locais. Dentre estas demandas, destacaramse aquelas da área ambiental, como a preservação das áreas de floresta e a revitalização das áreas de preservação permanente (APPs). As questões da área ambiental precisavam ainda estar articuladas com as demandas na área econômica e social, em especial a geração de renda e o resgate da auto-estima e vontade de viver no assentamento. Foi partir deste diálogo inicial e da definição destas demandas que iniciou-se o processo de construção da Casa de Sementes. A casa de sementes pode ser caracterizada como um espaço para o adequado armazenamento, seleção e conservação de sementes. Experiências desenvolvidas em diversas regiões do Brasil têm mostrado que esta pode ser uma estratégia importante para estimular a recuperação de áreas degradadas tendo em vista o envolvimento das famílias através de sistemas de troca, escambo ou empréstimo de sementes (BALLIVIÁN, 2007). Os objetivos definidos para a Casa de Sementes do Assentamento Jacamim foram a criação de um espaço que, ao mesmo tempo em que facilitaria a recuperação das áreas degradadas, também atuaria no sentido de mobilizar e envolver os jovens, articulando-os com os moradores com mais experiência do assentamento. Para a recuperação das APPs, moradores e técnicos envolvidos com o projeto optaram pela estruturação de sistemas agroflorestais de sucessão (SAFs), utilizando, para isso, a semeadura direta das sementes coletadas (PÁDUA, 2002). Desta forma, a existência de um espaço para a seleção e armazenagem de sementes na comunidade é peça fundamental para facilitar a recuperação destas áreas. METODOLOGIA Todas as ações do projeto foram baseadas em um diagnóstico participativo realizado nos primeiros três meses de atividades (Maio a Julho de 2008). O diagnóstico teve como objetivo possibilitar um amplo diálogo entre agricultores, técnicos, professores e alunos da UNEMAT, levantando as principais demandas e desenhando as estratégias iniciais para superação dos desafios vivenciados pelos moradores. De fato, esta etapa constitui-se fundamentalmente de um processo de “autodiagnóstico” da comunidade, mediado pelo grupo técnico envolvido na proposta, sendo construído a partir de diferentes etapas: a) Oficina de capacitação inicial com moradores do assentamento para definição das metodologias a serem aplicadas no diagnóstico participativo. Participaram desta atividade 40 pessoas, sendo, técnicos do projeto, agricultores, professores e estudantes da UNEMAT. Esta oficina teve a duração de 04 dias e foi dividida em 02 momentos. Inicialmente foram trabalhados conceitos como agroecologia e economia solidária. No segundo momento os participantes estudaram diferentes técnicas de diagnóstico participativo e estruturaram um roteiro de atividades a serem trabalhadas junto às comunidades do assentamento. b) Realização de entrevistas individuais com todos os moradores do assentamento (73 famílias). Estas entrevistas foram realizadas por uma equipe formada por jovens das comunidades além de membros da equipe técnica do projeto. Foram baseadas em um formulário estruturado, com questões que tratavam de aspectos da produção, meio ambiente, organização social, saúde e educação. c) Realização de reuniões comunitárias para discussão e aprofundamento dos dados coletados durante as entrevistas. Estas reuniões configuraram-se como momentos de construção do planejamento inicial para as ações de desenvolvimento da comunidade. As entrevistas individuais possibilitaram identificar cerca de 80 nascentes dentro do assentamento, além das áreas de floresta ainda preservadas e que correspondiam a 45% da área total do assentamento. Estes dois pontos constituíram-se em aspectos centrais das discussões durante as reuniões comunitárias, surgindo a necessidade de ações garantissem a utilização dos recursos da floresta com a conseqüente preservação e reabilitação das áreas de APP´s das principais nascentes do assentamento. Foi deste diálogo que constituiu-se a idéia da criação da casa de sementes. Como parte do diagnostico participativo, foi realizado pelos estudantes da UNEMAT o levantamento florístico das principais espécies arbóreas com potencial para reabilitação de áreas degradas e usos econômicos. Através deste levantamento foi possível identificar aproximadamente 80 espécies arbóreas, todas características da região de transição do cerrado com a floresta amazônica. Este levantamento foi fundamental para definir as espécies prioritárias para armazenamento de sementes. Definida como ação estratégica dentro do plano de desenvolvimento do assentamento, a construção de casa de sementes foi iniciada. A equipe envolvida definiu quatro etapas centrais para isso: a) Realização de reunião inicial para aprofundamento da questão (duração de 08 horas). Nesta primeira atividade os moradores discutiram sobre as principais espécies que poderiam compor a casa de sementes e iniciaram o planejamento das ações necessárias para sua consolidação. Para isso a atividade foi dividida em dois momentos. No primeiro foram apresentados os resultados do levantamento florístico e discutiu-se sobre os principais usos econômicos e ambientais das espécies identificadas. No segundo momento foi realizado intercâmbio de experiências com moradores do município de Carlinda, que já estavam avançados na estruturação de sua casa de sementes. Como produto desta primeira reunião estruturou-se o planejamento para consolidação da casa de sementes bem como foram definidas as sementes que seriam coletadas e as principais áreas de coleta. b) Formação do grupo de coletores de sementes. Seguindo o planejamento definido na etapa anterior, foram feitas reuniões em 04 pontos do assentamento para a formação dos grupos de coleta de sementes. Nestas reuniões houve a discussão de como seria o trabalho de cada grupo nas coletas de sementes. Ao todo, participaram destas atividades 40 pessoas, inscrevendo-se nos grupos de coleta 23 pessoas. c) Mapeamento e identificação de matrizes. Atividade realizada em parceria com 15 estudantes do último semestre do curso de engenharia florestal da UNEMAT. Esta atividade foi dividida em dois momentos. Inicialmente o grupo de estudantes participou de uma capacitação de 08 horas envolvendo explicações sobre o projeto, técnicas de identificação de matrizes e de georreferenciamento. No segundo momento o grupo dirigiu-se até o assentamento e, acompanhados por representantes dos grupos de coleta, identificou cerca de 180 matrizes. Para cada matriz foram preenchidas fichas de identificação com informações como altura estimada, diâmetro a altura do peito, ataque de insetos, tipo de solo, localização geográfica. d) Definição da gestão da casa de sementes. Como última etapa, técnicos, estudantes da UNEMAT e os grupos de coletores de sementes, reuniram-se em uma oficina para estruturar os mecanismos de gestão da casa de sementes. Nesta atividade, que durou 08 horas, construiu-se um calendário anual de coleta e definiu-se o sistema de armazenamento para cada tipo de semente coletada. Também decidiu-se que a gestão da casa de sementes ficaria sob responsabilidade do grupo de estudantes da escola Estadual Rodrigues Alves, existente dentro do assentamento. RESULTADOS E REFLEXÕES A atividade de coleta da casa de sementes é de responsabilidade do grupo de coletores de sementes, formado principalmente por jovens da comunidade. Conforme estratégia definida, o grupo vai a campo uma vez por mês para, além de proceder a coleta de sementes, monitorar cada matriz mapeada, registrando dados como a presença de flores, frutos novos e frutos maduros. Pretende-se assim atualizar constantemente o calendário de coleta. Todos os dados são armazenados em um banco de dados podendo servir para futuras pesquisas junto a UNEMAT. No grupo de coletores estruturou-se uma divisão organizacional. Existe uma equipe que vai a campo e realiza mensalmente a coleta das sementes, seguindo o calendário anual. No entanto a experiência a campo já demonstra que haverá a necessidade da realização de coletas quinzenais ou até mesmo semanais. A coleta é realizada apenas nas árvores matrizes, o que permite maior controle sobre a qualidade de todo o material coletado. Com o andamento do trabalho, o grupo identificou a necessidade da construção de um viveiro no sentido de criar uma estratégia de utilização de sementes recalcitrantes que não suportam períodos médios e longos de armazenamento. Outra equipe participa da organização da casa de sementes. Esse grupo é responsável pela correta armazenagem do material e pelo registro de entrada e saída. Todas as sementes trocadas/ vendidas têm seu destino registrado para posterior avaliação. No mês de Fevereiro de 2009 foi realizada a primeira coleta de sementes. Coletou-se cerca de 20 Kg de sementes que deverão ser utilizadas para reabilitação de duas nascentes que, juntas, fornecem água a 28 famílias do assentamento. As espécies coletadas foram: Pequiá (caryocar villosun); Seringueira (hevea brasiliense); Taturubá (pouteria sp); Embaúba (cecropia sp); entre outras. A participação da comunidade é um dos grandes desafios posto perante o projeto. De fato, O histórico do assentamento Jacamim demonstra inúmeros projetos chamados “de cima para baixo” que não tiveram sucesso devido, fundamentalmente, a falta de afinidade desses projetos com a realidade local e a completa inexistência de acessória técnica. O fracasso destas propostas consolidou junto aos moradores, principalmente junto aos pioneiros do assentamento, sentimentos como insegurança e desconfiança em relação a qualquer proposta. Trata-se assim de um povo marcado pela descrença, sentimento que pode ser considerado como uma “proteção” frente a propostas que levariam, novamente, prejuízos aos moradores. Este histórico foi considerado no momento de pensar as estratégias de apoio ao assentamento. A construção de forma conjunta do diagnóstico participativo e a definição da casa de sementes como elementos agregador de forças e esperanças da comunidade vem contribuindo para a superação deste quadro, conforme destacado pelo agricultor Pedro Lopes, pioneiro no assentamento: “O povo aqui existiu, insistiu, persistiu e desistiu....agora, com esse trabalho, a gente sonha de novo.” No entanto, trata-se de um processo lento. O sentimento de participação e de confiança na capacidade de resolução dos problemas são reconstruções lentas. Entretanto, verifica-se no trabalho desenvolvido que, mesmo moradores que não participam ativamente do grupo torcem pelo sucesso da casa de sementes. Um dos pontos que vem sendo destacado como positivo é o envolvimento de jovens que antes pensavam apenas em ir morar na cidade e pouco se dedicavam aos estudos. Com o envolvimento nas ações da casa de sementes alguns passaram a ter, inclusive, melhoria no desempenho escolar, conforme destacado por uma mãe: “Antes eles não se interessavam pelas aulas, agora com o grupo de coletores, eles (os jovens) querem ir as escola, e participar das atividades do grupo.” Os moradores reconhecem a importância de preservação das APP´s. No entanto, a forma de ocupação levou ao desmatamento e a baixa renda observada no assentamento. Neste momento, para reabilitar as áreas degradadas são necessários recursos econômicos que os assentados não têm. Ações comunitárias, como a casa de sementes, podem ser uma saída para reabilitação destas áreas e a conservação dos recursos hídricos, podendo ainda ser uma opção de renda aos moradores. CONCLUSÕES A experiência desenvolvida no Jacamim mostra a importância de atividades comunitárias e participativas. Neste sentido, talvez mais importante que as sementes coletadas, a renda que pode ser gerada, as nascentes reabilitadas, seja possibilitar o reconstrução da cidadania, da cooperação na comunidade. As ações participativas criam o comprometimento dos atores envolvidos, agora sujeitos, e percebem que podem transformar sua realidade. O processo de construção da casa de sementes permite já visualizar avanços neste sentido dentro do assentamento. No entanto, são constantes os desafios a serem superados, A baixa motivação dos moradores e a forte descrença em sua capacidade de superação das limitações são os principais fatores que devem ser enfrentados não apenas para a concretização da casa de sementes, mas para o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento construída neste local. O envolvimento dos jovens e a sua motivação em participar das atividades da casa de sementes, juntamente com a possibilidade de envolver a escola nas atividades criam perspectivas promissoras ao desenvolvimento do trabalho. De fato, já há procura por parte da Secretaria de Educação de Alta Floresta no sentido de incorporar a casa de sementes, os grupos de coleta e o futuro viveiro como parte de sua estratégia pedagógica. Esta articulação pode garantir a continuidade das ações, mesmo após o término do apoio técnico da UNEMAT e Instituto Ouro Verde. BIBLIOGRAFIA BALLIVIÁN, J.M.P. et al. In Ti Fy Si - Casa de Sementes Antigas: Uma experiência indígena Kaingang. Revistas Agriculturas - v. 4 – nº3 - outubro de 2007 OLIVAL, A. A. Estudo propositivo do território Portal da Amazônia. Campo Grande: Fundação Cândido Rondon, 2006. 170p. PÁDUA, C.V.; et al. Sistemas agroflorestais em assentamentos de reforma agrária. Experiência PDA- Ipê e Terra Viva. Brasília, 2002. PICOLI, F. O Capital E Devastação Da Amazônia. Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2006.